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‘MADU GaSPAR, tuma série de animais, A serra é uma excelente localida- de para caga e as figuras pintadas nos painéis sf0 tao bem claboradas que em alguns casos foi posstvel esta- belecer 0 sexo ¢ a idace do animal. Entre os peixes foram identificados piaba, pacu, piranha e bagre; entre os répteis, tartaruga, cégado ¢ titi a tinica ave identifi- cada foi a ema. Virios mamfferos — como macaco, veado-galheito, veado-campeiro, anta, cachorro-do- mato, lontra, onga, mocé, cutia, capivara, coelho, tatu, tatu-bola, tatupeba, tamandué-bandeira — foram tados nos paredées. Como ¢ possivel perceber, é uma profusio de grafis- mos, de vatiadas formas, temas, técnicas de fabricagio, estilos de representagio, diferentes suportes e distintas implantagées dos desenhos na paisagem, ora chaman- do a atengio para os grafismos, ora os escondendo. Toda essa diversidade denota a profundidade temporal do hibito de usar tintas e decorar rochas ¢ a multipli- cidade cultural que se estabeleceu no que é hoje o territério brasileiro. Estudo dos grafismos através do tempo Apés apresentar a distribuigao espacial dos varios con- juntos de grafismos, mostrarei como os pesquisadores estudam a sucessio dos grafismos ao longo do tempo. Com os varios métodos de datacio existentes, cada dia +60. [AARTE RUPESTRE NO BRASIL émais facil estabelecera época em que um sitio arqueo- légico foi construido ou uma cerfmica fabricada. Ma- teriais orgénicos podem ser datados através da andlise de Carbono-14 ¢, com o desenvolvimento desta técni ca, até mesmo pequenas particulas podem ser analisa- das através do accelerator mass spectrometry. Caso exi tam componentes orginicos misturados aos pigmentos poderio ser obtidas datagdes bem precisas para os grafismos. Mas como estabelecer a data de rochas que foram picoteadas ou pintadas com pigmentos inorgi- nicos? No caso dos grafismos realizados em patedées ott cavernas com sedimento, é possivel correlacioné-los aos materiais arqueolégicos recuperados no solo; po- 6 aspectos relacio- rém, é preciso levar em conta vai nados com a formacio dos sitios arqueolégicos. Muitos sitios foram ocupados, em diferentes épocas, por di tintos grupos culturais ¢ ¢ dificil estabelecer qual deles € 0 responsivel pelos grafismos ou pelos diferentes conjuntos de grafismos que decoram as paredes. Abri- gos localizados em pontos estratégicos nao si0 muito freqiientes na paisagem e podem ter sido ocupados por diferentes etnias e ver tido fungées distintas para cada grupo — moradia, acampamento para caga, armaze- namento de viveres ou cemitério —, 0 que torna a vinculagao de vestigios de solo com os grafismos uma tarefa bastante dificil. Um dos requisitos bésicos para estabelecer tal cortelagio € entender 0 processo de +61. MADU GASPAR ocupasio da regio onde esté inserido o sitio ou con- junto de sftios. Caracterizar os diferentes grupos ¢ estabelecer sua ordenagio temporal ¢ um passo funda- mental na pesquiisa para se poder associar os grafismos aos demais testemunhos arqueolégicos que compoem © sistema de assentamento. Alguns pesquisadores encontraram blocos com gra- fismos que se descolaram das paredes e, com o passat do tempo, foram soterrados por sedimentos que pude- tam ser datados através de métodos convencionais, No Piauf, Ane-Marie Pessis encontrou um painel coberto de sedimentos datado de 10.500 anos AP. A equipe de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UEMG), a0 estudar 0 abrigo Santana do Riacho, na regio de Lagoa Santa, encontrou gros de pigmento vermelho preparado ¢ um bloco coberto por uma pelicula da mesma cor no inicio da ocupagao do sitio, © que sugere que, por volta de 12 mil anos AP, jé cexistiam atividades pictéricas. A mesma equipe encon- trou outros indicios mais seguros — virios blocos caidos do teto do abrigo que apresentam vest{gios de pincura rupestre e que foram cobertos por sedimentos ali depositados. Para André Prous, por volta de 8.000 anos atrds cagadores jé marcavam as paredes com seus grafismos. Investiu-se muito, principalmente em Minas Ge- rais, no estudo da sucessio temporal de representacSes rupestres. André Prous, associando uma série de varid- + 62+ [A ARTE RUPESTRE NO BRASIL eis — estilos, superposigdes, formagao de pitina e de vernizes, destruigio parcial de grafismos por descama- Ges e sua distribuicio nas cicatrizes geolégicas e infor- mages de ordem topogrifica — chegou a evoluséo estilistica do centro e do norte mineiro. Escavag6es no vale do Peruagu, em Januatia, recu- ispersos em niveis datados peraram muitos corantes em torno de 8.000 anos AP até o perfodo ceramico. Essa ampla dispersio temporal dificulta 0 uso desse tipo de vestigio desolo como pista segura para entender a evolugio dos desenhos. Combinando apenas identi- ficagio de estilos, superposigio, localizagio espacial de grafismos, foram estabelecidos nove conjuntos estlis- -0s que se sobrepéem no tempo. As trés primeiras facies fazem parte da tradicao Sao Francisco eas demais, apresentam caracter{sticas locais ou influéncias exterio- res provavelmente relacionadas com a arte rupestre encontrada no Piaul. Os primeitos artesios pintaram pequenas figuras vermelhas, biomorfos de corpo arredondado ¢ mem- bros filiformes, pares de bastonetes com cfrculos nas extremidades, sinais geométricos muito simples, co- bras finas e muito onduladas e sinais em forma de asterisco. No perfodo médio 0 conjunto definido aci- ma é marcado pela bicromia, sendo a maioria dos grafismos sinais geométricos com contorno de uma cor (especialmente o vermelho) e preenchimento interno chapado de outra cor, como amarelo. Figurasem forma 63+ ‘MADU AsPAR de “pés” humanos e peixes aparecem pintadas seguindo © mesmo principio. Mais tarde surge o conjunto deno- minado ficies Cabloco, composto de figuras mais vis- 1052s, bi ou policrémicas cobrindo amplas superficies. Foram pintadas em partes altas dos paredées que ainda nao haviam sido explorados, evidenciando respeito pelos grafismos anteriormente pintados. A fiicies seguinte, denominada Rezat, caracteriza-se pela presenga de figuras retangulares verticais muito grandes, pintadas em duas cores, sendo geralmente o interior branco ou amarelo e 0 contorno preto ou vermelho, Acompanham essas representagbes peixes e répteis pretos ou brancos e formas que lembram tridéc- tilos ou cacticeas. Mais recentes que os outros conjun- tos ¢ provavelmente contemporineas a ficies Reza, alguns sftios estampam grandes pinturas de seres vivos acompanhadas de sinais pontilhados que recobrem os grafismos anteriores e marcam uma certa ruptura com a temédtica mais tradicional. Sio figuras de uma tinica cor, geralmente preto, com varios exemplares em ama- relo ou vermelho. Representam rogas de milho, coquei: ras, tamandués, tatus, sfurios, pernaltas ¢ cobras gran- des ¢ pouco sinuosas que delimitam painé Segundo André Prous, 0 perfodo final é integrado por trés estilos distintos (A, B eC) que sio marcados por influéncias externas. O conjunto Cé formado por gravuras picoteadas de veados realizadas em paredes verticais sobre os grafismos ali previamente exi entes. +64. ‘A ARTE RUPESTRE NO BRASIL Os artesdos preparam a superficie para execugao das gravuras com uma camada de tinta vermelha, compor- tamento que materializa a violenta ruptura cultural com o passado. J4 0 conjunto B correlaciona-se com a tradigio Nordeste ¢ conta com pequenas figuras hu- manas gesticulando e alinhamentos de aves ou quadri- pedes. Sdo pequenas figuras pintadas em cor preta sobre suportes irregulares que foram desprezados pelos antigos pintores. Algumas formam cenas como grupos familiares, c6pula e pessoas em tomo de drvores. Nio hi, ainda, elementos que permitam estabelecer a suces- so cronolégica dos conjuntos mais recentes, pois estes nfo se sobrepdem entre si, tendo sido claborades em sitios ou painéis distintos. No centro mineiro a equipe de Minas Gerais tam- bém estabeleceu uma sucessio cronolégica de grafis- mos tio complexa como a do norte do estado. Nessa regiio, no periodo tardio, uma figura se destaca ¢ fornece uma clara referéncia cronolégica: trata-se de uma representagio de machado semilunar que sugere que as titimas pinturas foram feitas por grupos cera- mistas. ‘A equipe da Fundagio Museu do Homem Ame: cano, que estuda sistematicamente a pré-histéria do Piaut, especialmente a regiso de Sao Raimundo Nona- to, fornece uma interessante reconstituicéo da evolu- Gio dos grafismos. +65. MADU GASPAR Evolugio estilistica no centro de Minas Gerais. i Stan) Suonict | sunidor [eu cratr|ipsvmena| mate | catane ont et We } Bad a we {Deserts cen een "nests, Até 1992 jd tinham sido descobertos 364 sitios com pintura e ou gravura rupestre e cadastradas cerca de 40 mil figuras feitas por grupos pré-histéricos. Anne-Ma- tie Pessis ¢ Niéde Guidon, apuiaudo-se em modelo da lingifstica, consideram que os grafismos funcionam como verdadeiros sistemas de comunicagio social e que as tradig6es de pintura e gravura poderiam ser compa- raveis a familias lingifsticas, na qual Llinguas distincas evoluem. As subtradigdes correspondem a grupos ét- niicos descendentes de uma mesma origem cultural e as diferentes manifestagSes estilistcas si0 0 resultado 6B. ARTE RUPESTRE NO BRASIL da evolugio de uma etnia em fungio do tempo, do isolamento geogréfico e das influéncias exteriores. Na drea do Parque Nacional da Serra da Capivara foram identificadas trés tradigées de pintura e duas de gravuta, A tradigéo Nordeste foi a mais representada, caractetizando-se pela presenga de figuras humanas ¢ de animais, bem como de objetos ¢ plantas. Essas figuras compdcm agdcs que sc refercm a téenicas de subsisténcia, atividades cotidianas ¢ cerimoniais. As pesquisadoras apontam sua origem na regio sudeste do Piaut, tendo depois se difundido por todo 0 Nor- deste. Os sitios de Sao Raimundo Nonato possuem tragos préprios que caracterizam a subtradicéo Virzea Grande, cujas primeiras manifestagdes ocorreram por volta de 12 mil anos, No seu primeiro perfodo, so representagées dindmicas, de cardver individual, com temitica Itidica, que privilegia as figuras animais humanas em movimento. Tecnicamente muito rebus- cadas desde as primeiras manifestag6es, indicam que 0s pintores dominavam 0 preparo ¢ a utilizacéo das tintas elaboradas a partir do éxido de ferro, O apogeu dessa tradigio ocorreu por volta de 10 mill anos atrés e coincide com a presenga de artefatos liticos muito bem acabados. Supde-se, ainda, que nesse perfodo tenham ocorrido crescimento demogréfico, aumento da diver- sidade cultural e inicio da dispersio do grupo pelo Nordeste. n6Tia MADU GASPAR, A exolusio do primeiro perfodo ¢ marcada pela diversidade de temas representados e pelo aumento de participantes nas cenas. Assim, como sumarizam as autoras, no primeiro momento as representagées de atividades de caga comportam duas figuras, o cagador €0 animal, eas representagées sexuais tém dois parcei- tos. Jd no apogeu da tradigao, esses mesmos temas s40 fepresentados coma participagio de um maior niimero de pessoas. No perfodo final, o espontaneismo inicial € substituido pela formalizagio gréfica, ocorrendo tan- to uma geometrizagéo notével das figuras humanas ¢ de animais como tragados geoméricos que preenchem ‘5 corpos das figuras. A tematica é enriquecida com Tepresentagao de agdcs que denotam violencia: lutas, combate e execugGes A tradigdo Nordeste tem a peculiaridade de ser extremamente narrativa, com a reptesentagdo de dife- Fentes aspectos da vida cotidiana do grupo que a ela borou. As pinturas indicam que cacavam com diversos instrumentos: o veado era perseguido com tacapes, a onga era atacada utilizanclo-se propulsores e azagaias, © tatu era cagado a mio e abatido com golpes de tacape Ou pego pelo rabo. Néo existe nenhuma indicacéo de uso de arco ¢ flechas, no combate entre dois ou mais individuos: as armas utilizadas sio propulsores ¢ a7a- Saias. Foram também representados varios ornamentos relacionados com ritos € hierarquia. Sio cocares ¢ ‘mascaras que aparecem em cenas em que as pessoas esto dangando. 68. [ARTE RUPESTRE NO BRASIL As pesquisidorasidentificaram também uma evolu- io dos ritos, apesar da estrutura de representacio se repetir. Um dos exemplos estudados é« cena da ee No period inicial, hd poucas pessoas participande do rito, sendo recorrentes figuras humana isoladas mos- trando uma planta na mo ou duas figuras partthando aapresentagio do vegeral. ino periodo final, participa tum niimero maior de pessoas, havendo a preocupagio em indicar que todas pertencem 20 sexo masculino. \ , es ES OR ARES igh rticipagéo de Variagbes de cena da érvore, com a pa cada vez mais pessoas. Area de S20 Raimundo Nonato (%) Outratradisao identificada na regiéo éa Agrest, ¢ as arqucéloges também tém indicios de sua evolugio através do tempo, Composta pela representacéo de figuras humanas ¢ alguns animais, conta com um nuimero significative de “grafismos puros” — isto 6 aqueles desprovidos de tragos que permitem identifi- cé-los com uma representagio de nosso universo sen- sivel. Caracteriza-se pelo impacto visual do intenso + 69+ MADU Gaspar preenchimento das figuras com corantes vermelhos, sendo raras as cenas; as figuras sio representadas de forma estatica. E origindria da regio agreste de Pernambuco, sendo suas manifestagdes mais antigas datadas de 11 mil anos AP. Com grande dispersio em todo o Nordeste, carac- teriza-se também por ser intrusiva nos sitios onde ocorrem grafismos classificados como pertencentes & tradigao Nordeste, havendo uma certa preferéncia de seus pintores em sobrepor suas contribuigdes pictéricas as que foram feitas pelos grupos identificados como da tradigao Nordeste, No inicio, as figuras foram inseridas em painéis que jd estavam pintados sem que houvesse sobreposigao. Séo figuras humanas maiores do que as tepresentadas na tradi¢ao Nordeste, nao tio bem deli- neadas ¢ totalmente preenchidas por tinta vermelha escura. Por volta de 8.000 AP, perfodo em que jé nao ocortem mais grafismos da tradigo Nordeste, as figu- ras sio inteiramente preenchidas com ocre muito eseu- ro € 0s grafismos puros, também prescntes no primeito momento, tornam-se mais diversificados, Para explicar as mudangas detectadas na tradigg0 Agreste, as pesquisadoras trabalham com a hipétese de que grupos distintos teriam chegado a regio em dife- fentes momentos e seriam assim responséveis pelos diferentes aspectos que compéem esse conjunto de pinturas. +20 ‘A ARTE RUPESTRE NO BRASIL Nadrea de Sao Raimun- do Nonato ocorre ainda a presenga da tradigiio Geo- métrica, com grafismos pu- ros ¢ com desenhos que representa lagartos, maos ¢ pés, ainda pouco estuda- ida tua train de re Grafismos da Toca da Entrada gistros gravados também 4 paixio da Vaca (a) e da Toca compostos de grafismos da Extrema I (6 (* 3. i imbana sia seine jf enhaw able ean, certamente 0 centio ¢ o norte de Minas Gerais, bem como a regio de Sio Raimundo Nonato, no Piaut, sio os locais onde foram feitos os levantamentos mais sistematicos € onde mais se avangou no que se refere a0 estudo dos diferentes estilos ¢ de sua seqiiéncia temporal. Os pesquisadores concordam em relagio a vitios pontos, mas os resultados das suas pesquisas ndo sio totalmente coincidentes. Um dos pontos de discor- dancia refere-se & atribuicio, por parte da equipe do Piauf, de uma antighidade quase pleistocénica aos agrafismos da tradigao Nordeste, enquanto a equipe de Minas Gerais a considera uma manifestagéo mais re- cente. Hé também discordancias no que diz respeito & classificagao de alguns grafismos, como por exemplo as procissdes de antropomorfos filiformes ¢ sexuados da unidade estlistica Ballet, em Lagoa Santa. oils IMADU asPAR FEED KEE E Prociss6es dos homens ¢ mulheres para a cena do parto, Lagoa Santa (ws) Apenas o desenrolar das pesquisas vai ttazer novas contribuigdes que irdo esclarecer esta ¢ outras| ‘questdes, ‘mas fundamentalmente a discordlincia aponta para a enorme dificuldade em trasar uma evolugio cronolé- gica dos grafismos mesmo em centros onde a pesquisa est muito avangada. Contextualizago dos grafismos Por associacao cam vestigios de solo Os estudos sistemiticos desenvolvidos no abrigo San- tana do Riacho (MG) pela equipe coordenada por André Prous fornecem importantes informagées sobre © modo de vida dos cacadores da regio central do Brasil. E um bom exemplo de pesquisa que busca relacionar a decoragio das paredes de abrigo com os aw ‘A ARTE RUPESTRE NO BRASIL materiais recuperados através de escavagoes. Artefatos manchados de pigmento, bloco de corante com marcas de raspagem, bem como a anilise detalhada do paredio indicam que o hdbito de pintar as paredes estava pre- sente no perfodo compreendido entre 10.000 ¢ 8.000 anos AP. Cagadores lascaram as pedras que foram trazidas tanto do entorno do sitio como de localidades mais distantes; artefatos de sflex foram usados para trabalhar objetos de madeira. Fragmentos de artefatos, com gume polido indicam que a técnica de abrasio ja era conhecida nesse periodo. Os restos alimentares recuperados — ossos de cer- videos, tatus e peixes de pequeno porte — dio uma idéia dos habitos alimentares do grupo. As pinturas feitas nessa época esto mascaradas pelas mais recentes, @, sobretudo, pela tinta que cobre parte do painel. Nesse perfodo o abrigo também foi utilizado como cemitério, os mortos foram amarrados ou embrulha- dos dentro de uma rede e enterrados em covas pouco profundas que eram preenchidas com sedimentos finos ¢ pigmentos vermelhos junto com brasas provenientes de fogueira acesa nas proximidades. A cova eta fechada com blocos de pedra, sendo que alguns sepultamentos recebiam tingimento de vermelho. Os individuos jo- vens tinham colares feitoscom sementes ¢ 0 estudo dos esqueletos informou que ocorria grande mottalidade infantil, baixa expectativa de vida e grande semelhanga, entre 0s adultos, 0 que sugere forte endogamia. oe MADU GasPaR No periodo seguinte (8.000-5.000 anos AP) nao foram registrados sepultamentos € sfo recorrentes ar- tefatosfeitos em pedra, havendo vestigios da fabricagio de pontas bifaciais ¢ utilizacéo de mios de pilio e de machados polidos e picoteados, No infcio desse perfo- do foram encontrados pigmentos pretos, provavel- mente relacionados com pinturas mais antigas da tra- digdo Planalto, cuja “sombra” aparece na andlise do paredio. Jé no perfodo seguinte (4.500-2.500 AP) identificaram-se varias ocupagées répidas ¢ uma am- pliagio da drea ocupada. Foram construidas paredes para delimiear 0 espago interno e acesas virias foguci- ras, algumas delas estruturadas com pedras e que co! tém vestigios alimentares como coquinhos, jatobé, os- sos de cervideos, tatus, fragmentos de moluscos, Graos de milho ¢ semente de cabaca sio indicios de que esse grupo jd cultivava plantas, A indtistria Iitica continua basicamente composta por lascas de quartzo, observan- do-se a presenga de instrumentos manchados, més ¢ trituradores. Hi uma diversidade de pigmentos que deve corresponder a tiltima fase da tradi¢ao Planalto, caracterizada por pinturas de cores claras como amare- lo, lilis e pela diversificacao de temas (tatus, aves etc.). Numa determinada parte do abrigo, alguns indiv{- duos foram sepultados, mas segundo os pesquisadores nfo se pode falar de um verdadeito cemitério como aquele que existiu no perfodo antigo. No periodo pré-histérico final (2.500-1.000 AP) o sedimento esté “Th. | ARTE RUPESTRE NO BRASIL muito alterado em decorréncia das queimadas ¢ do pisoteio do gado que perturbou as estrururas arqueo- Idgicas. Fogueiras, lascas de quartzo e pigmentos estio presentes. Alguns cacos ceramicos e pegas de ee polidas confirmam a presenga de grupos recentes. Blo- cos caidos que apresentam figuras pintadas indicam, que os ocupantes do abrigo continuavam a se dedicar rafismo. So pesquisadores do abrigo Santana do Riacho, em decorréncia de sua implantagéo ambiental, conside- ram-no um marco topogrdfico, Situado na tinica pas- sagem razoavelmente ficil entre o plat baixo ea regio serrana, dominando o cerradao, encontra-se numa zona de transi¢ao entre o cerrado € as encostas cobertas por vegetacio rupestre. Por outro lado, uma grande variedade de pedras garantia diferentes matérias-pri- mas para confecgio de artefatos liticos, muito embora nao fosse abundante a oferta de caga ¢ pésca. Sua posigao estratégica esté relacionada também com aalta visibilidade que proporciona, jé que o paredio desta- ca-se na paisagem podendo ser visto de virios pontos. ‘Trata-se de um marco topogtifico que deve tertido um forte papel simbélico, interpretagio apoiada no fato de ali ter sido o local de destino dos mortos e pela intensa decoragao das paredes. * Outros abrigos também sio encontrados na regio ¢ todos apresentam pinturas rupestres, algumas muito, semelhantes as encontradas em Santana do Riacho, 115+ MADU GASPAR sugerindo até que foram feitas pelos mesmos autores. Sabe-se que alguns abrigos tinham vestigios de solo escavados ¢ que dali foram retirados esqueletos, infe- lizmente danificados por pessoas sem experiéncia em pesquisa arqueolégica. Os estudos prosseguem e, em breve, a equipe pretende identificar a fungio ou fun- ‘ses dos diferentes sitios, estabelecer quais foram ocu- pados de maneira mais permanente ¢ determinar a articulagao social entre os grupos que deixaram vest{- gios nos diferentes abrigos. Em escavagoes na Lapa do Dragio, em Minas Ge- rais, também foi possivel estabelecer correlacio entre 08 vestigios de solo e os grafismos a partir do estudo da sucesso de cores utilizadas nas pinturas. Constatou-se que 0 uso de tinta vermelha foi seguida por intensa bictomia, Durante as escavagoes nos niveis mais anti- g0s encontrou-se apenas corante vermelho, enquanto nos nfveis mais recentes, por volta do inicio da era Crista, corantes vermelhos aparecem junto com os amarelos. A coincidéncia indica que a seqiiéncia de pigmentos 1ecuperados no solo corresponde A sucesso cronolégica das pinturas realizadas nas paredes, Isto reforga a idéia, defendida por André Prous, de que as pinturas que compéem a tradi¢ao Planalto sto mais antigas que as da tradicao Sao Francisco. E, além disso, que a moda da utilizagio de pigmentos de cor preta ¢ branca bem como do tema do pissaro pernalta é fend- ‘meno recente, por volta de 3 mil anos AP. O pesquisa +765 [A ARTE RUPESTRE NO BRASIL dor aguarda que outras seqiiéncias cronolégicas sejam estabelecidas para verificar a abrangéncia ea veracidade de sua interpretagio. Concluséo O interesse pela pré-histéria brasileira é antigo e re- monta & época da colonizagio pelos europeus, mas a clsciplina, propriamente dita, é recente. Os primeiros projetos académicos sio da década de 1960 e, por isso mesmo, resta um amplo universo a set estudado. No que se refere & arte rupestre, parte significativa dos levantamentos jd foi realizado eagora comesam a surgir resultados interessantes sobre o processo de producto dos painéis, quer seja a sucessio de figuras que acaba- ram por decorar a pedra, quer seja a prépria composi- 40 quimica das tintas. Estuda-se o significado das conas ¢ contextualizam-se os grafismos através das informagées obtidas em escavagbes. O universo pictérico, de forte apelo estético, con- trasta com a idéia corrente de que os cagadores que iniciaram a ocupagio do Brasil eram seres “primitivos” ¢ famintos em busca dos grandes animais. O estudo da arte rupestre apresenta um dominio do simbélico ex- tremamente complexo que, passo a passo, vai sendo desvendado pelos estudiosos da pré-hist6ria brasileira. “71. Referéncias e fontes Arquivos do Museu de Histéria Natural. Universidade Federal de Minas Gerais, vols XXIV (vétios artigos). 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Caso deseje aprofundar-se no tema, recomendo os Arquivos do Museu de Histéria Natural da Universi- dade Federal de Minas Gerais e a Revista Fundhamen- os, uma publicagio da Fundagio Museu do Homem Americano. (fumdham@terra.com.br) +80 Agradecimentos Agradeco a Angela Buarque, Celso Castro ¢ aos meus, alunos do Curso de Pré-histéria Brasileira do Instituto de Filosofia e Cigncias Sociais da UFRJ pela leitura dos otiginais, e as instituigées financiadoras que apéiam minhas pesquisas. A Faper) apéia 0 projeto “Soberanos da Costa” ¢ 0 CNPq financia “Estudo e Cadastro dos ‘Testemunhos Pré-histéricos dos Pescadores-Coletores’. Sobre a autora MaDu Gaspar é formada em ciéncias sociais pela Uni- versidade Federal Fluminense (UFF), cursou o mestra- do no Programa Pés-Graduagao em Antropologia So- cial, do Museu Nacional/UFRJ, fez doutorado em ar- queologia na Universidade de Sao Paulo (USP) ¢ com- pletou sua formagao com o pés-doutorado na Univer- sidade do Arizona, EUA. E professora do Museu Na- cional do Rio de Janeiro e, atualmente, ministra disci- plinas de arqueologia na graduacéo do Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais (IFCS/UFRJ) € no curso de Especializagéo em Geologia do Quaterndtio, no Mu- seu Nacional. E autora do livro Garotas de programa, um estudo sobre a prostituigio em Copacabana, e de Sambagui: argueologia do litoral brasileiro, que apresenta 0 modo de vida de pescadores-coletores que ocuparam o litoral do Brasil ha 6.500 anos. Com o apoio do CNPq ¢ da Faperj, estd investigando os indicadores de hierarquia social e a construsio de género na sociedade samba- quieira. Dedica-se também ao estudo de varios outras temas, como arte rupestre ¢ histéria da pesquisa ar- queolégica no Brasil. +826 Créditos das ilustragaes Miolo: p.33:].B. Debret. p.46-52, 66, 72: André Prous! Universidade de Brasilia. p.51-2: Gabriela Martin. p.55-6: Edithe Pereiral ‘Acervo do Museu Paraense Emilio Goeldi. p.59; André Prous ¢ Alenice Baeta; desenhos de Marcos Brito. Acervo do Museu de Historia Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, p57: Mapa tragado pela autora a partir de André Prous (1992) ¢ Edithe Pereira (2002). p.69 e 71: Anne-Marie Pessis ¢ Nigde Guidon Caderno de ilustragaes: 1. Foto de Pe. Pedro Igndcio Schmicz 2. Foto de Pe. Joio Alfredo Rohr, S.J. 3 € 6, Fotos de Paulo Alvarenga Junqueita. 4, Acervo da FundagSo Museu do Homem Americano (Fundham) 5. Foto de Gabriela Martin, 7. Foto de Roberta Guimaries Imago. 8, Foto de Edithe Pereira. Acervo do Museu Paraense Emilio Goold +83.

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