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Memória, silêncio, tempo, paisagem, corpo

Os homens temem as longas viagens,


os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.

Por isso os seus passos os levam


de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.
(…)

Nas incertas noites da infância, eu sonhava com comboios; eram sonhos terríveis, que me
levavam para sempre para longe de casa. Acordava sobressaltado, acendia a luz, sentava-me na
cama e ficava assim até de manhã, com medo de adormecer de novo. Talvez (alguns desses
pesadelos infantis ainda hoje vagamente me inquietam), eu temesse crescer, partir. Ou talvez,
como dizia minha filha Ana em pequena, desejasse desnascer. A verdade é que a minha vida,
como as vidas todas, se foi depois fazendo e desfazendo de inumeráveis partidas. E, aos
poucos, descobri que ela, a vida, é um longo e melancólico regresso. E que, como diz o taoista,
“os seres diversos do mundo / retornam à raiz”, ao encontro da unidade e da quietude.

Falamos sempre de nós mesmos (de que mais poderíamos falar?), olhamos em volta e vemo-nos
a nós. Estou diante destas obras de Joana Rêgo e subitamente reconheço, entre a secreta
folhagem, a casa, o lugar da partida e o lugar da chegada, do começo e do fim. Outros verão
coisas menos óbvias, o gráfico e o pictórico, a controvérsia entre expressão e impressão, eu
vejo a casa, o seu desenho (Fernando Guimarães) e a ocupação do espaço (António Ramos
Rosa). O avião é tão friamente inquietante quanto o longínquo comboio infantil, mas o
barquinho de papel é uma espécie de berço matricial que, como a casa, agora eu mesmo
construo.

A casa, mais do que o lugar da infância (pois a infância é um acontecimento improvável, uma
região submersa), é antes o lugar da memória. Mas também a memória é construção, paisagem
construída (há uma discreta ironia nas instruções de construção com que Joana Rêgo
acompanha o seu do it yourself e no modo como se articulam narrativamente, em termos no
entanto mais combinatórios que sintácticos, os elementos dos quadros e os próprios quadros
entre si). Não surpreende, pois, que memória e espaço coincidam aqui como lugares de
possibilidade e de realização. Como na memória, no espaço do quadro inscrevem-se
indistintamente princípio e manifestação, matéria e forma. Mas o curso da memória é inverso
do quadro, é o da reintegração da manifestação no seu princípio. O quadro é escrita, produz
sentido, ordem; é na memória do espectador (se ele for ainda capaz de inocência) que tem
lugar a obra ao negro, a dissolução da casa no princípio da casa.

Porque também a interpretação é um regresso, o caminho hesitante (e a maior parte das vezes,
helas!, irrelevante) de uma aparência a outra aparência. Quem estranhará então que a
interpretação se confunda com a matéria-prima (memória, silêncio, tempo, paisagem, corpo) do
intérprete?

Manuel António Pina


4/9/04

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