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Sobre Mary Ruefle
Sobre Mary Ruefle
LIVROS RASURADOS: A INSCRIÇÃO DO APAGAMENTO NA OBRA DE
MARY RUEFLE
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Graduada em Letras (USP), Mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada (UFMG). Contato:
clarissaxavier3@gmail.com
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Os Erasure Books fazem parte de um trabalho em desenvolvimento de Mary
Ruefle que consiste em suprimir palavras, frases ou páginas inteiras de livros
publicados, criando a partir do conteúdo que resta novos textos, oriundos de uma nova
forma de concepção da textualidade. Os livros que Ruefle utiliza como suporte para a
realização do trabalho são recolhidos de maneira fortuita: não são obras que se destacam
em relação ao cânone, e são, por vezes, livros completamente esquecidos, encontrados
em sebos e lojas de antiguidade a preços módicos, como ela mesma conta no ensaio
“On Erasure”. As estratégias de apagamento e reformulação dos livros se dão, por
vezes, a partir de rasuras grosseiras de caneta escura feitas nas partes que se deseja
retirar, e por vezes como um delicado encobrimento de tinta em tom muito próximo ao
da página, como se fosse o resultado de uma limpeza. Além disso, a autora realiza
também colagens de imagens ou objetos que dialogam com as palavras restantes, como
figuras de pássaros sob um fundo de tinta azul, em uma página onde se lê a palavra
“window” (janela), e um grampo de cabelo colado sobre a palavra “hairpin”. Todos os
exemplos comentados foram retirados do livro Marie, disponível no site de Mary
Ruefle, e suas páginas citadas foram anexadas ao fim deste artigo. O site mencionado
funciona como uma plataforma de acesso aos livros, que por serem obras únicas e
irreprodutíveis em série, ficam visíveis através de registros fotográficos. Há, no entanto,
nesta mesma plataforma, uma mensagem para avisar que a qualquer momento os livros
disponíveis podem ser trocados. Até o momento da escrita deste artigo os livros
encontrados no site são Marie, já mencionado, e The Mansion.
Entrando no campo das análises, não é difícil observar que há, desde as técnicas
de produção até o meio escolhido para veicular as obras, um comprometimento
profundo da produção do trabalho de Ruefle com as possibilidades múltiplas de
transformação contidas em qualquer ofício permeado por linguagem. Sendo a arte, e
dentre suas formas, a literatura, elementos da partilha do sensível que acompanha todo
regime estético – como afirma Rancière –, os livros, as obras plásticas e os objetos de
linguagem como um todo atuam sob determinadas regras de correspondência entre o
que se convenciona ser dito e visto (2009, p. 20). A construção e o apagamento são,
nesse sentido, ações que caminham necessariamente em conjunto, e tomam parte de
todos os processos que envolvem a comunicação. Tal procedimento, visível no trabalho
que evoca a produção dos Erasure Books, é tematizado em muitos momentos ao longo
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da obra de Ruefle, como se pode ver no fragmento em que descreve o apagamento de
sua obra como um trabalho contínuo, que resulta em algo como uma “rosa
íntima/oriunda do hábito notável/do tempo bruto”:
IV
I call them erasures
and so began
because lips never stopped working
for one can never tell
an intimate rose
from the remarkable habit
of crude time
O texto acima, transcrito em versos sob a forma de poema, foi excepcionalmente
criado a partir de “On Erasure”, ensaio já mencionado, no qual Mary Ruefle narra uma
espécie de arte poética sobre seu trabalho com os livros de apagamento. De acordo com
este texto, as construções que decorrem dos livros se aproximam da poesia, mas não são
consideradas pela autora poemas. Diz ela:
An erasure is the creation of a new text by disappearing
the old text that surrounds it. I don't consider the pages to
be poems, but I do think of them as poetry, especially in
sequence and taken as a whole; when I finish an erasure
book I feel I have written a book of poetry without a
single poem in it, and that appeals to me.
Ruefle tensiona os limites da definição de poesia, e de seu suporte, ao considerar
não só possível, como atraente, a possibilidade de escrever um livro de poesia sem que
nele haja poemas. É necessário observar, portanto, que os elementos participantes da
construção do sentido destes livros de poesia sem poemas recaem manifestamente sobre
os signos não verbais, como se pode ver pelas imagens e objetos colados nas páginas,
assim como pela sintaxe quebrada das linhas, e sobretudo pelo próprio apagamento, que
deixa rastros de um ofício manual ali inscrito. Aliás, quando se considera a escolha dos
métodos de apagar e rasurar – todos eles explícitos nas páginas através de cores que por
vezes destoam e por vezes se utilizam de técnicas que os aproximam das margens em
branco –, é possível considerar que o rastro deixado pela autora na formulação de seus
livros de apagamento transforma-se em um dos elementos fundamentais para a
construção da poética por ela empenhada. O próprio título “Marie”, remetendo a uma
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personagem que no corpo do texto se transforma em “Mary”, volta a atenção para um
registro de autoria que Ruefle proclama para si diante do livro que de fato realiza,
recriando-o. Nas páginas 38 e 39 de Marie lemos um texto que se destaca pelo
estabelecimento de uma isotopia metalinguística, formulada, como em outras partes do
livro, pela menção à temática dos elementos gestuais da poética empenhada pela autora:
reality
seemed to shrink visibly,
crying under her hands,
— was it by chance
on a foreign mission.
A realidade tematizada pelas linhas se torna um elemento semanticamente associado ao
transparecer do visível e ao ofício manual da criação – uma missão que permanece
estrangeira ao se manter numa pendular travessia entre os domínios verbal e imagético,
e que, portanto, formaria uma leitura bastante fraturada caso fosse privilegiada apenas
uma das categorias. Deste modo, é necessário ler a obra como o registro de uma ação
performativa, uma vez que, diferentemente dos textos impressos, ela deixa rastros dos
gestos realizados pelo corpo que a criou. Ruefle, por isto, torna possível que o leitor de
seus livros de apagamento testemunhe a sua invenção, trazendo para as obras um modo
de manejar a materialidade da inscrição textual, que a literatura em grande parte
costuma subtrair.
Um outro modo de leitura viável é retomar a ideia da transformação, que é
prerrogativa comum das linguagens, e está contida nos Erasure Books desde a
proposição geral das obras até suas estratégias pouco convencionais de circulação. De
acordo com Paul Zumthor (2018, p.49), qualquer texto parte da necessidade de
transformação daquele a quem se dirige. Diz ele:
Comunicar (não importa o quê: com mais forte razão um texto
literário) não consiste somente em fazer passar uma
informação; é tentar mudar aquele a quem se dirige; receber
uma comunicação é necessariamente sofrer uma
transformação.
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Seria possível, diante do caminho aberto pelo autor, pensar as poéticas de apagamento
de Ruefle como um exercício de comunicação que espelha em sua gênese a própria
transformação. Sendo a autora também uma leitora da tradição literária, os livros que
sofrem a transformação constituída por ela são marcados pelos processos de edição
intrínsecos ao próprio ato da leitura. Tornar público e propor uma poética em torno de
tal ato seria o estabelecimento do ciclo que não se pode interromper, a menos quando se
interrompe a própria comunicação.
Para Jorge Luís Borges (1994, p.255), “erróneamente, se supone que el lenguaje
corresponde a la realidad, a esta cosa misteriosa que llamamos realidad. La verdad es
que el lenguaje es otra cosa”. É possível pensar, de acordo com o escritor argentino,
que realidade e construção são dissociadas e conceitualizadas pelas operações de uma
mesma linguagem, e que sendo assim, a atualização sistemática da língua, realizada por
seus falantes, cria uma constante re-edição dos conceitos por ela abarcados. Talvez seja,
então, em relação a este aspecto que se faça o mistério, uma vez que a edição elege e
modula tudo aquilo que é dito, abrindo seu caminho narrativo diante de outros que não
foram tomados.
Um começo absoluto
Nas últimas páginas de Marie encontra-se um texto que tematiza a ideia de que o
poema se utiliza de linguagem partilhada por todos, e cujas expressões nele contidas são
reorganizações de um repertório literário que habita o conjunto da tradição canônica. O
fragmento indica que não se esqueçam as palavras, que são “minhas mas também suas”,
“nessas horas solitárias”:
mine; but yours too,
not forget! not forget!
in those lonely hours
more than any words
THE END.
As horas solitárias, nas quais se esquece a partilha das palavras, poderiam ser
pensadas em relação ao congelamento da comunicação, ou a uma crença muito
arraigada em autoria — que transforma o autor em uma ilha centrada em si mesma —
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restando, do mesmo modo, desprovido de diálogos. Ao demarcar o gesto de sua escrita,
para além de uma edição da leitura, e afirmar que as palavras ali dirigidas pertencem
tanto a ele quanto ao outro, o livro costura os elementos nele mesmo estabelecidos até
então. A respeito de uma partilha histórica das palavras, é válido ler o seguinte trecho
do ensaio A consagração do Instante (PAZ, 2012, p. 52):
O poema, ser de palavras, vai mais além das palavras e a
história não esgota o sentido do poema; mas o poema não
teria sentido – e nem sequer existência – sem a história,
sem a comunidade que o alimenta e a qual alimenta.
As palavras do poeta, justamente por serem palavras, são
suas e alheias. Por um lado, são históricas: pertencem a
um povo e a um momento da fala desse povo: são algo
datável. Por outro lado, são anteriores a toda data: são um
começo absoluto.
Para Octavio Paz, a relação entre poema e história é de uma modificação mútua, uma
vez que o poema opera uma espécie de escuta do mundo a sua volta, e lança para este
mundo que escutou os seus próprios dados – as palavras que dele participam – de
maneira reconstruída. Tal raciocínio adquire um interesse conceitual quando se lê em
relação a toda poética, mas no caso de Mary Ruefle sua descrição se torna quase literal.
A poeta americana se alimenta não só de palavras que são históricas por pertencerem à
sua própria comunidade e à sua tradição artístico-literária, como de fato as encontra em
livros previamente publicados – objetos que já contém em si a inscrição prévia de tal
substrato linguístico e histórico.
É frutífero fazer uma ponte de diálogo entre os conceitos até então trabalhados e
um trecho do livro Literatura, defesa do atrito, no qual Silvina Rodrigues Lopes (2012,
p.54) compreende a forma poema como uma espécie “memória profética”. Para a
crítica, a memória do poema relaciona-se sempre com passado e futuro porque é capaz
de reorganizar, a todo momento, o significado das partilhas históricas do sentido
realizadas anteriormente:
Como artefacto técnico constituído por signos, todo o
arquivo possui um certo grau de indeterminação. Mas a
indeterminação da memória é de um tipo diferente. Ela é
uma faculdade, caracteriza-se pelo seu dinamismo
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actualizável em formas. A forma-poema é memória
profética, o que significa que nunca se limita à descrição
e interpretação do passado, mas o constitui no próprio
gesto que inventa o futuro.
Constituir o passado e inventar o futuro são, nesse sentido, prerrogativas das
poéticas artístico-literárias, realizando-se sob uma exigência do presente, e como afirma
Giorgio Agambem (2009, p.73), de “ser contemporâneo não apenas do nosso século e
do ‘agora’, mas também das suas figuras nos textos e nos documentos do passado”. Esta
definição elaborada pelo filósofo italiano descreve o que para ele demanda ser
contemporâneo: uma tarefa de releitura contínua que refaz também, nesta mesma
ordem, as possibilidades de convivência com o sentido histórico dos textos que habitam
em cada texto. De modo palpável, pode-se perceber a performance de criação poética de
Ruefle como uma performance do tempo, ancorado na simultaneidade do presente e em
sua condição inacessível de vivência, permeada pelo rastro que vai do testemunho à
criação.
De acordo com Ranciére (1998, p.14), a escrita também se comporta como um
desdobramento corpóreo da linguagem, que para o autor pode se configurar
simultaneamente como o efeito da palavra que a transmite e atesta ou, ao inverso, como
o hieróglifo que carrega sua ideia diante do corpo. A partir de então, pode-se dizer que,
um mesmo movimento, a escrita literária testemunha as formas de vida que a
instauraram, e que carrega, por sua parte, a instauração de novas possibilidades de
vivências, cujas narrativas poéticas, assim, apontam para um domínio não-hegemônico
da linguagem. Por testemunhar, não apenas o que é escrito, mas a ausência que resta no
entorno das construções da linguagem, a literatura abre caminhos de possibilidade de
fala. De tal modo, as poéticas são propositivas à medida que rompem a condição de
enclausuramento dominante que opera cotidianamente a sintaxe em seus múltiplos
modos de produção e divulgação. Mary Ruefle, em suas obras rasuradas, chama atenção
para a condição de construto que opera o ato performático de cada palavra encontrada
nos livros publicados, e da relação permanentemente inaugural que somos capazes de
estabelecer com nossos arquivos e repertórios de linguagens e poéticas. Além das
construções verbais formuladas pela autora, nos Erased Books está inscrito o rastro do
gesto que os produziu, assim como o silêncio das palavras apagadas e a evidência do ato
de seleção – recorrente a toda criação realizada pelas vias das linguagens.
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Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos,
2009.
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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2009.
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Informações biográficas e outros poemas
Poet Mary Ruefle. <https://www.poets.org/poetsorg/poet/mary-ruefle>. Último acesso
em 28/09/2018.
Poetry Foundation: Mary Ruefle. Disponível em
<https://www.poetryfoundation.org/poets/mary-ruefle#tab-poems>. Último acesso em
28/09/2018.
Anexos
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