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Perer BurkKE TTR ge O RENASCIMENTO ITALIANO Cultura e sociedade na Itdlia TRADUGAO DE Jos# Rusens SIQUEIRA NOY DRIA Digtalaso om Camsamer 7 ICONOGRAFIA ee Invenzione quer dizer inventar poemas ¢ histérias por si mesmo, virtude praticada por poucos pintores modernos, e algo que considero extremamente engenhoso ¢ digno de elogios. Pino, Dialoghi di pittura, p. 44. conografia ¢ 0 estudo do significado das imagens, do contetido daquilo que os italianos do Renascimento chamavam de “invengdes” ou “his- térias” (invenzioni, istorie). O método iconogréfico — ou iconoldgico —consiste numa tentativa de “ler” as imagens como se fossem textos (muitas vezes justapondo-as a textos), distinguindo assim diferentes significados. Desenvolvida no comego do século XX, por Emile Male, Aby Warburg, Erwin Panofsky e outros, como reacio a uma abordagem puramente formal da histéria da arte, a iconografia j4 provocou criticas, ou a iconoclastia, com a argumentagao de que privilegia o que se chamou de aspecto “discursivo” da imagem, em outras palavras, aqueles tragos que mostram influéncia da linguagem a custa dos aspectos “figurativos”, que nao o mostram. Mesmo que sua importancia seja alvo de debates, essa abordagem da arte do Renascimento continua sendo necessdria.' Para uma histéria social da arte, a questdo da relativa popularidade de diferentes imagens ¢ importante, mas é menos facil de responder do que parece, Nao existe, por exemplo, um catdlogo completo das pinturas italianas do Renascimento, de forma que é necessdrio estudar amostragens. O que 1 Panofsky (1955), cap. 1, explica e defende a iconografia (ea distingue da “iconologia’, preocupada com significados mais profundos); Bryson (1981), cap. 1, levanta algumas questSes incOmodas a respeito. Os problemas dessa abordagem para o estudo da arte do Renascimento sio discutidos em Gilbert (1952); Gombrich (1972), pp. 1-25; Settis (1979); e Hope (1981). 193 Digtalaso om Camsamer O Renascrenro ITAANO = Pann IL~ As Arras int seu Mrto de fato existe é um catdlogo de pintura datadas, que inclui 2.229 exemplos da Iedlia para os 120 anos que vio de 1420 a 1539. Em 2.033 casos, 0 as- sunto esté deserito, Desses, 1.796 (cerca de 87%) podem ser descritos como © 237 (cerca de 13%) como seculares. Das obras seculares, cerca (0 retratos. Das pinturas religiosas, cerca da metade representa a religiosos de 67% Virgem Maria e cerca de um quarto mostra Cristo, enquanto quase 23% se ocupam de santos (deixando de fora algumas poucas pinturas de Deus Pai, da Trindade ¢ de cenas do Antigo Testamento) (Errera, 1920). Essa amostra é confidvel? Temos aqui dois problemas. Os quadros sobreviventes e os quadros datados podem nio ser representativos de todo © grupo. Uma vez que obras encomendadas pela Igreja, que nunca morre, tém mais chance de conservacao do que as que foram encomendadas por colesées particulares, é muito posstvel que o montante de 13% de pinturas seculares seja uma estimativa por baixo. Deve ser considerado como m{- nimo. Os quadros datados podem também ser uma amostra tendenciosa, mais especialmente porque o numero de pinturas datadas aumentou com uniformidade de meros 31 nos anos 1420 para 441 na década 1510-19. Aqui, como em outros aspectos, existe o perigo de fazer generalizagoes sobre o Renascimento como um todo com base nas provas de uma parte do final do perfodo. Se nos mantivermos conscientes do perigo, porém, a estatistica pode ter sua utilidade. Falta tentar definir sua significincia. Pode ser surpreendente para um leitor moderno descobrir que em uma cultura crista, os quadros de Cristo séo 50% menos frequentes que os de sua mie, e pouco mais frequentes que os de santos. Deve-se acrescentar que ele foi muito menos importante no século XIII, pelo menos na Franca, ¢ também que foi representado com mais frequéncia na segunda metade do perfodo do que na primeira. Desse ponto de vista, pelo menos a Reforma, catélica e protestante, foi mais uma culminagdo das dltimas tendéncias medievais do que uma reaco contra elas.* Os quadros de Cristo geralmente 2 Aprova pode ser resumida na seguinte tabela (os niimeros estio em porcentagern Maria Cristo Santos 1420-79 52. 18 30 1480-1539 53 26 20 Sobre a Franga do século XII, veja Male (1925), 194 Digtalaso om Camsamer Iconocraria representam seu nascimento ou sua paixio, morte e ressurreigao, raramente alguma coisa intermedidria. A explicagao ébvia para esse padrao ¢ liturgica: Natal e Pascoa eram e sio os mais importantes acontecimentos do ano ecle- sidstico. A adoragao dos Reis é uma cena separada da Natividade porque tem sua propria festa, a da Epifania, Uma variedade estonteante de santos ocorre nas pinturas italianas desse periodo. O que os modernos historiadores da arte (e também os clérigos do Renascimento) podiam identificar com toda seguranga como atributos dos (digamos) santos Eusuperio, Euplo, Quirico ou Secondiano? No entanto, cada um desses santos tinha uma igreja a ele dedicada em Pavia. Qual santo era o mais popular? Ocorrem exatamente cem santos em nossa amostra. Sao Jodo Batista (que aparece 51 vezes) encabega a lista. Depois vem Sao Sebastiao (34); Sao Francisco (30); Santa Catarina de Alexandria (22); S40 Jeténimo (22); Santo Antonio de Padua (21); S40 Roque (19); Sao Pedro (18); Sao Bernardino de Siena (17). Sao Bernardo e Séo Miguel (com 15 pincuras cada) empatam em décimo lugar. Os ntimeros exatos nao devem ser levados muito a sério, mas a posi- ao relativa dos santos nos revela algo importante sobre a cultura italiana. Talvez valha a pena justapor essa lista de preferéncias com aquela revelada pela escolha dos nomes de criangas. No grupo de 600 escolhidos para este estudo, os nomes cristos mais populares sio Giovanni, Antonio, Francesco, Andrea, Bartolommeo, Bernardo e Girolamo, Para justificar 0 padrao seria preciso escrever uma monografia, ou uma estante inteira de monografias; aqui sé serd posstvel arriscar umas poucas hipéteses. A baixa posicao de Sdo Pedro, em comparacdo ao alto posto que tem na hierarquia da Igteja, merece um comentario. Uma explicacao posstvel é a pouca importancia de Roma a fraqueza do papado até o final do século XV. Mesmo assim, é notavel a separagao revelada aqui entre a religiao oficial e a nao-oficial. A posicao de Sao Joao Batista em primeiro lugar era de se esperar, dados dois fatos que revelam sua importancia na hierarquia oficial, como precursor de Cristo e como patrono da cidade de Florenga, em particular patrono da grande guilda Calimala. Séo Sebastido em segundo lugar e Séo Roque (Rocco) em sétimo devem suas posigées a seu papel de protetores contra a peste. Rocco foi um francés do século XIV que foi para a Iedlia e trabalhou entre as vitimas da peste. Era particularmente popular no Veneto, especialmente depois do traslado de suas reliquias para Veneza, 195 Digtalaso om Camsamer (O Renascimento [autaNo ~ Parte I~ As Artes en seu Meio em 1485, Porém, ele nio foi canonizado formalmente. No final do sé- culo XVI, 0 papa Sisto V tencionava ou canonizd-lo ou elimind-lo, mas acabou morrendo antes de ter resolvida essa ambiguidade, Seu culto era essencialmente nao-oficial (Burke, 1984a). Quanto a Sebastiao, parece que a histéria de seu martfrio nas maos de arqueiros é que explica a sua protegio contra as “flechas” da peste, representadas por Benozzo Gozzoli, por exemplo, em um afresco da igreja de San Gimignano, comemorando apeste de 1464. A popularidade de Sio Francisco nao apresenta problemas: santo italiano e tinha forte apoio da ordem religiosa que fundou. Seu culto era mais forte em sua Umbria nativa e na Toscana, mas muitas cidades im- portantes em outras partes da Itdlia tinham igrejas dedicadas a ele. Santo Anténio de Pédua pode ser considerado um Sao Francisco do Véneto; ele também era franciscano, vindo de Portugal, mas pregou em Padua, onde morreu em 1231. Sao Bernardino era outro pregador, e outro francisca- no. (Vale notar que a ordem rival, os frades dominicanos, nao produziu nenhum santo que rivalizasse com a popularidade desses trés franciscanos.) So Jerénimo, assim como Santo Anténio, era particularmente popular no Veneto em que nasceu (perto de Aquileia). Era representado de duas ma- neiras, 0 que sugere que tinha duas “imagens” ¢ exercia apelo a dois tipos de pessoas. Era ou um penitente no deserto, batendo no peito com uma pedra, padroeiro dos eremitas, ou um estudioso sentado em seu escritério, fazendo a traducio da Biblia, um padrociro adequado aos humanistas. O culto a Santa Catarina de Alexandria, que em muito superava Santa Catarina de Siena, pode ser explicado por ser ela padroeira das mogas. Seu “casamento mistico” com Cristo tornava-se assunto adequado para pinturas dadas como presente de casamento. Se uma tinica santa mulher em uma lista de onze parece surpreendentemente pouco, a razo disso pode muito bem ser que as outras foram eclipsadas pela Virgem Maria, em suas muitas formas, como Mie de Misericérdia (com os suplicantes abrigados debaixo de seu manto), como Virgem do Rosério, como Virgem de Loreto (uma cidade italiana para a qual dizia-se haver sido miraculosamente transportada a “casa santa” de Belém). Una vez que tanto jd se escreveu sobre os valores seculares da Iedlia do Renascimento, o fato de a esmagadora maioria das pinturas datada ser iosa merece énfase especial, Essas imagens da Virgem, de Cristo ¢ dos ra um. 196 Digtalaso om Camsamer Tconocraria santos, sem dtivida encomendadas por raz6es piedosas, nos déo um relance da cultura da maioria silenciosa. Ao mesmo tempo, existem provas de um interesse crescente por pinturas seculares nesse perfodo, ¢ particularmente em circulos envolvidos com o Renascimento como movimento.} Ao enco- mendar uma obra a Sebastiano del Piombo, Federico Gonzaga escreveu, em 1524, que nao queria “coisa de santos” [cose di sancti], mas “Quadros que sejam atraentes ¢ bonitos de olhar”. Ele parece fazer parte de uma tendéncia. Como vimos, a maioria das pinturas seculares era de retratos. Antes de meados do século XV, eles eram relativamente ratos; s6 os santos tinham sua imagem pintada. Essa é a razéo de ser dos versos iniciais de um poema do patricio veneziano Leonardo Giustinian. O narrador diz a sua amada que fez uma pintura dela em um pequeno pedago de papel como se ela fosse uma santa: (io rho dipinta in su una carticella Come se fussi una santa di Dio). Depois virou costume pintar homens famosos, antigos ou moder- nos (os modernos inclufam poetas, soldados ¢ advogados). A fase seguinte, logicamente, senao cronologicamente (nao se podem precisar as datas), foia pintura em vida dos governantes. Em seguida vieram os retratos de patricios ¢ de suas esposas e filhas, e finalmente os de comerciantes e artesdos. No final do perfodo, Aretino, um filho de artesio que foi pintado por Ticiano, denunciou a democratizacao do retrato em seu prdprio tempo, escrevendo que “é uma desgraga para a nossa época que se tolere que se pintem retratos de alfaiates e agougueiros”. Para se distinguir dos outros, os nobres tinham de se cercar de objetos que simbolizassem seu status, de cortinas de veludo a colunas clissicas, de criados a cies de caca.' E, porém, com a iconografia dos quadros narrativos que os histo- tiadores da arte tém mais se ocupado, quer essas istorie representem cenas da mitologia cléssica, episédios da hist6ria, antiga ou moderna, quer algo mais dificil de definir. As cenas da mitologia cldssica abrangem algumas das pinturas mais conhecidas do Renascimento. Elas ficam sempre perto daquele 3 Segundo a amostra em Errera (1920), a propor¢io de pinturas seculares cresceu de 5% nos anos 1480 para 22% nos anos 1530. 4 Boteari (1822-5), vol. 3, p. 1360. CE. Castelnuovo (1973), “The presentation of self in the Renaissance portrait", que se encontra em meu Historical Anthropology of Early Modern Italy (Cambridge, 1987), 197 Digtalaso om Camsamer O Renascinmnero Hrattano ~ Pare It ~ As Anres ex sts Mrtc compéndio de mitologia favorito da era cléssica ~ € do Renascimento ~ as Metamorfoses de Ovidio. O famoso Baco ¢ Ariadne de Ticiano, por exemplo, ilustra o livro 8 de Ovidio, enquanto a feiticcira Circe de Dosso Dossi de Ferrara ilustra 0 livre 14, Outros acompanham as descrighes de pinturas mitoldgicas perdidas do escritor classico Fildstrato de Lemnos, Diversas pinturas de Piero di Cosimo representando Baco, Vuleano ¢ outras figuras mitoldgicas ilustram nao apenas Ovidio, mas também 0 relato de uma his- téria precoce da humanidade que aparece no poema Da natureza das coisas, do romano Lucrécio (Panofsky, 1939, pp. 33-67). E dificil dizer quao exato cra o assunto para 0s observadores contern- porineos. Um Sao Scbastiéo ou uma Vénus eram escolhidos primordial- mente por si mesmos, ou como pretexto para representar uma bela figura nua? Como pode um historiador moderno responder a tal pergunta? Seria, sem diivida, um erro, responder com seguranga, mas, para evitar interpre- tages anacronicas, podemos ao menos investigar as maneiras pelas quais as pinturas eram descritas em seu tempo. Por exemplo, é interessante saber _ que Ticiano chamou suas cenas mitolégicas de “poemas” (poesic), mesmo que nao saibamos exatamente 0 que queria dizer com 0 termo; se estava se referindo ao fato de ter se inspirado no poema Metamorfoses de Ovidio ou se tinha a intengdo de sugerir que estava seguindo sua prépria imaginacao € nao um texto. ‘Algumas das provas literérias mais intrigantes dizem respeito 20 que chamamos “paisagem”, porque ela sugere uma consciéncia cada vez maior do segundo plano das pinturas, e até mesmo uma mudanga de atitude que levou a considerar esses aspectos o verdadeiro assunto pictérico. Giovanni Tornabuoni pediu a Ghirlandaio, nos anos 1480, como vimos, “cidades, montanhas, colinas, planfcies, rochas” em uma encomenda de pinturas de histérias da vida da Virgem Maria. Na correspondéncia de Isabella d’Este com seu marido Gianfrancesco Gonzaga, hd referéncias a “vistas” (veduse), e, em um caso, de “uma noite” (una nocte). Esta tiltima pode ser uma Natividade, mas descrever assim uma pintura religiosa seria em si algo muito significativo, Em 1521, um observador anénimo veneziano (muitas vezes identificado como o patricio Marcantonio Michiel) registrou a existéncia de “muitas pequenas paisagens” [molte tavolette de paesi] na colegio do cardeal Grimani (Williamson, 1903). O bispo humanista Paolo Giovio descreveu algumas das pinturas de Dosso Dossi nos anos 1520 como “variedades” 198 Digtalaso om Camsamer IconocraFiIA (parerga], compostas de “penhascos {ngremes, bosques fechados, margens escuras ou rios, vastas expanses de terra e mar também, frotas, mercados, cagadas e toda sorte de espetculo” (citado em Gilbert, 1952, p. 204), Em outras palavras, o que chamamos de “crescimento da paisagem” neste perfo- do parece corresponder 4s mudancas na maneira como os contemporaneos olhavam os quadros.* O que se discutiu até aqui ¢ 0 contetido mais ou menos manifesto das pinturas do Renascimento. No entanto, é claro que ao menos algumas delas, como as obras literarias, intencionalmente continham significados ocultos. Com que frequéncia isso ocorria, quais eram os sentidos e quantos contemporaneos os entendiam sao questées que exigem discussao, mas s4o muito mais obscuras. E aconselhdvel comecar esta discuss4o com a literatura, na qual o oculto é pelo menos as vezes, explicitado em comentérios. Os contem- pordneos estavam acostumados a procurar sentidos ocultos na literatura, mesmo que apenas porque lhes diziam do pulpito que a Biblia tinha quatro interpretag6es, nao apenas a literal, mas também a alegérica, a moral e a analégica (Caplan, 1929; Auerbach, 1939). Alguns humanistas procuravam sentidos ocultos na literatura mundana também, mesmo que nem sempre distinguissem 0 alegérico, o moral, e assim por diante, com o mesmo cuida- do que os tedlogos. No século XIV, Petrarca, Boccaccio e Coluccio Salutati interpretaram os mitos cldssicos como “teologia poética” (Trinkaus, 1970, pp. 689-721). No século XV, Cristoforo Landino escreveu que quando a poesia “mais parece estar narrando alguma coisa muito humilde e igndbil ouestar cantando uma pequena fabula para deliciar ouvidos ociosos, ela est4 ao mesmo tempo escrevendo de maneira quase secreta sobre o que existe de melhor, e que é tirado das fontes dos deuses”.© Os comentarios expunham os sentidos ocultos (geralmente religiosos ou filoséficos) enfatizando a superficie aparentemente secular ou mesmo frlvola dos escritores cldssicos, como Virgilio e Ovidio, ou modernos, como Petrarca e Ariosto. Ovidio € um exemplo util para discutir neste ponto, porque suas Metamorfoses inspiraram artistas plasticos assim como poetas do 5 Sobre o aumento das paisagens, veja Gombrich (1966), pp-107-21; ¢ Turner (1966). 6 Citado em Weinberg (1961), p. 80, do comentitio de Landino sobre a Arte pottica, de Horicio. 199 ili Digtalaso om Camsamer © Renascimenro Iratiano ~ Parre I~ As Anres em stu Mrto Renascimento. Do século XII em diante, passou a ser costume “morali- z4-lo”, em outras palavras atribuir ao pocma uma interpretagao alegérica. As alegorizages de Ovidio por Giovanni da Bonsignore no século XIV foram impressas em algumas edigées renascentistas das Metamorfoses, de forma que o Icitor podia aprender, por exemplo, que Dafne (que, ao fugir de Apolo, se transformava num loureiro) simboliza a prudéncia, enquanto as folhas de louro simbolizam a virgindade. O fato de esses mitos recebe- rem esse tipo de interpretagao nesse perfodo é uma questao que continua problemitica. Ariosto foi tratado de maneira semelhante pelo miiltiplo escritor Lodovico Dolce, que produziu uma edigéo do Orlando Furioso, em 1542, na qual a fuga de Angélica no primeiro canto era interpretada em termos da “ingratidao das mulheres”, enquanto 0 combate de Ruggiero com Bradamante, no 45° canto revela “as qualidades do perfeito cavaleiro”. Essas interpretagdes s4o descritas como “alegorias”, mas em termos modernos elas podem ser mais bem descritas como stmbolos. Se Bonsignore tratava Ovidio como qualidades abstratas, Dolce simplesmente humana a partir das atitudes de Angélica _ as personagens de generalizava sobre a natureza Ruggiero. Fica-se com a impressao de que havia todo um espectro de significa- dos ocultos, tencionados pelos autores, ou lidos neles pelos comentadores, sentidos que parecem ter sido bastante atraentes para os leitores do perfodo. (Dolce, por exemplo, nao teria esctito nada se no pensasse que ia vender.) Vale a pena ter em mente essa impressao quando nos voltamos para a pintu- ra. A pintura de cenas do Antigo Testamento deviam ser lidas por algumas pessoas 20 menos, com um olho no que viria a seguir; em outras palavras, as personagens do Antigo Testamento eram vistas como “tipos” ou “figuras” do Novo. Eva e Judite eram ambas prefiguragoes da Virgem Maria. (Judite libertou Israel cortando a cabega do capitéo assfrio Holofernes; Maria libertou a humanidade dando & luz o Cristo.) ‘As cenas do Novo Testamento, ao contratio, eram pintadas por si préprias, mas ocasionalmente receberam um significado teolégico mais sutil, ou pelo menos um significado extra, De qualquer forma, ¢ interessante descobrir que um frade, Pietro da Novellara, escrevendo a Isabella d’Este a respeito de um esbogo de Leonardo, propée a seguinte interpretagio teold- gica, pelo menos hipoteticamente (note o “pode ser”): 200 Digtalaso om Camsamer O Renascimento Irauiano ~ Parte I~ As Anes ent seu Meto, Um esbogo de um Cristo menino, com cerca de um ano, quase saltando dos bracos de sua mie para agarrar um carneiro, A mae estd na atitude de se levantar do colo de Santa Ana, ¢ impede a crianga de chegar ao carneiro, uma criatura inocente que é um simbolo da Paixto [significa la passione], enquanto Santa Ana, levantando-se um pouco, parece ansiosa para conter a filha, o que pode ser uma caracterizacio da Igreja [for woe igurare la Chiesa), que nao impediria a Paixio de Cristo (Cartwright, 1903, vol. 1, p. 319; cf Chambers, 1970b, n° 86). Neste ponto talvez seja mais ou menos seguro retornar 4 insistente questo das pinturas seculares do Renascimento ¢ sua possivel moral ou sentido alegérico. No final do perfodo, as provas s40 as vezes extremamente ricas e precisas; no caso de Vasari, por exemplo, que explicou suas intengoes — com muito detalhe. Seu retrato do falecido Lorenzo de’Medici, escreveu ele, mostraria, ao fundo, um vaso, uma limpada e outros objetos, “demonstrando _que o magnifico Lorenzo, por seu notdvel método de governo..., iluminou seus descendentes e esta magnifica cidade”.” Os programas elaborados por humanistas como Giovio, Borghini e Caro (acima, pp. 132-3) sfo igualmente detalhados. As pinturas do século XV colocam mais um problema, princi- palmente as de Botticelli, que hd muito so objeto de debates académicos. Sua chamada Primavera, por exemplo, ilustra uma cena de outro poema de Ovidio, os Fasti, que lidam com a ninfa Flora e o més de maio, mas hd na pintura muita coisa que o texto nao explica. Os humanistas as vezes interpretam os deuses cldssicos, como vimos, como simbolos de qualidade morais ou fisicas, Marsilio Ficino, escreveu uma vez que “Marte é velocidade, Saturno lentidao, Sol é Deus, Juipiter a Lei, Merctirio a razo, e Venus a humanidade [bumanitas|”. Como ele estava escrevendo para o jovem que encomendou a Primavera, j4 foi sugerido que o que Vénus representa no quadro éa “humanidade” (Gombrich, 1972, pp. 31-81; cf. Dempsey, 1968). Palas ¢ 0 centauro, de Botticelli, pode receber uma interpretagao moral, com Palas Atena (ou, conforme os romanos a chamavam, Minerva) simbolizando a sabedoria e o centauro domado, as paixdes (Ettlinger € Ettlinger, 1976, 7 Vasari, Der literarische Nachlass, p.\7s. Digtalaso om Camsamer O Renascimento [rauiano — Parte Il = As Artes em seu Meso p. 130s; cf. Kemp, 1997, pp. 20-5). Na maioria dos casos nao podemos senfio conjeturar sobre qual possa ter sido o sentido moral oculto. Os con- tempordineos (a no ser 0 artista, o cliente € seus {ntimos) devem ter tido problema semelhante. O importante é lembrar que muitos contemporancos olhavam uma pintura esperando sentidos desse tipo. Sentidos polfticos ocultos também figuram no “horizonte de expec- tativas” contemporineo, embora sejam mais dificeis de decodificar, uma vez que sua atualidade se perde rapidamente. Poderia a Palas de Botticelli, por exemplo, cuja roupa é enfeitada com a inven¢ao Medici de antis de diamante entrelacados, simbolizar Lorenzo 0 Magnifico, ¢ 0 centauro, os seus inimigos?* Para ter certeza de nao projetar nas pinturas e estdtuas significados que 0 artistas € seus clientes néo tinham em mente, é prudente comecar com a literatura, ¢ com discussdes explicitas dos sentidos politicos implifcitos.O preficio da digo de 1542 do Orlando Furioso, de Ariosto, escrito por seu editor, Gabriel Giolito, sugere que 0 poema tem uma mensagem polftica, ccontrastando “a prudéncia e a justiga de um principe excelente” com “a aspereza e negligéncia de um rei pouco sbio”. Ser4 que os contemporaneos realmente liam esse poema como se ele estivesse formulando uma teoria politica, como se Ariosto fosse outro Maquiavel? E interessante descobrir que Maquiavel, as vezes, — no décimo sétimo cap{tulo de O principe —citava Virgilio como uma autoridade em politica, usando a apologia de Dido a Enéas de que a suspeita inicial dela seria prova de que um novo principe tinha de ser mais duro que o que estd bem estabelecido. Ao lera literatura desse perfodo, é sempre bom pensar na possibilidade —como parecem ter feito os contemporaneos— de os eventos narrados, reais ou imagindrios, recentes ou remotos, se referirem ou simbolizarem incidentes da época do préprio autor. Tome, por exemplo, uma das pegas religiosas florentinas do perfodo, Santi Giovanni e Paolo. Seu interesse particular neste contexto é que ela foi escrita por um governante, Lorenzo 0 Magnifico. Ela revela, de fato, grande preocupagio com o imperador Constantino. A rebelido de Davi e sua supresso por ordem do imperador lembra uma re- belido da cidade de Volterra contra Lorenzo ¢ a supressio dessa revolta por Sobre o simbolismo Medici nas artes, veja Cox-Rearick (1984), Uma certa cautela apareceu em algumas criticas dessa monografia. 204 Digtalaso om Camsamer TconoGraria Federigo da Montefeltre. Na pega, Constantino sublinha o fato de que tudo fez pelo bem comum. Parece que Lorenzo estava escrevendo propaganda de si mesmo (D’Ancona, 1872, principalmente p. 257). Pinturas ¢ estdtuas também podem ter significado politico. As figuras representadas podem ser alegorias, no sentido de que o sujeito aparente est4 no lugar de outro, Decodificar essas alegorias é necessariamente espe- culativo e as interpretagdes tendem a ser controversas, mas a tentativa de interpretar nao € anacrOnica. Nesse perfodo, como na Idade Média, nao era incomum teferit-se a individuos vivos como um “novo” ou “segundo” César, Augusto, Carlos Magno e assim por diante. Por exemplo, o gran- de pregador Fra Girolamo Savonarola chamou Carlos VIII da Franca de “novo Ciro”, o famoso rei da Pérsia, e também de “novo Carlos Magno” (Weinstein, 1970, p. 145.) As comparacées sio uma espécie de paralelo secular as prefiguragdes que o Antigo Testamento faz do Novo, discutidas antes neste capitulo. Portanto, nao é implausfvel sugerir, por exemplo, que certas estatuas de Davi representam Florenga, ou que as pinturas feitas por Piero della Francesca do imperador Constantino refiram-se ao imperador bizantino Joao VII Paleélogo, que visitou a Itélia para solicitar ajuda na defesa de sua capital, Constantinopla (cidade fundada por Constantino), contra os turcos (Ginzburg, 1981, cap. 2). Uma alegoria polftica particularmente elaborada pode ser vista no Vaticano, no afresco de Rafael feito para Jtilio I] e Ledo X. A Expulsio de Heliodoro jd foi discutida. Outro afresco trata da Repulsdo de Atila. Os italianos do perfodo, inclusive o préprio Julio, muitas vezes chamavam de “barbaros” os estrangeiros que invadiram a Itdlia depois de 1494; este afresco elabora o paralelo entre duas ondas de invasores barbaros. Rafael pintou também afrescos do papa Ledo III coroando Carlos Magno como imperador em Sao Pedro, ¢ de Leao IV agradecendo a Deus por uma vi- t6ria crist contra os sarracenos. Para reforgar o paralelo com sua prépria época, Rafael deu aos dois papas os tragos do xar4 deles Leo X.? Seria um erro reduzir esses aftescos a um comentario de eventos correntes; mesmo © comentério politico que fazem, assim como a Punigio de Coré (acima, p. 154) de Botticelli, é essencialmente mais geral; uma legitimagio pictérica 9 Jones e Penny (1983), pp. 1175, 150s, ia 205 ‘ued ati i dam catia Digtalaso om Camsamer O Renascimenro Iraniano ~ Parte II - As Acres em seu Meio da autoridade papal. Mesmo assim, as referéncias atuais devem ser levadas em conta e, ainda mais importante, 0 habito de usar referéncias atuais e paralelos histéricos para legitimar alegagées polfticas. A relacao entre arte e poder, entre sistema de significados e sistema de dominagao, aparece com mais transparéncia em exemplos como esses. Seas mensagens politicas ¢ o paralelo histérico inscritos nesses afrescos nao chegam a nés com forga suficiente hoje em dia, uma razao para isso € que amaioria de nds nao conhece bem a histéria do papado do comego da Idade Média, nem o Macabeus, nem mesmo o Numeros. E os contemporaneos conheceriam muito mais? Quem, nesse perfodo, era capaz de decodificar a iconografia ¢ ler a mensagem das obras que estamos considerando? Sabemos muito pouco sobre as leituras ¢ as reagdes contemporaneas alas, mas o Ambito de variacdo entre elas ¢ bastante claro. Rafael podia se permitir ser alusivo; o Vaticano nio era aberto ao ptiblico, e suas pinturas eram para os olhos dos membros da corte papal. Nao é coincidéncia que algumas pinturas que mais trabalho deram aos historiadores da arte desde que comegaram a tentar desvendar seus significados, da Primavera de Botticelli até a Tempestit de Giorgione, tenham sido feitas para ficar penduradas em casas privadas e frufdas por patronos e seus amigos.'° A posteridade olha-as pelo buraco da fechadura. Mesmo os contemporaneos bem informados podiam nfo ler seus sentidos. Vasari reclama, em sua vida de Giorgione, que nao conseguia entender alguns de seus quadros, “nem encontrei jamais, perguntando como perguntei, alguém que tenha entendido”. A maioria das pinturas seculares era provavelmente inteligivel a uma minoria mais ampla. Cenas das histérias grega ¢ romana nao teriam sido dificeis de identificar para qualquer um que tivesse frequentado a escola basica. Ovidio também era estudado nas escolas bdsicas, e teria fornecido uma chave para a maioria das cenas de mitologia classica. E provavel que o ndmero de pessoas capazes de entender essas pinturas aumente nos séculos XV e XVI, 4 medida que se espalha a educagao humanista. Apesar das dificuldades que possam causar a observadores de hoje, quando as lendas de santos nao fazem mais parte da cultura, ¢ provavel que as Pinturas religiosas nao fossem dificeis de decodificar para alguém que ouvisse 10 Sobre Botticelli, Shearman (1975b) e W. Smith (1975). Sobre a iconografia de Giorgione € Patronos, veja Settis (1978). ‘ 206 Digtalaso om Camsamer sermoes regularmente, ou que assistisse a apresentagbes de pegas religiosas; em outras palavras, a maioria da populagio urbana. Atentativa de descobrit quais obras de artes visuais ¢ litersrias seriam inteligiveis a quais grupos, ¢ os hdbitos mentais com que eram interpretadas, leva a uma questio mais ampla, a das vis6es de mundo dos italianos do Renascimento. Isso serd investigado no préximo capitulo. ili Digtalaso om Camsamer

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