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ADAPTAGOES CINEMATOGRAFICAS E LITERATURA DE ENTRETENIMENTO: um olhar sobre as aventuras de super- herdis ARANHA, Gléucio Doutor, pesquisador associado no Instituto de Ciéncias Cognitivas (ICC); glaucioaranhazyahoo.com.br. MOREIRA, Mariana Graduanda do Curso de Publicidade, Instituto de Artes e Comunicagio Social (IACS) da Universidade Federal Fluminense (UFF) ARAUJO, Paula Graduanda do Curso de Publicidade, Instituto de Artes ¢ Comunicagio Social (IACS) da Universidade Federal Fluminense (UF), RESUNO ‘As Histérias em Quadrinhos representa um importante segmento de Literatura de Entretenimento que pracisa ser cuidadosamente observado elas instituicdes academicas. Esta forma de narrativ popular. tem, nas ultimas. décadas, contribuido para a consolidacio de um subgenera cinematografico: as aventuras de super-hersis. 0 presente artigo propée uma reflado sobre a emergéncia deste Subgenero, apontando algumas das tensées que se estabelecem no processo de construcio do mesmo entre a producto da adaptacéo (treducio) e a comunidade de leitores, Palavras-chave: Literatura de Entretenimento. Cinema Historias em Quadrinhos, RANI, Gléucto; MOREIRA, Mariana; ARAWUO, Paula 1 INTRODUGAO O cinema e as Historias em Quadrinhos (HQs) séo veiculos de comunicacio e informacdo que se desenvolveram em um mesmo contexto histérico, no qual emergia o paradigma da cultura de massa e da reprodutibitidade técnica da arte (BENJAMIN, 1981). E possivel verificar, recentemente, um intenso processo de convergéncia entra estas midias, em especial, no tocante a producio de adaptacdes cinematogréficas das aventuras de super-herdts Vale lembrar que @ concepcéo de HQ, enquanto arte seqiiencial propriamente dita, tal como a conhecemos hoje (EISNER, 2001; McCLOUD, 1995), composta por texto escrito e icones dentro de uma peculiar gramatica narrativa, tem historicamente pouco tempo, sendo amplamente aceito o final do século XIX como ponto de consolidacdo de um formato mais préximo ao atual. Will Eisner (2001, p. 13) destaca que a quadrinizacao de narrativas comeca a ganhar evidéncia no século XVIII, apés uma suspensao, por volta do século XVI, dos experimentos medievais voltados para composicao verbo-icénica, Através de panfletos € publicacdes populares comecam a circular alguns textos quadrinisticos que mais tarde chegartam a forma atual (revista em quadrinhos, graphic novels). Nao sem resisténcia, as HQs foram reconhecidas como objeto pertencente a0 Universo do campo literario. Umberto Eco (2000) desempenha, neste aspecto, um papel central 20 reconhecer este modelo como legitima forma de Literatura de Entretenimento (Literatura de Massa"). Nas dltimas décadas, este modelo tem se tornado uma rica fonte de adaptacées para 0 cinema Ha que se destacar, entretanto, que a producéo de adaptacées literarias para o cinema no , em si, uma “novidade”, tanto em relacio a obras da Literatura de Proposta (canénicas), quanto de obras de Literatura de Entretenimento, especialmente os best-sellers. Como destaca Jorge Furtado (2003): 4s relacées entre o cinema e a literatura so antigas @ nem sempre amistosas. Antes da invencdo do direito autoral, em 1910, 05 Cineastas simplesmente rousavam histérias dos livros. Em 1911, Gabriele d’Annunzio vendeu toda a sua obra, ja escrita e futura, para Luma empresa cinematografica italiana, Desde 8, milhares de livros Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1,0. 2 . 84101, janeiro/junho 2008, 86 Adaptagies einem erficase literatura de entreteniment tém sido adaptados para o cinema. Nota-se, no entanto, com 0 crescente niimero de adaptacées das HQs, 0 proceso de consolidacéo de um subgénero cinematografico: as aventuras de super- heréis. Embora seja possivel citar algumas poucas e esporadicas adaptacées anteriores, no se podia entao falar em consolidacdo de um subgénero. Filmes como Flash Gordon’, de 1936, e Super-Homem’, de 1978, representam experiéncias bastante diversas das atuais: 0 primeiro era uma compilacdo de episédios e, © segundo, um filme inspirado no personagem, mas sem qualquer vinculo com os fatos e cronologia das narrativas das HQs, no se tratando de uma adaptacdo em si. Algo que se destaca, hoje, € 0 fato de que as atuais adaptacdes esto inseridas em um contexto que dialoga com muito mais proximidade do publico leitor de quadrinhos. A ampliacao do numero de filmes contribui para a construcéo de uma comunidade de consumidores deste subgénero. Néo se trata mais de filmes dirigidos a espectadores eventuais e leigos, mas que trabalham proximos &s obras originais e seu universo de leitores, os quais também contribuem para o bom ou mau desempenho mercadologico das adaptacdes produzidas 2 partir de comunidades virtuais, fanzines, blogs, etc Objetiva-se neste artigo estabelecer uma reflexdo acerca da emergéncia das aventuras de super-herdis como subgénero, consolidado a partir do fluxo cada vez maior das adaptacdes de HQs. Para tanto, slo levantadas algumas das questées pertinentes as tensdes que se estabelecem neste proceso. De um lado, a comunidade de leitores-espectadores e, de outro, os percalcos, ganhos e perdas na traducdo intersuportes. Privilegia-se um breve mapeamento das principals tendéncias & contornes que vem tomando tais adaptacdes, que ja sinalizam a formacao de seus canones. 2. CONSTRUCAO HISTORICA DO SUBGENERO AVENTURA DE SUPER-HEROIS A primeira aproximacao dos quadrinhos em relacao ao cinema aconteceu em 1936 com Flash Gordon tomando a grande tela. Nos anos 80, a ligac3o entre cinema e quadrinhos se intensificou, passando a ser melhor percebida pelo publico, devido ao surgimento de grandes producdes baseadas em famosos personagens de HQs. No entanto, somente no século XXI as adaptacdes das narrativas impressas para o cinema tomaram grandes proporcées @ anualmente so lancados diversos filmes com a mesma orientacio tematica, 0 que permite hoje falar em consolidacio de um novo subgénero das narrativas de aventura no cinema. Obviamente, essas adaptacdes visam uma ampliacdo do piiblico consumidor de Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1,0. 2 . 84101, janeiro/junho 2008, RANI, Gléucto; MOREIRA, Mariana; ARAWUO, Paula filmes, atingindo novos nichos e criando - ou recriando - um produto que jé mostrava seu potencial lucrative com as eventuais experiéncias anteriores. As produtoras apostam na massa de espectadores sem perder de vista a légica do mercado. Ocorre, todavia, que duas tendéncias vém marcando tais adaptacdes com distintas respostas de puiblico. De um lado, uma perspectiva que considera as peculiaridades da obra de origem e seus leitores; de outro, uma tendéncia mais comercial que adultera substancialmente a obra adaptada negligenciando a comunidade de espectadores: leitores. A partir de resultados pretiminares, utilizando a observacdo participativa em comunidades virtuais, féruns de discussao’, blogs, revistas especializadas, etc., foi possivel notar que, entre debates e questionamentos de muitos dos espectadores- leitores, as primeiras tém obtido uma maior valoracdo, sendo possivel observar processo de formacéo de um canone deste subgénero, tais como 300° € Sin City’. Enuanto, a segunda tendéncia marca uma passagem efémera pelo circuito comercial um rapide esmaecimento de tais produces. Do ponto de vista da recepcdo, € possivel observar que este publico de espectador-leitor chega a aceitar a necessidade de algumas modificacdes, levando em consideracdo a independéncia entre as midias, ou seja, encaram muitas vezes uma adaptacio dos HQs como uma obra auténoma inspirada na publicaco, mas paralela a esta: uma versio. Apesar disto, nota-se, por outro lado, a intensa resisténcia a idéia de aque os personagens sejam descaracterizados. Uma possivel explicacdo para este tipo de resposta dos espectadores-leitores residiria no fato de que na propria industria dos ‘quadrinhes slo freqlientes as edigées de histérias alternativas & cronologia das revistas de linha: historias do tipo “o que aconteceria se... realidade alternativa”. Porém, mesmo nestes casos, nota-se que nas publicacées de historias paralelas ¢ mantida a fidelidade as caracteristicas essenciais dos personagens (arquétipo psicolégico, modus operandi, etc.), elementos estes contra os quais aquele publico se levanta no caso de significativas alteracées. ou “a historia de... em uma Quanto as adaptacdes menos centradas na vinculacéo a obra de origem e sem maior preocupacéo com as especificidades da linguagem quadrinistica e de seu publico, nota-se uma forte resisténcia &s mesmas com significative fluxo de informacées com o intuito de formar opiniées contrarias, uma nitida resisténcia que assume a forma de contrapropaganda. Fica claro que este tipo de adaptacdo se vale apenas dos elementos tematicos mais consolidados e testados na tradicao quadrinistica para atingir um novo publico. Investe, assim, em titulos de grande circulacéo, tais como Homem-Aranha, Hulk @ X-Men, e nos arquétipos que revelaram mais empatia com o publico, no caso de equipes de super-herdis, no havendo fidelidade ao background das narrativas originais. Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1, n. 20, p. 84-101, janeiro/junho 2009. Adaptagies einem erficase literatura de entreteniment De fato, 2 grande maioria das obras adaptadas para o cinema por este viés reinventa as narrativas das HQs, buscando nestas apenas os elementos alegéricos ou seu status comercial. Brian McFarlane (1996) entende que 0 publico pode aceitar alguma parcela de “violac&o” do original em favor do atendimento de sua expectativa em relacSo a uma realizacao imagética de como aquela obra poderia ser representada. Pensamento este ‘que pode ser complementado com 0 de Morris Beja (1979) no sentido de que em prot de um desejo de ampliacao da visualidade da obra, o leitor ¢ capaz de negociar os limites do original. Tais alteracdes nas “fronteiras”, contudo, néo importam de modo nenhum em uma aceitabilidade da alteracao total do “territério”. Inobstante tais consideracdes, 0 boom das adaptacdes tem gerado grandes sucessos de bitheteria e feito com que aumentem cada vez mais as apostas no potencial lucrative do mercado cinematogréfico, consolidando um subgénero dos filmes de aventura: as aventuras de super-herdis. A alianca entre comics e cinema passou a ser percebida como algo mercadologicamente viavel a partir do final da década de 70, com a bem sucedida producéo de Super-Homem, de 1978. 0 sucesso de puiblico fot estrondoso. Outro grande sucesso surgiu no final de década de 80 com Batman’, de 1989, dando origem a uma série de filmes do mesmo personagem ao longo dos anos 90 e, até recentemente, em 2005, com o lancamento de Batman Begins®. Em 2002, a franquia © Homem-Aranha® despertou novamente o mercado para o grande potencial comercial das adaptacdes de HQs ao arrecadar 115 milhdes de dolares somente em seu fim-de-semana de estréia. Séo ainda exemplos da consolidacio deste subgénero no mercado cinematografico as producées X-Men'® (2000), Hulk"" (2003), 0 Demolidor'? (2003), Mulher Gato" (2004), Heliboy'* (2004), Constantine'® (2005), O Quarteto Fantdstico'* (2005), dentre outras. ‘As HQs constituem um modelo narrativo para consumo em massa, estando inseridas na categoria que se convencionou chamar de Literatura de Entretenimento, Embora Eisner (2001, 2005) tenha sido 0 pioneiro na avaliacéo do potencial literario dos quadrinhos, investigando a gramética narrativa desta forma, foi, sem sombra de diivida, Umberto Eco (2000) quem trouxe para o &mbito académico um othar mais, atento & potencialidade literéria deste canal. Eco destacou 0 forte apelo das HQs enquanto Literatura de Entretenimento: A civitizacdo de massa oferece-nos um exemplo evidente de rmitificacéo na producéo dos mass media e, em particular, na industria das comic strips, as “estérias em quadrinhos”: [...] aqui Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1,0. 2 . 84101, janeiro/junho 2008, RANI, Gléucto; MOREIRA, Mariana; ARAWUO, Paula assistimos & participecio popular de um repertério mitolégico claramante instituido de cima, iste 4, criado por uma industria Jornalistica, porém particularmente sensivel aos caprichos do seu publica, cuja axigéncia precisa enfrentar (ECO, 2000, p. 244) Enquanto se observa a desvinculacao de algumas adaptacdes em relacao a5 obras originais, nota-se em algumas producdes uma proposta mais voltada nao apenas para a transposicéo do roteiro original, mas também para o uso da prépria linguagem dos quadrinhos, promovendo uma verdadeira interseccio de linguagens. 0 filme Dick Tracy” & um bom exemplo deste tipo de projeto de exploracdo estética da imbricaglo das Hs € do cinema, levando as telas ndo s6 0 modelo narrative, mas também as informacées imagéticas dos quadrinhos, através do colorido € da maquiagem, os quais so também parte do préprio contetdo original. Neste tipo de produco, observa-se um significativo incremento da experiéncia estética e das efetivas contribuicdes desta convergéncia nao apenas do ponto de vista mercadolégico, mas acima disto como o desenvolvimento de novos recursos para a ampliacéo da expressdo cinematografica, ‘Assim como € corrente @ distingio da producdo cinematografica entre o chamado cinema comercial ¢ cinema autoral. O universo dos quadrinhos ocidentats é muitas vezes separado em dois grandes grupos: 0s quadrinhos de linha em geral, denominados genericamente de comics as graphic novels. Além da questo da forma ‘em sentido estrito, hd também uma distinco na concepedo de contetido entre estes dots modelos. Em sentido estrito, os comics so publicados no formato de brochura, enquanto as graphic novels assumem, via de regra, 0 formato album ou encadernacées do tipo livre, Em sentido amplo, 0s comics retinem uma gama de histérias seriadas de aventuras com temas simples ¢ estrutura narrativa de pouca complexidade, seguindo os classicos paradigmas da literatura de entretenimento por se dirigir a um publico amplo heterogéneo. Ja 0 termo graphic novel (novela grafica), cunhado por Eisner (2001), descreve um modelo mais “autoral”, mais proximo da chamada de Literatura de Proposta (ECO, 2000), contando uma histéria mais longa, apresentando-se, normalmente, fechada em um tinico volume ou publicada em uma seriaco curta, com papel especial e edicéo de luxo. Dirigi-se, via de regra, a um publico adulto. Seus temas so mais experimentais e suas abordagens @ priori buscam a inovacio da exposicio. Em 1989, Eisner refletia sobre as possibilidades artisticas das graphic novels, como uma revitalizacao do modelo quadrinistico que apontava para pretensdes mais artisticas: Em anos recentes, um novo horizonte se abriu com 0 surgimento das Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1,0. 2 . 84101, janeiro/junho 2008, Adaptagies einem erficase literatura de entreteniment graphic novel, uma forma de revista em quadrinhos, ainda em estado fembrionério de desenvolvimento, que vam sendo foco de grande interesse, [...] © futuro da graphic novel encontrarse na escolha de tamas importantes e na inovacdo da exposicéo. Dado que, apasar da proliferacdo da tecnologia eletrénica, @ pagina impressa_comum ‘mantera o seu lugar no futuro imediato, parece que atrair um piblico mais refinado esta na mao de artistas e escritores sérios de {quadrinhos dispostos a correr o risco do ensaio e erro (EISNER, 2001, p. 138). Comparando as producées cinematograficas baseadas em comics e aquelas adaptadas de graphic novels é possivel observar, até o presente, que as graphic novels tem viabilizado o surgimento de adaptagSes mais ricas em termos artisticos, tais como 300" e Sin City". Nestes filmes, observa-se 0 uso de angulos, formas e cores idénticas ‘205 dos quadrinhos aproximando a experiéncia de leitura da HQ e do cinema. Nota-se estes casos uma experiéncia estética significativamente diferente das adaptacées dos comics. Sin City, por exemplo, foi uma das primeiras HQs a ser totalmente filmada em tela verde, com cenérios, personagens e outros aspectos inseridos posteriormente através da tecnologia digital com o intuito de chegar a um resultado mais préximo néo ‘apenas da narrativa impressa, mas também das informacées icénicas contidas naquele formato. E importante notar que nestes casos, ¢ levado em consideraco na adaptacéo no apenas o enredo € 0 contetido verbal, mas também as informacdes icénicas. A riqueza do processo de adaptacio se apéie justamente na sensibilidade de que os quadrinhos nao podem ser vistos apenas como um tema e seu conteuido verbal, sendo 0 proceso de combinacio verbo-icénica parte essencial do contetide quadrinistico, que no deveria ser negligenciado no processo de traduco intersuportes. Neste proceso, a arte seqlencial e 0 cinema passam a exercer mutua influéncia. A convergéncia destas duas linguagens ¢ muito positiva de ambos os lados. Para o primeiro, a dilatacdo do pliblico tem permitido uma recuperacio de um mercado aque vinha decaindo desde finais dos anos 80. Fruto deste alargamento tem sido também 2 producio de novos titulos e novos modelos. Os mangés (arte seqllencial japonesa) ‘tomaram de assalto a cena dos filmes de horror, dando novo félego para este segmento em producées como 0 Chamado”, 0 Grito’’ e outros, mostrando uma nova faceta das possibilidades de convergéncia. Cumpre observar que mangas e quadrinhos (comics) s8o formas muito assemelhadas, mas que guardam significativas diferencas, que por escaparem ao escopo do presente artigo, razéo pela qual enfatizamos apenas estes Ultimos. Tal fato nao afasta, entretanto, a percepcio de que a adaptacio dos mangas, enquanto arte segliencial, tem contribuido para 0 aumento nos investimentos da industria editorial dos quadrinhos no ocidente. Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1,0. 2 . 84101, janeiro/junho 2008, a” RANI, Gléucto; MOREIRA, Mariana; ARAWUO, Paula J8 no tocante & industria cinematogréfica, as adaptagdes de Hs contribuem para a ampliacao do préprio leque tematico do género aventura. Este se abre para representacdes do imaginario do grande publico que escapam aquelas centradas em luta (artes marciais, pusilistas ¢ herdis buscadores do tipo “duro de matar”), bem como da fantasia medieval (Senhor dos Anéis, Eragon, etc.). A Aventura de Super-heréis, ‘ocupa um espaco intermediario entre a fantasia medieval e a ficcéo cientifica, pondo no centro dos enredos paladinos mutantes (X-men) ou cientificamente transformados ‘em herdis super-humanos (Homem-Aranha, Quarteto Fantéstico), quer de modo solitério ou em grupo. De certo modo, também 0 cinema pode ser encarado como uma expressao de Arte Seqiiencial, num plano bem diverso do trabalhado por Eisner (2001). Isto por ser uma arte que trabalha com um principio préximo das HQs, qual seja, quadros em movimento. Entretanto, enquanto nos quadrinhos o leitor participa intensamente da construcéo da historia, preenchendo as lacunas de informaco representadas pela sarjeta (espacos entre quadros), no cinema, esta transicéo ja € feita pelo projetor como efeito da aceleraco dos quadros. Nas HQs, muitas vezes a riqueza de uma narrativa pode estar intimamente vinculada 8s formas de transicao de contetido, demandando esforcos diferenciados dos leitores, de acordo com a sensaco que se deseja atribuir a determinado quadro. Por exemplo, nas transicdes aspecto-para- aspecto” (MCLOUD, 1995) temos uma alta demanda cognitiva, visto que os quadros apresentam fracées de uma dada cena que precisam ser organizadas pelo gesto de leitura; enquanto o cinema por sua natureza ira trabalhar predominantemente com transices momento-para-momento” em alta velocidade, ou seja, a solucio interpretativa demandada entre dois quadros no cinema é tao diminuta, em relaco aos quadrinhos, que exige do leitor um menor “preenchimento”. Isto se dé justamente pela necessidade de niimero bem maior de quadros com o fim de gerar a sensacio de movimento, enquanto os quadrinhos trabalham com movimentos subjetivos indicados por convencées gréficas. No cinema, 0 espectador assiste @ obra com uma atitude cognitiva menos participativa, mas nem por isto passiva. Este tipo de proximidade, no tocante & natureza de arte seqlléncia do cinema, abre para uma série de possibilidades de miituo acréscimo para ambas as midias a partir da convergéncia. 0 préprio Eisner a0 descrever a gramética quadrinistica recorre, por exemplo, 8 noco de enquadramento do cinema. Longe de uma cooperacio meramente mercadolégica, é possivel perceber uma rica possibitidade de acréscimos técnicos nesta aproximacio das duas mic Cortes, etipses de tempo, montagem paralela séo todos recursos de cinema, utilizados pelos quadrinhos, porém a partir de imagens Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1, n. 20, p. 84-101, janeiro/junho 2009. Adaptagies einem erficase literatura de entreteniment cestaticas. Essa é a diferenca mais evidente: enquanto a imagem do cinema aprasenta movimento, © quadrinho sugere e simula movimento através de codigos pictéricos estabelecidos durante seu ppercurso histérico narrativo. Ao aprofundar a questo se pode dizer, [até mesmo, que no ha movimento nem mesmo no cinema, que este movimento @ apenas uma ilusio provocada pela velocidade das imagens imposta pela mecinica, pela mediacéo da camera na filmagem e do projetor na exibicao (MUANIS, 2005). ‘A ordem em que as informacdes sio liberadas na literatura e no cinema sao bastante diferentes. Nos quadrinhos, o leitor tem a possibilidade de voltar e de estabelecer 0 seu préprio ritmo de leitura e o tempo que quiser observar cada quadro, enquanto 0 cinema é, ainda, marcado por um tempo de apreensao das informacdes definido exclusivamente pela direcdo do filme. Este tipo de diferenca marca um dos pontos interessantes trabalhados em 300, filme baseado em uma graphic novel de Frank Miller’, que manteve nao so 0 estilo, mas também as transicdes e combinacdes caracteristicas da obra adaptada. Neste aspecto, 300 pode ser considerado um exemplo de traducao intersuportes. No filme, foram mantidos quase todos os enquadramentos do original, bem como a caracterizacio dos personagens, seus dialogos, a luz, as cores, os cenérios, enfim, a estética da HQ, ampliando-a com a exploracéo dos recursos Proprios da linguagem cinematografica que longe de se “submeter” a HQ agregou, sim, maior valor. Em 300, as alternancias na velocidade de exposicao das cenas, por exemplo, objetivam transporter para a tela a experiéncia do tempo por enquadramento na leitura de quadrinhos. Projeto semethante de adaptacao do trabalho com a temporalidade das HQs para 0 cinema pode ser detectado também em Matrix”. Embora nao se trate de uma adaptacio de um quadrinho 4 publicado, explicam os autores e diretores andy e Larry Wachowski, no documentario The Matrix Revised ™, a deliberada proposta da exploragio em seu filme deste recurso comum nas HQs. = Wachowski: Quadrinhos s8o narrativas aréficas em que se pode congelar um momento e segurar uma imagem. Por outro lado, ndo ¢& para fazer isto em um filme. Nés tentamos. + John Gaeta”: © resultado imediato do passado deles com quadrinhos foram storyboards bem mais dramaticos, nos quais 05 momentos selecionagos, 05 quadras desenhados, muitas vezes, s8o 0s mats enlouguecedores, 05 mais emocionantes. + Lorenzo Di Bonaventura: A nocéo de storyboard © 0 que os Wachowski fazem no s80 duas coisas compativeis. Aquile sfo pinturas, sto desenhos de mestre. Esta nocio diferenciada apontada por Bonaventura vem justamente da experiéncia com 0 trabatho em HQs, sendo os storyboards de Matrix no meros esbocos Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1,0. 2 . 84101, janeiro/junho 2008, RANI, Gléucto; MOREIRA, Mariana; ARAWUO, Paula de cenas, mas a concepeéo prévia do filme produzida pela ética de desenhistas de HQs, 10 caso, Geof Darrow e Steve Skroce. Nas HQs, 0 tamanho do desenho do quadro e sua ordenacéo apontam, dentre outras caracteristicas, © tempo de exposicdo da cena, ter em uma uinica pagina um quadro que ocupa a metade desta e na parte debaixo dois quadros menores importa um. tempo de exposicao diferenciado. Assim, 0 leitor se detém no quadro maior por um tempo mais extenso do que nos dois menores, absorvendo com mais calma a informacio pictérica nele contida. Ao ler uma histéria em quadrinhos, se tenho interesse em compresnder a historia ¢ néo apenas admirar cada quadro, ha um certo limite de tempo de observacdo a ser respeitado. Néo posto demorar-me, digamos, um dia inteiro epreciando um 6 tenguadramento, sob pena de nio mais entender a historia (a lacuna a ser preenchida entre o ultimo quadro dasta pégina e o primeiro a révime vai se tomar cada vez maior e mais difcultoso seu Preenchimento). Esse ¢ 0 tempo extrinseco do quadrinho, que nfo pode ser definido precisamente, no ¢ marcado pelo tempo , Acesso em 22/07/06. ECO, Umberto. Apocalipticos e integrados. Série Debates 19. Sko Paulo: Perspectiva, 2000, EISNER, Will, Quadrinhos e Arte Sequiencial. So Paulo: Martins Fontes, 2001 (original de 1999). EISNER, Wil, Narrativas Graficas. Sao Paulo: Martins Fontes, 2005 (original de 1996). Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1,0. 2 . 84101, janeiro/junho 2008,

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