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REVISTA PEDAGOGICA 1: 91-96, 1998 A ALFABETIZACAO TRANSCENDE OENSINO DA LINGUAGEM ESCRITA? Roberto Deitos Para muitos homens nutridos nas letras a alfabetizagio transcende 0 ensino da linguagem escrita? Esta indagagio pode parecer ingénua ¢ descabida de sentido epistemol6gico, isto porque ainda defendem a tese de que a alfabetizagao pressupSe unicamente (uso correto da linguagem escritae oral de acordo com os esterestipos da lingua oficial. Evidentemente, se faz necessario 0 uso “correto” da lingua como forma de compreensao e apropriagao da realidade. Mas o que se vé na realidade € a valoragio da tese tradicional de alfabetizagio, isto é, a crianga ao chegar A escola é comparada a uma tbua rasa, onde o professor, detentor de muitas exceléncias, itd preencher o espago com os contetidos necessarios & formagdo integral da crianga. Assim, a “ignorincia” cedera lugar & “alfabetizago" formativa necesséria para que a crianga se torne “cidad do mundo”. De modo geral a escola professores ainda centram sua ago pedagégica nos processos “tradicionais de alfabetizago” sem levar em consideragio a subjetividade da crianga, isto é, as experiéncias vivenciadas pela crianga, desde o nascimento até a chegada na escola. As criangas nao séo consideradas como ponto de partida para intercambiar 0 socialmente vivido com os processos epistemolégicos de alfabetizacio, Poderfamos acreditar que a crianga que nao iprender, segundo os “pressupostos da cartilha”, os conhecimentos ‘universais”, estd fadada ao fracasso no processo de aquisigao do conhecimento, Hoje ¢ prética geral primar pelo niimero de conhecimentos wssimilados do que pela qualidade, isto &, ainda prima-se pelo aspecto ‘quantitative € muito poco pelo quillitativo, A este respeito, quando Prolessor do Departament de ch kk nivel do Oeste he Su Catarina = UNOESC, Chaps Capes ROnERTO DETTOS se analisa dados educacionais, obtidos através de pesquisas ou de outros mecanismos, geralmente olha-se somente 0 aspecto quantitativo, como se Fosse 0 tinico dado relevante ¢ socialmente aceito. Muitos tutores da educagao trilham este caminho para responder a certas exigéncias (de organismos internacionais e/ou de estatisticas de plataformas eleitoreiras) no valorizando a sintese da teoria e da pratica. A exemplo disso, os érgdos competentes afirmam que no ano 2000 teremos 96% das eriangas entre 7 ¢ 14 anos alfabetizadas. Mas, diamte disso, cabe uma pergunta: serd que este percentual significaré, no Novo Milenio, adolescentes preparados conscientes das transformagdes sociais, polfticas e econdmicas advindas das evolugdes tecnolégicas e da reengenharia? A indagagio, a meu ver, é profunda e preocupante na medida em que nos leva a questionar dois pressupostos basicos da alfabetizagio: 1°) 0 cardter social da escola e 2°) a formagio do professor. A primeira nos leva & seguinte indagagio: a escola tém contribuido para transformar a crianga num ser pensante, com habilidades para criar e resolver situagdes emergenciais de forma riticae contextualizada, ou, a0 contrério, num ser capaz de memorizar ‘omaior niimero possfvel de regras gramaticais - embora se reconhega necessérias & formagio da crianga - destituidas de significdncia social € politica? A segunda nos leva & seguinte questdo: hoje, 0 professor estd preparado para “ensinar” a crianga diante das complexidades do “novo paradigma” social, econémico e politico? As indagagdes € consideragdes propedéuticas sto relevantes para aprofundarmos a questo inicial: a alfabetizacao transcende 0 ensino da linguagem eserita? Primeiramente, por “transcender” entendemos ir além do aspecto meramente da forma-contetido, enfatizando essencialmente a coeréncia sem dicotomizé-la, Em segundo lugar, assim como é fundamental 0 processo de alfabetizago também 0 é, na mesma medida e intensidade, a concepgio da escola € do educador, pois deve-se “ensinar” nio s6 0s aspectos forma- ccontetido da alfabetizaco, mas também o contetido impeito da relagiio forma-conteddo com 0 contexto mais amplo, isto é, a ideologia subjacente tanto num como noutro. Para clarificar o que foi colocado anteriormente, vejamos uma situagdo bastante comum que é a questio do fracasso escolar cuja responsabilidade, na maioria das vezes, reeai sobre o educando. jucline MOLL, o fracasso escolar nao & culpa tinica & ‘A ALFABETIZAGAO TRANSCENDE O ENSINO DA LINGUAGEM ESCRITA? exclusiva do educando, que nio consegue memorizar “mecanicamente” as infinitas regras gramaticais da lingua escrita, nem a falta de “capacidade” cognitiva da crianga, mas sim a concepeio tradicional de educagdo da escola ¢ a falta de preparacao do alfabetizador: “... a ago da escola - mediadora do fracasso e do anaifabetismo - pauta-se em mecanismos intra-institucionais caracterizados pela neutralidade do saber e pelo autoritarismo das relagdes educador e educando”! Quando se fala em alfabetizagio, se quer dizer, na verdade, formagao integral do educando, € no apenas o actimulo de significados, muitas vezes, insignificantes para a crianga. Mudar 0 enfoque significa redimensionar nfo s6 0 trabalho pedagdgico do educador, mas também a visio de educagao e de mundo. O educador deve considerar todas as possibilidades concretas e reais de aprendizagem, ou seja, deve considerar todos os conhecimentos que cla traz do seu meio social ¢ as muitas experiéncias socializadas anteriores & sua chegada na escola, Sem divida, transcender a esfera formativa pode em muito contribuir para que a alfabetizagao se coneretize de fato. O sucesso da alfabetizacdo est na compreensio que o educador tem a respeito da teoria e da bagagem cultural do ‘educando de forma que possa conduzi-lo alfabetizagao no seu sentido mais profundo e conereto. ‘Na acepeiio de Emilia FERRERO, deve-se dar oportunidades coneretas para que a crianga desenvolva seu potencial evolutive na apropriagio no s6 da linguagem escrita, mas, principalmente, retraduzir 0 que a crianga escreve diariamente para, ento, auxilié-la na compreensio da representagao grafica de sua oralidade & significagio, De acordo com Emilia FERRERO, "... na aprendizagem da linguagem oral ou do desenho, considera essencialmente, nas primeiras etapas, dar o maximo de ocasides para produzir interpretar escrita, que iro se aproximando do modelo adulto..."2. A alfabetizacio deixa de ser um proceso meciinico e passa a assumir um processo dialégico na interpretagdo e na construgao da realidade da crianga através da apropriagio da linguagem escrita e oral. Um dos erros da escola “tradicional” & desconsiderar o mundo social da crianga ao mesmo tempo que alfabetiza. Ainda hoje persiste 4 prética de leitura e interpretagao de textos alheios A realidade da cerianga. Neste sentido, ela ndo s6 no encontra nexo da linguagem eserita com o mundo como encontra dificuldades de devifiar os signos, 93 9 ROBERTO DEITOS isto €, pode até “aprender” a grafia “correta”, mas tera grandes dificuldades de decodificar 0 carater dial6gico da palavra com o seu significado mais profundo. A esse respeito, uma das contribuigdes mais importantes de Paulo FREIRE diz respeito ao que ele chama de palavra mundo, ou seja, “.. a leitura do mundo precede a Teitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquela”* Paulo FREIRE foi muito feliz quando revelou esta concepedo, isto 6, revelou a possibitidade de tomar a leitura do mundo e da linguagem escrita como elementos indissocisveis da alfabetizagio, esse modo, a crianga sentit-se-4 estimulada em interagir-se com 0 mundo e com a palavra, tornando significante o significado. papel da escola e o compromisso do educador & fazer com que cada crianga se sinta sujeito e cidadao do mundo. © desafio & fazer com que cada crianga seja capaz.de estar no mundo e, ao mesmo tempo, leresse mundo ao qual ela faz parte, no como um coadjuvante mas como um sujeito ativo e reativo. E mister salientar que a lingua € 0 Gnico elemento que pode refletir a cultura, os valores, as relagdes sociais, as concepgdes de mundo. Por esse motivo, transcender os processos de alfabetizagio significa uma mudanga na concepcao de “ensinar” Diante das novas situagdes sociais, econdmicas ¢ politicas, 0 educador € chamado a criar novas perspectivas de alfabetizagao que sejam significativas & crianga, que a tomnem um sujeito do e para 0 mundo. Nesta perspectiva, a crianga estara sendo'preparada nao s6 para apropriar-se da linguagem escrita, mas, prineipalmente, para a vida em sociedade. Em outras palavras, a escola e 0 educador estario preparando a crianga para construir uma nova sociedade consciente através de conhecimentos que realmente sejam necessérios a elae & sociedade ‘Segundo Emilia FERRERO, “... os professores que se atrevem a dar a palavra as criangas e a escuté-las descobrem rapidamente que seu proprio trabalho se torna mais interessante (...). Embora seja mais dificil, porque os obrigue continuamente a pensar”. Através deste comportamento ativo, reflexivo e dialégico buscaremos novas matrizes educacionais que realmente estejam voltadas para desenvolver as habilidades criativas e imaysinativas da crianga. A eriatividade, criticidade e imaginaggio sie para que erianga transcend a apropriagiio dh Linpuuayem exetita e eins necessitios ‘A ALFABETIZACAO TRANSCENDE O ENSINO DA LINGUAGEM ESCRITA? torn e-se um ser pensante, ativo, criativo e eritico diante do mundo cultural e social. Bis porque lance a indagagio inical, pois acredito que nds, educadores, temos condigdes e capacidade para mudar 0 estabelecido ¢ reverter o atual quadro educacional, Buscar novas alternativas requer compromisso e responsabilidade. Precisamos “formar” educandos eriticos e cidadios do mundo de fato e de direito, isto 6, educandos que tenham oportunidades de construir uma nova sociedade com base no conhecimento ena solidariedade, Certamente, estes transcenderiio o significante ¢ interpretario o significado, pois © significante revela a intencionalidade da palavra. Notas * Jaqueline Moll, 2 Emilia Ferrero, » Paulo Freire, «Emilia Ferero, Referéncias Bibliograficas ALVES, Rubens. Conversas com que gosta de ensinar. Sio Paulo: Cortez, 1983, BECKER, Fernando. A Epistemologia do professor: 0 cotidiano da escola. Petrépolis: Vozes, 993. FREIRE, Paulo. A importincia do ato de ler: em trés artigos que se complementam, Sao Paulo: Cortez, 1991 Pedagogia do oprimido. Sao Paulo: Paz e Terra, 192, FERREIRO, Emilia. Com todas as letras, Siio Paulo: Cortez, 1992, ‘GADOTL, Moacir. Concepgao Dialétiea da Educacao: um estudo introdut6rio, Sa0 Paulo: Cortez, 1985, 95 96 ROBERTO DEITOS MOLL, Jaqueline. Alfabetizacio Possivel: reinventando o ensinar e ‘o aprender. Porto Alegre: Mediagio, 196. 4a: (eorias da educagio, 0 SAVIANL, Dermeval. Escola ¢ Democr: curvatura da vara, onze teses sobre a educagio politica, Paulo: Cortez, 1984.

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