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Coordenadar do Conselho Editorial de Educagio ‘Marcos Cezar de Freitas Consetho Eaitorial de Educapio José Cerchi Fusari Mazcos Antonio Loviosi Magli André Pedro Goergen ‘Terezinha Azerédo Rios Valdemar Sguissarall Vitor Henrique Paro Catalogacio na Publicacéo (CIP) silelra do Liveo, SP, Brasil) ‘Dados internacionais (camara ‘Loursiro, Carlos Frederico B. Educacio ambiental: questbes de vida / Carlos Frederico B. Loureiro, — Sao Paulo : Cortez, 2019. ibliografi BBN 978 85249-27204 1, Educagio ambiental 2. Edueagio - Sociologia 3. Meio ambiente 4, Prticaseducacionais 5, Professoces- Formacéo profisional 6. Questoes L Titulo. 1928284 Indices para catélogosistemitico: 1. Bdveagio ambiental :Formacio do sujeito ecoldgico: Feologia humana 3042 Telanda Rodrigues Biode- Bibliotecdria - CRB-8/10014 cpp.s042 Carlos Frederico B. Loureiro EDUCACAO AMBIENTAL QUESTOES DE VIDA ‘Sao Paulo - SP 2019 serio Sia Qeura SUMARIO Prefécio.. 13 BOAS-VINDAS, BOA LEITURAL 19 A organizacéo. 24 O titulo.. 29 A perspectiva te6rica critica 32 A questao ambiental no Brasil contemporineo... 36 MOMENTO I. Nao ha modelo pronto! O didlogo.. Método: uma questo 87 Atividade fim ou atividade meio’ 2 Arte como manifestacéo politica 66 Comunicagao popula: 70 Teatro do oprimido. a Povos tradicionais como sujeitos prioritérios 73 Tradicionalidade. 78 Ancestralidade. 87 2 CARLOS FREDERICO B, LOUREIRO MOMENTO TL. 7 m1 Questo ambiental no capitalismo...... 93 Questdes ontolégicas para pensar a educagao ambiental critica 103 MOMENTO IIL oe 13 Sobre o género (do relato autobiogrAfico) mnnennnenmne 14 Primeiras sensibilidades, primeiras posicées... . 116 ‘Tornando-se educador earsronenionnmee ZL Das favelas & Rio-92... rnmnsiinccieg TAB Das ONGs ao Servico Social para demarcar 0 campo critic . 137 Consolidando 0 campo critico nas politicas puiblicas...... 141 Consolicando conceitualmente 0 campo critico.. 153 Reflexes sobre © momento atual . 169 Palavras Finais.. : wo 175 Referéncias. PREFACIO este livro, Carlos Frederico B. Loureiro conta sua histria de militancia, que faz a educagéo ambiental acontecer a partir da luta de povos por um mundo mais justo, menos destrutivo, para além da expropriacao do capital. Nao é possfvel compreen- der a educac&o ambiental critica sem ler a vasta produgio te6rica do autor, mas este livro causa admiracéo porque congrega, com. © dito em forma de sintese, 0 que antes nio foi dito, que ficava escondido. Neste livro, Fred abre seu mundo e nos conta e res- ponde a quase todas as perguntas que certamente ouviu durante seus anos de militante, professor, educador ambiental, sihing na familia kung fu, irm&o babalawo, filho de Africa, filho de mae ekedi Sinha e iyé Torody. E um livro em que o autor, lembrando-nos de Freire, mos- tra como se tornou coerente em suas praticas, que revelam suas utopias. E um livro que conversa com o leitor e a leitora, e quem conhece 0 autor — seja em seu cotidiano de subir os morros ca- riocas ¢ dialogar com os meninos e as meninas de rua da favela, seja em sua produgio teérica densa, profunda, critica —sabe que cle aprendeu nessa lida a conversar com quilombolas, pescadores artesanais, caigaras, agricultores e agricultoras familiares, tradi- des religiosas de matriz africana, 6 ‘CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO a natureza ndo-humana, transformada pelo trabalho humano, contempiada, admirada, ignorada, conhecida ou desconhecida? A QUESTAO AMBIENTAL NO Brasi CONTEMPORANEO Hi atualmente um conjunto enorme de dados, graficos, tabelas, e séries historicas com informagées sobre a inquietante velocidade em que estamos envenenandonossos corpos, destruin- do tios, ecossistemas e biomas, eliminando espécies que viveram sobrea Terra por muitos anos antes de nossa existéncia ematando pessoas de fome e doencas — mesmo em uma época que disp6e de meios técnicos ¢ produtividade para atender a todos. E fato que as informacées fruto de pesquisas sérias indicam ‘uma crescente piora na satide planetéria, com uma aceleragéo de perdas a partir do século XX, ainda que muitos olhem para isso como se nada estivesse acontecendo e busquem argumentos fantasiosos para justificar o injustificdvel. A negacao da realidade ‘ou a reproducio discursiva de verdades parciais é feita como mecanismo ideoldgico de legitimagao de praticas culturais € econémicas que asseguram privilégios de classe: o famoso “o outro desperdica e consome demais, eu nem tanto”. O conceito de habitus de Bourdieu é um recurso importante para entender o que estamos argumentando. Para 0 socidlogo, em uma sociedade de classes, h4 um conjunto de bens de consumo, escolhas e préticas culturais que so utilizados para classificar ¢ separar as pessoas a partir do que comem e vestem, em que se trabalha, qual religido se pratica, onde se desfruta de lazer etc. Portanto, o habitus de classe, ao fazer a distingio entre grupos em relagées desiguais, expressa a aceitacio social de certos es- tilos de vida vistos como ajustados & condic&o socioecondmica EDUCAGAO AMBIENTAL E ao lugar de tais grupos nas relagdes de produgao (Bourdieu, 1996). Resumidamente, consumir como consome, dissociando a demanda por recursos atiirais de seu modo de vida. Nao por acaso, tendem a atribuir os impactos ambientais a um genérico crescimento populacional, ‘como se todos tivessem a mesma intensidade de consumo e res- ponsabilidade na produgio. Tao grave quanto a reprodugdo dessas relagées sociais é a hegemonia de um discurso que diz que todos podem igual- mente alcangar esse patamar — destrutive — se houver esforgo pessoal, responsabilizando os individuos ¢ institucionalizando ‘a meritocracia (Loureiro; Barbosa; Zborowski, 2012). Tal légica argumentativa traz também uma ideologia do progresso e do desenvolvimento como etapas lineares a serem cumpridas su- cessivamente, associando bem-estar e qualidade de vida com 0 padréo das classes dominantes, que s6 existe por ser desigual a produgao ¢ distribuigao da riqueza social. Nao trago alguns desses niimeros porque a mudanga anual € grande, e um livro tem um tempo de interesse a leitura maior lo que isso, gerando defasagem rpida na informacéo disponibi lizada, De qualquer forma, hé instituicdes de pesquisa confidveis com informagées e andlises de facil acesso que reiteram 0 que coloquei, se é que alguém que trabalha com a questo ambiental tom alguma dtivida quanto a gravidade da crise ambiental societiria em que estamos mergulhados. 8 CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO No Brasil, o ritmo se acelerou desde 2016. Antes a situacdo ja estava longe de ser considerada satisfat6ria, mas é fato que vem se intensificando: o desmatamento, a flexibilizacao de direitos traba- Ihistas e sociais, a redugao e flexibilizaco de politicas ambientais e de normas da vigilancia sanitéria visando a liberagio do uso de venenos na agricultura e de empreendimentos de mineracao com impactos devastacores, além das constantes pressdes sobre as unidades de conservasao. Isso ocorre em um cenério de desin- dustrializag4o nacional, aumento da dependéncia dos mercados e tecnologias internacionais, privatizagio e transformagio de direitos em servicos privados sob a legitimagdo estatal. © que me interessa trazer neste momento é um pouco dos motivos histéricos que levaram a esses fenémenos, contextuali- zando 0 que ser trabalhado no que chamei de Momento I. Trago determinagSes gerais para além de acusagdes pessoais — por vezes necesséias, mas insuficientes — ou de anélises particularistas de fenémenos isolados que pouco ajudam ao ficarem em um plano de justa indignacdo ejulgamento moral quanto a constatacao dos efeitos do proceso destrutivo. ‘Dussel (1993), na obra classica 1492: O encobrimento do outro, destaca que o projeto de expansio do modelo eurocéntrico de civilizagéo se inicia ao final do século XV a partir de préticas econémicas e politicas decisivas para a consolidagio do capi- talismo como forma social dominante na Europa. Isso se deu com base em um dupla movimento. A expanséo do comércio e das trocas mercantis, a violenta apropriacéo privada das terras ea climinacao pela forga militar e de Estado de toda e qualquer outra forma de sociabilidade comunitarista, nao patriarcal e religiosamente plural que no fosse compativel com 0 projeto ‘burgués de sociedade na prépria Europa (Federici, 2017). Junto a esse movimento interno, o encobrimento, a subalternizacao ou mesmo a eliminagao de outras civilizagbes, povos e costumes nas Américas e posteriormente em Africa com a colonizacao, Isso se EDUCAGAO AMBIENTAL 3 deu por meio do saque brutal deseus saberes e riquezas naturais e do esmagamento de outras sociabilidadas que ndo fossem as impostas desde a Europa. A compreensio desse momento originério da civilizacao vigente é importante para evitar posigdes tedricas que tratam o eurocentrismo como uma localizacao fisica e homogénea, como se toda a Europa ou qualquer tradigao de Ié oriunda fosse ne- cessariamente burguesa, branca, crista e heteronormativa. Isso € uma simplificagéo que nao 86 perde as mediagdes sociais, como ignora processos histéricos de organizagio de paises, e as complexas relacées entre Estados-Nacio e classes na moder- nidade capitalista (Dussel, 2008). Cabe ressaltar que ao longo da hist6ria recente, no Brasil, fragSes das classes dominantes se beneficiaram largamente, em termos politicos e econémicos, das préticas oriundas desde os pafses centrais do capitalismo, assimilando e reproduzindo suas culturas. Atuam também, nessa dinémica, no cenério internacional na manutencao desse padrao societario, de diviséo internacional do trabalho e de acumulacio de capital. Uma das questées centrais da linha de argumentagao criti- ca aqui adotada € que o eurocentrismo colonial néo 6 apenas a afirmagao de um projeto societério criado na Europa que chega a outros lugares. E a materializagéo de um projeto civilizatério que, para ocorrer, exigiu obrigatoriamente a negagao do outro om qualquer lugar, uma vez que as relacdes sociais fundadas na produgao de mercadorias, na apropriagao privada, na exploragao do trabalho e na expropriacio de meios de vida — territérios, \écnicas, saberes, culturas etc. — exigem a universalizagéo de um padrao tinico de sociabilidade, seus valores e culturas. A opressio colonial origindria (pelo dominio politico, econd- mico e cultural desde o pais colonizador) e as préticas imperialistas aluais (por intermédio principalmente da ago monopolista em etores econdmicos eo avango do capital financeiro, assegurados 40 (CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO pelos Estados-Nago) tiveram suas consequéncias, como 0 ex- terminio de populagées originarias e negras, expropriadas em seus saberes e territérios e explorados em sua forga de trabalho. Geraram também a devastagéo de ecossistemas ¢ a ocupacao viulenta do campo, a expulsiio de popnilaciies para privatizacao de territ6rios e a extracio intensiva de recursos do solo ¢ do subsolo, dentre as consequéncias mais evidentes. Tais praticas asseguraram a acumulagio do capital originalmente na Europa ¢ sua reproduio expandida, com posterior ampliacao da forma social capitalista pelo mundo (Marx, 2013). ‘Assim, no capitalismo eurocéntrico materializado na Amé- rica Latina, a subordinagao de povos originarios, negtos e mu- Theres, a negacio de outras culturas e a demonizacio de outras religides eram e continuam sendo uma condi¢éo nao somente para a acumulacio de capital, mas para a normatizacao de uma sociabilidade que hoje se pretende natural ea tinica verdadeira diante de qualquer questionamento. E nessa condigao objetiva que nasce uma ideologia arraigada de superioridade racial, de caracteristicas pejorativas (indoléncia, preguica etc.) inatas a certas etnias, como forma de legitimagio das violéncias e das injusticas. " Pensando em termos ambientais nessas relagies de depen- ‘A vozaco exportadora presente em todos esses padres, ape~ nas atenuada na curta vida do padrio industrial, cria 0 cenério prop'cio para que o capital gere estruturas produtivas afastadas EDUCAGAO AMBIENTAL ‘a das necessidades da maioria da populagdo trabalhadora. Dessa ‘maneira, ao passo em que os trabalhadores nao tém um papel zelevante na realizagao dos bens produzidos pelas empresas de ponta na acumulacdo, o capital pode operar com maior folga para implementar as diversas formas de superexploragio, em particular © pagamento direto da forga de trabalho abaixo de seu valor e 0 prolongamento da jornada de trabalho. 0 segundo fator que fa vorece a superexploragdo esté constitufdo pelas perdas de valor sofridas pelo capitalismo dependente no mercado mundial, por ‘meio da troca desigual e de outros tipos de transferéncias.(..]Nada disso seria possivel se 0 capitalismo dependente nao gerasse mio de obra abundante, o que permite, como terceiro fator, a presenca de uma extensa superpopulagio relativa que no apenas resolve a substituigio imediata dos bragos esgotados prematuramente, mas também se constitui em uma forga que o capital emprega para pressionar as condigées salariaise de trabalho dos trabalhadores ativos. (Os6rio, 2018, p. 492) Na primeira década do século XXI, com o aumento do prego das commodities minerais no mercado internacional, o extrativismo se ampliou em territérios latino-americanos (Petras, 2014), crian- do a época uma ilusao de fortuna econdmica e possibilidade de fim da pobreza. Esse fendmeno, chamado neoextrativismo, é um. modelo de desenvolvimento baseado no crescimento econémico pela exportacao de produtos primérios e na apropriagio privada de recursos naturais, em cadeias produtivas pouco diversifica- dias e em uma insergio internacional subordinada. Para tanto, ‘egulados pela racionalidade do mercado. Chega-se ao cinismo 2 (CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO quando, em defesa das mineradoras, da indtistria petrolifera, do agronegécio e da pecuéria, jue o Brasil jidas e que os territ6rios in Jamentavel verifiear 0 quanto a ideia de que uma Area nao explorada economicamente é vista Consequentemente, o modelo extrativista exportador que se expandiu na América Latina, estruturado em torno dos grandes ‘empreendimentos, fortalece estratégias de controle dos territ6- rios e de acumulacao por espoliacao (Harvey, 2003), de roubo de terras e saberes, de extingio de direitos de grupos e povos que organizam suas vidas a partir de seus territ6rios e deles de- pendem para reproduzir seus modos de vida. A terra arrancada hrcenmi etemiade prado uta metabo ‘com a natureza. Assim, a escala de produgao neoextrativista, pouco diver- sificada, centralizada e controlada por um nemero reduzido de familias, ilustra as desigualdades ¢ injusticas ambientais’ nos 1. “Bntendemos por injuctga ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econdmico e socal, destinam a maior carga dos danos ambientais do ‘desenvolvimento’ populages de baie ronda, a02 grupos racials discriminados, 20% povos {étnicos tradicionais, aos baisros operdvios, as populagSes marginalizadas e vulnerives. Por justiga ambiental, o contréio, designamos 0 conjunto de principios e prticas que: 1) asseguram que nenhism grupo social, sja cle inico racial ou de clase, suporte uma parcela desproporcional das consequéncias ambientais negativas de operagSes ecandmicas, do decisBes de poiticas ede programas federas, estaduais, locals, assim como da austaci ‘ou omissio de tai poitcas;b) asseguram acesso justo e equitativo, dirtoe inieto, a recursos amblentals do pafs;c) asseguramn amplo acesso as informagées zelevantes sobre ‘uso dos reursos ambientais ea destinacSo de rejetos e localizagSo de fontes de riscos “ambientais, em como processos democriticos e participativos na definicio de politica, panos, programas e projetos que Ihes dizem respeito;d) favorecem a constituigio de sujetos coletives de direitos, movimentes socais © organizagées populares par serem EDUCAGAO AMBIENTAL a termos indicados por Acsekad (2012), e as contradigées desse padrao de desenvolvimento econémico que legitima a barbarie socioambiental em nome da “satide econdmica”, como se néo fosse possivel ter outras eccnomias, cfclicas e compativeis com as necessidades humanas e 2colégicas. ‘Uma das consequéncias disso tudo é a explosaio dos conili- tos ambientais, visiveis na dinamizacao das lutas pela terra, dos movimentos sociais indigenas, quilombolas, dos trabalhadores da pesca e camponeses, e o aparecimento de novas formas de mobilizagio e participacio cidada centradas na defesa dos bens naturais. Conforme Dussel (2015), essa dindmica recente nao esta descolada do proceso histérico colonial e de implementagao do capitalismo nas Américas, expressando a longa constituigao dos povos latino-americanos, quepor séculos criaram suas identidades ¢ formas de existir na luta contra 0 eurocentrismo. E isso nao se dam uma dindmica bindria,mas com hibridizagées, assimilagées, negagGes, superacdes variades de praticas econdmicas e culturais, que nos colocam o desafio de entender os povos tradicionais nao como algo idealizado ¢ “puro”, mas naquilo que sio em determinada sociedade e o que isso nos traz de aprendizado as lutas emancipatérias. Assim, 0 processo de embientalizacéo das lutas sociais e populares (Acselrad, 2010) inclui um vasto grupo de coletivos ¢ ‘modalidades de resisténcia diante da brutalidade das formas de expropriagao determinadas pelo sociometabolismo do capital. Esse grupo vai se configurando como uma rede mais ampla de rotagonistas:na construgio de modelossltemativos de desenvolvimento, que aseegurem «1 democratizagio do acesso aos recurs ambientas e a sustentabilidade do seu uso.” (Rede Brasileira de Justiga Ambiental, 2001). xemplo de inustigas ambientais >odem ser vistos no site do Mapa de cavflitos en ‘vlewndo injustign ambiental e Sade ne Bil, resultado de um projeto desenveolvido pela ulagto Oswald Crt (8/¢), “4 ‘CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO organizagées e movimentos (Costa; Loureiro, 2018). A unidade da diversidade de posicionamentos antissistémicos que se im- ‘pe no contexto atual de crise do capitalismo (Fontes; Miranda, 2014) firma intimeros desafios. Bles se referem organizagio e mobilizaggo social, mas também a uma educacao popular — e, diria, uma educagio ambiental critica — que crie um didlogo de saberes e conhecimentos cientificos caracterizado pela elabora- do de um saber independente dos discursos dominantes, pela valorizaggo dos saberes tradicionais — muitos deles de raizes indigenas-camponesas e negras — e das praticas dos trabalhado- res que estio pressionados pela escassez de trabalho assalariado ¢ pela precarizacao. Tal complexidade das praticas antissistémicas coloca como diretriz. para a educagio ambiental critica a aceitagdo de que os sujeitos com os quais se faz 0 processo educativo so os que es- tdo diretamente na base material das contradig6es sociais e que encarnam a negacéo do que esta posto como sociedade. £ com eles que aprendemos e produzimos alternativas concretas € nos constituimos como novos seres humanos. Pensando em termos pedagégicos, quando partimos de sujeitos e situacdes concretas, a dimensao conflitiva é tratada, tornando'se possivel compreender que os problemas e os temas ambientais ndo so neutros ou passiveis de resolugdo apenas pela inte-vencao técnica ou pelo desejo moral individual. A historicidade passa a ser constitutiva da atividade pedagégica, no cabendo mais como suficiente a constatacéo do problema ou © volunterismo para resolvé-lo, sendo vital a problematizacao que leve ao conhecimento da sua dinémica causal ¢ dos agentes sociais envolvidos. ‘Trater a conflitividade na educagio ambiental critica nao é reforcar posturas agressivas ou violentes. Uma coisa nao tem rela- co com ¢ outra. £ posstvel adotar estrategicamente posturas que partam de consensos ou praticas néo questiondveis — reuso de EDUCAGAO AMBIENTAL FA ‘igua, captagio de Agua de chuva, horta escolar, coleta seletiva de res{duos s6lidos, plantio de mudas etc. —ea0 mesmo tempo agir le modo muito menos tolerante e mais impositivo, ocasionando relagées violentas e opressoras. Uma coisa ¢ a postura diante do outro. Muito diferente disso é a abordagem pedagégica e o que se busca como finalidade educativa. Se a finalidade é a transfor- magio social — e, nesse movimento, a pessoal — através de um fazer educativo emancipador (Freire, 2016), nio se podem negar 0s conflitos que emergem de uma sociedade historicamente desi- gual nos usos e apropriagdes materiais e simbélicas da natureza. Isso politiza a educacao ambiental e exige posicionamento de seus sujeitos quanto a projetos de sociedade e de sustenta- bilidade almejados. A necessidade de se posicionar leva a uma pritica reflexiva sobre a realidade, 4 compreensao complexa das responsabilidades e direitos de individuos-grupos-classes, a uma prética que atue tanto no cotidiano quanto na organizagao politica para as lutas sociais. Esse posicionamento passa a ser orientador das praticas ceducativas dos movimentos sociais, das comunidades, de escolas, de politicas ptblicas ou da execugao de projetos no Ambito, por cexemplo, dos instrumentos da gestéo ambiental —licenciamento © gestdo de unidades de conservagio, entre outros. Cada um com sua especificidade, mas com premissas comuns compativeis com a perspectiva critica, E assim chegamos ao momento de pensar as praticas edu- cativas ambientais criticas com os povos tradicionais. 2 CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO ste momento foi concebido com o intuito de tratar teorica- mente de apenas dois pontos especificos, que julgo dos mais importantes no contexto em que vivemos no pais e na educacao ambiental. Reparem que ele funciona como um eixo de articula- do entre os momentos I e III, buscando trazer explicagées que {acilitem o entendimento de aspectos discorridos e trabalhados nesses outros momentos. Selecionei esses dois debates também por considerar que normalmente aparecem de modo implicito ou séo desconsidera- dos nos textos do campo ambiental, perdendo-se a oportunidade de elaborar um conhecimento mais maduro dos fundamentos daquilo que se quer fazer e de por que fazer. Aafnnidade afetiva e ideol6gica com um posicionamento na educacao ambiental é importante, mas néo € suficiente, principal- mente em tempos em que todo e qualquer pensamento critico ¢ hist6ricoé violentamente atacado por ideologias que se sustentam em argumentos frégeis inspirados no total desconhecimento das premissas de onde partem tais formulagées. Por outro lado, vejo como educadores ambientais, por vezes, mostram-se inseguros quando confrontados em suas posigées tebricas, o que explicita a necessidade de avancarmos sim nos estudos e pesquisas, aprimo- rando 0 processo educativo ambiental erftico no enfrentamento dos desafios societrios que estao colocados. Particularmente a segunda tematica — a ontolégica — foi escolhida por se referir ao dominio, ao fundamento do ser soci e, portanto, a como concebemos o ser humano, A discussie on tol6gica foi, ao longo do século XX, em muito desconsiderada, EDUCAGAO AMBIENTAL, cy alegando-se que é pura metafisica estabelecer propriedades gerais do ser abstratamente, o que levaria a especulacées arbitrérias ou a-uma teologia. ‘Oponto de partida para o pensamento critico ¢ outro. £ pen- sar no sentido do ser em suas determinagées hist6ricas, naquilo ‘que torna possiveis muiltiplas existéncias na materialidade. Afas- ta-se, assim, de categorias estritamente légicas e especulativas, que levam a um idealismo cue nao interesse & nossa perspectiva. Nao se esta buscando uma ontologia que ache o momento inicial localizado no tempo do que’é propriamente humano, mas o fun damento, algo a partir do qual o ser adquire existéncia, Esse é um tema espinhoso, que tratarei em seus elementos introdut6rios, contribuindo para a observancia da coeréncia en- tre 0 que se faz e 0 que se concebe como principios da educagéo ambiental critica, QUESTAO AMBIENTAL NO CAPITALISMO £ muito comum a difuséo de um discurso ambientalista que procura atribuir as causas da destruigdo ambiental ao ser humano, em sua genericidade. Nao € de hoje que me contraponho enfaticamente a esse tipo de posicionamento, e quem acompanha minhas publicacdes sabe que jé fiz contra-argumentacées varia~ das (entre outras, Loureiro, 2015). Desta vez, vou enfatizar um aspecto epistemolégico, para contribuir com o tipo de discussao feita ao longo do livro e para explicitar a importancia da questéo ontolégica que se segue. Do ponto de vista epistemolégico, é preciso lembrar que, para 0 pensamento critico, as analogias simples entre 0 que realizamos e produzimos em tempos hist6ricos distintos é 4 CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO anacrénico, e getam entendimentos que ignoram as mediagdes sociais especificas. Com isso, perde-se o principal: a capacidade de explicar algo tendo por fundamento o que The € proprio, suas determinacdes, 08 modos de existir em/de uma sociedade ¢ suas relagées cociais. Restmidamente, para as “escolas” criticas, ‘os conce-tos nao podem ser entendidos fora de seus momentos histéricos, da totalidade social em que se dao, como se fossem ideias independentes. i Conceitos nao sio estaticos, dando-se na materialidade. S40 esforcosde compreensio e definigao de algo e sua expresso pela Tinguagem. Um mesmo conceito pode apresentar-se de forma diferenc:ada em sociedades distintas ou em uma mesma socie- ‘dade em momentos hist6ricos diferentes (Loureiro; Viégas, 2013). Por exemplo, o dinheiro, expresso em moedas, depois em notas e hoje em némeros virtuais, é anterior ao capitalismo. Mas, nesta forma social, ganha em complexidade e, portanto, nao pode ser entendido e explicado como se estivéssemos em qualquer outra sociedade anterior. f um meio de troca que facilita o comércioe sua expanséo, é uma mercadoria nas trocas financeiras por intermédio do capital bancéirio, e é a forma por exceléncia de representagao do capital, que é uma relagio social que expressa 0 modo come se produz riqueza pela expropriagio e a propriedade privada. também uma referéncia material numérica do volume de capital produzido nos circuitos econémicos. Assim, o actimuilo de capital expresso em volume de dinheiro possuido privadamente se tora a condigéo para a reprodugdo social em suas formas desiguais: aquele que detém o dinheiro detém o controle da produgao, 2 que se produz e da politica de Estado. Se o dinheizo deixar de ser essa referéncia material, significa literalmente que o capitalis- ‘mo se alterou ou foi superado como sistema econdmico, Assim, dinheiro 36 pode ser entendido no capitalismo como categoria conceitual que comporta as relacdes entre os trés aspectos men- cionados: meio de troca, dinheiro-mercadoria ¢ representagio do EDUCAGAO AMBIENTAL, s capital. Fora disso, é uma abstrac&o conceitual que nao contribui nem para explicar 0 que o dinheiro éna contemporaneidade nem para a tomada de consciéncia critica sobre a dindmica societéria, Cabe lembrar que um movimento similar deve ser feito na anélise de fenémenos particulares. Nao adianta entender as deter- sminagées mais gerais do capitalismo se hac conseguirmos entrar naquelas que dao materialidade a cada fendmeno. O capitalismo na Alemanha no é 0 mesmo que o brasileiro ou norte-ameri- cano, e assim sucessivamente. £ preciso buscar a compreenséo de totalidades distintas, complexos relacionais que se inserem em complexos mais amplos ou que contém complexos menores, conforme a questio que nos colocamos. Brrazodvel tracar uma “histéria do dinheiro”, ndo no sentido linear de sucesso de fatos, mas no sentido de que o dinheiro que hoje existe decorre de relagdes econdmicas e fendmenos his- (6ricos que permitem estabelecer nexos entre o hoje e o passado, levando a um conceito simples — 0 mais abstrato posstvel. Para tanto, se parte do mais complexo para o simples, da sociedade dominante atual para outras, identificando as determinagées comuns aos diferentes modos de producao da vida e também aquilo que é especffico a cada um. Cabe destacar que esse modo «le operar o pensamento 6 exatamente inverso ao positivismo e 40 cartesianismo, que partem do simples para 0 complexo, em um entendimento linear e etapista da realidade, com énfase no que 6 comum, permitindo analogias que perdem historicidade. Assim, para 0 pensamento critico, o conceito simples nao é wuficiente, posto que exprime o que hé em comum. Metodologica- mente, portanto, é preciso mergulhar nas experiéncias pessoais «le grupos que permitem confrontar as teorias com 0 real vivido, chegando a um complexo de determinagdes que alteram quali- lativamente 0 conceito em sua particularidade (Dussel, 2012). Oconeeito como pura generalizacdo leva a naturalizacdes do que © histérico ou a um continuo no modo de conceber as sociedades. 9% ‘CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO O conceite como expresso do movimento de apreensio do real Ghist6rico e traz a mudanga e a transformagao como algo intrin- seco ao que existe. Dizer, portanto, que sempre se destruiu a natureza, presst- poe duas confusdes conceituais. A primeira é igualar a destrui- go com a transformagio da natureza para a criagio de meios de vida, afirmando que qualquer forma de uso é inerentemente prejudicial. A segunda é dar um contetido universal e atemporal& destruigéo, considerando-a similar em qualquer tempo hist6rico, favorecendo discursos fatalistas e imobilistas. Alguns exemplos so as frases “as pessoas sempre destrufram”, “a destruicao comecou com o primeiro humano na Terra”, e “no importa a sociedade,o problema sio as pessoas que destroem’”, que pensam as pessoas como se fossem independentes das sociedades pelas «quais se constituem. Desse modo, perde-sea capacidade basilar de responder: em qual sociedade e, consequentemente, que tipo de pessoa estabelece o que identificamas como destruicio ambiental? Perde-seigualmente a capacidade de estabelecer relages, nexos, explicagdes que permitam a problematizagio dos fenémenos, @ critica ac existente e a possibilidade de elaborar alternativas com referéncia & materialidade em que estamos imersos. Mance Engels (2007), entre outras obras, jé ressaltaram que o que precisa ser explicado néo € 0 fato de sermos natureza, mas o que levou a fratura metabélica sociedade-natureza, As ideologias que conccbem o ser humano separado da natureza, Por que essa anfase? Porque o que queriam destacar é exatamente a necessi- dade de por em questao o que € tinico e singular e diferencia um momento hist6rico de outro, uma forma social de outra, possibi- Jitando vislumbrar a criagio de alternativas praticas. Nao é a unidade da humanidade viva ¢ ativa com as condigoes naturais, inorgdnicas, da sua troca metabdlica com a natureza, © daf a sua apropriagio da natureza, que requer explicagio ou & 0 EDUCAGAO AMBIENTAL ° 7 resultado de um processo histérico, mas a separacio entre estas condigSes inorganicas da existéncia humana cesta existéncia ativa, uma separacdo que s6 ¢ completamente postulada na relagéo do trabalho assalariado com o capital (Marx, 2011, p. 648) __ Mais do que isso, 0 ato de conhecer, no pensamento ertico, no 6 uma descrigdo dos ferémenos e sua sistematizacéo, orga- nizando a realidade de determinada forma. Tampouco 6 a pie cago formal de um método que retine técnicas de inetd que nos levam ao conhecimento. £ muito mais. E 0 contents entre o conhecimento prévio que carregamos em nossas visdes de mundo e o real, movimentando-nos em direcdo a um novo conhecimento que nos mobilize para certos fins. E 0 movimento metédico de apreensao do real pela explicitacdo das relagdes que formam uma totalidade. B um complexo relacional que se torna compreensivel. O concreto € o concreto por ser a sintese de miiltiplas determi- nag6es, logo, unidade na diversidade. £ por isso que ele é para © pensamento um processo de sintese, um resultado, e nao um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e, portanto, igualmente o ponto de partida da observacao imediata € da representagéo (Marx, 2003, p. 248). Metodologicamente, buscar se aproximar do que se capta pelos sentidos significa fazer 0 movimento de desvelamento das relagSes constitutivas desse algo que se apresenta. Parece que 0 melhor método sera comesar pelo real e pelo con- ereto, que sio a condigao prévia, efetiva: assim, em economia politica, por exemplo, comegar-se-ia pela populacio, que é a base ‘©.0 sujeito do ato social de procugdo como um todo. No entanto, huma observagio atenta, apercebemo-nos de que hé aqui um erro. 8 CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO ‘A populagdo é uma abstrago se desprezarmos, por exemplo, as classes de que se compée. Por seu lado, essas classes sio uma palavia oca se ignorarmos os elementos em que tepousam, por ‘exemplo, 0 trabalho assalariado, 0 capital ete. Beoce oupdom a troca, a divisin do trabalho, os precos etc. O ca~ pital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem 0 valor, sem 0 dinheiro, sem o prego ete,, nao é nada. Assim, se comecdssemos pela populagio, terfamos uma visio castica do todo, e através de ‘uma determinagdo mais precisa, através de uma anélise, chega~ rfamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado passariamos a abstracGes cada vez mais delicadas até atingirmos determinagées mais simples. Partindo daqui, seria necessério caminhar no sentido contrério até chegar finalmente de novo & poptlagéo, que néo seria, dessa vez, a representagio castica de ‘um todo, mas uma rica totalidade de determinagoes e de relagdes numerosas (Marx, 2003, p. 247). A degradagao e a destruigéo ambientais sao 0 imediato com ‘© qual nos confrontamos ¢ sao 0 ponto de partida enquanto questdes que nos mobilizam e que queremos superar. F qual é a concretude desse fendmeno? O que hé de proprio nele na atua~ Tidade que o diferencia de outras formas anteriores de interacio metabélica sociedade-natureza? Segairei a mesma direcdo que a linha de raciocinio de dois autores, entre muitos outros possiveis, que ajudam a responder as perguntas anteriores: Marques (2016) e Bihr (2010), intercalaclos por citacées de Postone (2014). © capitalismo faz uma inversio qualitativamente deci em relagao a qualquer outra formagao social conhecida. A pro- dugdo de excedentes, ou seja, de produtos além do necess.irio para a satisfacdo imediata de sobrevivencia, era condicio para que as pessoas realizassem algo propriamente social para além de se manterem vivas e enfrentarem adversidades naturais ou ameagas oriundas de outros povos. A industrializagio ¢ oavange va EDUCAGAO AMBIENTAL 9 tecnolégico propiciados pela concorréncia capitalista geraram um aumento extraordinario de produtividade e, portanto, de excedentes materializados na forma de capital. Esses, sob relagées de produgdo fundadas na apropriagéo privada dos meios ¢ da riqueza produzida, sc acumulam em um. contingente populacional minimo. Tornam-seassim a propria fina- lidade de produzir, reproduzindo uma sociabilidade hierarquica, dominadora, fragmentadora, cujo Estado, cuja economia e cuja politica s4o controladas por quem detém o capital. Com isso, se antes o excedente permitia seguranca e sobrevivéncia, agora, na forma capital, cria risco de sobrevivéncia em fungao da destruicao progressiva da natureza e da subordinacao da atividade criadora humana aos imperativos econdmicos. Na anillse de Marx, a crescente destruigo da natureza no capitalis- mondo se dé simplesmente em fungdo de a natureza ter se tornado ‘um objeto para a humanidade; mas é, sobretudo, um resultado do tipo de objeto em que a natureza se tornou. As matérias-primas © 0s produtos, de acordo com Marx, sao portadores de valor no lismo, além de setem elementos corstitutivos da riqueza material. O capital produz riqueza material como melo para criar valor. Assim ele consome natureza material ro s6 como substancia da riqueza material, mas também como meio para alimentar a sua propria expansio — isto 6, como um meio de efetuar a extragio ¢ a absorcio do maior volume possivel de tempo excedente de tcabalho da populagio trabalhadors. [J A zelagio entre homem natureza mediada pelo trabalho tomna-se um processo de consumo dle mao tinica, em vez de uma interagao ciclica. Configura-se como ‘uma transformagio acelerada de matérias-primas qualitativamente particulares em “material”, em portadores qualitativamente homo- jgéneos dle tempo objetivado (Postone, 2014, p. 361). A riqueza, transformada em capital, gerou um outro fe~ nOmeno igualmente tinico, A pobreza diante de uma geracio 100 (CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO monumental de ativos econémicos, culturais e cognitivos. A concentracéo desses ativos, bem como da renda, ampliou-se no Jiltimo século, com pequenos intervalos de modestas retragies nos indices de desigualdade. Isso condenou a maioria da populagao a niveis deplorveis de vida, principalmente se considerarmos que existe capacidade instalada para resolver a fome, 0 analfabe- tismo, a incalubridade, algumas doencas epidémicas e a falta de moradia. Se antes a escassez. era decorrente da baixa capacidade produtiva e desenvolvimento tecnol6gico e cientifico, gerando a pobreza, agora, tem-se a abundancia trazendo a pobreza como a face inversa da mesma moeda. Quanto mais a sociedade revela sua capacidade de produzir riquezas, tanto mais aumenta 0 contingents de despossudos das condigdes materiais de vida. sce tipo de estrutura social impede a universalizagio da in- fraestrutura basica de saneamento, energia elétrica, Agua etc., por nao serem imediatamente lucrativos. Amplia também as formas de impacto ambiental jé presentes no processo produtivo, uma vez que asmassas populacionais postas em condigées de miséria acabam por pressionar com desmatamentos, poluicéo hidrica, ocupagies desordenadas ete. Além disso, estimula a adesio do trabalhador assalariado, que teme perder seu emprego, ao discur- so desenvolvimentista como garantia de estabilidade econ6mica, mesmo que ampliando a destruigio ambiental. ‘As promessas de felicidade e satisfacao pelo consumo insa- cidvel de mercadorias, fomentadas por ideologias difundidas por meio da educagio e da comunicacao para dar vazio ao gigantismo da produgéo de mercadorias — muitas absolutamente supéefluas —, geram um ciclo crescente entre consumir, descartar, comprar para saciar desejos que 86 existem A medida que se trabalha mais para consumir mais. & uma sociedade que transforma até 0 lazer em mercadoria, criando uma espiral de frustragbes, Comisso, o capitalismo assenta sua aceitagao na promessa cle ‘um conforto que nao se universaliza, de um sucesso meritocritice EDUCACAO AMBIENTAL fat que agudiza a competitividade e o egofsmo e na ideia de que 0 crescimento econdmico é a tinica alternative para gerar bem-estar © prosperidade, ainda que isso signifique o sacrificio da vida — seja ela humana ou nio. Asociedade contemporanea tem outro trago tinico: € glol © modo de produgao capitalista se tornou no cal XXetonea dominante e avassaladoramente expansiva de sociabilidade e organizagao do Estado e da economia. Os bens de consumo, a organizacao das cidades, as tecnologias ¢ os habitos so padroni- zados segundo os parametros norte-americanos e europeus. Com isso, efeitos antes localizados se tornam universalizados e com consequéncias imprevisfveis. A troca mercantil, a vendabilidade universal de mercadorias — inclusive e fundamentalmente a forga de trabalho humana — se tornam a finalidade e o sentido para 0 qual se direcionam as energias criativas. Esse trabalho alienado estabelece a falha metabdlica na relagéo sociedade-natureza, 0 Gesrespito aos ciclos naturais e atinge a capacidade de suporte hearer na interacéo com as diferentes sociabilidades Em uma sociedade determinada por mercadoria, as objetivagdes do trabalho de alguém so meios pelos quais se adquirem bens produzidos por outros; trabalha-se para poder adquirir outros rodutos. Os produtos proprios servem a outra pessoa como um bem, um valor de uso; servem ao produtor como um meio para adquirir produtos do trabalho de outros. Enesse sentido ue urn produto é uma mercadoria: ele é simultaneamente um valor de uso Para o outro e um meio de troca para o produtor. Isso quer dizer que o trabalho de alguém tem uma dupla fungio: de um lado, é um tipo especifico de trabalho que produz bens particulares para ‘outros, de outro, o trabalho, independentemente do seu contetido especifico, serve ao produtor como meio pelo qual os produtos «le outros sio adquitidos, Isso quer dizer que o trabalho se tor- io particular de aquisigio de bens em uma sociedade 102 (CARLOS FREDERICO B. LOUREIRO determinada por mercadorias; a especificidade do trabalho dos produtores é abstraida dos produtos que adquirem com seu tra- balho. Nao existe relagdo intsinseca entre a natureza especifica do trabalho despendido e a natureza especifica do produto adquirido por meio daquele trabalho. Isso 6 completamente diferente de formagdes sociais em que a producéo e troca de mercadorias néo predominam, nas quais a distribuigdo social do trabalho e seus produtos se faz por uma vatiedade de costumes, lagos tradicionais, relagées abertas de poder ou, concebivelmente, decisdes conscientes (Postone, 2014, p- 175-176). Essas formas de interagéo metabélica com a natureza, esta- belecidas no proceso de trabalho social, possuem mais um efeito importante, do ponto de vista da educacéo ambiental, que foi discutidona introdugio: a alienagfo, o estranhamento na relagao com 0 outro, Além do que jé foi comentado sobre essa catego- tia, a relagdo alienada, o fetiche da mercadoria, impde no plano cognitivoo que pode ser chamado de mecanismo de dissociagao: a perda co entendimento da totalidade social. A fragmentagio propiciada pela racionalidade instrumental e pela divisio social do trabalho facilita que se separem mentalmente os impactos ambientais de suas causas. Assim, a norma institufda e 0 modo como se produz se tornam legitimos ou nio problematizados, e a critica, um questionamento descabido. Mais do que antes, as lutas se complexificam diante dos desafios postos pela crise ambiental. Isso exige que as formas léssicas de otganizagao dos trabalhadores revisem seriamente suas crencas desenvolvimentistas, que reproduzem as ideologias dominantes, e a féno crescimento econdmico para gerar emprego. JA as organizacdes ambientalistas precisam considerar sua poli- tizagdo e sua adesfo as lutas populares. Os povos tradicionais ¢ demais expropriados, por sua vez, precisam buscar pontos em EDUCAGAO AMBIENTAL, aa comum com todos aqueles que possuem suas vidas negadas nessa sociedade, em processos dial6gicos que resultem em novas esperancas de transformagio social. QUESTOES ONTOLOGICAS PARA PENSAR A EDUCAGAO AMBIENTAL CR{TICA Conforme Dussel (2018), Marx — tomado como referéncia intelectual e te6rica principal para todo o pensamento critico — concebe os seres humanos como uma comunidade vivente — 0 que é distinto de nos conceber como seres isolados, determinados biologicamente, que interagem produzindo uma sociabilidade. A sociedade nao € para o autor uma derivacdo das interagées entre individuos, mas condigio para que se seja individuo. Ao mesmo tempo, ela 56 existe & medida que as pessoas existam. Dialeticamente, um nao existe sem o outro. Oconceito de individuo auténomo, autocentrado e racional, capaz de escolher livremente, é uma tipica abstragao burguesa de afirmagao do individualismo egoista e da universalidade da troca de mercadorias, que se ancora em um entendimento da agio humana independente das relagdes sociais. A oposigao entre individuo e sociedade é um fendmeno histérico criado pelo anta- gonismo de classes no capitalismo, cabende a sua superacio com vistas a um novo patamar, em que o individuo seja plenamente como tal em sociedade — e nao contra essa. Em Marx, 0 individuo é em comunidade. E essa afirmagio decorre do modo como ele analisa diferentes modos de produ- ‘gio e formagées sociais ao longo da histéria. Nesses termos, ser humano € ser social e somente em sociedade se efetiva o que 6 propriamente humano. A vida humana, que se define pela

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