Introducao
Em 1979, uma pequena equipe de pesquisadores da Harvard Graduate School
of Education foi solicitada pela Bernard Van Leer Foundation of the Hague a reali-
zar uma investigagao sobre um grande topico; A Natureza e Realizacao do Potencial
Humano. Como um membro mais recente desse grupo de pesquisa, treinado princi-
palmente em psicologia do desenvolvimento, eu assumi um empreendimento ousa-
do mas sedutor. Minha tarefa nao era nada menos do que escrever uma monografia
sobre aquilo que fora estabelecido nas ciéncias humanas a respeito da natureza da
cognicao humana.
Quando comecei 0 estudo que culminou na publicagao de Estruturas da Men-
te* em 1983, considerei 0 empreendimento como uma oportunidade para sintetizar
os meus préprios resultados de pesquisa com criancas e adultos com dano cerebral,
assim como algumas outras intrigantes linhas de investigagao das quais estava cons-
ciente. Meu objetivo era o de chegar a uma visio do pensamento humano mais ampla
e mais abrangente daquela aceita pelos estudos cognitivos na época. Meus “alvos”
particulares eram as influentes teorias de Jean Piaget, que via todo o pensamento hu-
mano como lutando pelo ideal do pensamento cientifico; e a prevalente concep¢ao de
inteligéncia que a vinculava a capacidade de dar respostas sucintas, de modo rapido,
a problemas que requerem habilidades linguisticas e légicas.
Se eu tivesse simplesmente observado que os seres humanos possuem talentos
diferentes, esta afirmagao teria sido incontestavel - e meu livro teria passado desper-
cebido. Mas eu, deliberadamente, tomei a decisao de escrever a respeito de “inteligén-
cias multiplas”: “multiplas” para enfatizar um ntimero desconhecido de capacidades
humanas diferenciadas, variando desde a inteliggncia musical até a inteligéncia envol-
vida no entendimento de si mesmo; “inteligéncias” para salientar que estas capacida-
des eram tao fundamentais quanto Aquelas historicamente capturadas pelos testes de
QL. Principalmente em virtude do interesse dos financiadores, eu conclui 0 livro com
algumas paginas que discutiam as possiveis implicagdes educacionais da teoria.
No Brasil, editado pela Artmed Editora, 1993.4 Howard Gardner
As teorias nem sempre traem suas origens e nem sempre antecipam seus desti-
nos. Como um psicdlogo do desenvolvimento com varios livros jé escritos sobre este
assunto, eu acreditava que meu trabalho interessaria principalmente Aqueles treina-
dos em minha disciplina, e particularmente aqueles que estudavam a inteligéncia de
uma perspectiva piagetiana, ou da perspectiva da construcao e medicao dos testes.
Estava enganado. Estruturas da Mente nao despertou muito interesse dentro da disci-
plina; conforme um critico nao desprovido de sensibilidade escreveu, “Tentar mudar
a definigao psicolégica de inteligéncia é como tentar mover timulos num cemitério”,
Alguns psicélogos gostaram da teoria; um niimero um pouco maior nao gostou; a
maioria a ignorou.
Estruturas da Mente, contudo, realmente atraiu uma considerdvel atengio. O
artista Andy Warhol uma vez comentou, excentricamente, que todas as pessoas, no
futuro, serdo famosas por quinze minutos. Eu imagino que tive meu devido quinhao
de celebridade no ano seguinte a publicacao de Estruturas da Mente. Pela primeira vez
em minha vida recebi da imprensa e da midia de radio e televisio um fluxo regular
de pedidos para discutir a natureza de minhas afirmagées. Alguns programas de tele-
visdo criaram segmentos especiais de video para expressar as diferentes inteliggncias;
muitos jornalistas inventaram métodos ficeis através dos quais os leitores poderiam
testar as prdprias inteligéncias ou as de seus filhos; eu “debati” a teoria - logo deno-
minada abreviadamente para “teoria das IM” - com colegas, na tribuna e na televisao.
Realizei muitas sessdes de autgrafos. Uma brochura foi lancada dezoito meses mais
tarde, foram publicadas edigdes em varias linguas, e o livro continuou a ser vendido
aqui e no exterior durante a década seguinte.
Alguns meses depois da publicagao de Estruturas da Mente, fui convidado
para fazer uma palestra no encontro anual da National Association of independent
Schools, a organizacao das escolas americanas particulares ou “independentes” Eu
esperava a tipica audiéncia de cinquenta a setenta e cinco pessoas, uma palestra costu-
meira de cinquenta minutos seguida por algumas perguntas facilmente antecipadas.
Em vez disso, chegando ao auditério alguns minutos mais cedo, deparei-me com uma
nova experiéncia: um salao muito maior, lotado, e zumbindo de excitagao. Era quase
como se eu tivesse entrado, por engano, numa palestra proferida por uma pessoa
famosa. Mas a audiéncia, de fato, estava ld para ouvir a mim: ela escutou atentamente
¢ aumentou em tamanho até ocupar os corredores de ambos os lados do auditério,
A palestra foi muito bem recebida, surgiram perguntas interessantes ¢, depois de seu
término, fui convocado por diretores, professores, administradores de escola e jorna-
listas que queriam ouvir mais e estavam relutantes em me deixar voltar ao anonimato.
Novamente, esta foi para mim uma experiéncia sem precedentes, mas ~ violando 0
principio de Andy Warhol - foi uma experiéncia com a qual iria familiarizar-me cada
vex mais nos anos subsequentes.
Antes deste momento, havia concluido que meu livro nao interessava muito
aos meus colegas psicélogos, mas interessava Aquela comunidade mais amorfa cha-
mada de “piblico em geral’. A palestra para a audiéncia da NAIS mostrou-me algo
que eu ainda nao havia antecipado. Havia uma outra audiéncia genuinamente inte-
ressada em minhas ideias — a audiéncia dos profissionais de educagio. Essa audién-
* cia inclui, embora nio se limite a eles, ~ professores, administradores, supervisores,
membros dos conselhos escolares, legisladores e jornalistas cujo campo de acao é a
educagao. Ela se amplia para os mundos dos professores universitarios, pais e leigos
instruidos. Uma vez que a preocupa¢ao com a qualidade da educagio cresceu tantoInteligéncias miltiplas_ 5.
nos Estados Unidos quanto no exterior, esta audiéncia aumentou significativamente
em tamanho, e todas as indicages sao de que continuard a crescer rapidamente nos
proximos anos.
Eu poderia, imagino, ter encerrado o Capitulo Estruturas da Mente da minha
vida voltando ao laboratério de pesquisa e continuando meus estudos experimentais
com criangas e com pacientes com dano cerebral, Alternativamente, eu poderia ter
escolhido um angulo mais francamente empresarial, preparando “testes” de inteligén-
cias miiltiplas, estabelecendo uma organizacao para promover inteligéncias miltiplas,
reunindo-me ao circuito de palestras povoado por educadores que apresentam suas
mercadorias para um piblico avido pelas mais recentes panaceias, Eu poderia ter tra-
tado das preocupagées particulares dos varios grupos com interesses especiais atra-
idos pela teoria das IM: professores de pessoas bem dotadas e talentosas, defensores
das populacées excepcionais, aqueles preocupados com questées multiculturais ou
multilinguais. Na verdade, atualmente existem varios educadores no pais que reali-
zam oficinas regulares sobre a “teoria das IM”, assim como algumas organizagdes que
salientam a “perspectiva das IM”, Existem dtizias de versdes grificas do arranjo das
IM, duizias de artigos populares sobre a teoria, cada vez mais livros, e inclusive uma
revista periddica, Provoking Thoughts, dedicada 4 solugao de enigmas de IM. Eu fiz
uma lista desses empreendimentos nos apéndices deste volume. Embora mantenha
relagdes cordiais com estes individuos, organizagdes e publicagdes, de modo algum
eu endosso (nem me dissocio de) seus esforcos.
Mas, como quis o destino, minha vida pés-Estruturas da Mente tomou um
rumo diferente. Trabalhando com um grande numero de colegas no Harvard Project
Zero, o grupo de pesquisa no qual passei os tiltimos vinte e cinco anos/ ¢ juntamente
com muitos colegas associados a outras organizacdes de pesquisa e desenvolvimento,
dediquei a maior parte de minhas energias, desde 1983, a exploracdo das implicagées
educacionais da teoria das inteligencias miltiplas. Esta exploragao assumiu varias for-
mas, variando desde uma consideragio de como desenvolver as inteligéncias, até uma_
tentativa de planejar novos tipos de instrumentos de avaliacao, colabora¢ao com esco-
las, sistemas escolares e instituigdes culturais que decidiram adotar uma perspectiva
de “IM”. Menos formalmente, eu tenho mantido correspondéncia com bem mais de
mil pessoas nos Estados Unidos e no exterior, respondendo a perguntas a respeito da
teoria, absorvendo experiéncias ¢ anedotas oferecidas por esses correspondentes, par-
ticipando de uma espécie de rede invisivel de individuos que mal sabem da existéncia
uns dos outros, mas que estio unidos por seu interesse no notavel desenvolvimento e
interacao entre as diferentes faculdades cognitivas humanas.
Ao executar projetos formais de pesquisa e desenvolvimento nas escolas € a0
estabelecer associacdes com intimeros cidadaos interessados na teoria das IM, de-
frontei-me com um numero cada vez maior de questionamentos sobre as implicagdes
educacionais da teoria das IM. Geralmente, eu mesmo respondo a essas perguntas;
algumas vezes, eu as passo a meus colegas; outras vezes, recomendo a leitura de tra-
balhos meus ou de outros imersos na teoria; em varias ocasides, eu simplesmente nao
sei o que fazer. Mas uma coisa tem ficado cada vez mais clara para mim com o passar
dos anos: seria muito proveitoso nds termos, em um tinico volume, a esséncia do
trabalho sobre a educacdo das estruturas da mente, por assim dizer, “de fonte segu-
ra’. Este “livro de leitura das IM”, juntamente com uma edi¢ao de aniversario de dez
anos de Fstruturas da Mente, representa a esséncia necessiria aqueles interessados em
“Educar Estruturas da Mente’.6 Howard Gardner
Na medida do possivel, eu tento apresentar nestas paginas uma histéria sim-
ples, coerente e completa. Quando adequado, acrescentei materiais explicativos e co-
nectadores.
Na Parte I, apresento uma versio condensada da teoria original, juntamente
‘com as respostas as perguntas mais frequentes. Eu ofereco 0 background da teoria, de-
fino “inteligéncia’, descrevo meus métodos de pesquisa ¢ introduzo cada uma das sete
inteligéncias, Esta parte introdutéria conclui com uma visio da paisagem cognitiva,
na qual eu relaciono a inteligéncia a criatividade, ao génio, a prodigiosidade, a pericia
ea outras realizagdes mentais desejiveis.
Uma consideracao séria da ampla variedade de inteligencias humanas conduz
a uma nova visio de educaco, a qual chamei de “educacao centrada no individuo’.
Na parte II, primeiro delineio a configuragio geral de um sistema educacional ba-
seado numa perspectiva de inteligéncias miultiplas; esta perspectiva explora tanto o
aprendizado tradicional e o museu contemporaneo para criancas quanto a instrugdo
conforme tem sido conduzida no século vinte. Eu entao reviso uma série de projetos
em andamento, baseados no “pensamento das IM”, que incluem toda a gama da pré-
escola ao segundo grau. Entre os projetos revisados estao 0 Projeto Espectro, a Escola-
Chave em Indiandpolis e 0 Arts PROPEL.
Embora o nosso trabalho educacional varie do desenvolvimento de curriculos
4 formagao dos professores, nosso principal ponto de influéncia tem sido a criacao de
novas formas de avaliagao. Este trabalho sobre a avaliacdo constitui o foco da parte
III. Essas formas de avaliacéo, dramaticamente diferentes dos testes padronizados de
papel e lapis, permitem que os individuos demonstrem suas capacidades e entendi-
mentos de uma maneira confortavel para eles, mas sujeita 4 avaliacao ptiblica. Essas
avaliagdes sao “justas para com a inteligéncia”: elas permitem que observemos dire-
tamente o funcionamento das inteligencias, em vez de forcarem o individuo a revelar
suas inteligéncias através das lentes habituais de um instrumento linguistico logico.
As avaliagdes também promovem a auto-avaliacdo, um passo essencial para que 0
individuo continue a aprender depois de deixar o ambiente escolar formal.
Na segiio final do livro, e no epilogo, eu volto minha aten¢ao para as novas dire-
Ges que espero sejam tomadas pela comunidade das IM. Parte deste empreendimen-
to amplia o trabalho em novas diregdes conceituais. Como um exemplo, introduzo as
nogoes de “contextualiza¢ao de inteligéncias” e “inteligéncias distribuidas”; ambas sao
tentativas de ampliar a inteligéncia para além da pele do individuo e de demonstrar
as maneiras pelas quais nossas capacidades intelectuais sao intrincadamente determi-
nadas pelos contextos em que vivemos e pelos recursos humanos ¢ materiais & nossa
disposigao. Outras porgdes do empreendimento ampliam o trabalho para novos tipos
de ambientes, assim como museus e locais de trabalho, e para objetivos pedagdgi-
cos mais desafiadores, tais como a intensificagao do profundo entendimento dentro
e através das disciplinas. Eu concluo este livro com um rapido olhar & frente, num
possivel “Mundo das IM” daqui a vinte anos.
‘A maioria dos capitulos e segdes deste livro ja foi publicada anteriormente,
de alguma forma. As informagées sobre a forma original da publicacdo, incluindo
agradecimentos e referéncias, sio apresentadas no apéndice A. Eu tentei respeitar 0
espirito dessas formulacées originais e os locais em que foram apresentadas. Tam-
bém autorizei a apresentacao de alguns materiais semelhantes quando estes pareciam
consolidar pontos introduzidos anteriormente, ou para permitir que algumas secdesInteligéncias multiplas_7
ficassem independentes. Ao mesmo tempo, nao hesitei em eliminar algumas segdes
quando elas eram redundantes ou errdneas; nem deixei de acrescentar segdes quando
isso parecia indicado. Este livro é um documento de vanguarda de 1993, nao um re-
gistro hist6rico levemente disfargado da tltima década.
Por sua ajuda em conduzir esta cole¢ao de escritos A publicagao, eu gostaria
de agradecer a Karen Donner, Phoebe Hoss, Martin Kessler, Emma Laskin, Jo Ann
Miller, Akiko Takano, Gwynne Wiatrowski e Michael Wilde.
Embora seja compreensivel e adequado que este ensaio introdutério esteja na
primeira pessoa, quase todo o meu trabalho desde a publicagao de Estruturas da Men-
te foi realizado com colaboradores. Na verdade, quase metade dos artigos deste livro
foi em co-autoria, ¢ frequentemente eu fui o autor secunddrio. Devo imensamente
Aqueles que trabalharam comigo, tanto em Cambridge quanto em outros lugares, na
exploracao e expansao da nogao das inteligéncias miltiplas. Meu débito com intime-
ros colaboradores espléndidos no Harvard Project Zero jamais podera ser saldado.
Igualmente, sou muito grato aos meus co-autores, que me autorizaram nao apenas
a reimprimir suas palavras mas também a revisa-las sempre que fosse necessario. E
muito justo que este livro seja dedicado a eles, aos seus parceiros, algumas vezes and-
nimos, que compartilham o interesse na estimulacao das inteligéncias multiplas, e aos
financiadores, que tornaram possivel a nossa colaboragio.