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3. De que estamos falando quando falamos de histéria da arte? Certa vez, numa ocasiao oficial, fui obrigadoliiiMZebeMBONeSS | ininueos um balanco ¢ uma ilustragig da histéria da arte, Lembro-me de _que fiquei muito embaragado: precisava escolher um dos varios caminhos ‘possiveis, esbogat uma introducio necessariamente parcial, conscience de ‘sua parcialidade. Hoje, diante de ouvintes que talvez estudem histéria da arte na universidade, podemos centar outra via, mais problemitica falar ‘em primeiro lugar dos bistoriadores da arte, daquilo que fazem e como o fazem, apartir de queclementose pontosdevistaé feitaa histériada arte. Isso quer dizer antes de mais nada, distinguir: existem varios histo- tiadores da arte que exercem fungées diferentes, trabalham nos museus, cocupam-seda tutelados bens artsticos num rerricério particular,ensinam, sio petitos euja competéncia é procurada pelos colecionadores, pelos mar- chands, escrevern nes jornais, organizam exposicdes e assim por diante. Entre eles pode haverdiferencas, varios modos de trabalhar, que se devem, entre outras coisas, as tarefas que cada qual escolhe: existem os que cata- Jogam, os que acompanham um restauro, os que'ensinam, os que recolhem ‘materiais para uma monografia sobre um artista, os que trabalham numa editora, os que fazem critica para jornal,e por ai vai. Pode acontecer que aquele que trabalha num museu ou numa érea de administraglo e tem um DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO contato quotidian, aré mesmo fisico, com as obras de ace, ironize aesttei- ceza do universitirio, estudioso de gabinete, e que este por sua vez acuse 0 primeiro de empirismo ou de carecer de uma problematica de conjunto, mas rata-sede coisade pouca monta,enio de diferentes concepgses dadis- ciplina, Eneretanto, justamente alguns historiadores da arte que desen- vvolvem tarefas na area de administragio e sio confrontados com a salva- guarda eo estudo do patriménio de uma determinada zona elucidaram os limites e as contradicées do conceit MiMGMMEREEMEANDE e rararnente operatério, (USBEIMEMMEEN é assim que as atengdes 20s poucos se voltaram para uma definigdo menos hierdrquica, mais amplamente compreensiva comoad No conjunto, porém, vista por quem é de fora — e pode-se pergun- tar até que ponto um historiador da arte arrisca a afastar-se de seu campo de acio para julgé-lo —, a hisc6ria da arte aparece como uma disciplina ue s¢HIGROIEGHEIR (0 que, de resto, acontece com todas as disciplinas) e el a yorpeeneSOFEEROPOEER verien ror exemplo, através da muleiplica¢io, nos escritos dos historiadores da arte, deum grande ntimero deadjetivos de sitivo, através © A aefreqionte reperisio de cero certas formulas utilizadas na ca- racterizagio dos attistas. A exaltacao dos préprios objetos,a promogiodo artista a personagem miticoe diferente, aafiemagio da unicidade da obra, indiscutivel na maior parte dos casos, mas enfaticamente repetida, eudo isso nao deixa de ter conseqiténcias préticas, dada aexisténcia de um mer sido de arte vaste e internacional, do qual um dos.pilaces ¢ justamente a taridade ou precisamente a unicidade dos produtos. Nesse sentido, ohis- toriador da arte vé-se atuando numa situagio diferente daquela em que opera hiseoriador da literatura ou da misica, eas conseqiiéncias de sua ideologia ede sua pratica quotidiana podem ser diferentes. Quando assim ropamos com varios produtos passiveis de promogao, encontramo-nos com freq{iéncia diante de uma auténtica inundacéo de expressées lau- davérias ¢ estimativas: codos se lembram de ter lido, por exemplo, a propésito do furto de uma obra de arte, que a obra desaparecida era de “incalculavel valor’, ou cer topado com a edificance fabula do artista que, 126 DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO FALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? sempre em luta com as dificuldades ea incompreensio, acaba por impor- se, Sendo no juizo dos contemporneos, 20 menos no das futuras gerarses, cumprindo, na pior das hipéteses, a tarefa de representar ahistéria, Tudo isso se associa a uma generalizad:(@@immRagROTpelRObTaRAeane, qe se manifesta n no lugar que lhes reservam. Hoje o convite futurista para incendiar os museus teria felizmente pouca repercussio, livros fasciculos, peribdicos, revistas,jot- nais, programas de Tv nos bombardeiam com imagens coloridas ¢ ava- lanches de adjetivos. A desconhecida Capela della Brianza, com encanta- dores afrescosdo século x1v, ou a igreja rupestre da Calébria,comafrescos de misticos e severos monges basilianos, sio recomendadas como iti- nerarios dominicais. is Esses fatos podem ser positivos para o crescimento do interesse por uma conservagio mais efetiva das obras (de todo modo, isso & verdadeiro s6 em parte, porque o aumento da fruicio converte-se em alguns perigos, que vvio dos furtos aos riscos de deterioracio, devidos, por exemplo, aumidade. mas levam também a promogio de uma dana pel ilo dos isan) histéria da arve em chave de fibula, povoada de herdis, de fadas (poucas, devido a0 niimero relativamente exiguo de mulheres artistas), de magos (muitos: Leonardo, o’grande mago nacional”, como dizia ironicamente Roberto Longhi;Ticiano,o"magodacor"etc.),deesplendoresede tesoutos. Para ver a coisa mais claramente, 60 caso de fazer duas perguntas: sobre o que queremos fazer histbria quando fazemos histéria da arte ede que ponto de vista fazemos esta historia, vale dizer, onde nos situamos no ‘momento em que a fazemos, jé que a percepgio de uma paisagem muda conforme a olhamos de baixo, do alto ou de meia altura. Devemos perceber que para fazer histsria.e portanco, historia da arte, devemos situar nés mes- ‘mos ¢ 0 objeto da investigacio. Comecemos pela primeira pergunta: sobre © que queremos fazer histria quando fazemos histéria da arte? Procuremos pér na mesa os materiais eos enfoques possiveis. Podemos imaginar uma histéria da arte que seja fundada numa histéria dos artistas. Ea via mais tradicional e também a mais geralmente praticada, que de todo modo nos reporta diretamentes Vite de Vasari, mas De QIIR RETAMOS FALANDO QUANDO FALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? que ainda possui vasta utilizagio quando se pensa nas monografias, nas ‘mostras e nos catilogos. Se a enxergamos em todas as suas facetas ¢ uti- lizamos suas potencialidades, é ainda uma via que pode ser fertil em resul- tadose tem, entre outras,a vantagem de poder ser submetida acontroles. preciso que nos demoremos um momento sobre este tiltimo ponto. Em todas as nossas operagdes como historiadores da arte, énecessario identificar e pdr em prética os inserumentos de controle que nos peemitem. avaliareverificar nossas hip6ceses. Foi um grande historiador daarte,Erwin Panofsky,* que invocou a necessidade do controle para testaravalidade das hip6teses e incerpretagdes numa disciplina que le pr6prio contribufra para criat,aiconologia, Esta foi imaginada como um ramoda historia daarteque devia nos levar a ler as imagens em seus aspectos os mais diferentes, ¢ até mesmo revelar, pelos caminhos por elas percorridos, as tendéncias profun- das eas preferéncias de uma época. Panofsky supde uma leitura da obra de arteem erésniveis,eem cadaum desses niveis prevé modos de controle para as hipéteses levantadas,a fim de nao deixar um campo livre para suposicoes infundadas e sem nenhuma relagao com a realidade histérica: de outro modo, afitma ele, a iconologia seria mais parecida com a astrologia do que coma astronomia. Ohistoriador da arte que nio quer se arriscar a confundir os préprios desejos com a realidade deverd, porcanto, submeter as préprias hipéteses a controles que permitem avaliar sua legitimidade. Nao é particularmente reconfortante para o bom nome de nossa disciplina que as mais insistentes demandas de controle tenham partido geralmente de historiadores da arte que no sio membros da corporacio, de outsiders, quer arqueélogos, quer historiadores. Fazendo hist6ria dos artistas, 0 historiador da arte se defronta com. uma série de documentos de virios tipos e que, ao menos em parte, podem permitir-Ihe verificar a aceitabilidade das préprias propostas. Pode-se, porém, topar de frente com um grande problema, que a"biografia artistca” iografia anageéfica’,o.que por ele proposta contraste de certo modo coma’ ‘corre quando, por exemplo, determinada hipétese sobre o desenvolvi- mento das maueiras de utu artista no coincide com as datas externas rela- m8 DE QUE ESTAMOG FALANDO QuaNzO FALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? tivas uma obra, até mesmo uma obra-chave. Fatos desse género acontecem por causa da situagao particular das artes figurativas,cujos produtos se acu- mulam, em grande parte, sem indicagao de data ou paternidade. E um pro- blema que também se apresenta na historia da literatura ou da miisica, mas que & muito mais evidente no caso da histéria da arte. So pougquissimas, por exemplo, as pinturas antigas assinadas e datadas. Se podemos achar informacées sobre algumas delas (que deverao ser controladas atenta- mente) em fontes contemporineas,a atribuigao e a datacao da maioria é tarefa dos historiadores da arte que para este fim utilizam a leitura form: serd este o instrumento principal para a reconstrugio da" biografia artis- tica’, vale dizer, de um hipotético vestigio do desenvolvimento do estilo de uum artista baseado na aproximagio de uma série de obras a ele atribuidas, dispostas segundo uma cronologia interna. “Entra em jogo neste ponto d problema da leitura formal ou estilistica. ‘Todos sabem o que significa uma leitura de documento: decifrar a data ou aassinatura de uma obra, referir a esta um depoimento preciso, um con- ‘rato, um pagamento, a noticia de uma fonte contempordnea, a ctagio de uma visita pastoral eassim por diante. Esses dados poderioindicar comboa aproximagao a data da obra e seu autor, poderdo constituir no minimo um termo post quem ow ante quem, naturalmente se a assinatura é auténtica, se a data se refere realmente & fatura da obra e nio a um acontecimento prece- dente (como o célebre 1221 no retébulo de Guido da Siena, quejé esreve em San Domenico, em Siena, ¢ hoje estd no Palicio Pablico da mesma cidade, quese efere nao. pinturado recébulo, mas aoestabelecimentodos domini- canos em Siena), Mas como se desenvolve a leitura esilstico-formal? Trata-se de uma leieura e de uma interpretacéo dos elementos presentes no texto conside- rado, que iré de grandes generalidades (na pincura, por exemplo, a técnica utilizada,o tipo de representagio do espaco,0 moto da composi¢io,agama cromética eo uso da cor as Formulas empregadasna caracterizacio dos per- sonagens, os panejamentos etc.) a detalhes sempre mais minuciosos (0 modo de representar uma cabeleira, uma folha) ou até mesmo — como ‘eorizou Giovanni Morelli no século x1x — aos detalhes particulares que DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO FALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? o artista executa mais ou menos automaticamente ¢ que se rornam estereétipos reveladores (sempre os mesmos caracteresciftados para repre- sentar uma orelha, uma unha). Se tivermos conhecimento suficiente, a ponto de poder fazer muitos paralelos, lograremos situar edatar aproxima- damente um quadto, uma esculeura ou uma arquitetura (mas, neste caso, escolhendo outras datas de leicura: a planta e a construgio de um edifcio, seus elementos constitutivos e decorativos, 0 tipo de alvenatia etc), atri- buindo aestasrealizagdes umnomepreciso ¢,no interior docorpus das obras referido a este ou Aquele artista, uma certa determinagéo, na produgio da juventude, la matutidade e assim por diante, determinagio que dependerd da hiptese que tivermos feito sobre o desenvolvimento de suas maneiras. ode intervir neste ponto, como ji dissemos, um contraste entre"biografia, artistica’ebiografia anagrafica’,um problema muitas vezes evantado, mas que, tudo somado, é um falso dilema. Diante de uma discrepancia encre dados anagrificos de calendério e dados estilisticos — contradigio devida 4 presenca de um documento, de uma inscricéo ou de outros elementos rocantesauma obra, que razées internas baseadas sobreumaleitura das for- ‘mas induziria a datar num momento diverso em relagio & indicagao dos dados documentais ou aatribuira outro artista —, ébom que soe umacam- painha de alatme e que se proceda a uma série de controles cruzados. Nao édito que uma das duas evidéncias — quer a documenta, quer aestilistica — deve ser necessatiamente prioritiria. Os historiadores da arte pensario sem divida que a evidéncia esilistica € a tinica determinance e, de modo diferente, por sua vez, vero as coisas os arquivistas, por exemplo. Em reali- dade, uma discrepincia pode revelar um erro na construgio da biografia artistica ou, ao contratio, a m4 interpretagao de um documento, de uma data, de uma assinatura ¢, portant, um erro na reconstrugao da biografia anageafica. Cada uma das duas séries poder assim ser utilizada como instrumento de controle pela oucra. Em contrapartida, a histéria da arte entendida como hist6ria dos artistas permitira reconhecer ainsersio social doartista,suas relagdes com os clientes eas corporarées de oficio,aimagem ‘que os contemporineos tinham dele e de sua atividade, assim como aquela que possuia o proprio artista. Que extraordindrias informagées podemos DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO FALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? tirar da inscrigio comemorativa de Buscheto, 0 arquiteto da Catedral de Pisa, posta na fachada do edificio que ele construiu: nela, Buscheto é com- parado a Ulisses pela inceligéncia e a Dédalo pela capacidade artistica; a mesma coisa vale para as inscrigbes que louvam, na abside e na fachada da Catedral de Médena, 0 arquiteto Lanfranco,"ingenio clarus doctus et aptus” {famoso, douto eadequado por seu engenho],€0 escultor Wiligelmo, cele- brado pela extraordindria qualidade de suas obras. Através desses textos, temos depoimentos irrefutaveis sobre a consideragio particular de que {gozavam na Idlia alguns arquitetos eescultores, ouao menos naquela parte da kélia compreendida nos dominios de Matilde di Canossa,jéno inicio do século x11, Podemos também remontar mais longe, aquele Ursus Magister que assina uma lastra de altar para a Abadia de Ferentillo no século vit ou até Anica eexcepcional cepresentagdo que no altar de ouro de Sant’Am- brogio, em Milo, mostra o auor desta j6ia, o magister (mestre] Phaber Vuolvinius, que se representa no ato de ser coroado por Sant’ Ambrogio: in- comparivel monumento daconsciénciadesimesmoedo préprio papel que veio ater o artista medieval. Daqui podemos concluir que certa imagem do attistaede sua conduta,alémdeuma precisa consciéncia daimporeinciada produgao artistica, desenvolve-se na Itélia em tempos bem precoces, pro- blematizando concepeio do artista como uma pessoa que, dedicadaauma atividade mecanica, cha-se numa posigio social subalterna.econtratiando a doutrina, tao freqientemente repetida durante a Idade Média pelas autoridades eclesidsticas, segundo as quais as obras de arte teriam como “nica tarefa ilustrar para os iletrados as verdades da fé, preparando assim. aquela situagao particularem queo artistas verd a trabalharno século x1v, na Toscana, quando se tomar definitivamente um personagem lterétio. A historia dos artistas arrisca-se, porcanto, 4 abstracio quando nao & integrada a0 atento exame das obras. Podemos, assim, imaginar uma his- téria da arte que se baseie na histéria das obras, mas quem empreender a investigagio deste ponto de vista deverd antes de mais nada interrogat-se sobre as fronceiras do corpus. Sobre que base estabelecer, de fato, que um objeto pertence aquilo que podemos chamar o corpus da obrade arte? Jé nos referimos ao problema posto aos partidirios do anteparo e do alargamento 13 pe QUE roTaMos FALANDS QUANDO FALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? no hierarquizante permitido pela inerodugio do conceito de“bem cul- cual’. Nem todas as formas criadas pelo homem interessam de fato aohis- toriador da arte atualmence,’ masnao podemos noslivear do problemaesta- belecendo que sejam definidas como obras de arte aquelas que cram assim Julgadas no momento de sua criagio, ou aquelas que hoje s4o consideradas como tais. Temos uma quantidade de exemplos de obras surgidas com cerca fangioe que mudaram de estatuto com o tempo. Quando em1968 0 Museu de Arte Moderna de Nova York expés, por ocasiio da mostra"The machine as seenat the end ofthe Mechanical Age"[A méquina vista no final da era me- <€nical, uma Bugatti 1931 ¢ uma Locus Turbocar, estes objetos, devido asua sacralizagio pelo museu, foram promovidos & condi¢ao de obras de arte.” Podemos enumerar varios outros exemplos de mudanga de status, evocar porexemploarumorosa chegada do industrial design [desenho industrial] ou daarqueologia industrial ao campo dahistéria daarte,paranio falar dos ex- votos populares, mas também buscar exemplos na tendéncia oposta. Mais que aabjecos desqualificados da condigio de obra de arte podemos interes- sar-nos por altecages nas hierarquias. Somos tradicionalmente habituados a levar em conta certa escala de importincia deixar em primeiro plano as obras que pertencem ao campo das chamadas arces maiores: esta hierarquia de origens longinquas seja amplamente discutida e além ineura, escultura e arquitetura. Ainda que do mais criticada, também acabamos por segui-lade modo maisou menos consciente. Por muitos séculos, ao contrario, as coisas nao foram absolu- tamerte entendidas desse modo. Num belo artigo, Meyer Schapiro’ mos- trou que extraordindrio ineresse, que vibrantes emogdes estéticas a visio de tecidos preciosos — gracas a suas cores cambiantes, 4 maneira como eram confeccionados, a suas representacdes — podia suscitar em quem tinhameios de admicé-los durante um traslado de reliquias. Mais que as pinturas murais, mais que as proprias esculcuras, estas manufaruras sus- citavam profundas sensages, admiraco sem limites num cronista como Regiraldo di Durham, como testemunha sua narragio do traslado do corpo de sio Cuthbert. O espectador de hoje é em geral mais fascinado pelos produtos de outras téenicas enum moderno museu de arte medieval 33 ae DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO FALANOS DE HISTORIA DA ARTE? nio serio as fazendas (salvo certos casos espetaculares, como a capa de Henrique 11 no tesouro de Bamberg) a despertar 0 maior interesse ¢ a maior admiragio. Hi, portanto, obras que desfruraram durance certo tempo uma ex- traordinéia fama, nao tanto da parte dos contemporiness, mas de um publico jé muito distante do momento de sua criacZo. Jacques Thuilier lem- brava aeste propésito o caso da Testna in cera (Cabecinha em cera] de Lille outrora considerada, quando atribuida a Rafael, ajéia do museu daquela cidade, de odo modo uma pequena Gioconda, e hoje desqualficada e esque- cida numa anénima vitrine, Assim, sede um lado, em nossa época, somos propensosa incluir entre as obras de arce coisas e objezos que nasceram com outra intencionalidade, mas que mudam de estatuo uma vez expostos — para nds, hoje, legi- timamente — numa moldura como a do museu, que certifica como obras dearte tudo aquilo que se acha em seu interior (cas provocagdes de Marcel Duchamp ede seus ready made — objeros de uso comum i confeccionados se apresentam como obras de arte, como o célebre Urinol ou a Roda de bci- eta — poderio fazer-nos refleis neste sentido), por outrolado, devemos constatar que jé no conseguimos ver as obras de arte do fassado com os olhos que foram vistas pelos contemporineos e que, portarto, corremos 0 risco de empobrecer o valor estético de coisas que haviam provocado um tempo atrés 0 maior clamor. A fina flor dos vitrais medievais, por exemplo, no maximo ¢ hoje exposta nos museus de arte aplicada, mais que nos gran- des museus de arte, iss0 porque a producio de obras similares implica co- laboragées, trinsitos, tradugées de uma técnica para outra,do projeto de- senhado tealizagio em vidro, que complicamas coisas paraquem— como freqiiencemente os historiadores da arce — tende a exaltar 1 autografia do artista. Para o monge Theophilus, 0 contririo, que escreviaprovavelmente emprincipios do século xn, os vitras estavam entre as maisaltas expresses artisticas contemporaneas. Fazer historia das obras significa, portanto, suscitar tarrbém estes pro blemas. E comporta outros. As obras de arte tm de fato — ou melhor, podem tes, quando se verificam certas condigées — vida muito mais longa 13 DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO que seus autores. Sua conservagio, sua prépria sobrevivéncia é, portanto, estritamenteligada shistéria de sua recepeio,a histria da preciagzoqueno tempo receberam. E assim que se efernoua selegio, éassim que certas obras foram conservadas ¢ outras se perderam. Se prosseguirmos neste caminho, nos daremos conta de que fazer historia da arte ndo significa apenas fazer hist6ria da produgéo das obras, mas também da receprdo que se reservou a clas,eventualmente também de sua destruigaoedos motivos queaocasiona- tam, Uma pista ideal para seguir esta historia poder ser investigar ahistéria decomo.eem que condiges uma obra chegou até nés, mas ser precisolevar em conta o ntimero maximo de elementos externos ¢ internos, eventuais mudangas de sede que podem revelar um reduzido interesse pelos confron- 10s daquela obra particular, assim como as influéncias que obraexerceu no cursodo tempo sobre outros artistas (ndo necessariamente contemporineos dela) das restauragbes sibitas, como de evencuais violag6es,daconsolidacéo ou do enfraquecimento dos estudos e assim por diante. Fazer histéria das obras também significa pesquisar os contextos, pesquisar as situagées em que foram criadas e em que sucessivamente se acharam, Raramente nos defrontamos hoje com obras deslocaveis que per ‘maneceram em seu lugat primitivo. Grande parte delas foi arrebatada & propria sede etransportada para junto de outras num museu, este moderno lugar do estranhamento onde se realiza uma radical modificagao das con- diges otigindrias de percepgio das obras. O fendmeno, embora antigo — podemos remontar ao menos as colesSes seiscentistas —, tem uma stibitae radical aceleragao a partir da época da Revolugio Francesa e do Império napolednico. Muitas obras pertencentes a edifcios religiosos secularizados foram entio transportadas para museus de instituigio recente; muitas,entre as mais espléndidas, foram levadas a Paris por Napoledo, que queria reunir em’seu museu tudo o que a Europa — da antiga Grécia em diante — pro- duzira de mais belo, de mais influente. Néo faltaram naquele tempo 0s opo- sitores, o primeio de todos Quatremére de Quincy, que se declarou con- tritio aos deslocamentos ¢ reclamou contra as estituas desdeifcadas’, que no artanjo do museu haviam perdido funcio, atributos, contexto. Fazer hiscéria das obras também significa, portanto, fazer historia de suas vicissi- 134 a i i i DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO FALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? tudes, das sibitas mudancas de suas fungdes, de seus contextos. Num mu- seu jé nao nos ajoelhamos diante de uma imagem sagrada, néo se tem respeito ou temor diante de um cetro, no museu as obras que mudaram de fangao perdem parce de seu valor, conservam apenas seu valor estético. E devernos considerar, por exemplo, que se a capela de uma igeeja,asala oua galeria de um palécio consticuem ocontexto original deuma obra, vale dizer, ( lugares para os quais foram pensadas e realizadas levando em conta toda uma série de fatores,o museu para onde a obra é transportada, extraida e arrebatada de seu lugar de origem acaba por constituir para a obra um novo contexto. Fazer histéria das obras significaré assim compreender também a impossibilidade do isolanlento. Uma obra nunca esté sozinha, nasce rela- cionada aalgo, vive e pode se transformar nos olhos dos assistentes, em re- lagao a alguma outra coisa. Judtamente porque uma obra nao pode ser lida ecompreendida noisolamento (eisto deveria nosestimularalevaremconta no s6 0 contexto em que foi produzitl, mas também aquele em que suces- sivamente se achou), a histéria da arte é freqiientemente encarada como histéria dos estilos, o que significa, no limite, fazer — como profetizou Heinrich Wélfflin — uma"hiseéria da arte sem nomes”¢, portanto, sem biografias de artistas, em que as obras sio lidas e estudadas para se extrait certas caracteristicas, certas formulas, certos modos de composicio, certas preferéncias que se mantém comuns a0 modo de sentir e ver, e principal- mence de representat, de uma época. E justamente esse conjunto de tragos, de elementos comuns, de formulas representativas que nos habituamos a chamar de estilo, Foi um célebre arqueélogo, Johann Joachim Winckel- ‘mann — que encarando na segunda metade do século xvii o conjunto de monumentos da arte clissica eno tendo a possibilidade de utilizar a grade biogréfica tio cara a Vasari precisamente pela impossibilidade de atribuir os materiais conservados aos raros nomes de attistas referidos pelas fontes clissicas e aos quais néo se podia com certeza atribuir nenhuma obra —, ‘quem criowo primeiro exemplo de histéria da arte fundada na histéria das formas representativas, isto é, dos estilos, Seu exemplo, de um discusso admiravelmente conduzido sobrea base do atento examedos caracteres dos De QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO. PALAMOS DE HISTORIA DA AYE? monumentos singulates, das obras singulares, teve enorme repercussio, tanto que se péde dizer que com ele nasceu.a moderna historic da arte. Hoje uma histéria da arte entendida como histéria dos estilos tratara sen argumento dividindo os produtos arcisticos em grandes continentes ¢ ‘a cada qual sera dado o nome de um estilo: falar-se-d assim de arte rominica, gética, renascentista, maneitista, barroca, rococé e assim por diante. Mas esses continentes ¢ essas grandes categorias foram criados precisamente pelos historiadores da arte. O risco que se corre é, portanto, aque participe do jogo justamence aquele que fez as regras e que fiquemos assim sem instrumentos de controle. De fato, foram os historiadores da arte que inventaram os estilos, que selecionaram e estabeleceram os critérios de periodizacao. Em compensagio, esses critérios so procura- dosem geral no interior de uma técnica particular endo é absolutamente dito que sejam apliciveis aos produtos de outras técnicas. Per exemplo,a forma aguda do arco mais em geralo modo de construir quetende aesta- belzcer um sistema de pontos de forca concentrando os pesossobre deter- rminados elementos (espigées, semipilastras compésitas, arcos-botantes, contrafortes), em vex de reparti-los sobre o conjunto das paredes, assumem valor exemplar para estabelecer se um edificio faz parte da arquitetura gética. Mas as esculturas que decoram os portais de um edifi- ciogético de fins do século x11 ou os witeais que fecham suas janelas, serio também eles goticos? E quais 0s critérios para decidi-lo? Um dos perigos deuma histéria da arce entendida como histéria dos estilos éjustamente ode querer supor para certa épocaum modo comum de sentir que psofacto vira a traduzir-se num modo comum de realizar obras de arquitetura, de escultura, de pintura, Isso néo leva em conta a velocidade variavelide mudanga ou de inovagio que as virias técnicas podem manifestar, do peso diverso das tradigdes e assim por diante. Um historiador da arte francés, qu: foi rambém um grande escritor, Henri Focillon, evocou estes proble- mas de modo muito felize estimulance: ‘A hiscdria da arte nos most, justapostas no mesmo momento, sobre~ vivnciaseantecipagbes, formas leneas,retardatriascontempordneas de for- a DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO PALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? mas ousadas ¢répidas[..].© tempo pode estar para ondas curtas ou ondss longas ea cronologia serve nio para provaraconstinciseaisocroniadosmovi- mento, mas para medi as diferengas de duragéo da onda, Eainda: Um period do tempo histérico,embora curto,comporta grande niimero de planosou, se quiserem, de eseraificagées.A histériando éo devir que Hegel canto prezava, Nio é igual a um rio que levaria na mesma velocidade ¢ na mesma diregio os acontecimentos ¢ os fragmencos de acontecimentos [1 Deveros antes pensis numa superposiio de estates geologicos,difeente- mente inclinados,feqigatemente interrompidos porbruscas rupturas, que no mesmo luge no mesmg momento, nos peemitem perceber diversas idades da rerra, de eal modo que éada fragio do tempo transcorrido é simultanea- mente passado, presente e fururo.® Talvez se possa ver nestas afirmagées uma piteda de elogiiente re- térica, mas elas definem bem uma situagio em que a evolugio das técnicas no é paralela e menos ainda sincr6nica, em que caminhos diferentes se cencrecruzam e se distanciam sem cessat. Num certo ponto também pode acontecer que nos achemos em meio a discussbes e polémicas para decidie se determinada obra, determinado monumentoé,por exemplo, romanico ou otoniano;e isto nao tanto por um problema de data, como aconteceria se decidissemos que tudo aquilo quese produziu numa certa zona da Europa — digamos, entre Milo eo mar do Norte entre 950 ¢ 1020 — deve chamar-se otoniano;ttata-se antes de um problema de definigio: 6 que definimos como otoniano e o que como roménico? Estas etiquetas, embora geralmente aceitas, sio cerivelmente sugestivas, e convitia cer sempre presence seu cardter convencional e utili- tério, surgido num momento histérico preciso. Ora, seem vez de nos limi armos a usar instrumentos cémodos, ites para fazer uma classificagio € surgidos num certo periodo, acabamos por conferir-lhes uma importancia, aurdnoma.eimaginé-los como categorias universais, ros acharemos diante a7 DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO PALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? daquelas construgées fantasmagéricas em que se prope existéncia de um ‘homem gético", um pouco como sucedia a Wilhelm Worringes, ou de wim “homem maneirista’, de eujo forma ments [modo de pensar}, de certa forma estruturado, descenderiam as virias produgées artisticas. Corremos assim o risco de falar de estilos quase como se existissem de modo auténomo e como se os artistas fossem conscientes de participa dessesestilos. im suma,utilizandode modo despropositado.omodelodos mo- vimentos modernos, do futurismo a0 simbolismo e assim por diante, movi- ‘mentos nos quais uma comum declaracio de intengao criava nos partici- pantes o senso de uma solidariedade e de um vinculo, pode-se chegar, sem perceber, a atribuir aos artistas a consciéncia de set"géticos’,"barrocos” ou. “antigos tardios”.E um poucoo proceso esclarecido num niimero de Asterix em que dois guerreiros gauleses entram numa cidade romanizada, maravi- Iham-se com as colunas, os frontées, 0s arcos, os capitéis, até que um per- gunta ao outro: “Mais tout ga ces pour quoi aire?” [Mas para que tudo isso?], € ouve a seguinte resposta:"C'est pour faire gallo-romain’” (Para fazer galo- romano]. Devemos estar atentos para que uma histéria dos estilos no se torne uma histéria de fantasmas ou sombras que nds préprios projetamos natela da historia. Nao que com isso se queira por em diivida a oportunidade das classi- ficagées ou sua legicimidade. Podemos antes dizer que 0s contemporineos tinham a clara impressio de que a arquitecura gética era algo diferente daquela que a precedera, Um documento alemio do século xm utiliza 0 termo opus francigenun (obra de origem francesa] para indicar uma igreja construfda segundo os ditames da nova arquitetura proveniente da Franga. ‘Mas trata-se da consciéncia do fato de que ao erigir aquela igreja tinham sido adotadas certas formulas particulares de construcéo que pediam uma definicéo ad hoc. Nao se trata de categorias, enquanto a histéria dos estilos. arrisca desembocar numa tipologia de categorias. E, entretanto, de Winckelmann em diante ela se tornou o principal instrumento de classificacio e organizacio. Neste ponto, podem-se abrir outros dossits, das formas e das técnicas artisticas, Existem técnicas artisticas, existem materiais e um certo modo de 138 DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO traté-los, instrumentos que impdem certo tipo de utilizagao. Este éum campo amplamente explorado durante o século x1x, que conferiu a taisele- _mentos.um papel determinante,assentando, porém,osestudos demodo que isolava excessivamente os produtos das diversas técnicas. Ourivesaria,escul- cura, esmalee, vitrais, pinrura,tapegatias haviam seguido suas historias par- ticulares, arriscando nao se integrarem a.um panorama mais vasto. Ascarac- teristicas especificas indubitiveis das técnicas particulares, indispensiveis, de se levar em conta para compreender quais podiam ser as solugdes pos- siveis em certo momento histrico, nao excluem uma capacidade de projecar ‘ecambém de executar por partedo artista, que pode expandir-seem terrenos muito diversos. Pode, por exemplo, acontecer, e¢ o que mais acontece, que uum arquiteto projete a dedoracio ¢ os ornamentos do edificio cuja cons- trugio esti dirigindo, Os esbocos do célebre liveo de Villard de Hon- necourt o mostram exemplartnente: nas folhas desenhadas a fim de servir como modelos para o atelié encontramos desenhos e esquemas de escul- suras, cadeirais para coro 20 lado de plantas de edificios, saligncias e deta- lhes arquiteténicos. Arnolfo di Cambio, queconhecemos bem como escul- tor, Giotto, celebrado como 0 pintor maximo de seu tempo, serio mestres-de-obrada Opera di Santa Maria de! Fiore,e Giotto serdchamado a adminiserar todos os grandes erabslhos de construgio promovidos pela comuna de Florenca. A passagem de uma técnica para outa é habitual. Lourenco Ghiberti realiza as portas de bronze do batistério florentino, mas também vitrais e esculturas em marmore. Filippo Brunelleschi, tam- bém ele ourives, estard entre os maiores arquitetos de todos os tempos. Daquilo que resulta dos inventérios do século x111 e do seguinte, 0 puiblico eos clientes davamtal importincia is eéenicas que baseavam sobre elas os préprios instrumentos de classificagao. Opus francigenum, jé o disse- ‘mos, é um certo tipo de arquitetura que era praticada na Franga e as indi- cages queencontramos nos inventirios moseram ques obraseram distin- guidas nio por data, autor ou assunto, mas pelas técnicas; opus lemovicense [obra lemovicense] era uma expressio empregada para os esmaltes proven- sais; opus anglicanum (obra anglicana] para um tipo de bordado particular- ‘mente praticado na Inglaterra assim por diante. DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO FALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? Ao lado das técnicas existem modos e géneros, formulas e esquemas, todo um repersério de formas de representacao, de tipologias que podem. ter vida muito longa e que deverdo ser investigados em longa duragao, sem. diivida, Seed preciso integrar a hist6ria dos estlos, estas modernas formas de classificagae, com outras historias, das técnicas, dos materiais, das for- mulas e dos esquemas de representacio; apenas desse modo esta histéria podera conhecer nova espessura, maior plausibilidade e uma potenciali- dade de utilizarao mais ampla. Ao percorrer esses varios caminhos percebemos que, pari construir uma histéria da arte que leve em conta diversos elementos e que nao seja ‘muito fantasiosa, devemos utilizar diferentes enfoques e levar em conside- ragio fatores diversos. Devemos procurar abarcar toda a extensiodo campo artistico, o quequer dizer os préprios artistas, as obras (que no tempo tém uma vida auténoma em relacio A de seus criadores),as tradigdes iconogeé- ficas ¢ formais,os clientes que, por um periodo bastante longo, tiveram na producio artistica uma importancia até mesmo determinante (quesepense em Carlos Magno e sua politica artistica e cultural, er. Bernwardus di Hildesheim em tantos"bispos construtores" alemdes ou franceses, em. Desiderio, abade de Montecassino, que estabelecen relagées direras com os. artistas de Bizincio, ou em Sugerio, abade de Saint-Denis, que no século xt inspirou um novo modo de construir e uma nova decora¢io na fle-de- France, contribuindo com outros mais para criar 0 estilo que chamamos “gético’; em Frederico 11, que projetava ele préprio castelos e monumentos, até os principeseprelados renascentistas dos quais falou recentemente Set- tis em seu ensaio’Artisti e commitrenti tea Quattro e Cinquecento” (Artis- tas e clientes entre os séculos xv e xvi), os intelectuais eclesisticos ou. Iaicos que sugeriram os programas iconogréficos, 0 piblico, que comi os préprios habitos e os préprios critérios de juizo, pescu de modo néo indiferente nessa histéria. Quem indicou o caminho nessa ditegio foi o grande Aby Warburg, em cujos ensaios® as obras de arte sio abordadas em. seus diferentes aspectos e na diversidade de seus componentes estilisticos, iconogréficos, histéricos, ociais. Estudos como A arte do retrato ea burguesia flrentina, ou Contadini al lavoro su arazzi di Borgogna [Camponeses traba~ | DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO FALAMOS DR HISTORIA DA ARTE? Ihando na tapegaria de Borgonha] ,escritos em principios do século XX, sio ¢ permanecem exemplates de como se pode fundir magistralmence a hiseéria das imagens, dos clientes, dos artistas, das tradigdes, daculeura, B, de outro lado, serd necessirio seguir a histéria das instituigées, ‘sejam elas oficinas, lojas, corporacées, academias, mercados, museus, mostras,e dos grupos de especialiscas que nascem e se desenvolvem ligados -aesscs instiouigbes:os historiadores da arte, queantes de Giorgio Vasariingo cexistiam, 0s exiticos surgidos com o erescimento dos Saldes e das ex- ‘posigGes, 0s conservadores de museu, os marchands e assim por diante? Nestepontoteremosum quadro maiscomplexo,cheiodeacioereagio, ‘uma histéria movimentada e rica de contrastes e conflitos, uma paisagem ‘mais agitada: seré o melhor modo de fcar de fora daquelas explicagées sim- >plificadas de que eu falava, que nio oferecem solugées satisfatSriss para tan- +0s fatos tantos fendmenos. Ha muitos anos um inteligente historiador da arte, Frederick Antal, fez uma ampla investigacio sobre pintura florentina entre o século x1v e o xv,” justamente para tentar esclarecer a abrangéncia de rendéncias muito diversas num mesmo momento. Antal estava descon- rente com as formulas e lugaces-comuns que em geraleram apresentados & guisade explicacio,comoas diferentes geracées is quais pertenciam osartis- ‘tas 01 sua maior ou menor capacidade e criatividade, elementos todos que -certamente existiam e entravam em jogo, mas que nio esclareciam muitos aspectos do fendmeno, Sua proposta foi cotejar as obras de arte com seu ‘piblico, coisa que por exemplo permitiu-lhe supor uma diferenciacio nas ‘preferéncias manifestadas por clientes de extracio social diversae diferente ‘cultura em relagio As varias solugées possiveis no campo pictérico, num -determinado momento. E hao s6,este esquema também explicaveaaparente interrupgdo da pintura florentina e senense na segunda metade do século xiv, concomitante com a maior importincia que certos grupos sociais, mais ‘populates e mais conservadores em matérid de arte, haviam assumido naquele perfodo, privilegiando uma volta a solugées mais tradicionais, em relagio & pintura mais moderna e avangada, em termos de representagio do espaco, da paisagem, dos personagens. Antal mereceu muitas censuras,fizeram-se ironias sobre suas equa- DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO ses simplificadoras entre determinadas tendéncias artisticas eo gosto da alta, da média eda pequena burguesia. Que em seu mérodo houvesse exces- sivas generalizacées eesquematismos écertamence verdade, mas aquilo que levantatam contra Antal muitos historiadores da arte foi principalmente seu modo de atentar contra aautonomia dacriagio artistica, fato em relagao a0 qual os historiadores da arte reagem na maioria das vezes com um indig- nado sobressalco corporative. Todavia, podem-se indicar outros casos de mudangas estilisticas concomitantes a mudan¢as sociais: o exemplo mais célebre é a emergéncia em Roma, encre o final do século 11 € 0 inicio doy, do caracteristico estilo"tardo-antigo” que ja se manifestara antes em situa ges geografica ou socialmente periférieas. A emergéncia e a imposigao dessa linguagem neste momento nao mais em obras marginais, mas nos ‘monumentos mais importantes da capital do Império, devem ser rela- cionadas com as mudangas sociais ea importancia assumida por certascas- tasno periodo da tetrarquia. Eassim que um estilo até entao periférico péde impor-se a0 centro da érea interessada." A relagio entre gosto e atitudes estéticas dos clientes e dos varios piblicos, de um lado, ecaracteristicas da produgio artistica, de outro, é extremamente complexa e nao decerto tunivoca, requerendo que vitios fatores sejam levados em conta e que seja feita uma série de controles em varios niveis para evitar explicagoes muito deterministas ou completamente circulares. Sao exemplares neste sentido osestudos recentes de Michael Baxandall,justamente porquenelessebus- camese analisam os modos eos critérios especificos daapreciagao dasobras de arte em Florenga no século xv ou na Alemanha meridional do século xvi.Em ealidade,as obras de rte tém muitos valores que podem serestéti- cos,mastambém culeutais, sociais, politicos, étarefadohistoriadordaarte lé-tas em sta complexidade. As imagens foram usadas como meio de domi nagio simbélico, como objetos de culto, instrumentos de distincao social, fonte de prazer estétco e assim por diante, foram admiradas e detestadas, protegidas edestruidas (os grandes epis6dios de iconoclast recorrentesna histéria bem o mosecam), foram copiadas, esquecidas, vendidas, coubadas. Sio histérias, todas, a serem seguidas para que se possam perceber as varias, facetas de uma obra de arte e,em seus virios aspectos, a historia das obras de DE QUE ESTAMOS FALANDO QUANDO FALAMOS DE HISTORIA DA ARTE? artendo éuma histéria idilica, mas uma histéria de contrastes, de conflicos, de hegemonias, de espoliacdes, de imposigées, de ocultamentos e periferi- 2zagbes como todas as histérias do homem. Chegamos entio & segunda pergunea: de que ponto de vista fazemos hhstéria? Isso significa que devemos tomar consciéncia do modo como guar damosas obrasdearte, um modo profundamente condicionado pelosinseru- mentos que usamos, por nossas preferéncias e hierarquias, por nosso sistema devalores. Hojenio podemos fugira nosso tempo, néo podemos nos valerde uma percepcéo nao condicionada, daquilo que se pode chamar um olhar “ingénuo’, nao podemos observar uma obra sem ser influenciados ou predis- postos de algum modo por nossa cultura, pelas categorias que utilizamos Alois ieglescreveu certavezqueo melhor historiador daarteeraaquele

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