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| Charge de Saul Steinberg bastidores: no teatro, parte do cend- Fio ou do paleo que ndo se ve da pla~ tela, Metatoricamente, refere-ce 302 cenredos tramas particulares, que nie vem a publico, 4 Alunas durante aula de trabathos manuais na Escala Técnica Rivadivia Corréa lInsttuto Profssional Femini nol, no Rio de Janeiro, 1922. Fotogra: fia de Augusto Malta. Podemes ob. servar que, nesse perioda, existiam salas de aulas separadas para meni nes e meninas nas escolas do pais. 8 BASTIDORES DA HISTORIA BASTIDORES DA HISTORIA ESTUDAR HISTORIA: VARIOS VIAJANTES, MULTIPLOS CAMINHOS Esta segdo tem por objetivo oferecer a voc, aluno, os bastidores desta disciplina que comegaremos a estudar. Acreditamos que isso 0 aju- de a entender como a Histéria é construida e modificada ao longo do tempo. Pretendemos que vocé compreenda também por que é importan- te estudé-la hoje, Nao faz tanto tempo assim que se comegou a ensinar Histéria como isciplina auténoma na escola. No século XIX, o saber ¢ 0 ensino de His- t6ria privilegiavam os fatos politicos e os feitos de “grandes homens" ¢ voltavam-se principalmente para a sustentagio e a legitimagio das na- «des que nasciam ou se consolidavam. Grande parte dos relatos histéri- cos baseava-se em documentos oliciais escritos, entendidos como a tini- cae verdadeira versio dos acontecimentos. De lé para c4 muita coisa mudou na pesquisa e no ensino de Histé- ria. A partir das primeiras décadas do século XX, houve uma renovagao © ampliagéo das abordagens ¢ tematicas de pesquisa, dos documentos considerados fontes histéricas e do préprio papel do historiador, permi- tindo novos olhares na construgao do saber histérico, no estudo e no en- sino da Histéria. As pesquisas pesseram a se interessar por toda atividade humana, levando & nogdo de uma Histéria total. Hé algumas décadas, cestudarIlistéria deixou de significar apenas a memorizagao de datas,“ tos importantes” ou “personagens ilustres” e passou a compreender uma Ieftura do passado com base nas indagagdes e nos problemas que nos so postos pelo presente. No estudo de Histéria, a selegdo de temas, periodos e elementos de pesquisa surge das preocupagies e dos anseios de nossa época. Mas pre- cisamos tomar cuidado para ndo reduzir outros lugares e outros tempos A nossa visdo de mundo. Isso vale tanto para os historiadores como para voc’ que estuda Ilistéria na escola: devemos tentar entender o passado considerando o ponto de vista de quem viveu em determinada época, ‘com seus valores e conceitos, e néo com os nossos. Devemos lembrar que os historiadores so pessoas diferentes no aque se refere & origem, formagao cultural, classe social e religido. Assim, também sdo diversas as suas interpretagdes sobre a Histéria, embora muitas das preocupagdes (por exemplo, os problemas ambientais ou as desigualdades sociais) possam ser comuns. Por isso, no subtitulo desta Introdugdo, fizemos uma analogia dos historiadores com os viajantes: eles so varios, bem como os caminhos que cada um pode seguir A definigao de passado é a de uma parte do tempo, anterior ao pre sente, que inclui tudo 0 que jé aconteceu e, portanto, sem possibilidade de modificagao. Entretanto, nossas formas de olhar para o pasado mudam conforme muda o presente, e é por isso que a Histéria é um co- nhecimento dindmico, Nao se encerra um assunto depois de um primei- ro mapeamento. O que sabemos, por exemplo, sobre os antigos romanos continua sendo constantemente atualizado, opinides ¢ afirmagées sio modificadas de acordo com os recortes temiéticos do historiador, com. novas descobertas, pesquisas e abordagens, Esse dinamismo caracteriza o trabalho do historiador, pesquisador dedicado a interpretar as experiéncias da humanidade fundamentado em diversos tipos de registro (documentos escritos, pinturas, fotografias, vestigios materiais, et) FONTES HISTORICAS © que distingue o conhecimento histérico de outras formas de co- nhecimento sobre o passado (como o discurso religioso ou o senso co- mum) 6 0 modo como esse conhecimento 6 produzido. O método histé- rico pode ser chamado de racional, no sentido de que nele predomina 0 melhor argumento, sustentado por evidéncias e pelo raciocinio légico. Essas evidéncias que sustentam os argumentos histéricos séo as fontes. Fonte histérica ou documento histérico é tudo aquilo que de al- gum modo esta marcado pela presenga humana. Além dos documentos escrilos, as fontes histéricas compreendem uma grande variedade de vestigios e evidéncias em objetos e materiais diversos. ‘Ao mesmo tempo que existe uma pluralidade de pontos de vista sobre o passado, miltiplas sao as “vozes" que nos falam dele. Essas “vozes", ou melhor, essas fontes de informagées esto nos discursos orais e escritos, nos monumentos, nas obras literérias, nas pintu: ras, nas obras de arte, nos objetos cotidianos e mesmo nos corpos preservados ou esqueletos de pessoas de agrupamentos antigos, bem como no DNA de seus descendentes, Portanto, para apreen- der as miiltiples “vozes" do passado, cabe ao historiador enfoque sem deixar de considerar a existéncia de outros {As fontes nao falam por si e nao trazem a verdade pronta: 6 pre ciso que o pesquisador interrogue o contexto em que foram produzidas, que grupo ou valores representam e de que maneira abordam e retratam, os diferentes grupos sociais. Essas perguntas sao geradas pelos interesses do historiador e pelas questdes de sua época, Por isso, diferentes pergun- las revelardo diferentes respostas de um mesmo documento ou, entao, levardo a outros documentos. 4 Prato de cordmica etrusco datado do sécula Il 3.0, Pesas coma essas po- dem ajudar o historiador a conhecer mais sore cultura desse pov BASTIDORES DA HISTORIA 9 ‘auando um decumento de imeortincia histirica se estraga, seja pela acio do tempo, pela agio de insetos, seia por fungos, eja ainda pela acio humana, & necessario recuper lo. Paratanto, tem técnicas especiicas e profisionais, habilitados, como esta da imagem que bserva um aacumente deteriorado do Arquiva Histérce da cidade ge Colénia, na Alemanha. Foto de junho de 2011 10 —_BastivoRes pa nisronia [Novos registros surgem a todo momento, O que antes o historiador indo via como documento (por exemplo, as relagdes étnicas registradas no cédigo genético humano) passou a ser concebido e aproveitado como cevidéncia hist6rica, levando-nos a reescrever e reinterpretar 0 passado. O olhar sobre a Histéria faz-se obrigatoriamente sobre uma “realida- de’, sobre situagdes concretas das quais nao se pode escapar, embora néo seja posstvel reconstitu(-las totalmente, Trabalha-se com partes e frag- ‘mentos, como un quebra-cabega cuja imagem completa ndio se conhece, ‘mas que se pode supor com base nas partes jé montadas, Ao historiador ¢ a0 estudante cabe nao apenas analisar essa “realidade”, que chega de for- ma fragmentada e interpretada por diferentes sujeitos no passado, mas também desvendar os pontos de vista ¢ os interesses que transparecem em uma ou outra versio desses acontecimentos. O trabalho do historiador com as fontes histéricas Para chegar ao historiador como evidéncia, afonte precisa ser reco- Ihida, escolhida e analisada. ‘As fontes no so uma janela que se abre e expe diretamente 0 pasado, pois entre o passado ¢ o historiador hé uma série de “fitros’: a propria preservacao de uma fonte pode ser um desses filtros. Aprimeira etapa do trabalho do historiador é realizar o levantamen- todos documentos que pretende analisar. No entanto, algumas vezes ndo é possfvel obter determinados documentos: muitos se perderam ou se da- nificaramn em desastres e fendmenos naturais, como ineéndios, enchen- tes, umidade e temperaturas inadequadas, ataques biolégicos (insetos ¢ fangos, por exemplo): outros, em fendmenos causados pelos seres huma- nos, intencionalmente ou néo, como rasuras, danos provocados pelo uso de materiais, como grampos ou clipes, destrui¢do de documentos consi- derados irrelevantes. Além disso, essa selegio ¢ feita de acordo com 0 tema, o interesse e outras varidveis adotadas pelo pesquisador. Assim, diferentes historia- dores utilizardo diferentes fontes, c isso implicard reflexdes e resultados também diversos. 0 modo como um historiador aproveita as informa: es dos documentos também nao é sempre o mesmo, ¢ isso constitui mais um filtro entre ele e 0 passado. RUN ed ‘eanalsar uma forte, opesquisadorco- ou nlp, a qual série de documentos ele pode ‘mecapor se perauntarporque como aquels ser relaionado Ele avalia ands 2s informa fonte chegou até ele, por quem e por que foi gles ea iki que canstam do documento, produzda Eleprecisadefniraverdadra data _comparando-as com o ue jése sabe sobre o do document, sua autora, se ele € aulénicoperodo e com outros documentos. Ne docu Varidveis como essas nos ajudam a compreender que os documen- tos ndo nos permitem “ver", mas sim “ler” o passado. O historiador faz uma leitura do passado, leitura significa a produgio de uma interpre- taco especifiea, Um exemplo interessante é2 famosa Cartade Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, dom Manuel. No final do século XIX. cla foi tida como uma espécie de “certido de nascimento" do Brasil (considerando-se sob essa visio que o Brasil "surge" com a chegada dos portugueses). 0 documento ~ que descreve a terra, os habitantes, a fauna e a flora ~ esteve esquecido por trés séculos em um arquivo portugues, até ser recuperado e publicado por historiadores brasileiros. Eses historiadores estavam interessados em construir uma narrativa que valorizasse o nascimento da nagao brasileira. Nessa interpretagao, destacavam a exuberdincia da natureza eos aspectos exéticos dos povos que aqui estavam. Apenas no século XX esse docu: mento foi submetido a outra andlise, mais critica, Os historiadores passa- ram a enxergar na carta de Caminha uma importante fonte a respeito da mentalidade dos navegantes europeus ~ que julgavam o que viam com a superioridade do conquistador ~ analisando @ maneira como desereviarn as populagdes indigenas que encontraram, entre outros aspectos, rmenios consderadosfalsificados (de autora falsa ou que no so do peiodo ue se legs) podem trazer informagées importantes, por- {que testemunham um interesse em jogo no process histrico que levou 8 falsicacio Capa do filme 0 descobrimente do Brasil, do cineasta Humberto Mauro, de 1937. Considerads 0 gai do Ci- nema Novo [movimento valtaio e=- pecialmente para 2 realidade social © econémica brasilsral, © cineasta Humberto Mauro realizou uma su- perproducdo baseada na carta de Pero Vaz de Caminha © em outras Fontes histérieas, como 0 quadro A primeira missa no Brasil (reproduzido 320 lade), pintado em 1840 por Victor Meireles. Ele foi responsivel pela fotografia de diversos filmes oficiais do governo Getto Vargas ¢ realizou tuma obra de valorizago de nagao brasicira. 0 proprio filme &, assim, tum documento revelando uma inter pretacio da hstéria do pals BASTIDORES DAHISTORIA 11 Fotomentagem unings as faces do suposto terrorista Hussain Osman e do brasileiro Jean Charles Menezes, rmorto er operagao policiat no dia 22 Ge jutho de 2005 no metrd de Londres, uas semanas apés a ocorréncia de alentados terroristas de homens~ bomba no sistema de transparte len Grino. A polciabrtanica apresentou 3 fotomontagem justificando a merce do brasiciro como resultado de uma sé- rie de eventos imprevisiveise tragicos, endo um dales a sua suposta semo- lange com Hussain Osman, A fama alega gue 2 foto utlizada do suposto {errorista no era 2 mesma 2 que 0 policiais tinnam acesso ne dia da ope racio policial. Eles dizem que Jean Charies estava diferente da imagem Uilizada e que a fotomontagern cons~ ri uma somelhanca inexistente, 0 «ase foi coneluldo com urn acordo ex- trajudicial, mas lovantou-se 2 dGvida sobre a interleréncia das suteridades paliciaisna producao das fotos. 12 Bastivanes pa nisronia Evidentemente, nenhum historiador faz a leitura que bem entender sobre 08 documentos, Os conhecimentos sio discutidos por outros estu- iosos. Se algum historiador for arbitrério ou mesmo desonesto no uso das fontes, seu trabalho sera desvalorizado e desacreditado entre os colegas. O importante 6 ter claro que a Histéria néo é uma narrativa tini- cae definitiva de tudo o que acontecen. Ela é construida com base em vestigios, fontes e documentos, e grande parte dessas informagdes tem autores ¢ intengaes. ‘AS MULTIPLAS FORMAS DE EXERCITAR 0 PODER E preciso considerar que, ao longo da Histéria, muitas vezes deter- ‘minados grupos sociais se apoderaram dos destinos de uma coletividade. Passaram a escrever a Histéria por meio da construgao de um discurso {quase uniforme da realidade social, encobrindo diversidades, conflitos, desigualdades ¢ contradigdes, Entretanto também existiram ~ ¢ existem ~ outros tipos de discurso: as memérias de idosos e os relatos de suas vi- véncias e modos de vida: os discursos criminais sob a dtica dos réus e das testemunhas: os registros materiais de intervengao no espago geografico; enfim, existem muilas vozes e muitos suportes por meio dos quais elas se ‘manifestam e podem ser estudadas. Demodo geral, podemos dizer que a escrita da Histéria 60 resultado de uma série de disputas entre grupos sociais e suas formas de compreen- der ¢ explicar 0 mundo. Quando um grupo chega ao poder e coloca seu projeto em prética, uma de suas primeiras atitudes € procurar justificar, no campo das ideias, sua forga e as estratégias de sua atuagao. Para isso recorre ao pessado ¢ encontra uma maneira que lhe parega adequade de contare explicar os eventos ocorridos. Estar no poder implica ter acesso & maior parte dos recursos huma- nos e técnicos com que a sociedade conta (intelectuais; funcionérios: a cestrutura policial, educacional, religiosa e de comunicagao) ¢ a possibili- dade de influenciar ~ incentivando, desestimulando e até proibindo ~ 0 «que as pessoas falam, leem e escrevem. Isso ndo quer dizer que os outros grupos, que ndo estdo no poder, niio possam contar o passado do seu ponto de vista. Ainda que nio re- gistrados pelo discurso oficial, esses grupos podem se manifestar, atuar politicamente, registrar e escrever sua prépria histéria, mesmo que utili zando caminhos alternativos. Ocorre que, em contextos governamentais néo democraticos, esses registros néo oficiais sio encobertos, adulterados, invalidados ¢ até destruidos. Se nao houver meios de se perpetuar (pela criagdo e pela preservagio dos do- cumentos escritos, orais ou visuais), as memérias ¢ os registros de certos grupos podem ser silenciados, provo- cando uma lacuna nas formas de re- presentar 0 passado, i i i i

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