Você está na página 1de 185
Antonio Cantos de Sowa Lit ‘antopologia. social pelo Museu Nacional/ UFRJ. ‘unde atauimente € professor ¢ coordenador de poreraduagio. a cnamesmsticiivere americano hoje delimitados come tex ittin brasileiro e as oxganiza- des administtativas estabelecidas desde a chegada de europeus tém sido pouce tratadas pelas ciéncias sociais em nosso pais. Perce- hides, quer enquanto matéria para demineias por setores do Estado, artropélogas ou organizagdes nio-govemamentals, qvier ni qualidade de apreensivcis somente pelas ubordagens etnozriticas muis clissicas, tei sido consicleradas sob os toxulos de gorifica indi genista c indigenivmo, através de que yemsendo fomnades para amalise sobretudo desde meados da década de 1980) Um grande cerco de pas — Poder tutelar, indianidade e jormajaa do Estado no Brasil, faito de longa pesepisi em arquivos © do eortaro ‘do autor com divergos scementos preses res na cena politica face a0 problema indizena, Fas deste tema 6 seu poato central. O livro realiza ‘uma descrigdo aprofundada de uma forma de poder de Estado, démarche na qual 0 status juridieo de trdia € um bom lugar so- ciolégico para se lancar 6s olfids sobre dinamicas dele afastadas em termos cognitivos: 0s processos de integragao de tedles sociais ¢ ter- tit6rios, os aspectos cénicos da politica, a génese da peculiar trama da burocracia publica nacional. ) ISBN 85.326 .1499-X ee wae ti ( ZYd 40 OOWID TGNVES WN ap“) oruoquTy Antonio Carlos de Souza Lima UM ° GRANDE CERCO DE PAZ Poder tutelar, indianidade e do do Estado no Brasil UM GRANDE CERCO DE PAZ | Antonio Carlos de Souza Lima UM GRANDE CERCO DE PAZ : 5 Poder tutear; indianidade e formagiio do Dados Internasonais de Catalogaio na Publcagio (CIP) Estado no Brasil Lima, Antonio Carlos de: Um grande cero de par: poder ttl, indianidadee | formaeio do Estado no Brasil / Antonio Carlos de Souza Lima, Perrépalis, RJ: Vozes, 1995. Bibliogratia, ISBN 85.326.1499-X | | | 1, Brasil Politica e governo 2. Estado 3, Politica indige~ nista 4, Tutela Brasil L Titulo, | | | | Indices para catalogo sistemstico: ors 1. Brasil: Politica indigenista governamencal ‘9805 2. Politica indigenista governamental : Brasil 9805 LC © 1995, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Lats, 100 25689-900 Pertépolis, RI Brasil FICTIATECNTEA DAVOrES DITOR. aja De a Para a Lilma, Indo embora deste lugar, esté agora em todos. Gomo sempre fot ance para ela. Onde ela sempre estece. oom ania ie hogan Para a Letitia, com quem descobri Page Roksan o lugar em que estou, ee eae Agua. ISBN 85.526.1499-X fat ne i compost eimyieass nas ofan eins d tors Noes Ld 4 Be Pep aoverbs de 85 Aguele que apela para a autoridade quando existe diferenca de opinidio, etd faxendo mais uso da memiria do que da razdo (Leonardo da Vinei, apud Freud, Sigmund, Leonardo da Vinci uma lembranca de sua infancia). Polemos €0 pai de tudo, 0 re de tudo; a uns ele os revela deuses, a outros homens; a uns ele os fax escravos, @ ot- tras lores (Heerdclito, fr. 53, apud Lonis, Raoul. Guerre et religion on Grice a lépoque classique). iglas e abreviaturas ACD — Anais da Camara dos Deputadas Federal, CLTEMGA ~ Comissio de Linhas Telegrificas Rscratégicas do Maro Grosso ao Amazonas DON — Distio do Congresso Nacional f= fotogiama FUNAT— Fundagio Nacional do fndio TBF — Inspetoria Especial de Pronteiras m="microfilme MA ~ Ministétio da Agricultura MACOP ~ Ministétio da Agricultura, Comércio e Obras MAIC ~ Ministerio da Agricultura, Indstsia ¢ Coméscio MG ~ Ministétio da Guersa MI- Mus MIVOP ~Ministério da Viagao e Obras Pablicas MNI~ Ministério dos Negécios do Impétio MPEG ~ Museu Paraense Emilio Géeldi MTIC~Ministério do Trabalho, Industria e Comércio lo Indio p.=planitha RMAIG Comercio SEDOC-Servigode Documen so SNA ~ Sociedade Nacional de A, SPI Servigo de Proteyo aos indios SPILTN — Servigo de Protegio aos Indios e Localizayio de Trabalhadores Nacionais Relatério do Ministétio da Agricultura, Indistria € 30 do Museu dofndio/ UNA vigo Geogrifico do Exército SUMARIO Apresentagio, 11 PARTE I- CONQUISTA E PODER TUTELAR 1. A conquista como modalidade de guerra, 44 2, Poderes de Estado e a imaginaczo «ie comunidades nacionais oriundas de congiuistas, 64 3. Poder tutelar como poder de um Estado nacional, 70 PARTE II - A DISCIPLINARIZACAO DO CAMPO COMO PROJETO 4,0 Ministério da Agricultura, Inddstria e Comércio ~ Griagiio ¢ organizagao adminictrativa, 101 5. O Servigo de Protegao aos Indios ¢ Localizagio de ‘Trabalhacores Nacionais ~ Pmplantagao, 113 6. Um grande cerco de paz — Clasificagies¢finalidades do poder sutelar, 119 PARTE Ill- ESTRATEGIAS DE CONQUIS- TA E TATICAS DE GOVERNO 7. Estratégias — Do reconhecimento do terreno ds tonicas de pacificagéo, 139 8. Titicas do poder tutelar I, 178 9, Titicas do poder tutclar Il —A deffnipd jurtdica do iudio, 198 PARTE IV - VICISSITUDES DO GOVERNO DOS [NDIOS 10. Caracteristicas gerais ¢ 0 perforlo 1910-1930, 230 11. Da Revolugio a guerra — 0 SPI n0 Ministério do Trabalho, Indbistria e Comércio, 252 12, Nacionalizagao das fronteiras ~ O.SPL como parte do Ministério da Guerra, 266 13, Colonizagao, preservagio ¢ integragao~ A expansio sobreo Conrro-Oeste 0 Parque do Xingu, o patrimdnio ea rendaindigena, 1940-1967, 286 Observagdes finais, 307 Fontes consultadas, 313 Bibliografia citada, 315 Caderno iconogrifico, 337 APRESENTACAO Este livro aborda um tema lacunar na historiografia ¢ na produgio das cigncias sociais no Brasil: 0 estudo das relagdes que se estabeleceram entre variadas formas de administragio, instituidas desde a chegada dos portugueses ao territério do que hoje chamamos Repdbtica Federation do Brasil, © 0s povos nativos a esta parte do continente ameri- cano. Concentra-se em estudar 0 primeiro aparelho de poderestatizado c estabelecer relagdes de canter purames te laico com os indigenas, tanto no que tange aos scus quadros quanto a sua ideologia de agio. O Sereiyo de Prote- Bere ee eee eel ten (SPILTN), criado em. 1910, passaria & hist6ria, a partir de 1918, como SPI apenas, Quando raramente freqilentou as paginas dos estudos antropolégicos. 0 SPI apareceu na qualidade de criagio pessoal e venerdvel de seu primeiro diretor geral, ona época tenente-coronel Candido Mariano da Sifea Rondon. Paradigma do modero desbracador dos serties, um dos mitos incon- testes da histéria oficial do Brasil republicano, Candido Rondon é 0 patrono da arma de Comunicagio do Exército, das Telecomunicagdes em nosso pats, e primeito brasileiro ser apresentado enquanto candidato ao Prémio Nobel da Paz, em 1958, objeto de intimeras biografias encomidsticas (Lima, 1990), O SPI seria extinto em 1967, apés uma mal conhecida apuraglo de graves dentincias, dando lugar 2 Fundagao Nacional do Indio (FUNAD). Embora lidando com seus 57 anos de existéncia, o livro concentra-se em construir dados com informagées do intervalo de tempo que se estende do final do Império até 1930, quando o SPI sairia do Ministrio a Agricultura, Inddstria e Gomércio paca integras 0 Ministério do Tratatho, Indiistria ¢ Comércis. Este € 0 periodo que a historiografia mais tradicional também chama de Repablica Velha ou Primeira Repiblica, afcita que € a datas candnicas, cortes consagrados sacralizantes, t40 genéricos quanto inexpressivos para objetos especificos. objetivo nao foi realizar uma recons stricto sens, 20 molde de uma histéria narrativa, muito ‘menos do tipo de pesquisa usualmente feita sobre a admi- nistragio publica, Sendo trabalhode um antropélogo, tenta ser uma etnografia hist6rica dos processos constitutivos € elementos principais de uma certa modalidade de poder estatizado, exeqilido pelo SPI sobre os indigenas. O poder tutelar, como 0 chamei, parece-me uma via de acesso inte- ressante na abordagem dos processos de formagio do Esta- do no Brasil para, seguindo Norbert Elias (1972), distinguir © que as Ciéncias Sociais tém fundido de modo indevido sob o rétulo de construgto do Estado nacional. Se considerarmos a idéia de estudos de desenvolvi mento a longo prazo (Elias, 1989), 0 governo dos natives foi uma das atribuigdes das primeiras estruturas administrati- vas implantadas pelos portugueses. Delas 0 Império seria caudatirio, e valeria pensar 0 quanto ainda perpassam, tornadas condigées passadas, esquecidas ¢ implicitas, al- guns dos problemas hoje por nés enfrentados. E preciso, porém, estabelecer, logo de inicio, algumas balizas distintivas do que se segue, face & maneira mais comum pela qual os antropélogos (etnélogos, sobretudo) abordaram 0 tema. INDIGENISMO, politica indigenista ou antropologia da administragio? As relagdes entre os povos nativos eo Estado em nosso pals, alm de pouco estudadas ¢ enquadradas de forma incipiente pela literatura dispontvel, rém sido usualmente tratadas sob os rétulos indigenismo e politica indigenista, termos inadequados aos objetives deste livro. Tomados como auto-evidentes ¢ naturalizados, ambos os termos so 12 De scenes esa eM ak: iiiital i Sed.) a muitas vezes utilizados de modo teleolégico: fala-se em politica indigenista portuguesa no Brasil colonials num indi genismmo do Marqués de Pombal; em legislacao indigenista imperial ete, Ainda que os significantes fossem usacios em ‘outros periodos histéricos —0 que niio era fato—, seria isto Justificativa para uma apropriagdo trans-histériea desses termos? Nada menos digno de uma Antropalogiaque se diz cada dia mais préxima da Histéria e de uma historiogratia to antropol6gica. Afinal, com o atual refinamento teérico € metodologico, capaz. de instigar a produgdo de historias indigenas, por que nao tentar aplicé-lo a0 estudo das estru- turas administrativas descnvolvidas pelo conquistador para abordaros povos conquistados? E possivel, de safda, definir 5 contetidos carreados por indigenisma polktca indiventsta para, num segundo movimento, construir uma via alterna- tiva de interpretacao, © termo indigenisma & oriundo da produgao literéria latino-americana. Designou, de inicio, uma cosrente de Pensamento, na prosa ¢ na poesia, similar ao chemado, no Brasil, indianismo, Dat para a produ mente desti origem antropol6gica quer nao —haveriam passos significa- tivos, matéria bisica suficiente para andlise em uma pes- quisa de muito maior folego, a ser feita no contexto de ferentes palses latino-americanos. No Brasil 0 termo in- digenismo tem recoberto uma gama variada de ages que, stricto sensu, deveriam ser deseritas por meio de outros léxicos Mas seria dentro do campo politico mexicano que significado de indigenismo ganharia cstabilidade a partirda Revolugio de 1910 ¢, sobretudo, com a instauragao do cha- mado indigenismo interamericana, wo longo do F Congresso Iadigenista Interamericano, realizado em Patzcudro, em 1940, Solidificar-se-ia, no entanto, mediante amontagem de todo, umsistema de e agentes encabegado pelo Instirnto Indigenisia Interamericana, com formas de consagragio difusio préprias c independentes das ditas intelectuais ~ melhor dizendo, desvinculadas da universidade. Este sis- tema € parte dos poderes de Estados nacionais latino-ame- B ricanos, o termo ganhando corpo em instituigdes, tornando- se efetivamente uma forma de poder historicamente esp cffiea sobre as populagies nativas da América’. Nada mais 16gico que selecionar, como agente autori- zado para definislo o autor de Balance del indigeniomo, Ne~ jandro D. Marroquin, chefe na década de 70 da Seto de Investigarses Antropoligicas do INI, Segundo o prologo ¢s- crito pelo Diretor do INI, Gonzalo Rubio Orbe, Alejandro Marroq) 3 recebera a tarefa de cumprir a resolucao n’ 35 do VI Congresso Indigenista Interamericano que estabelecia levara termo "... una evaluacién de Ia labor indigenista en los paises miembros del Instituto, durante um lapso de 28 anos: esto es, desde Ia fundacién del Instituto hasta no- viembre de 1970” (Marroquin, 1977: XID. Marroquin par- te da consideragao do termo fadio, ¢ de seu derivado indigena, para definiro que seja indigenismo, enquadrando-o como designativo das polfticas de intezrasio de populagdcs indigenes a Estados nacionais latino-americanos". Os autores que tém procurado refletir sobre 0 assunto reservam 0 termo para a dimensao idcol6gica, isto €, 0 saber = notadamente o programatico, destinado a gerar diretrizes para ago de politicas estatais — que se produz acerca dos fndios, a comegar pela propria definigo desta categoria. Esta € a posigio de Margarita Nolasco Armas ao definir indigenismo, polltica indigenista © agdo indigenista, a seu ver especificidacles do traramento dado pelo Estado nacional mexicano 4s populagdes indigenas circunscritas pelo seu territério (Nolasco Armas, 1981: 69). Mesmo quando o termo ¢ tomado para outros paises, na maior parte da América Latina é pereebido como designando pensamen- tos € agdes de Estado’, E possivel formular uma definigao provisdria de cunho operativo, a se manter a diferenciagao entre os trés termos (Lima, 1990: 81), Assim, pode-se considerar indigenismo 0 conjunto de idéias (¢ ideals, i.c., aquelas elevadas 3 quali- dade de metas a serem atingidas em termos préticos) rela~ tivas & insergdo de povos indigenas em socicdades subsumicas a Estados nacionais, com énfase especial na formulagao de méindos para 0 tratamento das populagdes 14 nativas, operados, em especial, segundo uma definigao do que seja /ndio. A expressio politica indigenista designasia as nedidas priticas formuladas por distintos poderes estatiza- dos, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indfgenas. Isto exclui outros aparethos de poder da esfera da definigio, implicando em néo se falar em uma po/ttia indigenista eclesidstica, nem tampouco condicionar a idéia deatos oficiais afetando populagées autéctones a existéncia de uma racionalidade onde as ages priticas correspondem. a um planejamento implicito €, sobretudo, explicito. De modo mais claro: ndo hé uma correspondéneia necessaria entre 0s planos para os fndias € as agiies face a cles, Estas definigdes provisérias surgiram da pesquisa, an- to sobre momentos hist6ricos pregressos, como os aborda- dos aqui, quanto, principalmente, sobre os periodos mais recentes, pés-implantagio da Pundagdo Nacional do Indio (FUNAD, aparelho concebido supastamente para funcio- nar em acordo com os canones do indgenismo interamericano Permitem separar as reivindicagdes por um planejamento democritico para politicas pablicas destinadas aos indige- nas, da critica intelectual do modus operandi (para usar uma expressiio comumente empregada por Pierre Bourdieu) de poderes estatizados e seis agenciamentos O avango da pesquisa rouxe, no encanto, a possibilida- de de, seguindo as diregdes tragadas por Foucault em alguns de seus trabalhos (1971; 1979b, c, dl, ¢; 1983; 1986), pensar no indigenismo enguanto discurso, Esta sugestio me foi feita pelo Prof, Luiz de Gastro Faria quando da defesa de minha dissertago de mestrado (Lima, 1985), seguindo a proposta de um curso que ministrara no PPGAS, no segun- do semestre de 1981, Este caminho parece tanto mais razodvel quando se toma contato com o trabalho de Edward W. Said sobre 0 orientalismo, Chamando a atengdo para o fato eminente- mente politica da produgio de saberes, Said distingue seu objeto de pesquisa das imagens acerca do Oriente produ- zidas desde a Antigitidade, sem desconhecé-las ¢ supondo um acesso prévio a mesma por parte do arquivo (no sentido de Foucault, 1986) em scu livto explorado. O discurso que 15 ee ee pretende tratar nao existe desenraizado de uma historici- dade e de uma geografia especificas. Num texto ligica © metodologicamente requintado, rico em sugestdes e per~ guntas, Said demonstra a correspondéncia entre uma certa forma de saber e uma dada forma de poder, de modo que nfo se possa pensar numa sem a outta, ¢ vice-versa, Sobre- tudo, admiro a lucidez com que o autor define os termos de seu problema e se indaga quanto as vias de acesso para solucioné-o. O trabalho de Said prima pela pesquisa séria ¢ densa, sobretudo de textos publicados, ancorando-se numa noté- vel clareza e explicitagio dos procedimentos cognoscitives adlotados eseus limites (Said, 1990: 27-36), Nestes se insere © préprio delineamento da posigao do autor frente 0 tema (Said, 1990: 36-39), numa aticude bastante compreensivel quando se sabe que cle 6 um porta-vor engajado dt « palestina em meio ao campo intelectual norte-amerieano. De um ponto de vista inspirado nas indagagfes de Said —e sem tepeti as démarches analiticas do autor, ~ estudar indigeniomo enquanto discurso implicaria cm trabalar ndo apenas com 0s textas publicados pela administraczo colo- nial sobre as populacdes nativas, Demandaria o uso de documentos tio amplos quanto textos de Etnologia da época,a literatura de fiogdo em geral, as noticias de impren- sa, iconografia etc., por um perfodo vasto e diversificado da chamada histéria brasileira, cruzando-os com a temitica da construgio de discursos sobre a sociedade brasileira, da delimitagio simb6lica ¢ politica do territério brasileito, bem como dos modos coneebidos para seu povoamento. Decor rGneia disto seria equacionar problemas tio diferenciados quantoas representagdes do indianismo literirio, as imagens sobre 0 serfd2, 0 discurso militar sobre a defesa nacional, a necessidade de cobrir o territério com ums rede c’ieaz de meios de comunicagao etc. Oestudioso do indigenisma deveriasercapaz deresolver diividas incrincadas quanto ao uso de termos cuja vigencia histériea por vezes se superpés, por exemplo os de indianis- 1a, indigenista, sertanista, Sua tareta implicaria, ainda, em se questionar sobre a produgao juridica do perfodo tratado, € 16 ‘em contrapor tal universo discursivo ao remetido a inst tuigao eclesiastica, imiscuindo-se na historia das ordens religiosas no Brasil, em suas relagdes com o Estado nacional etc. Lmplicaria em tratar ~ ou a0 menos considerar aparelhos de poder io variados quanto 0 Servis de Protegéio 03 Indias © 0 Ministérto da Agricultura, Inddstria e Comércia, 0 Instituto Histérico e Geogrdfico Brasileiro; o Museu Nacional ¢ demais museus etnograficos; a Sociedade Brasileira de Geografia © a Comissda Geogrdfica ¢ Geoldgica de Sdv Paulo, 0 Ministério da Guerra; as Comissoes de limites ¢ 0 Ministério das Relagits Exteriores;o Departamento das Correios ¢ diversas Comissoes telegrificas (codas simbolicamente implicitas na figura mitica da Comissao de Linkas Telegrdficas e Estratégicas do Mato Grasso an Amazonas ~CLTEMGA — , a Gomissio Rondon), © estes no Ministéria da Viapdo e Obras Pablicas, as escolas de engenharia eas escolas militares, além da forma- ‘¢do bacharelesca cte., seguindo apenas aquilo quea memd- ria me traz ao teclado quando penso em seguir um desenho conseqiiente para uma investigagio desse porte. Caso fosse possfvel contar com uma produgao historio- grifica igualmente ampla sobre todos estes itens, haveria ‘trabalho significative para muitos anos de estudo ¢ um esforgo de sintese de amplas proparges, claro que minora- dopelo recorte da pesquisa, no qual os méfodos de tratamen- to dos nativos seriam parte fundamental. Ou, numa démardhe contréria, partindo-se de um plano previamente estabelecido ¢ seguro, trabalhando com uma equipe uni- forme, gerar uma multiplicidade de artigos passiveis de serem futuramente reunidos em um texto Unico. Ambas as diregdes estando descartadas pela narureza da pesquisa que geraria este livro, isto é, a destinada auma tese de doutora- mento, ¢ sendo as equipes ficgbes Arduas de serem conce- bidas (em todos os sentidos do verbo), coloquei ao presente trabalho uma pequena parcela, do meu ponto de vista bastante significativa, do que seria este esforgo maior. Concentrei-me em estudar o SPI enquanto parte da admi- nistrago pablica no Brasil, mas enquadrando-a na qualida- de de pega determinante na produsao de sentidos generalizaveis para @ heterogencidade da vida social brasi- Ieira, Na parte 1 estaré melhor apresentada minha leitura 7 Se ee ee le ae es de certas idéias quanto a administragao ¢ seu papel na imaginagao de comunidades politicas, inclusive nas auto- representadas como “nacionais”. £ sempre bom lembrar, com Weber, que “... para a vida cotidiana dominagio € primariamente administragao” (1983: 175). Estamos diante de fatos privilegiados para estudos de antropologia politica, pois administrar, num certo nivel, € também por em movimento dispositivos capaves dé engendrar e de repetir —c fazer repetir—esque- mas de percepgio ¢ agao da vida didria 20 ponto de torné-los automiticos € inquestionaveis. Estaescolha faz com que se utilize aqui tipoem itélico para designaras categorias “nativas”, como qualquer antro- pologo grafaria cermos do povo por ele estudado em sua monografia. E um expediente visual para lembrar, por exemplo, que a prote;do frarernal aos indios texe pouco da protegio que um Icitor mais desavisado poderia Ihe em- prestar, Para prosseguir, € importante dar conta, de modo par- Gal e impressionistico que seja, da trajetéria de pesquisa aqui contida. E um modo de dar ao leitor os instrumentos necessdrios a sopesar a “validade” do produto, além de um Gepoimento sobre a pesquisa em ciéneias sociais nesta guadra do tempo. Abistéria oficial do SPI eda FUNAL, seu surgiment, seu uso e sua reprodugio Meu primeiro contato com os ideais, planos estrutura dos ¢ ages desenvolvidas por aparethos de governo desti- nados aos povos indigenas, deu-se sob o signo de um outro interesse: 0 estudo do processo de assenhoreamento pela administragzo do nordeste do estado de Mato Grosso, sob ‘o chamado Estado Novo. Seu moto foi a chamada Marcha para Oeste, movimento mais propagandistico do que real, {que “tectiava” 0 pais usando como emblema a “tradigao bandcirante” brasileira (Esterei, 1972; Lenharo, 1986a ¢ by MENEZES, 1990). Durante as décadas de 40/50 este movimento se entre- ‘cruzaria com a trajetéria de diversos povos nativos, como por exemplo os da regio do Araguai-Xingu. Minha inten- (lo era trabalhar sua interface em espectfico com a hist6ria dos Xavante, povo indigena de fala Jé, habitante do Brasil Central (Maybury-Lewis, 1984; Silva, 1992) pacificado com grande estardalhago em 1946, Na época eu procurava um estudo geral sabre a “politica indigenista brasileira”, tendo obtido uma snica resposta as minhas preocupagdes: 0 texto de Darcy Ribeiro contido na parte segunda de seu eélebre Os indios a civilisacdo (publicado pela primeira vez em 1970, durante 0 exilio do autor, pela Edicora Civilizagio Brasileira — aqui Ribeiro, 197). ‘Tratava-se de um texto que opunha a “ineficécia” das “misses religiosas” ¢ supostas sugestoes de “exterminio” dos fndios feitas por Hermann von Thering, cientista ale- mio, diretor do Museu Paulista, as tentativas, preesrias mas, honrosas, de um aparelho do Estado brasileiro, criado para proteger ¢ defender 05 nativos. Melhor dizendo, apesar do Gestaque de alguns limites do Serviza, o texto contém uma detesa incisiva da chamada proterdo fraternal, c da tutela, isto &, da ineapacidade civil rdativa dos indios estabelecida pelo artigo 6° do Gédigo Civil Brasileiro, em vigéncia desde janciro de 1917. ibeiro faz 0 SPI surgir da iniciativa quase toda pessoal ’indido Mariano da Silva Rondon (0 “heréi” dessa ria) € de um grupo de dedicados companheiros, recru- tados quer entre os militares componentes da chamada Comissiio Rondon = de fato Gomissiio de Linhas Telegrficas ¢ Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas — quer entre enge- inheiros. Todos cles se uniam em tomo do credo positivista ortodoxo, ao qual haviam chegado através de suas formagées especificas, na Escola Militar da Praia Vermelha (onde hoje se instala a Escola Superior de Guerra) e na Escola Poli- técnica (depois Bscola Nacional de Engenharia, hoje parte da UFRJ). Em ambas o positivismo era moeda corrente, ainda que sob outras interpretagdes. Caricaturando um pouco 0 texto, pode-se dizer que Ribeiro relata uma (esphistéria de abnegagao © softimento 19 — de uns poucos individues excepeionais, conera as “olizar- {quias locais", As intempéries politicas, a escassez de recur Sos movida por perseguighes, as florestas indspitas © 05 proprios iudios, muitas vezes em estado de guerra, estes foram alguns dos obstdculos que tiveram a enfrentar. Este grupo, ainda que dotado de uma idcologia equivocad, segundo a visio de Darey Ribeiro, conseguiria enormes feitos, © “grupo de rondonianos” teria sido sucedido, entre ‘os-anos §0 ¢ 54, na gestao de José Maria da Gama Malcher como diretor do SPI, por outros idealistas: a ciBncia substi- tutiria, por breves momentos, as idéins positivistas de Ancm- ‘poragio dos indios. Na Epoca Ribeito ~ desde 1947 até 1957 ‘etndlogo do SPI — teve um papel proeminente em adaprar aantcopologia culturalisra em yoga paraservirde guia acto pritica. Logo a seguir o SPI teria cafdo nas maos do jogo partidario ¢ decaido paulatinamente até succssivos esean Jialos nos anos 60, redundando em sua extingdo em 1967 € na eriaggo da FUNAI pela Lei n” $.371/5-12-1967. Percebi que todos os outros autores que se referiam & “politica indigenista”, mesmo discordando de D. Ribeiro em outros aspectos de seu trabalho, reproduziam esta paste ficlmente. A{ esta a razio, critica talvez a prinefpio, Je primeira epigrafe deste livro: oé esti um tema nunea tea fnente problematizado. Um desses territ6rios onde a dife- fenga de opinigose calea pelo cer “partieipado” (do SPI, da FUNAT, da campanha contra a emancipagao dos indios em 1977/78, dos Jahbies para a constituinte de 1988), “com as ‘melhores intengGes”, escrito alguns textos que parecem pesquisa (mas néo passam de opiniao ilustrada por nomes ide destaque), aparccido na midia, integrade movimentos, grupos de apoio ete. Télo feito € se inserever na histétia enquanto autoridade, demonstrando que a razio as veres potica interessa, mais valendo os cemonstrativos da memé- fa. Talvez por isto ~e pela grande generalidade da forma,a0 universitéria no pais —a maioria dos cientistas sociais julgue que sobre indigenisino e poltica indigenista culo j8 foi dito Sendo gracluado em histéria ¢ tendo recebido, na €po- ca, alguns rudimentos de sociologia da produgao intelec- 20 tual, pensei que 0 testo explicaya um proceso social abran- yente de largas porgées do pais, implicando em vidas de fndios ¢ nao fdios. simples vontade politica de um grupo minoritério, dotado de “idéias humanicirias”, nao bastaria para tanto. Faltava nele uma real dimensio sécdo-légica, soando como uma defesa pertinaz ¢ intransigence da aedo estatiza~ da, em um aparelho tinico, capaz de supostamente atingir ‘e monopolizaro contato com todas as populagdes indigenas € todo 0 tertit6rio brasileiro. Nem monopélio nem. abran- _géncia jamais se deram. Partindo para investigaro autor eo texto, verifiquei que sua primeira publicagao se dera em 1962, quando D. Ribe! ro era Chefe da Casa Civil do Governo Goulart, no contur- bada period as vésperas do golpe de 1964. Naqueles anos: © SPI vivia sob um ataque feroz por conta de inémeras dentincias graves de omisstio c aré mesmo de massacres de Indios. O cexto de 1962, intitulado A politica ixdigenisia brasileira, era uma publicaczo oficial do Ministério da Agri- cultura, a0 qual o SPI estava subordinado, Continha uma terceina parte que fora dissolvida em pedagos 20 longo do livro de 1970, praticamente desaparecendo. Nela, Ribeiro expunha um projeto de remodelagao do SPI em bases concordes com as diretrizes eientificas da década de 50. De fato, durante os primeiros anos 60, diversos etnélo- spans dochamado Comselha Nacional de Proteedo aos Indios (criado em 1939 para nortear, cm tese, a ago do SPL ~ ver Freire, 1990), planejaram iniimeros itens do que deveria ser uma politica indigenista ciensificamente orientada, ¢ escoimada de uma presenga militar mais massiva, Isto ‘explicaria varias caracteristicas da primeira gestao da FU- NAI, de 1967 2 1969, sob a presidéncia do civil José de Queiroz Campos. A FUNAL em vio recairia sob 0 controle autoritério das esferas militares yoltadas para 0 controle gcopolitico do rerritérie nacional. O fato de Ribeiro ser um antropélogo obscurecera, em 1970, o dado de que ele jamais tmoestigara a estratura ¢ a histiria do SPI. Realizata, isto sim, como um participante a ee ee ae ee interessado, uma funcionério do Servigo, a sua defisa (legitimma, ‘mas falseadora de muitos fatos). Era uma somada de pasias no jogo politico, ¢ ndo produgdo de conhecimento sob os canones cientfficos. Tratava-se, pois, de apenas mais uma hisrbria oficial de um 6rg%o priblico, como hoje sei que quase todas as agén- cias estatais no Brasil dispoem, formal ou informalmente. Isto é, seja sob a forma escrita (cm boletins, revistas livros, ou em registros como rapes, filmes cxc., produzidos de dentro, com critérios de verdade internos a instituigao) seja sob a forma oral, veicula-se neles um “foleore native”, transmissivel dos mais antigos funciondrios aos mais novos: em ocasides reguladas (reunides, cursos, treinamentos ete.) ou cotidianas (em conversas, mexericos, dentro ¢ fora do espaco de trabalhio). Estes dois modos costurnam se com- plementar e superpor, se reforgar ou se desautorizar, con- forme as posigées dentro da instituigao. Afnal, embora muitas vezes a ideologia interna de aparclhos governamen- tais ou ndo-governamentais os retratem enquanto entida- des sem conilitos internos — “grandes familias” -, na realidade estas instituigdes sto virtualmente campos de dis- ‘puta, ema que Variados interesses esto cm joz0, todas de- tendo constrigdes hierirquicas, « numerosos atritos. Muitas destas (es)histérias tém algum tipo de ligago com deman- das de verbas ou de autonomia institucional, ou ainda de controle monopélico de um conjunto de fungées. No mesmo ano em que realizei estas investigagées (1980/81) escrevi o verbete FUNAI do Diciondria histérico- bingrdfico brasileiro (Lima, 1985b). Deparei-me com um varia semelhante: sequer uma “hist6ria interra” como ade Ribeiro era localizavel. Os poucos que escreveram sobre a FUNAI reproduziam um trecho pequeno da “Introdugao” de Os éndins ea civilizacdo, em que Ribeiro opunha os “bons militares” dos tempos de Rondon aos “novos militares” criadores da FUNAI, os mesmos que o ecnduziram ao exilio, momento poreleantevisto como o in{cio de “tempos ainda mais adversos”. Com eles estar-se-ia inaugurando uma “nova politica de cunho empresarial” (Ribeiro, 1977: 6). 22. Dito de outro modo, face &s atrocidades advindss para ‘6s fadias com uma polttica de integrarto nacional ~ como a concebida pelo modelo militar, c cmpreendida na ‘Transa- mazéniea = uns poucos trabalhos debatiam se a FUNAL era ou no uma derdeira co SPI e de Rondon. O nome de Candido Rondon era utilizado na époeaem muitas disputas pr6 ¢ contra as orientagdes militares (Lima, 1985b). Estes textos pouco nos ajucamaentenderas razdes de sua cria ou seu funcionamento, ‘Constatei, pois, a reproduce monoeérdia de uma tinica voz acerca do surgimento dos paderes do Estado republi- eano face a0s indios. Seu tema basico era a defesa do ‘monopélio estatal das agbes sobre os povos indigenas ¢ da manutengio de seu cardter fuelar: Peiceber esse vazio preenchido de certezas e falta de feflexdo me estimulou a prosseguir. ‘Tentei apreender a historicidade da versio de Ribeiro e de sua matriz discur- siva, averiguando sua posigio nos embates politicos de periodos distintos, a luz dos critérios de verdade que os métodos das ciéncias sociais podem nortear Dai surgiu que 0 texto de Ribciro publicado em 1962 estava, em grande parte, pronto ji em relatérios que ele escreveraem 1953/54, enquanto ctnélogo da sera de estudos: do SPL Buscava defender 0 SPI de um projeto de lei propondo sua extingao ¢ o loteamento das terras indigenas, fracionando-as pelo tortuoso critério de equivaléncia entre tamanho de rea € familia nuclear (Freire, 1990). Lendo estes trabalhos de Ribeiro ~muito diferentes da etnologia por ele produzids naquela década~ vi que cita- vam outros relatérios de diretores do SPI, produzidos em siruagdes muito semelhantes, numa cadcia reporedy {910 Desde seu inicio o Serva como er charade pelos seus primeitos integrantes, produzira uma associagio toral- mente descabida: a de que proteger os tndias cra 0 mesmo que defender a existéncia de um tinico Srgda burocrdtico espe- cialmente dedicado a tal tarefa, dando-se & idéia de protegio contetidos muito especificos (Lima, 1987; 19894). 23 Procurei, enao, entender a cria¢ao do SPI, quais scus ‘objetivos, sob que conjuntura histérica surgira, os seus clementos componentes, que oédigos 0 informavam, como definiam a sua populagao-alvo — os frdias, O resultado foi minha dissertagio de mestrado em antropologia social (Lima, 19852), defendidaem sctembro de 1985, no Progra- ma de P6s-Graduagao em Antropologia Social/Museu Na- cional/UFRJ. O curso da investigagio de mestrado conduziu as per- gruntas sobre a pratica da protq:fo fraternal. Seu desdobra- mento trouxe-me o presente texto. Ainerdrio Este livro é uma versio abreviada e revista de minha tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pés-Gra- duagao em antropologia sccial (PPGAS)/Museu Nacional — UFRY, defendidaem 26 de agosto de 1992, sob aorientagio do professor Luiz de Castro Faria (Lima, 1992b). Ao pro- fessor Castro Faria sou grato pelo esforgo que tem feito cm ee bee eee te is a0 nome do mestre nem ans seus ensinamentos. Este livro seria muito melhor tivesse eu chegado perto deles. Do mesmo modo, devo registrar a riqueza c gencrosidade das observagdes feitas pela banca examinadora da tese, com- posta pelos professores Dr’ Giralda Seyferth, Dr. Roberto Gardoso de Oliveira, Dr. Moacir Palmeira e Dr. Ocivio Velho. Integré-las aqui teria sido possivel se fosse feito outro trabalho, Estario, com cer:eza, presentes nos resultados da pesquisa que ora desenvolvo sobre a FUNAL. Aproveito para registrar a importineia da formago que recebi de meus professores, hoje colegas, no PPGAS/UFRI, ¢ do convivio intelectual propiciado por este grupo de pesquisadores. Gostaria de agradecer também a Tania Liicia Ferreira da Silva, Maria Isabel W. Moreira ¢ Lourdes Cristina Aratijo Coimbra que, de diversos modos, tornam nosso trabalho. possivel. Isabel Cristina de Sousa Mello digitou as altera- Ges que realizei no texto criginal, ¢ também aelaagradego. 24 Apresentada a0 concurso de melhor tese de doutorado de 1993 promovido pela Associag3o Nacional de Pés-Gra- uagio e Pesquisa em Ciéneias Sociais (ANPOCS), a tese foi agraciada com uma mengao aonrosa. A ANPOCS agra- dego através do Dr. José Sérgio Leite Lopes, entio membro deseu “Comité Académico” c, em 1992, também chefe do Departamento de Antropologiz do Museu Nacional, a0 qual sou professor de etnologia. Os estudos que redundariam em Lima, 1992b inicia- ram-se ainda em 1985, antes mesmo da defesa de minha dissertagao de mestrado, O meio foi o projeto de pesquisa “As fronteiras da nagdo. O Servigo de Prategio aos Indios, 1910-1930" encaminhaclo, naquele ano, a0 Concurso AN POCS/FORD na categoria “A”, pam realizagio conjunta com Jurandyr C.F Leite. Pensandoo SPI enquanto um dos aparelhos de poder estatizados capazes de intervie “crian- do” 0 movimento de fronteira, tencionivamos resgatar a constituigao da priitica da provego fraternal, tomando como base 0 perfodo em que o Servigo integrava o Ministério da Agricultura, Tncistria e Comércio (MAIC), Do referido proje- f0, para o qual coligiram informagées, em diferentes mo- mentos, Luiz César B. Gongalves Faria, Marcos Oxivio Bezerra ¢ Sérgio Ricardo Rodrigues Castilho, resultaram produtos importantes. Além de dois relatorios de pesquisa (Lima & Leite, 1986a c 1987) e um texto espectfico (Leite, 1987), produ. ziu-se uma comunicayau av GT, “Historia Indigena ¢ do Indigenisma”, coordenado na época pela De Maria Manuela neiro da Cunha, na Reunido da ABA (Lima & Leite, 1986b), em Curitiba/1986, Nela se apontava para a percep. $0 do ser indigena como rransitério enquanto matriz orde~ nadora da prética protecionista, Devo ressaltar 0 papel fundamental de Jurandyr Leite na escrita desse texto e no destaque dessa idéia. O projeto gerou, também, um mate- rial empirico significativamente expressivo, base do aqui utilizado, Em primeiro lugar pudemos entrar em contato mais direto com o acervo do Setor de Documentagio (SEDOC) do Museu do IndioyFUNAL. Nele se acha, sob a forma de 25 microfilmes, boa parte do material remanescente da docu- mentagio inrerna do SPI, tanto de sua diretoria, quanto das inspetorias regionais, Também consultamos a Biblioteca Cindido Rondon, do mesmo Museu. Oacetvo do SEDOG, existente em c6pia ne Centro de Documentagtio da FUNAI, em Brasilia, © no Museu Pac rense Emilio Géeldi, foi coletado em distintas unidades regionais ¢ locais da FUNAI, a0 longo dos anos 70, tendo, desde entdo, passado por um trabalho de selegao ¢ ordena- mento para microfilmagem, A equipe tealizadora da tarefa foi orientada a iclentificar um tipo de irformacao chamada de emoligica, isto €, aquela que conferisse referencias a0s povos nativos sob a eurela do SPI. De fato, confundiv-sc, 500 0 rétulo efnaldgico, material de cunho administrativo sobre a intervengdo tutelar e nido dadcs sobre © modo de vida indigena em seu relacionamentocom oaparelho. Aum outro tipo chamaram de adminisiratica, Sob esta termino~ logia foram colocadas (¢ devolvidas as unidades de origem dos documentos, nas quais se encontravam em grande precariedade) todos as informagies referentes ao funciona- mento financeiro, contabil e de pessoa’ do Servira. A sepa raga, além de dificil de ser empreendida paraa maior parte dos casos, € arbitriria ¢ miope do pontode vista intelectual, deixando ao estudioso da administracav ~c ao etndlogo que ‘entende os povos nacivos dentro de uma perspectiva rela- cional —Jacunas sociolégicas fundamentais. Pior, porém, foram as condicdes coneretas de consulta a documentagan. Bxistia, & & ia, 2 Gpoca ¢ até 1992, apenas uma listagem getal que discriminava, clos mais de quatrocentos microfilmes, aqueles referentes a material da diretria, 05 felativos a documentos de cada insperzria, ow da Consissia Rondon, do Conselho Nacional de Proteyio aos Indios, mapas do GNPI e do Servicn Geogrfiea do Rxército, da Fundagéo Brasil Gentral (em puste cedidos pela extinta SUDECO para microfilmagem pela FUNAL, por forga da importineia Heste processo 4 histéria dos poyos indigenas do nordeste do Mato Grosso, Goiiis ¢ sul do Pard). Isto nao significa que: ecessariamente se possa reconheccr, na ordem ¢ numera- {20 dos filmes, critérios cronalégicos ou quaisquer outros 26 que presidiram a forma de organizagio dos papéis quando, filmados. Se me for dado o direito de ser jncoso, diria que © cspirito desbravador dos “sertanistas de escritério” se apossou do acervo, transformancio-o, para seu géudio, cm uma verdadeira selva: o pesquisador cra forgado a coneeber verdadeiras expedicaes de reconhecimento do terreno — isto 6, passar filme filme, fotograma afotograma, até conseguir estabelecer um mapa minima dos documentos a serem abordados (copiadas, reproduzidos, ou fichaclos). Para con seguirlo a condigao sine gua non & ter perguntas seguras, colocar problemas capazes de guiar o investigadlor para fora da floresta Foi necessério organizar indices, quadros de referencia dos microfilmes e seus conteridos, sem 0 que seria impos- sivel operat: 0 SEDOC € mais facilmente acessivel aquele que procura povos especificos em jnspetorias determinadas. Pela consulta ao quiadro n® 3 deste trabalho, c pelo canhe- cimento que detenho dos documentos da diretoria, 0 mais ficil acesso nao deve inspitara total confiangana localizagio dos documentos pussiveis de consulta e necessicios A pes quisa. Esta desordem seria de facil restauragao se uma ficha que informasse um banco de dados computadorizado fo: aplicada sobre as filmes, trabalho que em 1992 suber estar sendo realizado, para meu alivio, por uma equipe do MPEG. Se foi concluido munca soube nem tive acesso a ele, Isto nio parece ter ocorrido a sucessivas gestées da presidéncia da FUNAT algumas do proprio MI, notiveis pelo seu desinteresse por um acervo tio precioso. Devo destacar, porém, que essa documentagzo € muitas vezes também o ponto de partida de processus de identificagio € delimitagao de tervas indigenas (Oliveira F* & Almeida, 1989; Lima, 1989b), nao sendo de mero interesse eientifico, Some-se a isto o péssimo estado dos filmes para con- sulta, a precariedade das mquinas de leitura € reprodugio, muitas vezes quebradas, sem as limpadas ou o caro papel para cdpias elecrostiticas (na maior parte das veres tive que adquiri-lo pessoalmente) ¢ se terd umm quadro que perdurou por todos 0s anos em que a pesquisa se desenvolveu na institui¢3o, isto é com intervalos, de 1985 a 1991, Seme- a Ihantes problemas x6 foram contomaveis pela boa vontade de alguns poucos funciondrios do Museu que resistiram as milriplas presses para que 0 acervo fosse extinto ou inte- gralmente transferido para Brasilia. Nao nego a necessidade de concentrar documentos em {inico centro, Mas, pela importincia que tais dados tém para ‘08 préprios povos nativos, dispersos pelo territério do pats com dificuldades de locomogio, bem como pelas incerte~ zas da burocracia estatal, abri-lo repassando-o quet a cen- tros de pesquisa € universidades — como foi feito para o MPEG ~, quer a organizagbes ndo-governamentais, seria um servigo de grande valia para 0 conjunto dos interessa- dos, indigenas ou no. A todos do Museu do Indio que foram capazes de investir na importdncia politica e intclec- tual deste acervo, sem os quis teria sido impossivel realizar © presente trabalho, devo agradecer na pessoa do prof. Garlos Augusto da Rocha Freire, autor de uma dissertagao de mestrado apresentada no PPGAS (1990) que pude acompanhar informalmente, com a qual dialogarei ao longo deste estudo, O mesmo nao se pode dizer, porém, da biblioteca do MI, em que foram compulsados os textos publicados pelo SPI, na sua maioria republicados na década de 1940 pelo CNPI, como parte das Publicagtes da Gomissiio Rondon. Nela, também, levantamos parte dos Relatérios do Ministério da Agricultura, Inddstria e Comércio (RMAIC), fonte bisica para o periodo dos anos 1910-1930, de algumas teses mapas, Aré 1991 as colegdes da biblioteca eram muito bem organizadas, de facil acesso e enorme utilidade. ‘Os RMAIC merecem uma mengio especial. Em Lima & Leite, 1986a, mostrou-se que os relatérias constituiam-se em um certo género de cexto, explorando-se suas earacte- risticas, ¢ ressaltando-se sua fungao de justificativa do pe- dido de orgamento para 0 ano seguinte ao retratado. Isto implicaria numa superestimagio sistematica das atividades desenvolvidas, abrigando 0 pesquisador a relativizar suas informagées, Para tanto crici a grade de variiveis na qual foi inserida a grande maioria das informagoes deles oriun- das, compondo um banco por posto indigena paca o texrit6- 28 io brasileiro no perfodo de 1911-1930, apresentado como anexo n° 3 em Lima, 1992b. Tive em mente as caractcris- teas deste género quando selecionei as citagdes que fiz dos RMAIC neste livro. No meu entendimento documentos como 0s RMAIC sio, além de género, pegas da encenagio los poderes estatizados, material cenografico.O Museu do Indio nto dispoe da colegio completa dos RMAIG, tendo sido necessirio recorrerao acervo do. BINAGRI (Biblioteca Nacional de Agricultura), centro de documentagio do Mi- nistério da Agricultura em Brasilia, para complementé-la, ainda assim tendo deixado anos por screm encontrados’, ,_Lidei, na maior parte da pesquisa, com documentos dos filmes designados como da diresaria do SPI, isto 6, 0s papéis que se salvaram do grande inctndio do Miniséria da Agri- portadoras de esséncias culeucaisimutfveis, imunes as 110 Gangas impostas por diferentes configuragaes de, poder cettituradas a0 longo do tempo: € um suposto deste traba- Tho que a diferentes sicuagies historias (Oliveira F™ 19684 ee ay onrespondem distintos modes de organizagae social 2 diferentes tradigdes elaboradas pelos diversos povos i Sigenas. Os nativos devem também a fatores advindos a ‘rusraezo eom o concjuistadar muitas das especifiidades fque os earacrerizam a.caua momento da sua trajetéria D's ti siea, Tal pesspeetiva foi desenvolvida cm carder pionciro, Hleneto dos quadros da produgao ernol6gica no Brasil sobse- eel pot Jono Pacheco de Oliveira (Oliveira F 1977; 1980: 1988), guardando continuidades ¢ descontinuldades om deestudos do chamaclo contato interéinico passiveis de Sere o ecidos aos erabathos de Darcy Ribeiro, Eduardo Galvao fteberto Cardoso de Oliveira. A hisroricidade das pope fagbes indigenas passaria, de meados da década de 1980 para ef, a.ser tematizada de modo mais freatiente pela Pe plogia brasileira. Apesar de alguns textos ji divulgados (Farage, 1991 p.ex.), seus resultados si, ainda, pouco co nhecidos. Criticando variados itens dos distintos aspectos sobre a temiaen, de Malinowski até os autores brasileiros COLL VEIRA F®, 1988; 24-59) Pacheco de Oliveira propos. thartir de Shromel (1964a © b)¢ Gluckman (1960; 1963: 1987) verar 6 eonflito como forma estruturante fundament#l 42 iprenigto, Tal perspectiva, zo propor uma exitica radicat & wagdes onde a idéia de equilbio esttien acha-se implica ex. certas utlizagdes da nogio de ston sca = pode sev aproximada, pelo resgate da dimensio histories em de implies, deestudos que prociram ulscapassar a imitaghes impostas por andlises de curto prazo com que as tors ari gtopiens rataram os processes de formagdo de Estados re rugdes, Elias destaca (1972: 4-5) a imporeincia da dogo de teorias de desenvolvimento a longo prize na 40 ultrapassagem de limites desta natureza. Na mesma linha de preocupages devem ser arrolados 05 textos reunidos em volume editado por Charles Tilly (1975), que destaca a consideragio da experiéncia histériea como ponso mi- nimo de stas intexpcetagées pata processos de mudanga politica. Assumindo a mesma perspectiva que destaca tonflito, valetia a pena, no entanto, ressalvar certas espe- cificidades deste livro, Nao é uma ctnografia no sentido: classico, pois nZo versa sobre 2 interagio entre povos indfgenas especificos e sociedade(s) colonizadora(s); faz de processos dispostos no tempo sua matéria basiea, ¢ se acha melhor enquadrado dentre os estudos centrados no gue se acantonou na literatura s6cio-antropol6gica, como dimensao Aistérica, ie. estudos de descnvolvimento so- cial a longo prazo, ainda que nao sendo um tao longo perfodo o aqui tratado. ‘A idéia € adequada 2 reflesio sobre © proceso de surgimento de variadas unidades sociais, tanto nativas como das que se identificariam (ou seriam identificadas) por uma suposta continuidade, permeada por transforma (Ges, e guardando as diferengas entre as maltiplas formas inceratias delas geradoras, com as organizagdes que im- plementaram a conquista ¢ a colonizagao do espa grafico ¢ dos poros totalizados por wu Erneta havionalidade como o Brasil. As possibilidades formais apresentaclas por Elias poderiam ser efetivamente maré- ria de uma pesquisa sociogenética. Afastando o parti pris da unidade imposto pela historiografia mais tradicional talvez sc Pode SHPO historica de unidades sociais varindas, Poderlamos ver a sociogénese da diver- ET secat anne camente diferenciados, como a distintas formas de campesinato, pasando, claro, pela referéncia aos inéme- ros povos indigenas destruidos na lura com as unidades soci conquistadoras, bem comoaqueles chamados “ar redias” que ainda nao se submereram is presentes formas de conquista e agio estatizada sobre populagh trios, Reconhecer a diversidade de experiéncies hist6ri- cas permitiria pensar nos dispositivos de integragao ¢ nos modos de aniquilamenta da diferenga. 4 Poder-se-ia assim ver emergir 05 processos pelos quais, se elabora um Estado nacional, cabendo questionar se, pensado dentro de certos paramettos, seria possivel consi- Gerar 0 pats Brasil como explicével por esta categoria de Estado, assimilivel aum dado momento histérico das ideo- logias nacionais da Europa O:idental ~ hoje em intenso proceso de mudanga, com a integragao curopéia ¢ os mi tiplos conflitos “nacionais” ~€ aos Estados Unidos. Como fundamento desse tipo de enfoque esta a preocupagio em. transcender as explicagoes dadas teleologicamente, através de entidades supra-histéricas como “O Estado”, “A Jereja" ete, € uma forma de ver a sociedade mais proxima de um precipitado fluido ¢ instivel 4c redes sociais do que de armaduras rigidas, estanquizadas ¢ em equilfbrio’. Retomando, 0 intento deste livro é abordar cortos dis- positivos da integragio no sentido de Elias (1972; 1989 1991) de popullagdes que, destrufdas, submetidas através da guerra, ov tendo sido componentes de variados sistemas € modes de dominago hegemonizados pelo conquistador passaram a ser objeto do poder tutelar. Esta forma de poder de Estado pode ser vista come modo de integragao territo- riale politica, operida desde um aparelho estatizado, parte do conjunto de redes sociais ¢ relagBes componentes de um do o qual, em diferentes momentos do tempo e impli- cando miiltiplas relagdes entre distintos segmentos sociais (logo configuragées diferenciadas), tem procurado se re- presentar como nacional. ‘Tendo como signo deste ideirio momentos privilegiados come o da Independéncia formal face 4 Corea portuguesa, ou a Proclamagio da Republica, conta em stias bases com a predominio politico em aparén- cia sempre redivivo, de diferentes grupos de grandes pro- dlutores agricios, que tem mentido, por meios variados © como instrumentos de sua corstrugdo, os recursos a violén- cia fisica, as formas de coergio =xtra-cconGmices aoteabalho © 05 meios de organizagio essencialmente autoritérios, em dctrimento de recursos de solidariedadec de uma extensio real dos dircitos politicos”. Sob os quadros acima imoressionisticamente delinea- dos, trata-se aqui de assumir como viés interpretativo que 42 © poder tutelar & uma forma reelaborada de uma guerra, ou, de maneira muito mais especifica, do que se pode construit como um modelo formal de uma das formas de relaciona- Mentos possivel entre um “cu” ¢ um “outro” afascados por uma alteridade (econ6mica, politica, simbélica e espacial) radical, isto €, a congivista, cujos prinefpios primeiros se Fepetem ~ como toda a repetigdo, de forma diferenciada — cada pacificagao, 43 1 A CONQUISTA COMO MODALIDADE DE GUERRA A idéia de um poder tutelar pode ser melhor definida remetendo-a is indagages de Michel Foucault relativas as formas de individualizagao assujeitamento que se gover- namentalizam progcessivamente com 2 formagio do Estado moderno’, Fugindo aos modelos economicista ¢ jusnatura- lista na indagagao sobre o poder e negando a eficicia do questionamento sobre a sua natureza (Foucault, 19792: 158; 1979b: 174-175; 1983: 208-210), propde colocar como ‘metas para a pesquisa a capacidade de formular respostas a perguntas sobre o exercicio do poder: scus mecanismos, efeitos, relagdes, ¢ técnicas (ou tecnologias), em suma, o como do poder (Foucault, 1983: 216-217). Tal cstratégia de investigae%o conduziria o autor, num primeiro momento de sua pesquisa, a afirmar que “... o poder € cssencialmente repressive... é 0 que reprime @ natureza, os individuos, 05 instintos, uma classe” (1979b: 175), ou grupos étnicos, poder-se-ia ineluis, Por outro lado, ao reprimir confere uma dada morfologia € implica certos modos gramaticais de insurgéncia. Conhecé-los seria, pois, tratar dos mecanismos de repressao (as tecnologias do poder), 20 menos como via de acesso. Foueaulk sugere, para tanto, pensar o poder “... em tetmos de combate, de confronto e de guerra... guerra prolongada por outros meios” (1979b: 176), invertendo a célebre idéia de Clausewitz. Retira dat trés implicagées especialmente significativas para a construgao da idéia de poder ttelar. \ primeira € a de que as relagdes de poder atuais remontam historicamente A guerra, ¢ que o poder politico, ao se fazer a paz, reatualiza a guerra sob diferentes modos. Conseqtientemente —e esta é a segunda constara- go — deve-se interpretar as lutas politicas como formas de continuidade e de deslocamento da guctra. Porfim,oautor sugere que a guerta deve ser o tiltimo juiz do eonflito'.. sobre 0 relaci namento entre populacdes nativas ¢ conquistadores é gran- de, sobretudo quando se considera até hoje os inad quadamente historias processos de destruigao, submis- io, alianga © recomposicdo destes povos, desde os primei- ros contatos com os variados instrumentos de conquista portuguesa, até aos mais recentes periodos de expansio nacional sobre o territ6rio, Isto signifiea substicuir tanto os cufemismos que a historiogeafia oficial consteuiu em tomo da “cordialidade” do portugués, a “fabula das trés ragas”, a supressio dos confliros, docilizadora de uma histéria cons- truida sobre a mais ardua exploragao dos conquistados, quanto a lgica interpretativa e a ret6rica pautadas sob ccertas nogdes de colonizagio ou de fronteira, das quais as idéias de conflito e guerra podem sersempre afastadas, Para tanto deye-se, de inicio, reconhecer que tais fendmenos sio produgdes da ordem do poder estatal, logo da administracao pblica (Velho, 1976; Oliveira, 1979), nunca espontineos, quer pela sua direta instituigao, como na modermamente chamada “colonizacto dirigida”, quer pela inviabilidade das condigdes de reprodugio de certos segmentos sociais aurnomos a ordem estatal, como na dita “expansao cam- ponesa”. E freqiiente verem-se nas andlises fundadas sobre estes conccitosa denegayau da caisténcia e da autonomia polftiea de populagocs (nativas ou ndo) ocupantes dos espagos submetidos a esses processos de integragio a unidades sociais mais abrangentes, stia insereao passando por recur- sos de violéncia poder, sob a gestao intencional de organizagbes administrativas criadas ou eonvertidas a esse fim. Tomar 0 angulo da preexisténcia, senhoridade da ocu- pagdo c da autonomia de uma das populagdes indigenas ‘ou no face & intervengio dos gestores de processos de expansiio geogrifico-administrativa enquanto o privilegia- do para refletirimplica também na tenrativa de obter outros efeitos de visibilidade, levando adiante, mas de forma Auutilidade destas idéias para a refles 45 circunscrita a0 objeto proposto — logo sem intengées inter- pretativas mais globalizantes - a idéia de Oravio Velho (1976: 14) de que a fronteira (aqui vista sob a forma da conqeista) & uma “.. posigio privilegiada, de onde] lan 08 olhos sobre o dese volvimento brasileiro.” E a presenga do outro, como categoria ¢ realidade habitante dos espagos a serem assenhoreados por um mo- vimento de expansio de um eujnés ~o elemento l6gico a detonar um universo de possibilidades relacionais, nos pla- nos social e simbélica, melhor caracterizvel por ima mo- dalidade de guerra, ¢ como fundamento de certas formas de poder que a sucecem, passivel de ser elaborado e inti- tulado de conguitta. Enquanto modelo analitico, 0 que chamo de compuista pretende gozarde certas similieucies a idéia de um diagrama ‘ou esquema de podr, como Deleuze (1987:59-61) destaca ‘numa leitura de Foucault, mas mantém vinculos tentativa- mente préximos com aspectos da sociologia formal de Georg Simmel no tangente ao conflito como fato positive ¢ fundador de interagao (Simmel, 19645) e,em especial, com os estudos relativos sos apectos quantitativos de grupo: sobretudo do texto chamado “A triade” (Simmel, 1964a: 145-169). Da mesina naneira se beneficia (€ espera que 0 leitor reconhega como incorporados a ele) da leitura de textos variados de Max Weber, destacando-se os relativos 0s tipos de dominagao, as comunidades étnicas ¢ comuni- dades politicas como apresentados em Economia e sociedade. Outra pesquisa de significativa valia para investigagao des- telivro €a de Tzvetan Todorov (1988) sobre as relagées de alteridade, do angulo da semiologia, ou methor, o estudo das formas de comunicagao entre entes diferenciados. A cles ¢ aos estudos de Moses Finley (1984; 1985; 1986; 1988), cm particular 4 sua preocupagao com a centrilidade da guerra na Antigiiidade clissica, muito devem as reflexdes adiante expostas. A guerra nao 6, pois, s6 uma forma de destruir ¢ instaurar catéstrofes, mas via constitutiva de novas relagdes sociais, base de miiltiplos sistemas de alianga c antagonis- mo. Trata-se, pois, de ultrapassar o binémio destmigio/re~ 46 sisténeia, muitas vezes subjacente aos intentos que se filiam & idéia de uma “histéria dos vencidos” (Wachtel, 1976; Oliva DE Coll, 1986), abandonando as narrativas de feicos herdicos das partes em confronto, Por outro lado, se toda guetra necessita de augtitios ¢ informagao (Lonis, 1979: 43-94; Clausewitz, 1985: 162-163, p. ex.), aconguista, a0 envolver um grau de alteridade muito mais radical, se faz. possivel também por procedimentos interpretativos, re- presentativos, ¢ improvisados. A aparente dicotomia apre- sentada em abordagens da ciéncia politica, entre os aspectos simbdlicos (cénicos, sobretudo) do poder e linhas {eGricas ealcadas na relagio guerta-poder (como ateoriados jogos), qui dissolvida, pretende-se, de fato, que esteja reconciliada, A idéia de conquista supde uma certa disposigao de linhas de forga entre um cufnds € um outro radicalmente distinto, ao ponto de se duvidar de sua humanidade, osci- lando das relagdes de violencia (caracteristicas de toda guerra) ds relagdes de poder, ¢ implica numa certs forma de busca de sentidos alheios nos atos alhcios, tarefa essencial- mente semidtica.* As empresas conquistadoras envolvem uma grande e necessitria agilidade frente ao desconhecido humano e seu nicho geogrifico de modo a daras respostas adequadas & obtengao dos fins pretendidos. Por processos essencialmente criativos, ainda que fora do estoque ima; nario original do conquistador, age-se, se necessirio, ence- nando aquilo em que nao se acredita: 0 ponto de pa fundamental ¢ o operadot da conguista € a propria consci cia da alteridade e a capacidade de utiliza-la instrumental- mente para prever os pasos ¢ manipuler o inimigo. Distingue-se, destarte, da descoberra, ato que se dirige 3 natureza, a espagos desconhecidos, onde o encontro entre seres humanos nio 6 0 centro mesmo da empresa. ‘Todorov (1988: 183-164) propde ver a problematica da alteridade ao menos em trés planos: Primeiramente, um julgamentode valor (um plano axiol6gi- 0): 0 outro é bom ou man, gosta dele ou no gosto dele, ou, ‘como se diria na época, me é igual ou me € inferior (pois, evidentemente, na maior parte do tempo, sou bom e tenho Er auto-estima...). Hem segundo lugar, aagio de aproximagio ou de distanciamenco em relagdo ap outro (um plano praxio~ légico); adoto os valores do outs, identifico-me a cle; ou nto assimilo 0 outro, impondo-the minha propria imagem; ‘entre a submissao do outro hé ainda um tereciro termo, que €aneutralidade, ouindiferenga, Em terceito lugas, conhego (ou ignoro a identidade do outro (seria o plano epistémico); aqui mio hd, evidentemente, nenhum absoluto, mas uma ‘eradagao infinita entre os estados de conhecimento inferio- res e superiores. (.). 0 conhecimento nfo implica o amor, nem o inverso: & nenhum dos dois iniplica ou € implicado pela identificagio com o outro. Conquistar, amar e conhecer so comportamen- tos auténomos ¢, de certo modo, elementares (descobrir esti mais relacionaco a terra do que aos homens; quanto a Estes movimentos face ao outro podem ser vistos nos escritos ¢ acos de jesuftas atuantes no Brasil no perfodo colonial, nos dos capuchinhos no século passado ¢, alte~ rados alguns termos, esto plenamente adequados ~ é 0 que sc vai demonstrar ~ as claboragdes de funcionérios do Serviga de Protegdo aos Indios: ali onde 0 termo conguista esté banido instaura-se um complexo de agdes sobre s, de forgas sobre forgas, em suma de relacionamen- tos de poder, cujo plano, do ponto de vista das técnicas, hd muito se encontra delineado, podendo ser lido, do ponto de vista critico e para o periodo colonial, em estu- dos como os de Neves (1978; 1984), dentre outros. Se a violencia fisica esta afastada, os processos em jogo na guerra podem se transformar para permanecer, compon- do diferentes aspectos de um poder que envolve sempre 08 termos presentes ra conquisa: um outro humano que € desconhecido em maior ou menor grau, associado aum espago geogréfico intocado pelo conquistador, sobre 0 qual pretende atuar; uma organizacio militar (onde de- ‘vem ser inclufdos os especialistas no deslinde/atribuigao de significagdes inauditas) com diferentes tipos de dirc- go centralizada a definir © representar a unidade da ‘empresa, muitas vezes parcialmente ficticia; o(s) povo(s) de origem da organizagzo. Ou, formulando de outro modo: 1) organizagao militar

Você também pode gostar