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Cópia Que Futuro para Os Museus e para o Património Cultural Na Aurora Do Terceiro Milénio? - André Desvallées
Cópia Que Futuro para Os Museus e para o Património Cultural Na Aurora Do Terceiro Milénio? - André Desvallées
terceiro milénio?
Desde há pelo menos duzentos anos, e particularmente com a aplicação do espírito das Luzes
pelos protagonistas da Revolução Francesa, tomou-se consciência do facto de que o que era
propriedade pessoal poderia tornar-se, ao menos moralmente, património colectivo; de início
nacional ou comunitário, em seguida universal (com o estabelecimento pela UNESCO, em
1972, da Convenção para a protecção do património mundial cultural e natural). No
último quarto de século, o património cultural converteu-se num dos domínios importantes da
cultura. Mas, ao mesmo tempo, um duplo perigo começou, ou continuou, a ameaçar este
património: por um lado, o da sua degradação física, podendo conduzir ao seu
desaparecimento; por outro lado, o da sua transformação em mercadoria.
Ao mesmo tempo tomou-se consciência de que a leitura do objecto museal (tanto o vernáculo
como o de criação estética) dependia do contexto no qual ele estava exposto, enquanto que as
criações plásticas contemporâneas se convertiam elas próprias em exposições.
Ora, para coroar estas interrogações surgiu, ao longo da última década com a irrupção do
multimédia e com a revolução das telecomunicações, se não um completo questionamento da
forma, pelo menos o do seu excesso. A essência mesma do museu não tem sido grandemente
afectada pelo enriquecimento dos meios de expressão já que o multimédia não é, afinal de
contas, mais do que um regresso às fontes; arrisca-se, pelo contrário, a sê-lo pela profusão dos
meios de comunicação com os quais a nossa instituição pode perder a alma, se não a própria
essência.
Por isso, existem muitas questões que nos são colocadas para as quais não estamos seguros de
possuir as respostas. Devemos pelo menos interpelarmo-nos de novo, de forma honesta, já
que nos encontramos indubitavelmente num ponto de viragem da história do património ou,
pelo menos, da história do museu; viragem tão importante quanto aquela que sucedeu há dois
séculos quando a Europa, depois de tomar consciência do seu património cultural, passou da
colecção privada ao museu público. É esta nova viragem que vamos tentar analisar de perto.
A partir do fim dos anos 1960 (mas houve pioneiros desde finais do século XIX), o museu
começou a ser contestado um pouco por todo o lado, de cima a baixo, tanto nos países em vias
de desenvolvimento quanto nos países ocidentais. A primeira grande bomba rebentou em
França, na cidade de Grenoble, no decorrer da 9.ª Conferência Geral do ICOM, nos primeiros
dias de Setembro de 1971. Uma segunda eclodiu em Santiago do Chile, a 31 de Maio de
1972, a concluir uma mesa redonda organizada pela UNESCO com arquitectos, museólogos e
sociólogos latino-americanos. Permito-me fazer aqui um retorno, não tanto aos
acontecimentos em si mesmos, os quais penso serem suficientemente bem conhecidos, mas
sobretudo aos seus propósitos, os quais se tende constantemente a esquecer. Eles constituem o
manifesto daquela que um dia denominei de 'nova museologia', criando seguidores no mundo
inteiro, e da qual publiquei há alguns anos, em dois volumes, os textos mais significativos.
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Recordo aqui os seus grandes eixos. Desde logo, o museu não se sabe fazer compreender pela
maioria das pessoas: utiliza uma linguagem por muita gente considerada esotérica (era esse o
objectivo do museólogo canadiano Duncan F. Cameron na continuidade, de resto, de tantos
outros desde os finais dos anos vinte). O museu deve escolher não somente uma outra
linguagem, como também um outro conteúdo, se pretende ser entendido por aqueles que, no
seguimento do grande inquérito conduzido por Pierre Bourdieu em 1966, se passou a
considerar como um 'não público'; foi a pensar neles que alguns começaram a defender que
era imprescindível fazer alguma coisa (John Kinard, que tinha criado um museu de
proximidade num bairro negro de Washington, ou Mario Vasquez, nos arredores da Cidade do
México). Começou-se a sustentar que as colecções não são propriedade dos seus gestores,
mas de toda a população do território no qual o museu está implantado, ou seja de toda a
Humanidade. E isso é ainda mais verdadeiro no caso do Eco-museu, nascido quase ao mesmo
tempo que a nova museologia: uma comunidade é responsável pelo património cultural que
pertence aos seus membros, mesmo que ele se encontre guardado nos domicílios, como
chegará a defender mais tarde Hugues de Varine, na altura director do ICOM. No entanto, a
crítica mais radical proveio de um africano, Stanislas K. Adotevi, então consultor da
UNESCO, o qual sublinhou que, para os africanos "o objecto desfuncionalizado, banalizado,
no interior do museu, não passa muitas vezes do produto de desvios intelectuais de elementos
estranhos à sua cultura: uma consciência alheia agarrada a uma condição real"- e
acrescentava algo que não se aplicava apenas às culturas africanas - "um museu em si não é
nada. Em si, o museu não significa nada. Não passa de um conceito que indica uma acção
que deve ser completada, um conceito prático significando que para encontrar e descobrir a
realidade à qual faz alusão, é necessário procurar não mais no homem abstracto, mas no
homem real, no conjunto das relações sociais e humanas do homem. [...] Em última
instância, os objectos do museu nunca representaram mais do que manifestações tangíveis,
palpáveis e materiais da existência espiritual e moral do homem, o homem no seu ambiente,
as suas tradições, a sua vida, o modo como ele transformou a matéria, interiorizou e
assimilou os contributos exteriores, como enfim assumiu a sua cultura. Quer dizer, como
assegurou o seu desenvolvimento. Através dos objectos museais sabemos que a cultura ganha
raízes num contacto permanente entre o passado e o futuro, num diálogo frequentemente
furioso entre a tradição e o movimento". Poderia citar toda a comunicação, de tal modo ela é
apaixonante e sempre actual. A primeira conclusão de Adotevi era, desde logo, recordo-o:
"Torna-se claro que o museu, lugar de um discurso enganador da museologia europeia, deve
desaparecer, retirado de cena por uma ruptura que impõe uma prática museográfica
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alimentada pela experiência desses milhares de homens que continuam a ser ignorados e que,
cada vez mais, sabem possuir outros modelos a propor que não somente os legados pela
Grécia clássica e pelo Renascimento. A consciência desta realidade é explosiva. Ela obrigará
a museografia a manifestar-se na sua função crítica cultural, a sua função verdadeira de
saber, por uma adequação à realidade quotidiana, a adesão a uma história experimental". E,
finalmente: "A nova prática museográfica deve preparar para o aparecimento de uma cultura
verdadeiramente responsável. Ela só o poderá fazer agarrando as coisas pela sua raiz. [...] A
museografia será, portanto, radical ou não o será". Estávamos, recordo-o, em 1971.
Em primeiro lugar, as ameaças que desde sempre o património cultural conheceu aumentaram
em várias frentes. Claro que devido às guerras - não é fenómeno novo mas acentuou-se
nitidamente, ou pelo menos transformou-se. O mais frequente eram as rapinas (aquilo que se
designava por espólio de guerra a que se dedicaram, por exemplo, os antigos romanos com as
obras de arte gregas; ou também Napoleão Bonaparte na Holanda, em Itália, na Alemanha ou
em Portugal, para enriquecer as colecções do Museu do Louvre ou do Museu Nacional de
História Natural que tinham sido criados recentemente; ou ainda o Reichsmarschal Goering
pilhando os museus e as colecções holandesas, francesas e russas durante a última Grande
Guerra). Por vezes tratava-se de fatal negligência (como quando, em 47 antes de Cristo,
querendo queimar os seus próprios navios, Júlio César permitiu involuntariamente que o fogo
se propagasse à Biblioteca de Alexandria). Na nossa época poder-se-ia julgar estarmos de
volta ao tempo das grandes invasões bárbaras (ainda que os Bárbaros destruíssem por
ignorância) já que assistimos ainda a destruições justificadas por motivos puramente culturais
- ou na base de princípios ditos religiosos - (como foi o caso, entre comunidades étnicas, na
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Ex-Jugoslávia, no decorrer dos anos noventa, ou, este ano mesmo [2001], no Afeganistão,
quando se verificou a destruição das esculturas gigantes dos budas de Banyan). Em qualquer
destes casos, é-se tentado a comentar: se uma afirmação sectária da identidade cultural chega
a estes extremos, existe porventura o perigo de se cultivar em excesso as diferenças, em
detrimento daquilo que é comum ao homem. E, se é desejável não confundir uniformidade
com universalismo, é bom que não se misture tão pouco diversidade com discriminação. E
afirmo isto depois de ter militado bastante a favor dos museus de identidade.
Mas existem outros atentados feitos ao património que são fruto da inconsciência mesmo se, a
mais das vezes, as razões são económicas. Alguns podem até ser efémeros, como é o caso das
construções que interferem na leitura dos bens patrimoniais. Contudo, alguns são bem mais
graves. Quero referir-me à degradação derivada da poluição, que ataca numerosos
monumentos no mundo como, por exemplo, na Índia, o túmulo de Tâj Mahal, classificado
património mundial, cujos mármores brancos com incrustações polícromas, muito sensíveis,
são atacados pelos resíduos das fábricas construídas nas proximidades.
É que, sendo certo que os problemas levantados desde os anos setenta, sobre o papel social e
cultural do património e dos museus, se resolviam parcialmente face aos visitantes do
território vizinho (particularmente nos eco-museus), a extensão mundial do turismo veio
complicar as coisas. Creio que se possa mesmo afirmar, com o necessário distanciamento, que
o número de frequentadores não é uma resposta às questões colocadas. Por isso, se apresento
aqui os dados relativos à França, não é absolutamente por vaidade nacionalista, mas para
comprovar uma tendência e não necessariamente para meu comprazimento (outros poderão
apresentar os números da Alemanha, da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos ou de Portugal).
Os monumentos e os museus recebem milhões de visitantes. Em França, de André Malraux a
Jack Lang, passou-se de uma média anual de 5 milhões de visitantes nos museus, durante os
anos 1970, a 9 milhões nos anos 1980 e a 15 milhões em 2000.O que significa que quase se
duplicou no decorrer de cada década. Durante os mesmos últimos trinta anos, os museus
nacionais (isto é, os que pertencem ao Estado) triplicaram a frequência. O Palácio de
Versailles recebe 3,5 milhões de visitantes, enquanto que o MET de Nova York recebeu 4,9
milhões em 1994-95, e só o Museu do Louvre, que recebia apenas um milhão de visitantes em
1920, e não mais do que 2,5 milhões em 1980, passou para 5,5 milhões depois da abertura da
pirâmide. Mas, estes números devem ser comparados com a quantidade de visitantes do
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Museu Paul Getty [Los Ângeles] que acolhe em cada ano 9 milhões, ou então com as quedas
do Niagara que recebem 11 milhões, ou ainda com a Disneylândia, perto de Paris, que é
visitada por 25 milhões.
É verdade que existe um perigo de contaminação, de conluio, com o económico. Bem que
uma galeria seja feita para vender (entendo 'galeria' no sentido francês de lugar privado de
exposição-venda e não no sentido inglês de museu de Belas-Artes) pôde-se verificar, desde há
várias década, nos próprios museus públicos - definidos como não tendo uma finalidade
lucrativa -, que as exposições, tanto as de arte clássica quanto as de moderna ou
contemporânea, puderam servir de rampa de lançamento comercial a artistas. E viu-se
igualmente, no caso da arte contemporânea, um determinado conluio entre o Centro Georges
Pompidou e o MOMA, de uma parte, e entre o MOMA e algumas galerias comerciais de
Nova York. Como é que os museus se podem desligar do mercado de arte quando se assiste,
como se costuma dizer, ao aquecimento dos preços ali praticados? Apenas alguns exemplos:
em Maio último, no Hotel Drouot de Paris, o manuscrito de Voyage au bout de la nuit, de
Louis-Ferdinand Céline, foi adquirido para o acervo da Biblioteca Nacional de França pela
módica quantia de mais de 12 milhões de francos (ou seja, 1,6 milhões de dólares americanos
ou perto de 2 milhões de euros). Alguns exemplos da Casa Christie's de Nova York: em arte
contemporânea, La Nona Ora, de Maurizio Cattelan, uma obra em duas peças representando o
Papa João Paulo II esmagado debaixo de um meteorito, atingiu 886.000 de dólares, ou seja, 1
milhão de euros, (dois anos antes o seu proprietário parisiense tinha-a adquirido por dez vezes
menos) e Henry Moore Bound to Fail (Back View), uma escultura em cera , de 1967, atingiu
9,9 milhões de dólares (isto é, 11,3 milhões de euros) - o equivalente a perto de duas vezes e
meia o orçamento anual do Centro Georges Pompidou. Na Casa Sothheby, um tríptico de
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Francis Bacon, Studies of the Human Body, chegou aos 8,5 milhões de dólares (ou seja, 10
milhões de euros). E cite-se ainda o facto de o mercado de Nova York ter sido considerado
mau, tanto em arte clássica como moderna, visto que no mesmo mês, na Casa Philips, as
Nymphéas, de Monet, não atingiram 10 milhões de dólares, quando a expectativa era de 15
milhões, uma Vue de la cathédrale de Rouen não ultrapassou 1 milhão de dólares, quando se
esperava o dobro, e um Picasso foi retirado porque estava longe de alcançar os 40 milhões de
dólares que se tinha esperado do seu Retrato de Olga de 1923. Pelo contrário, um Montagne
Sainte-Victoire, de Cézanne, atingiu apesar de tudo o preço de 38 milhões de dólares (isto é,
mais de 40 milhões de euros). A quanto irá subir a madeixa de cabelos de Napoleão que será
brevemente colocada à venda?
Um primeiro perigo reside no lugar relativo ocupado pela forma e pelo fundo, a saber, o papel
que é dado à “expografia”, isto é, a ocupação do espaço, e o que é dado (ou deixado) à
arquitectura. Claro que não existe mais objectividade num ponto de vista estético do que a que
é possível em ciências humanas, mas ao menos poderemos limitar a poluição plástica.
Partindo de uma busca de despojamento, muito antes de os arquitectos entrarem na corrida,
durante os anos sessenta, (penso em Louis Hautecoeur, que tinha colaborado em 'La
Museógrahie', publicação em dois grossos volumes das actas da conferência internacional de
Madrid, organizada em 1934 pelo Office international des musées, antepassado do ICOM), os
conservadores estavam convencidos, durante os anos sessenta, de terem encontrado a solução
face à necessidade de valorizar o exposto em grau extremo, procurando um grau zero de
poluição plástica. Desconheço quais terão sido os seus referentes no estrangeiro, se é que
existiram, mas desde 1961 com Georges Henri Rivière nós adoptámos uniformemente, nas
nossas exposições, um fundo negro e uma iluminação ao mesmo tempo medida e dirigida. No
final da década, os mesmos princípios eram aplicados nas galerias do museu de Berlim-
Dahlem, depois na National Gallery de Washington. O que não significa que só se deva expor
na obscuridade e sobre fundos negros, mas a obscuridade é o degrau zero do qual se deveria
sempre partir antes de se procurar outra coisa. É, de resto, a linha de conduta à qual
continuam a ser fiéis os melhores criadores de exposições (penso particularmente nas que se
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A partir de então, as coisas tornaram-se piores pelo facto de o dinheiro ter inundado os
museus ocidentais. Em França, as primeiras renovações resultaram de uma Lei de Bases de
1978, mas foi sobretudo graças aos 'Grandes Trabalhos', lançados pelo Presidente François
Miterrand em 1982, que os museus beneficiaram de forma privilegiada de um maná
inesperado. Depois, por seu lado, os alemães e, mais tarde, os ingleses meteram-se a renovar
os seus museus, a dispô-los em monumentos históricos ou em antigas fábricas sem uso, ou a
construir novos. Como a maior parte dos conservadores não tinha verdadeiramente recebido
formação museográfica (a não ser sobre o acervo, como aconteceu comigo) e dado que os
arquitectos obtiveram maior confiança dos poderes públicos pelo facto de possuírem um
melhor conhecimento da organização espacial, apesar de também não terem tido uma
formação específica, utilizaram a imaginação sem se preocuparem em demasia, nem com os
imperativos exigidos pelo destino da obra, nem com as pesquisas museográficas anteriores,
como as que tenho vindo a relembrar - coisa que não teriam certamente ousado fazer no caso
de um hospital ou de uma caserna.
Sem querer ser maldoso, pode-se afirmar que vários arquitectos utilizaram as suas criações
museais sobretudo para se promoverem. Já tem sido dito muitas vezes que o corpus dos
edifícios museais dos últimos vinte anos do século XX constitui um excelente panorama da
criação arquitectónica dessas duas décadas - quer se trate de arquitectos americanos,
britânicos, franceses, italianos ou japoneses. E isso não deve surpreender já que se verifica
que eles tentaram acima de tudo fazer das suas criações signos fortes num urbanismo
desarmonioso. O exemplo mais flagrante é a recente construção do Museu Guggenheim, de
arte contemporânea, de Bilbau, pelo arquitecto norte-americano Franck O. Gehry. Mas poder-
se-iam citar muitos outros, a começar pelo Instituto do Mundo Árabe, aberto em Paris em
1987, muito difícil de utilizar para exposições, e para o qual Jean Nouvel reconhece não ter
recebido programa museográfico no momento do concurso de arquitectura e de não saber o
que nele seria exposto até um mês antes da inauguração. Do mesmo modo, também se pode
fazer notar que Franck O. Ghery, que construiu outros museus, se encontra em vias de
acomodar um, num antigo silo de Nova York, sem mesmo saber ainda que colecções aí serão
acolhidas. Pelo contrário, Jean Nouvel recebeu um programa para o recente concurso que
acabou de ganhar em Paris, para o Museus das Artes e Civilizações, no Quai Branly e, já
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sabendo o que será exibido, procedeu de acordo com a sua fantasia, concebendo uma bela
caixa em grande parte transparente, o que não facilitará as exposições. Reconheçamos
portanto que os erros são partilhados entre os conservadores, que nem sempre apresentam o
programa, e entre os arquitectos, que não exigem o suficiente e que frequentemente se recriam
a si próprios. Mas estes males provêm sobretudo do sucesso dos museus, do qual os decisores
políticos (e económicos) se têm apropriado. Os museus conheceram o mesmo fenómeno no
século XIX, durante o fausto período de construção de edifícios museais, quando o que mais
contava era a fachada neoclássica e as escadarias monumentais.
Quanto aos excessos dos arquitectos, dos decoradores ou dos cenógrafos sobre o conteúdo das
exposições, cabe aos conservadores e a outros cientistas defenderem-se, expressarem a sua
recusa de lantejoilas e imporem os seus pontos de vista aos comandatários. À medida que
criação plástica e criação expográfica se combinavam para transformar em objecto de
exposição a exposição ela mesma (com as 'instalações'), na segunda metade dos anos 60 (a
partir porventura da já citada exposição 'Toutankhamon'), assistiu-se à transformação da
exposição em 'acontecimento', em detrimento dos objectos que podia dar a ver. Tal como o
sublinhava recentemente o historiador da arte francês Rollan Recht, "de ora em diante vem-se
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ver a exposição e não as obras". E por essa via atinge-se um outro perigo, evidenciado por
Philippe Breton, na sua obra Utopia da Comunicação, na qual sublinhava com efeito, em
1992, o carácter redutor imposto pela comunicação ao conteúdo que ela veicula, tal como o
compactar, seguido da simplificação, que é imposta às informações para se tornarem em
mensagens comunicáveis: "A informação, fazia notar, deve sempre corresponder à exigência
do 'pleno', do preenchimento máximo, enquanto que a produção do saber se apoia bastante
na identificação e na aceitação de zonas de ignorância" (1997:142). Pode-se confirmar todos
os dias esta asserção ao ver televisão! Mas também se pode verificar ao visitar certas
exposições, mesmo as de alto nível, realizadas em grandes museus norte-americanos. São,
como se costuma dizer, bastante eficazes, mas apercebemo-nos de que o seu objectivo é
frequentemente mais a mediação da mensagem do que a mensagem ela própria (recorde-se
Marshall Mcluhan: "a mensagem é o medium").
A deriva faz com que os museus sejam cada vez mais dirigidos por administradores
polivalentes e que se peça crescentemente aos especialistas, que eram os antigos
conservadores, que sejam cada vez mais generalistas. Infelizmente, numerosos jovens são tão
seduzidos por esta fórmula que se preocupam antes do mais com as suas carreiras.
III. As inevitáveis mudanças devidas às novas tecnologias: o lugar dos novos media e a
revolução do visual e do virtual
Deixando de lado o que não é função específica do museu, considera-se geralmente que, do
ponto de vista dos actores museais, as aplicações das novas tecnologias, que se
desenvolveram cada vez mais velozmente nos últimos trinta anos, se exercem em quatro
campos do museu:
b) podem servir de complemento à pesquisa: pela análise e ilustração dos materiais e das
técnicas; pela contextualização (seja por transferência visual do ambiente, pela reconstrução
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e) Podem ser consultados e comunicados à distância por meio do écran (Internet). Pode tratar-
se de museus virtuais colocados em rede: com as suas bases de dados de 100 000 obras de arte
contemporânea disponibilizadas pelo Vidéomuseum, os 130 000 itens de colecções artísticas
de 60 museus franceses da base Jaconde, ou as colecções do Musée des Arts et métiers ou do
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O grande debate que gera a substituição digital é o que toca à 'restituição da matéria'. Este
debate faz sentido sobretudo no que respeita às obras de arte, nas quais a natureza material
adquire uma certa importância, tal como no referente aos objectos de natureza científica, nos
quais se pretende dar a analisar a matéria. É-o menos em todos os sectores nos quais o sentido
prima sobre a forma e em que o objecto conservado e exposto não é senão um testemunho
material contendo apenas uma parte da realidade que se pretende conservar e expor. Falo de
todos os sectores científicos ou técnicos para os quais os fenómenos, os processos e os
movimentos a analisar contam mais do que a estrutura da matéria em si mesma. E é ainda
mais certo para os objectos expostos que testemunham a história, os factos civilizacionais, os
acontecimentos ligados à vida de uma nação, de um povo, ou de um indivíduo, ou de
fenómenos sociais, os quais se traduzem melhor por evocações com substitutos que por
singulares 'coisas verdadeiras'. Tal como já fiz notar, é por razões comerciais que a
reprodução oferecida ao grande público é de má qualidade, mesmo que se saiba reproduzir
com uma precisão exemplar. Basta olhar para a reprodução, por Infobyte, das câmaras do
Vaticano ou da Capela Sistina em que se vêem as pinturas de Rafael e de Miguel Ângelo
melhor do que se lá estivéssemos ou, pelo menos, como se aproximássemos os nossos olhos a
dez centímetros. Tais reproduções podem figurar sem prejuízo, em escala igual, junto dos
originais.
É, pois, aconselhável que se encontre a medida do que é bom e do que não é forçosamente
desejável. O que é bom é o uso de substitutos para oferecer tantos os contextos que seja
necessário para que eles sejam digitalizados e serem mais facilmente reduzidos, multiplicados
e tornados interactivos. O que não é bom é que o contexto seja demasiado menorizado pela
sua minimalização.
Atentemos para já nos argumentos básicos. È necessário analisar com cuidado se existe
verdadeira concorrência, e risco de que as novas tecnologias façam o público desinteressar-se
do museu e dos seus objectos originais. Isso depende! Depende dos públicos, depende da
natureza dos museus e depende do que farão os responsáveis dos museus! Na verdade,
existem poucas hipótese, pelo menos para já, de que o não-público actual se envolva mais no
museu do que se envolve. Mas, por outro lado, descobrirá certamente por intermédio do
multimédia todo um universo museal e patrimonial de que ele ignorava até a existência. E,
num segundo momento, terá porventura o mesmo desejo de ir ver os originais, dos quais não
tenha visto senão a imagem - por muito fiel que ela tivesse sido! E assim se juntará às hordas
de público fiel. A massa de pública não poderá, desde modo, senão crescer. Isto é verdadeiro
em qualquer dos casos para os museus de arte. Pelo contrário, a dúvida pode subsistir para
outras formas de museu, na medida em que ainda não terão encontrado uma correcta
linguagem expositiva para exprimirem o que têm a comunicar e a valorizar o que possuem.
Também me quero referir aos museus históricos e aos museus científicos, os quais, na pior
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das hipóteses dão a ver sem explicação e, na melhor, transformam as paredes em livros. Para
eles, o multimédia arrisca-se a ser um sério concorrente. Mas, também aqui restará a parte do
original: quer seja aparelho ou máquina históricas, ou mais raramente objecto de arqueologia
ou de etnografia.
Tentemos agora ir um pouco mais além no exame do que é considerado como um perigo.
Pode-se considerar que a informatização documental, a colocação em rede e, depois, a
digitalização da imagem se foram progressivamente associando - desde que existem gabinetes
e museus - à mera exibição e à mera arrumação dos objectos e das obras visuais, inserindo-se
de alguma forma na museologia tradicional. Um grande salto foi contudo dado desde que eles
foram destinados ao grande público, colocando praticamente à sua disposição, sem
necessidade de deslocação, um museu virtual mundial - e não apenas uma colecção, mas
também uma exposição, enriquecida com contextos (históricos e topográficos) e de inter-
relações (ligações de hipertexto permitindo pesquisas pré-programadas quer por cientistas,
quer por não especialistas em multimédia).
A partir deste salto, as Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (as NTIC) não
podem senão gerar uma mutação no Museu, quer nas suas funções de conservação e de
investigação, quer nas funções de exposição. No que respeita às primeiras, como sublinha
Bernard Deloche (1996), as novas tecnologias respondem antes do mais às necessidades
decorrentes da substituição e, segundo ele, elas transformam muito pouco a essência dos
conteúdos, mudando sim a natureza da comunicação. A mudança assume a forma de 'museu
para todos', tal como se começou a construir no séc. XIX, a partir da invenção da fotogravura,
e tal como André Malraux o sonhou com o seu 'museu imaginário' e a sua 'Galeria da
Pléiade'. Passou-se ao mesmo tempo do suporte papel para o suporte electrónico e da
contemplação individual ou colectiva, mas monotópica, à contemplação universal e mundial.
universal. Não mais um edifício onde nos dirigimos e que está destinado a abrigar todos os
testemunhos que foram arrancados ao seu meio, mas pelo contrário tudo o que chega a nossa
casa, e que percorremos - com o mesmo procedimento com que nos deslocamos de um local a
outro - para olhar e examinar tudo o que nos interessa.
O que torna difícil o diagnóstico é que a transformação, sendo intrínseca, não salta aos olhos.
O maior contributo proveniente da junção do contexto é o de satisfazer uma necessidade que
as técnicas não permitiam satisfazer, ao tempo dos gabinetes de curiosidades e dos primeiros
museus. Se aí prevaleciam apenas os espécimes é porque, não se tendo ainda pensado nos eco
museus, não se podia fazer entrar tudo no gabinete ou no museu; se as obras de arte eram
arrancadas ao seu contexto, é porque não se podia fazer entrar na galeria todos os palácios e
todas as igrejas; e sobretudo porque era impossível viajar pela terra inteira para coleccionar -
apesar de se terem multiplicado as viagens com esse propósito.
Pode-se sonhar (ainda que isso não seja assim tão longínquo já que tecnologias semelhantes
existem hoje em dia nos satélites). As câmaras do Big Brother espalhadas um pouco por todo
o lado, apetrechadas não apenas com zooms mas igualmente com microscópios electrónicos e
telecomandados a partir da nossa consola, podem já levar ao domicílio o que alguns, com
muito esforço, estudaram, coleccionaram, classificaram, recolheram, durante cinco ou seis
séculos (podemos ver em tempo real, por exemplo, se está a nevar em São Petersburgo). Uma
incorporação que se faz sem choque, na globalidade do património vivo ou morto.
O templo das musas, local de estudo ou de saber, ainda não implicava necessariamente a
colecção e a conservação de bens materiais, e o 'mouiseion' fundado por Ptolomeu I em
Alexandria, em 295 a.C., que se encontrava geminado com uma biblioteca, não assumia
forçosamente a função de coleccionar. As musas, filhas de Zeus e da deusa Mnémosyne,
personificavam a memória. A fonte do museu e da Museologia, tal como a fonte da
informática, situa-se assim, em grande medida, na memória.
Thierry Gaudin fazia notar, nem sequer há muito tempo: "O que se perfila com o multimedia
tornar-se-á radicalmente diferente daquilo que conhecemos. A imagem que permite
transmitir as técnicas, estará no coração destas mutações. Os nossos conhecimentos relativos
às ciências irão beneficiar de um impulso novo. Mas o multimedia não é apenas a
transmissão da imagem: é igualmente a do texto, dos números, do som, das imagens
animadas, do movimento - logo, da emoção. De resto, toda uma realidade 'furtiva' que até
aos nossos dias escapava à sensibilidade e não era memorisável, integra de ora avante o
domínio da escrita".
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obrigatório do movimento de extensão e de retorno às fontes que viu nascer, há trinta anos, os
eco museus? Não se encontra na linha da definição de museu concebido como um simples
homem com o real, todo o real, aquilo a que alguns preferem chamar 'patrimonologia', por
efeito do seu imperialismo, mas que afinal de contas não é senão aquilo que o museu nunca
deixou de ser. Porque, como afirma Maori Ross Himona, que fundou um site para uso dos
aborígenes da Nova Zelândia: "A terra mítica dos meus antepassados encontra-se, a partir de
agora, na Internet". Ou, como parecia acompanhá-lo Jean Baudrillard, em 1999:"para mim, o
real nunca passou de uma forma de simulação. [...] O real não existe."
Devemos contudo desconfiar de dois perigos, um tem que ver com a comunicação, o outro
com a virtualização. Com efeito, a transferência deste património para suportes virtuais
obriga-nos à interrogação: em que medida é que os meios de comunicação dão se tornam num
fim em si mesmos e não acabam por esconder o conteúdo que é suposto transmitirem, e se -
tal como vemos cada mais nas exposições - o meio não ocupará cada vez mais o lugar da
mensagem ? Em 1991 Bernard Deloch interrogava-se sobre a pertinência de uma aplicação à
evolução que conheceu recentemente o museu das ciências e das técnicas deste "famoso
princípio de Marshall Mcluhan (e cito-o) segundo o qual 'a mensagem é o meio', quer dizer
de verificar se a transformação dos media é a consequência de uma mutação dos conteúdos
exibidos, ou se os novos media, supostamente vindos do exterior, trazem com eles uma real
subversão do museu e do seu conteúdo [...]. Mas fazia notar: "O objecto parece ter-se
deslocado. No entanto, nada mudou já que é a estrutura mediática do museu que afinal
fabrica a sua própria mensagem, através dos objectos exibidos, que tem a tarefa de gerar". E
concluía: "sob a aparente transformação dos media, a mensagem (a imagem inculcada) não
mudou senão o meio (o museu que se adaptou). [...] Claro que a novidade do conteúdo não
só se revelou decisiva mas parece igualmente que a novidade do meio não conduz
automaticamente à renovação da mensagem."
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Tal como já fiz referência, não é essa a opinião de Philippe Breton, para quem "Os media, ao
difundirem informações, aumentaram afinal a ignorância na qual nos encontramos
relativamente ao mundo real, já que a ignorância não possui melhor aliado do que a ilusão
do saber" e, em resumo: "o meio tornou-se num centro que tudo absorve à sua passagem"
(1992: 141 e 145). Incontestavelmente, Breton envia-nos também para Mac Luhan. Mas não
deveria antes fazer-nos recuar até Montaigne, para quem uma cabeça bem feita vale mais do
que uma cabeça bem cheia? Foi o que conduziu Jean Davallon a precisar: "O museu não é um
meio no sentido corrente do termo. [...] Evidentemente que nele se proporciona uma
comunicação entre o visitante e os objectos ou um saber, mas não nos encontramos face a um
modelo de indústrias da comunicação fundado sobre o desenvolvimento de uma rede de
difusão." (Davallon, 200: 230 e 231).
O segundo perigo é ainda mais estrutural e tem a ver com a virtualização da imagem:
colocam-se questões e tomam-se posições controversas. Para uns, como Bernard Deloche, a
simples reprodução da imagem é quase tão inútil quanto o museu; para outros, é sobretudo a
virtualização que introduz a principal revolução no museu. É certo que o museu contém em si
o património, mas não é o único a fazê-lo. Por outro lado o que ele faz a mais é quase o único
a fazê-lo, que é o de servir de intermediário entre as coisas concretas e os indivíduos. Em
1986, Jean Davallon considerara importante recordar a verdade de uma evidência segundo a
qual a exposição é o reencontro físico entre o objecto e o visitante. Mas, em 1994, Jean-Loui
Déotte moderava o seu próprio entusiasmo com a digitalização dos bancos de dados. E cito:
"Considerando que [os museus] são os últimos lugares públicos hospitaleiros, não podemos
senão alegrarmo-nos com esta nova etapa da cultura material e da sua historiografia que é
constituída pela informatização dos museus, a transformação das colecções em bancos de
dados imateriais, ou seja o arquivo e o percurso de virtualidades. [...] Mas esta
transformação, se tem que ver com o futuro das mediatecas e das bibliotecas, não afectará o
devir do museu senão nas suas margens, apenas pela parte do que na obra é redutível à
informatização, digamos para permanecermos imprecisos, aquilo que não é a sua matéria:
portanto o que é a sua parte coisificável, acessível a um saber." E, em 1996, Jen-Pierre
Mohen, director do Laboratório dos Museus de França, se tinha ainda algumas reservas não se
inquietava muito com os meios: "Se a informática permite dominar os grandes nomes, se a
imagem digitalizada é satisfatória, é necessário todavia perguntar se a abstracção que
introduz os media não apresenta nenhum perigo quanto à apreensão de realidades cujo
contacto directo era até ao presente a fonte essencial de conhecimento" (Mohen, 1996: 45)
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Conclusão
A maior parte dos museus tinha necessidade de ser renovada para melhor responder às
expectativas dos seus públicos; outros tinham necessidade de ser remodelados ou construídos
para abrigar com mais conforto o património armazenado. Foram gastos milhões desde há
vinte anos. A 'museomania' tornou-se uma droga para as populações, um modo para os
políticos e uma mais valia para os arquitectos. Mas avançou-se demasiado tarde. Porque se
pode entrever, sem qualquer possibilidade de engano, que pelo entusiasmo que começa a
conhecer o multimédia, não restará aos museus senão manterem o culto (religioso) do
original, sendo que o documento científico é largamente transferido para o multimédia. Tal
como dizia ainda Roland Recht, "Aproximamo-nos do fim das 'exposições-acontecimento'. O
CD-Rom substituirá a exposição das obras frágeis." E se "se visitar ainda algumas colecções
em que haverá apenas algumas obras-primas, o museu será completamente
instrumentalizado". Se as novas tecnologias tivessem feito o seu aparecimento vinte anos
mais cedo, teria sido possível economizar alguns milhões, ou investi-los doutro modo com a
mesma finalidade. A mudança que vamos conhecer vai portanto ser radical, já que tocando na
expressão e na comunicação arrisca-se a atingir a sua própria essência.
Porque se impõe concluir, direi simplesmente que, porventura como em qualquer outro
domínio, o positivo e o negativo se equilibram: de positivo, todas as vantagens associadas à
reprodução e às inter-relações; de negativo, a ausência de contacto não somente material, mas
carnal com a realidade. Salvo se, a crermos em Régis Debray, houver um retorno ao embrião,
e cito: "Nas experiências virtuais, é necessário tocar. Passámos do ver à intervenção e à
participação. E isso é jubiloso e regressivo. Nós estamos na crista da técnica, mas ao mesmo
tempo no início das nossas origens - o embrião - esse estado arcaico que privilegia o toque e
a carícia." (1994)
Fontes
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BOURDIEU, Pierre, e DARBEL, Alain - L' Amour de l'Art: les musées et leur public, Paris,
Editions de Minuit, 1966, 219 p. (várias reedições e traduções)
DAVALLON, Jean (dir. de) - Claquemurer, por ainsi dire, tout l'univers: la mise en
exposition, Paris, CCI- Centre Georges Pompidou, 1986
DAVALLON, Jean - "le musée est-il vraiment un media?", Publics et musées, n.º 2,
Dezembro de 1992 (retomado em L'exposition à l'ouvre, Paris, L'Harmattan, 2000)