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BIBLIOTECA DE CIENCIAS NATURAIS, MARIO BUNGE, imecho- (McGitt University, Montreal) Dr. Antonio Brito da Cunha (da Universidade de So Paulo) Volume 4 EPISTEMOLOGIA curso de atualizacio Tradugao de CLAUDIO NAVARRA 2a, edi¢ao A rlagdo dos livros T. A. QUEIROZ, EDITOR cencantra-se no fim deste vlume, ‘Sito Paulo cariruLo 13, TECNOLOGIA E FILOSOFIA A Enmilio Rosenbiueth Instituto de Ingenieria U.N.AM., México, D.F. 1. Dois vizinhos que se desconhecem Em que poderia interessar a Filosofia aos tecndlogos? Em nada, 4 julgar pela falta de cultura filaséfica da maioria dos tecnélogos. Nio obstante, veremos mais adiante que a pesquisa tecnoiégica, como toda investigagdo racional, tem pressupostos.filosbficos. Por outro lado, em que pode interessar a tecnologia aos filéso- fos? Em quase nada, a julger pelo desinteresse — e as veres 0 6dio— Pela tecnologia de que fazem alarde quase todos os filésofos. Nao obstante, veremos que a tecnologia levanta um grande nimero de problemas filos6fices, desde @ procura dos pressupostos filosficos dda Engenharia, da Medicina e da Administragdo, até a investi szagao das peculiaridades do conhecimento teenolégien, do artefato, ¢ da agdo humana guiada pela tecnologia. Existe, em suma, uma Filosofia da tecnologia. Mas, a Filosofia da tecnologia ainda ¢ raquitica, em boa parte porque 6 filésofos da tecnologia mais conhecidos, como Jacques Ellul, confundem a tecnologia com 0s efeitos nocivos de suas apli- ‘cages. Muitos filésofos limitam-se a declarar o lugar-comum de que a tecnologia — produto tipicamente humano — “desuma- niza o homem”. Outros filésofos confundem a cigncia com a tecno- logia — a Fisica com a Engenharia nuclear, a Biologia com a eardio- logia, ete. — ¢ assim deixam de notar as peculiaridades de uma © coutra. Porém, a maioria dos fildsofos pretende ignorar a Filosofia a tecnologix, O tema é tio novo que a reunio bienal da Philo- sophy of Science Association, reelizada em Chicago em outubro de 1976, incluiu um simpésio sobre a questo “Existem problemas filoséficos interessantes na tecnologia?” Veremos a seguir que hi, muitos e variados, desde a gnosiologia até a Etica passando pela ‘ontologia € a axiologia. Contudo, antes de examinar a questo 186 — Filosofia da tecnologia recisamos nos pér de acordo sobre o que devemos entender pelo ambiguo vocabulo “tecnologia”. 2. Definicéo da tecnologia © primeiro problema levantado pela tecnologia é 0 de sua caracterizagio, porquanto nao ha consenso quanto a sua definigao. Ha uma desconcertante variedade de modos de entender essa palavra. © homem da rua confunde muitas vezes o receptor de televisto com a tecnologia que levou a sua produgdo. Mais de um estudioso, especialmente nos pafses de lingua inglesa, inclui o arte- sanato na tecnologia, Por exemplo, o especialista na pré-historia fala as vezes da tecnologia da pedra polida. Em portugués e em outros idiomas, porém, dispomos de duas palavras, ‘técnica’ e ‘tecnologia’, e sabemos distinguir bem os conceitos que designam. Habitualmente, entende-se por tecnologia a técnica que emprega conhecimento cientfico. Por exemplo, distingue-se a técnica da costureira da tecnologia da indiistria da confeogiio. Em sua maioria os diciondrios nao distinguem a tecnologia moderna da Engenharia. Se aceitarmos essa igualdade nio sabe- remos onde situar a Bioengenharia, a Tecnologia educacional e tras disciplinas que nao participam da produgao. De um modo eral nao saberiamos o que fazer com os novos ramos da tecnologia que nascem de quando em quando. Para evitar essas dificuldades deveriamos adotar uma definigao de tecnologia capaz de abranger todos os ramos supervenientes. Isso pode ser atingido se se carac- terizam os fins e os meios da tecnologia, tal como na seguinte DEFINICAO. Um corpo de conhecimentos é uma tecnologia se, esomente se, (@__@ compativel com a ciéneia contemporanea ¢ controlavel pelo método cientifico, ¢ Gi) € empregado para controlar, transformar ou criar coisas (0u processos, naturais ou socias, Observe-se que, segundo esta definigdo, uma tecnologia pode ter ou nao uma intersecedo nio vazia com alguma ciéncia. Todas. as tecnologias tradicionais — as engenharias e as teenologias bio- ligicas — tém algo em comum com a eiéncia, & parte o método. AO contrario, algumas das tecnologias novas, tais como a pesquisa operacional e a informatica, apenas partilham com a ciéncia seu método. Observe-se também que, na definigao anterior, a tecnologia © ciéncia sio encaradas a0 mesmo tempo. Por exemplo, nilo incluiriamos na tecnologia atual uma Agronomia que prescin Teenologia e Filosofia. — 187 da Genética e da teoria da evolugdo. Finalmente, a definigZo ante- rior contém 0 conceito de método cientifico, que as vezes é mal com- preendido (como se pudesse gerar conhecimento por ele mesmo) ‘utras vezes & rejeitado (como se fosse responsavel pelo mau uso da ciéncia). Mas, este nao é o momento de explicar 0 que é 0 método im averiguar as consequéncias da definigdo anterior. 3. Os ramos da tecnologia Nossa redefinig&o da tecnologia engloba todas as disciplinas orientadas para a pratica, sempre que usem o método cientifico. Ela sugere @ seguinte classificagdo dos ramos atuais da tecnologia: Fisicas (Engenharia civil, elétrica, eletronica, nuclear espacial) — Quimicas(incrganicae orgénica) “<> Bioguimicas (Farmacologia, bromatologia) * Biolépicas (Agronomia, Medicina, Bicengenharia) _/ Psicoligicas (Psiquiatria, Pedagogia) _/> Psicossociolégicas (psicologias industrial, comercial ) ‘Sociolégicas (Sociologia e politcologia aplicadss, Ur- banismo, jurisprudéncia) ~ Econémicas (cigncias da administragio, pesquisas ‘operacionais) Beélicas (ciencas militares) Conceituais Informatica “computer sciences") Gerais —_— Teorias de sistemas (teoria de autdmatos, teoria da informagao, teoria dos sistemas lineares, teoria do controle, teoria da otimizagao, ete.) Esta lista no € completa mas pode ser completada, 0 que 6 uma vantagem da nossa definicdo de ‘tecnologia’ sobre as definigbes usuais, que sfo extensionistas, isto 6, limitam-se a enumerar os ramos da teenologia reconhecidos num dado momento da sua Note-se que hé dois géneros de tecnologia, os dois iltimos, que or ora tém, cada um, apenas uma espécie: a Informatica e ¢ que chamei de tecnologia geral. Esta dltima € uma colcha de retalhos ‘em que se encontram todas as teorias hipergerais nascidas nos liltimos decénios, teorias que ignoram os detalhes materiais dos 188 — Filosofia da tecnologia sistemas para concentrar-se em seus aspectos estruturais. Veremos ‘em seguida que essas teorias constituem a grande contribuigéo da tecnologia & ontologia. 4. Os vizinhos mais préximos da tecnologia Nenhum ramo da tecnologia esta isolado e nenhum surgiu do ‘nada. Portanto, toda tecnologia deve ser entendida em suas relagées com seus vizinhos préximos ¢ seus antecessores imediatos. A tecno- logia moderna cresce na mesma terra que ela fertiliza: a ci zago industrial e a cultura moderna. (A distingdo entre civili- zagao e cultur’, que parece ter caido em desuso, @ particularmente Aitil para se ccmpreender a natureza da tecnologia. Pode-se ter uma indistria moderna, sem cultura moderna, se se importa experiéncia tecnolégics: ¢ nao se aspira a maiores inovagbes tecnolégicas, ou seja, se se resigna ao colonialismo tecnol6gico. E pode-se ter frag- mentos de cultura moderna, sem indiistria moderna, se se resigna 2 uma cultura unilateral e raquitica. Mas, a tecnologia criativa € impossivel fora da civilizagdo moderna — que inclui uma produgao industrial — ¢ da cultura moderna, que inegavelmente inclu a tecnologia moderna.) Todo ramo da tecnologia as vezes também pressupae, além do conhecimento ordinirio e algumas habilidades artesanais, conheci- mento cientifco ¢ sempre conhecimento matematico. A tecnologia esté, pois, enraizada em outros modos de conhecer. Nao € um produto final, a0 contrério, esté metamorfoseada na pratica técnica € na pericia do médico, professor, administrador, financista ou especialista militar. Nem tudo é puro na tecnologia e suas redon- dezas: existem componentes estéticos, ideol6gicos e filoséficos, ¢, as vezes, tragos de pseudociéncia e pseudotecnologia. O Quadro 13.1 exibe alguns dos vizinhos mais préximos. da tecnologia. © quadro é completado com a inclusfo da Matematica, das humani- dades, das artes edo artesanato. Isto é o bastante para esborar a geografia da tecnologia. Agora’ ‘estamos em condigdes de levantar,um problema ainda virgem da Filosofia da tecnologia, que € o dé averiguar os seus pressupostos filosificos. 5. Ocerne conceitual da tecnologia Onde quer que haja procura racional de conhecimento, ha Filosofia. Deve haver, pois, uma filasofia da tecnologia, entendida como © conjunto dos conceitos e hipdteses filos6ficas inerentes & (Quadro 13.1 — Algins dos izinhos mais préximes de alguns ramoe da tecnologia. Preudorecnolopia Pritica Tenica Tecnologia Cacia Protociéneia di dy i Hi fad ds BFE ask dose bag gat ig Ze & EF a} be Ea 4 255 Ei deere: h : wi iide eg Pi AF: i ments 4 i z i 2 Planejamento econd- Economia i #i i é Informatica Mau uso de compu- tadores i ; i 4 4 190 — Filosofia da reenologia teoria e pritica da tecnologia. Esses ingredientes filos6ficos podem ser agrupados em gnosiolégicos, ontolégicos, axiolégicos e ético Podem também classificar-se dentro da Filosofia que a tecnologia partitha com a cigncia pura, ou aquela que Ihe é peculiar. Por sua ‘e2, a Filosofia tipica e exclusivamente tecnologia pode ser dividida em idéias genéricas (tais como as de artefato) © especificas (tais como as de satide mental). Os ingredientes filos6ficos da tecnologia passam despercebidos Porque ndo se olha para onde se deve olhar, que nfo é a prtica ‘técnica nem o produto do processo tecnologico, mas a investigagzo tecnolégica, de um lado, ¢ a formulagao de politicas (policies) © a tomada de decisses, de outro. Tais sfo as zonas de maior densi dade conceitual do processo tecnolégico e, portanto, onde devem ser langadas as redes para pescar idéias filoséficas, especialmente sgnosiol6gicas (Fig. 13.1). 13.1 — Diagrama do xo do proceso tengo. Os bleos Miura uote de mises cence suas? ae Stee esau, eatin ou trai, dr ess eo aust, por eum, Prins em outas egies oe ton pie cso da ina ‘linia Os prods fine nto sp necserumente rion ides tis ou agropecurios podem ser esuliado de servigos peta, ou de das fafigde: pode tatarse Ge una unidace produtve crganizadarasonamente os de una massa de consumires¢ Se flores déccs, ou de um grupo de pacientes curados, ou de um ‘emia deer. Em qualquer processo tecnolégico de alto nivel, como o obser- vado numa refinaria de petréleo, numa rede telefGnica, num hos- pital moderno ou num exéreito moderno, tanto os pesquisadores a Tecnologia e Filosofia — 191 teenolégicos (no tanto, porém, os téenicos) como os administra: dores ou dirigentes utilizam numerosas ferramentas conceituais, ‘como a Quimica organica, o eletromagnetismo, a teoria das filas de espera e a teoria das decisdes. No caso de serem inovadores ou

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