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DO "RQCAILLE" FRANCÉS Ao-

ROCOCO RELIGIOSO BRASILEIRO

Myriam A. Ribeira de Oliveira


Professora do Mestrado em História da Arte
Escola de Belas Artes
UFRJ

Os termos franceses “rocaille” e


toriadores de arte alemaes os primeiros a
“rococo” tem a mesma raiz semantica,cons-
empregar a termo rococó na acepção
tituindo o segundo uma alteraçao moderna de estilo histórico das artes figura-
popularizante do primeiro, provavelmente tivos e ornamentais. Em fins do seculo pas-
por analogia com o termo italiano sadoja era corrente seu uso na Alemanha
“baracco'. Ambos derivam de “rocª (ro—
para designarformalmente o estilo, tanto em
cha), tendo origem em um tipo muito fre- suas manifestações originais na França
aúente de decoraçao de jardins no século quanto nas dos países de sua area de ex-
XVIII, baseado no uso de conchas naturais
pansao. Os historiadores franceses, entre-
para a decoração de amontoados artifici- tanto, continuaram a repudia-Io ate mea-
ais de rochas, formando grutas e fontes. dos do seculo atual, preferindo a expressão
Por volta de WM. o termo “rocaille” nacional de “estilo Luís XV”, ainda usada
ja era usado na França para indicar com- com freqúência na França.
posiçoes ornamentais &: base de conchas, As origens francesas do rococo fo-
ou mais precisamente de motivos derivados ram definitivamente estabelecidas pelo ar—
da livre estilizaçao de conchas. Foram os his-
E
gumentaçao científica de Fiske Kimball em rrrirli

.lnteri
seu livro “The creation of the rococo” (Fila- vida quotidiana, fruto de uma nova manei-
delfia, 1943), fundamentado em minuciosa ra de ver o mundo e de viver em socieda-
pesquisa de arquivos franceses. No proces- de, foi a reabilitação do "prazer" enquanto
so evolutivo do estilo, desenvolvido ao Ion- principio filosófico e moral (|), conceito esse
go de cerca de 80 anos na França, entre que remonta a tradiçõo classica e mais es-
1690 e 1770 aproximadamente, foi decisiva pecificamente aos epicuristas do final do
a açõo de ornamentistas como Berain, Império Romano. Robert Mauzi, autor de
Oppenord, Meissonnier, Pineau e Lajoue, uma tese monumental consagrado ao “ide-
cujas revolucionõrias criações formais em al da felicidade na literatura e no pensa-
desenhos e gravuras serviram de modelo e mento francês do século XVIII“?! indica
fonte de inspiraçõo aos projetos de arqui- como antecedentes mais prõm'mos no secu-
tetos decoradores na França e em outros lo )(Vll, Descartes, Malebranche e Shafsbunr,
países europeus. aos auais acrescentaríamos o nome de
Na base do processo de mudan- Spinosa, pela sua teorizaçõo das “paixões
ça estilística, a reaçõo contra o excessivo alegres”, na terceira parte da “Ética” (1677).
peso ornamental das opulentas e pesados O poder de otraçõo da cultura
decorações barracas e as novas exigências francesa que varreu a Europa no século
de funcionalidade e conforto da nobreza e XVIII (3), fez com que rapidamente as formas
alta burguesia para a construçao e am- ao “rocaille” fossem adotadas em outros pai-
bientaçõo de seus palõcios e “hotéis" pa rti- ses,juntamente com outros modos de Paris,
culares. As novas construções ou reformas da arquitetura ao vestuario, incluindo até
de construções civis parisienses, a partir dos mesmo habitos alimentares. Note—se, ainda,
primeiros anos do século XVIII, passam a ter que o francês suplantou o latim como lín—
seus espaços internos dimensionados pelo gua universal neste periodo em que os au-
uso da vida quotidiana, multiplicando-se as tores franceses gozaram de excepcional
pea uenas peças com funções especificas, prestígio na Europa e mesmo fora dela, em
mais faceis de aquecer no inverno, com um regiões sob sua esfera de influência politica
tipo de decoraçao leve e graciosa, cuja e cuttural (ª).
delicadeza nõo excluía entretanto os requin- A expansao internacional do
tes do luxo essencial õ vida da aristocracia rococõ recobre vastíssima area de influen-
do Antigo Regime. cia, cujos limites na Europa võo “grosso
O conceito-chave para se enten- modo", de Lisboa a Moscou, alcançando o
der a transformaçõo desses ambientes da Brasil ao outro lado do Atlantico e ate mes-

(3) ver ensaio clássico de Louis RÉAU, L'Europe Francaise du


siecle des Lumieres. Paris, 1933,
56 (1) Conceito desenvolvido por STARDBINSI—íi ,Jean, !. ªinvenffon
de la liberte - rraurl ?59, Genebra, 1964. (4) No Brasil setecentista, Voltaire e os enciclopedistas faziam
(2) MAUZI, Robert. Lªideá du bonheur dans ia fifterafure et ia parte das bibliotecas de homens cultos como o cõnego Luis
pensee francaises ao XVIII e. siecle, Paris, 1965, Vieira de Silva de Vila Rica, apesar das proibições aa
Inauisiçõo,
me a decoraçao de igrejas de cidades de monarquico, que estiveram na base do bar—
colonizaçõo portuguesa na índia. As razões roco.
desse extraordinaria sucesso ultrapassam, a Os territórios de predileçõo do
nosso ver, o aspecto assinalado do hege- rococó em sua expansõo européia foram
monia da cuttura francesa setecentista, dei- algumas regiões da Europa Central, nota-
xando em aberto um ponto essencial a ser damente a Baviera, a Suõbia, a Francõnia
esclarecido: a facilidade de adaptaçõo das e a Boemia assim como o pequeno reino de
formas do estilo a culturas totalmente dife- Portugal. no extremo oeste do continente,
rentes da francesa original. produzidas por de onde passou õ colõnia brasileira. Com
tipos diversos de sociedades, com sistemas uma certa defasagem cronológico, própria
de ideias e representações próprios. a toda arte periférica. a implantaçõo do es-
A questao sugere duas linhas de tilo deitaria raizes tao fortes nos aludidos ter-
reflexao. Primeiramente observe-se que o ritõrios que. fusionando-se às tradições artis-
modelo francês de civilizaçao no século XVIII ticos autóctones, acabaria por dar origem
nao foi um modelo opressivo, imposto por a escolas regionais de grande originalidade.
forças politicas ou ideológicas. Correspon- As expressões mais significativas
dio, ao contrario. a um impulso espontâneo destas escolas regionais do rococõ dar—se—
das nações que o adotaram. movidas pelo iam no campo da arte religioso, o que nõo
desejo de imitar padrões comportamentais deixa de surpreender quando se tem em
e estilísticos considerados superiores, pelo vista que esta vertente do estilo pratica men-
extremo requinte e poder de seducao de te nõo teve sintaxe própria na França.
seus princípios éticos e estéticos, de cunho Como agentes repressores ao desenvolvi-
positivo e universal. mento do rococó religioso na França, po-
Em segundo lugar, a fõcii assimila- deriam citar-se as tradições cartesiano e
çõo das formas do rococõ por sistemas cul— acadêmica do pais e o legado de austeri-
turais diversificados poderia também ser dade deixado pelojansenismo (63, fatos que
creditado ao fato do estilo nao ter em suas ja haviam produzido anteriormente reaçõo
origens uma doutrina teorica sistematizada. similar as expressões religiosas do barroco na-
como os classicismos e neoclassicismos aca- quele pais.
demicos (5), nem ligação direta com ideo- O estudo das escolas regionais do
logias e doutrinas ortodoxas como as da rococõ religioso passa sempre necessaria-
Contra-Reforma religiosa e absolutismo mente pela analise de suas relações com o
ruiu:

ílGlEtS

(5) D rococó se desenvolveu na Franoa paralelamente ao ensi- interi


no clássico dos Academias. baseado nos postulados da prima-
zia do medo e exoeienoia dos Antigos. Cf. MINGUEL Philippe. fone. peio fato de ter nascido em salões e “boudoirsª. Cf. IAPIÉ, 01 NI
Esmerr'aae da rococõr F'arisr resse 241 victor-Lucien. Essai d*anaivse du rooocõ international. In:
rs) Esta racionalidade e :: austeridade teriam refreado a entra- Sersibiiita e Mon-atira net setteoento, Aspeitr' e probiemi nº 5.
da nas igreias da França de um estilo oonsiderado “a priori" pro— Mfeneza. titolo. 1—7.
tardo-barroco italiano e internacional da ou em policromia suave.
primeira metade do século XVIII, que perma- A terceira fonte sao as tradições
necia o principal referencial de modelos arauttetõnicas e artísticas do pais ou regiõo
para a arquitetura religiosa, pouco atingida onde se situam estas escolas regionais do
pelo rococõ francês, elaborado no campo rooocõ religioso. Pudemos constata r, ao lon—
da arquitetura civil. go de uma extensa pesquisa que suscitou
De um modo geral, estas escolas varias viagens em diversas regiões da Ale—
do rococõ religioso resultam da conjuga- manha, Checoslovõauia, Portugal e Brasil,
çõo de elementos de três fontes diversas. que é justamente a incorporaçõo dessas
Primeira mente o tardo-barroco, referência tradições locais que detine a originalidade
bõsica no campo da iconografia religiosa das grandes escolas regionais do rococó.
para os temas representados na pintura e em geral solidamente enraizadas na cultu-
escultura, que continuavam na esteira das ra das populações e na alma popular. É sin-
normas estabelecidas pelo Concilio de tomõtico que as obras-primas produzidas
Trento, como revelou Émile Mõleºi. Igual- nestas escolas tenham sido criadas por ar-
mente, no campo formal, sao subordinados tistas sem formaçao acadêmica, em sua
a esta fonte os planos curvilíneas e sinuosos maioria treinados nos próprios canteiros de
das igrejas e os elementos ornamentais obras. como os irmãos Zimmermann na
arquitetõnicos. como os frontões contra- Baviera, André Soares na regiao portugue-
curvados de tradiçao barrominica, assim sa do Minho e Antõnio Francisco Lisboa em
como a estruturaçõo bõsica dos retõbulos Minas Gerais.
e pinturas iiusionistas dos tetos, incluindo as Na difusõo internacional do
baseadas na perspectiva aerea veneziana. rococõ religioso. tiveram papel essencial as
A segunda fonte. sem dúvida a gravuras germânicas editadas pelas ofici-
mais importante para a definiçõo das as- nas de Augsburgo, nas quais criações origi-
pectos proprios do estilo, e o “rocaille” fran- nais de ornamentistas alemaes como Franz
ces, do qual o rococõ religioso assimilou o Xavier Habermann e Carl Pier, especiali—
novo repertório de formas ornamentais zados em modelos de decoraçao reiigiosa,
onde a rocalha tem papel primordial na somam-se as contratações de gravuras de
organizaçao decorativa dos espaços inter- praticamente todos os ornamentistas tran-
nos, com seus tipicos efeitos de “atecto- ceses do periodo.
nicidade”. o primado da luz natural e o refi- Estas gravuras germõnicas consti-
namento delicado nos ornatos dourados. tuiram a principal via de penetraçõo do
postos em evidência pelos fundos brancos rococõ em Portugal a partir de 1750, como

58
(?) Cf. L'Art Reliaiew de la fin du XVIE. . du XVlle. et du Nile.
siecle. Essai sur |*iconographie apres le Cancile de Trente. Paris.
1932.
demonstraram as pesquisas de Morie
Therese Mandroux—França, que repertoriou
em arquivos portugueses mais de BD series
de gravuras, perfazendo cerca de 500 fo-
lhas de modelos diferentes de ornamenta- ......
.....
.....
.-

çõo “rocaiileª editadas pelos ateliês de


Augsburgo (ª). ... .
-----

As manifestações do rococõ religio- ---------

so em Portugal têm carater bõsico ornamen-


tal, chegando. entretanto, a transfiguror am-
bientes internos determinados por estmturas
espaciais de volumetria simples e plano. se-
gundo as tradições arquitetõnicas do país.
Os elementos tipicamente portugueses des- .....
aaaaa

sa ornamentaçõo sõo a talha dourada e os


azulejos. aos quais se associam os estuques
e os paineis pictóricos dos tetos, onde rara-
mente aparecem pinturas perspectivistas
como nas igrejas da Baviera e de Minas Ge—
rais. Esses elementos e particularmente os
retõbulos assumem aspectos diversificados
nas elaborações autóctones das escolas re- . .. II |

gionais do Minho. Porto, Lisboa, Évora, Bei- ll . ' :

ras e Algarve, que atestam uma larga expan- .....

são do rococõ religioso em Portugal.. do ex- % of


A

tremo norte ao extremo sul do país. . ' | |. . ª. '

' : ::::
Em situaçõo de igualdade com as - - ...E“: . . . - ' ;_:-':._. '
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escolas portuguesas, os brasileiros de , ||| ' 'n. _

' . -' . 1, -. .

Pernambuco, Rio de Janeiro e Minas Gerais


,! ' ªum—ª'M—i mi- '. L .: No
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.....-. :. .. .,

Exemplo do Rococõ Mineiro - Risco do Aleiiadinho poro Sõo


prolongam o rococõ do outro lado do Francisco de Assis de Edo João del Rei. Museu da Inconfidência
- ll:.?ruroPreto - MG.
Atlântico. encerrando o ciclo da expansao
internacional do estilo. Tendo-se em vista o devem ser vistas como elaborações autoc-
fenõmeno da regionalizaçõo prõprio do tones, diferenciando—se das portuguesas ao mill

rococõ religioso, estas escolas brasileiros mesmo título em que estas se diferenciam ri aces

lll
(8) MANDROUX-FRANÇA. —. Theresa. information ortistique et 01 *O
“mass medio“r du Mile. siecie: la dffusion de i'omement qrovõ
rococõ du Portuqol. ln: Bracara Augwro nº“. voir WII. Brago,
l—FS. pl 411
entre si. A defasagem cronológica na assi- na Baviera alemó. Os sinais distintivos de
milaçóo do repertório ornamental do estilo maior originalidade na arquitetura externa
entre a colónia e a metrópole e de apenas dessas igrejas mineiras sóo as torres circula-
cerca de dez anos, plenamentejustittcóveis res e a decoração das fachadas com rele-
no contexto colonial. vos esouilóricos em pedra-sabão, que repro—
Repetindo o fenómeno português, duzem o céu aberto a delicadeza da or-
o rococó religioso brasileiro tem ta mbern ca- namentação rococó, ate entóo aponógio
róter bósico ornamental, atingindo sobre- da talha dos interiores.
tudo a deooraçóo interna das igrejas, em As obras-primas do estilo em Minas
primeiro lugar a talha e “acessoriamente' os sao as igrejas do Carmo e Sóo Francisco de
azulejos e painéis pictóricos dos tetos e pa- Assis, de Ouro Preto, e Sóo Francisco de As-
redes. No Rio de Janeiro, as manifestações sis, de Sóo João del Rei, associadas ao nome
do estilo restringem—se a esses campos. ten- do principal artista brasileiro do período co—
ao a arquitetura das igrejas ficado subordi— lonial, António Francisco Lisboa, o Aleijadi-
nada a um outro estilo - o pombalino de Lis— nho. Como as melhores produçóes euro-
boa '- pelas estreitas relações que se esta— peias do rococó religioso. estas igrejas inte-
beleceram entre as duas cidades a partir de gram em síntese harmoniosa elementos do
1763. quando o Rio de Janeiro se tornou tardo-barroco e do rococó internacional ós
sede do governo dos vice-reis. tradiçoes próprios da regiao, produzindo cri-
Jó em Pernambuco o rococó reli- açóes originais e de grande vigor plóstico.
gioso, alem da decoraçao interna. atinge Dotardo—borroco, alem do progra-
também a arquitetura externa das igrejas, ma ioonogrófico determinante dos ternas
tendo desenvolvido na regióo um tipo de representados nas pinturas, imagens e rele-
fachada extremamente original. no qual o vos escultóricos, são as paredes curvas e
movimento ondulatória na cimalha arreme sinuosas, cujo exemplo mais arrojado e o da
tendo contra o frontóo e projetando-o em nave de São Francisco de Assis de Sóo João
ímpeto ascencional constitui o motivo del Rei. Do “rocaille” francês, o vocabulório
bódco. ornamental baseado no emprego da
Foi. entretanto, em Minas Gerais rocalho, a importóncia dada ó luz natural e
que o desenvolvimento do rococó religioso aos efeitos de “otectonioidadeª obtidos na
processou-se de forma mais abrangente e capela-mor de Sóo Francisco de Assis de
unitória, elaborando formas originais simul— Ouro Preta, o mais perfeito e requintado
taneamente nos campos da arquitetura, ta- interior do rococó religioso luso-brasileiro.
lha e pintura perspectivista dos tetos, como

60
Tipicamente mineira e a agencia—
mento das plantas que integram seções de
paredes curvas au sinuosas seções retas das
planas retangulares lusa—brasileiras; a estru-
turaçaa em lasangas dos vôos das facha-
das, as torres circulares e portadas em pe—
dra-sabao, e as diversos tipos de retábulos e
composições perspectivistas das pinturas
das terras, desenvaiviaas a partir de made—
Ias anteriaresja implantadas na regiao e sem
equivalentes em outras escalas da raaaaa
religiesa internacional.

interfa ““É

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