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J. “TT | mueETIKS : O desejo chamado Utopia e outfas ficpdes ciencificas NS Tuasuga) Caries Pissardo (} | me Comyryet © frets fame 7m, O07 Pdidcads weyrgmans em rey pols Ye ‘abn i areton eros ‘tan on detin vosemaron peta hates Hoon Ade rat eso ne ae Ypres fH na Po em, op ease orc a a ncn agopee de Lone mem sac os com resins) Peg Cronin Pape fe leather bape oa tae nee rete Drareen erat (etn rsrasnron Cashing an ra Pay (CH) Timast Basie dma, 98 roel a Argnitepn filteny Odrep charade nee taba eg ometogn! ae tert. 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[N.T.] PARTE UM Odeseja chamado Utopia Introdugdo Utopia hoje A utopia sempre foi uma questo politica, um destino incomum para uma forma lirerdria — e, do mesmo modo que o valor literiia da forma est sempre sujcito & ddvida, seu estatuto politico também ¢ estruturalmente ambiguo. As oscilagdes de scu contexto histérico em nada ajudam a solucionar essa variabilidade, que campouco é uma questio de gosto ou julgamento individual. Durante a Guerra Fria (e, na Europa Oriental, imediatamente apés seu fim), a Utopia se cornou sindnimo de Stalinismo ¢ designava um programa que negligenciarla a fragilidade humana e o pecado original, revelando uma vontade de uniformidade ¢ pureza ideal de um sistema perfeito que teria sempre de ser imposto, pela forga, a sujeitos imperteitos ¢ rclutantes, (Indo além, Boris Groys identificou essa dominagao da forma politica sobre a materia com os imperatives do modernismo estético.') Essas andlises contrarrevoluciondrias - j§ nic mais de tanto Interesse para a dircita desde o colapso dos paises soi as — foram depois adotadas pela esquerda antiaucoritéria, cuja micropolftica abracgou a Diferenga como um tema ¢ acabou reconhecendo suas posigées antiEstado nas tradicionais criticas anarquistas ao marxismo, que seria Urdpico precisamente nesse sentido centralizador ec autoritirio, Paradoxalmente, as tradi¢ées marxistas mais ancigas, tirando ligdes actiticus das andlises historicas de Marx ¢ Engels sobre o socialismo Utdpico em O manifesto comunista,’ ¢ também seguindo o uso bolehevique,’ denunciavam seus concorrentes Usdpicos como desprovides de qualquer concepgio de agdo ow estratégia politica ¢ caracterzavam o Utopianisma como um idealismo profunda ¢ estruturalmente avesso 4 politica, A relagdo entre a Utopia ¢ 0 politico, bem como questées sobre o valor pratico-politico do pensamento Urdpicn ¢ a idencificagao entre socialismo e Utopia permanecem como temas em larga medida nio resalvidos hoje, quando a Uopia parece ter recuperado sua vitalidade enquanto um lema politico ¢ uma perspectiva politicamente estimulanre. De fato, toda uma nova geragio da esquerda pds-plobalizacso — que abarca resquicies da antiga ¢ da Nova Esquerda, ao lado da ala radical da social-democracia, de minorias culturais do Primeira Mundo, de camponeses ¢ sem-terra proletarizados ou de massas estruturalmente nao empregiveis do ‘Terceiro Mundo - tem buscado, com uma frequéneia cada vex maior, adotr esse lema, em uma situagio na qual o descrédito de partidos tanto comunistas quanto socialistas ¢ o cetlclsmo diante de concepgdes rradicionais de tevolugio abriram um clario no campo discursive, Pode-se eventualmente esperar que a consolidagio do mercado mundial emergente - pois € isso que esti em jogo na assim chamada globalizagdo — permita que se desenvolvam novas formas de agdo politica. Enquanto ise, ¢ para adaptar uma famosa mrixima da Sra. Thatcher, nao hd alternariva A Utopia, ¢ © capitalismo tardio parece nao ter inimigos narurais — nao tendo os fundamentalismos religiosox que reslstem aos imperialismos americano ¢ ocidental, de modo algum, endossado posigées anticapitalistas, Ainda assim, ndo é apenas a invencivel universalidade do capitalismo que est4 em questia, com seu incansivel desmonte de todos os ganhos sociaix obtidos desde a origems dos movimentos socialista ¢ comunista, revogando todas as medidas de bem-cstar social, a rede de prategia, o direito & sindicalizagao, as leis de regulacao industriais ¢ ecolégicas, propondo privatizar a previdéncia ¢, de fato, desmantelanda tudo o que permanece no caminho do livre mercado em qualquer lugar do mundo, O que é devastador nao ¢ a presenga de um inimigo, mas, antes, a crenga universal nao apenas de que essa tendéncia ¢ irreversivel, mas de que as alternativas histéricas ao capitalismo teriam se provado invidveis ¢ impossiveis ¢ de que nenhum outro sistema socioeconémico seria concebivel, para nao dizer dispontvel na pratica, Os Urdpicos nao apenas se prestam a conceber esses sistemas alrernarivos: a forma Urdpica ¢, ela propria, uma reHexdo representacional sobre a diferenga radical, sobre a alteridade radical ¢ sobre a natureza sistémica da totalidade social, até o ponte em que nao se pode imaginar qualquer mudanca fundamental em nossa existéncia social que nao tenha, antes, espalhado visies Utdpicas como centelhas de um cometa. A dindmica fundamental de qualquer politica Urdpica (ou de qualquer Uropianismo politico) sempre residird, portanto, na dialética entre Identidade ¢ Diferenga,’ na medida em que essa politica vise a imaginar ¢, as veres, mesmo a efetivar um sistema radicalmente diferente. Podemos, aqui, seguir os viajantes do tempo ¢ espago de Olaf Stapledon, que aos poucos se tornam clentes de que sua dade as culruras exdticas ¢ alienigenas é governada por principios antropomérficos: No camego, quando nasso poder Imaginative estava estriamente limitade pela experkincia de mosses préprics mundos, podiamos fazer contato apenas com mundos afins ao nosso. Além disso, messe cxtigio Inicial deo nosso trabalho, invariavelmente nos deparivamos com esses mundos quando eles extavam paxsande pela mesma crise espiritual que subjaz a condigao do Heme sapiens hoje. Parecia que. para que entrissemos em qualquer mundo, deveria haver uma semelhanga ou identidade profunda entre nds ¢ nossos anfitrides.” Stapledon nao ¢, estritamente falando, um Utdpico, como veremos maiy 4 frente; mas nenhum escritor Urdpico foi tio incisivo ao confrontar a grande maxima empirista de que nao hd nada na mente que nao tenha estado primeiro nos sentidos, Se verdadeiro, esse principio significa o fim nao apenas da Utopia como forma, mas da Ficgio Cientifica em geral, ao afirmar, como o faz, que mesma nossas fantasias mais desvairadas sio todas elas colagens de experiéncias, constructos feitos de pedagos ¢ pegas do aqui ¢ agora: “Quando Homere formulou a ideia de Quiment, cle apenas juntou em um mesmo animal partes que pereenciam a animais diferentes; a cabeca de um ledo, 0 corpo de um bode ¢ o rabo de uma serpente"." No nivel social, isso significa que nossas imaginagées sao reféns do nosso modo de produgio - ¢, talvez, de quaisquer resquicios de modos de producae passadas que foram preservadas, Isso sugere que, na melhor das hipdteses, a Utopia pode servir ao propdsito negativo de nos tornar mais cientes de nosso aprisionamento mental ¢ ideolégico = algo que eu mesmo, em certa acasido, jd afirmei” -, ¢ que, portanto, as melhores utopias seriam aquelas que fracassam da forma mais completa. Trata-se de uma proposicio que tem a mérita de deslocar a discussia sobre a Utopia do contetido para a representacao. Exses textos slo dio frequentemente tomados como sende expresso de opiniio politica ou idcologia que algo deve ser dito para que sc restabelega o equilibrio de um modo decididamente formalista (leitores de Hegel ¢ Hjelmsley saberdo que a forma é, de todo modo, sempre a forma de um contetido especifica), Nao sto apenas ax matérias-primas social ¢ histérica do constructo Urdpico que tm interesse nessa perspectiva, mas também as relacdes representacionais estabelecidas entre clas = como a clausura, a narrativa ca exclusio ou a inversio. Aqui, como em outros lugares na anilise de narrativa, 0 que é mais revelador nao é a que se diz, mas o que mio pode ser dito, 0 que nao se registra no aparato narrativo. E importante complementar esse formalismo Urdpica com aquilo que hesito em chamar de uma psicologia da produgdo Urdpica: um estudo dos mecanismos da fantasia Utépica que se afastaria da biografia individual para se focar na satisfagio de anseios histéricos ¢ coletives. Uma tal abordagem da produgio da fantasia Utépica ind necessariamente iluminar sas candi¢des de possibilidade histéricas — pols, certamente, ¢ do nosso malor interesse hoje entender por que as Uropias floresceram em um perfodo e¢ minguaram em ourro, Esta é claramente uma questio que precisa ser ampliada para incluir também a Ficcao Cientifica, caso sigumos — coma faca — Darko Suvin' ao compreender que a Uropia ¢ um subgénero socioecondmico dessa forma literdria mais ampla, O principio de Suvin do “estranhamente cognitive’ — uma estética que, construda a partir da nogéo do formalismo russe do “tornar estranho” tanto quanto do Verfremdungseffekr brechtiano, caracteriza a FC a partir de uma fungSo essencialmente epistemoldgica (excluindo, assim, as fagas mais oniricas da fantasia como género) - postula, portanto, a existéncia de um subconjunto particular, dentro dessa categoria genérica, especificamente voltado & imaginagao de formas sociais ¢ econdmicas alternativas, No que segue, no entanto, nossa discussdo se tornard mais complexa pela existéncia, ao lado do géncro ou texte Urdpica enquanto tal, de um impulso Usdpice que se verte sobre muitas outras coisas, tanto na vida cotidiana quanto em seus textos (ver Capitulo 1, a seguir). Esta distingio também tornard mais complexa a discusséo bastance scletiva sobre a FC que se faz aqui, uma vez que, ao lado de textos de FC que empregam ahertamente temas Utdpicos (como A curve do webo, de Le Guin), também faremos referéncia, como no Capltulo 9, a obras que revelam o trabalho do impulso Urdpico, De toda modo, “O desejo chamado Utopia”, diferentemente dos ensaios reunidos na Parte Dois, tratard principalmente daqueles aspectos da FC relevantes para a dialérica Urdpica entre Identidade ¢ Diferenga.” ‘Todas esas questdes formais ¢ representacionais nos levam de volta 4 questao politica com a qual comegamos. Agora, porém, a ultima foi precisada enquanto um dilema formal sobre como obras que postulam o fim da histéria podem oferecer um impulso histérico utilizivel; como obras que visam a solucionar codas as diferengas polfticas podem continuar sendo, em algum sentido, politicas; como textos concebidos para superar as necessidades do corpo podem permanecer materialistas; ¢ como visdes da “época de tranquilidade" (Mortis) podem nos estimular ¢ nos compelir & ago, Ha boas razdes para pensar que todas esas questées do sem solugio: o que nio é necessariamente uma coisa ruim, contanto que continuemos tentando decidir. De fato, no caso dos textos Utépicos, o teste politico mais confidvel nao esté em qualquer julgamento da obra individual em questdo, mas, antes, em sua capacidade de gerar novas obras, visées Utdpicas que incluam aquelas do passado e as modifiquem ou corrijam. No entanto, rrara-se, na realidade, de uma indecibilidade nao politica, mas da estrutura profunda, e isso explica por que varios comentadores de Utopias (como Marx ¢ Engels, cles mesmos, com toda sua admiragio por Fourier) apresentaram —avaliagdes contraditérias sobre esse assunto. Outro visiondrio Utopico, Herbert Marcuse, certamente o Utdpico mais influente dos anos 1960, oferece uma explicagio para essa ambivaléncia em um comentiria de juventude, cujo tema oficial era o da cultura ¢ ndo a prépria Utopia." Q problema, no entanto, ¢ 0 mesmo: a cultura poderia ser politica - 0 que significa dizer critica ¢ até mesmo subversiva - ou cla é hecessuriamente reapropriada c¢ cooptada pelo sistema social do qual fax. parte? Marcuse defende que esta na propria separagio da arte ¢ da cultura em relagao ao social — uma separagéo que inaugura a cultura como um dominio de direito proprio ¢ a define enquanto tal - a origem da incorrigivel ambiguidade da arte. Pois é essa mexma distancia da cultura em relagdo ao seu contexto social que Ihe permite funcionar como uma critica © uma dentincia deste, © que também condena suas intervengées a Incfetivkdade ¢ relega a arte ¢ a cultura a um espago frivolo ¢ trivializado, no qual essas intersegdes sto, de antemio, neutralizadas, Essa dialética vale, de modo ainda mais persuasivo, também para as ambivaléncias do texto Ludpico: pois quanto mais uma dada Utopia afirma sua radical diferenga em relagdo ao que atualmente existe, na mesma exata medida ela se torna ndo apenas irrealizivel, mas, o que é pior, inimagindvel."’ Iso ndo nos leva de volta exatamente ao nosso ponto de partida, no qual esteredtipos ideoldgicos rivais buscavam apresentar esse ou aquele julgamento politico absoluto sabre a Utopia. Isto pois, mesmo se jd nde podemos aderir sem ambiguidades a essa forma nao confidvel, podemos agora pelo menos recorrer Aquele lema politico engenhoso que Sartre inventou para encontrar scu caminho entre um comunismo problemitico c um ainda menos aceltivel anticomunismo. ‘Tilvez algo semelhante possa set proposto aos companhelres de viagem da propria Utopia; de fato, para aqueles excessivamente receasos quanto aos motivos de seus criticos, embora naa menos conscientes das ambiguidades esrruturais da Utopia, para aqueles atentos 2 funcao politica bastante real da idela e do programa da Utopia no nosso tempo, o lema do anti-antiUtopianismo pode muito bem oferecer a melhor estrarégia de trabalho, I. Variedades do Utdpico Tem sido mwuitas veaes observado que precisamos fazer uma distingao entre a forma Utdpica ¢ o anseio Urdpico; entre 0 texto ou género escrito ¢ algo como um impulso Urdpico detectivel na vida cotidiana ¢ em suas priticas por uma hermenéutica especializada ou um método interpretative, Por que nao acrescentar a essa lista a prdtica politica, na medida em que movimentos sociais tentaram realizar uma visio Utdpica, comunidades foram fundadas ¢ revolugdes conduzidas em seu nome, ¢ uma vez que, como vimos hi pouce, o proprio termo estd de nove presente em futas discursivas atuais? De todo modo, a furilidade das definigdes pode ser mensutada pelo modo como elas excluem dreas completas do seu inyensirio preliminar.' Neste caso, no entanto, o inventério tem um ponte de partida conveniente ¢ indispensdvel: trata-se, é claro, do texto inaugural de ‘Thomas More (1517), quase que exatamente contemporanco 4 maioria das inovagées que parecem ter definido a modernidade - a conquista do Novo Mundo, Maquiavel ¢ a politica moderna, Ariosto ¢ a literatura moderna, Lutero ¢ a consciéncia moderna, a impress © a esfera publica moderna, Dois géneros relacionados tiveram hascimentos miraculosos parecides: o romance histérico, com Waverly, em 1814, ¢ a Fiegao Cientilica (independentemente se se data seu nascimento com a publicacdo de Frankenstein, de Mary Shelley, naqueles mesmos anos [1818}, ou com a de A mdguina do tempo, de Wells, em 1895. Esses pontos de partida genéricus estio sempre, de algum modo, incluidos ¢ aufgehoben [suprassumidos] cm desenvolvimentos postcriores € nao menos no conhecido deslacamento das Utopias da espace para o tempo, de relatos de viajantes exdticos as experiéneias de visitantes do future, Mas o que singulariza esse género ¢ sua Intertextualidade cxplicita: poucas outras formas literdrias se afirmaram tao diretamente como argumente ¢ contra-argumento, Poucas outras exigitam tao abertamente referéncias cruzadas e debates dentro de cada nova varlante: quem pode ler Morris sem Bellamy? Ou, ainda, Bellamy sem Morris? Desse modo, 0 text individual cartega consigo toda uma tradigao, reconstruida ¢ modificada com cada nova adigéo, ¢ que corre a risco de se tornar uma mera cilta dentro de um imenso hiperorganismo, come o enxame de seres sencientes ¢ inteligentes de Seapledon. Mas a obra da vida de Ernst Bloch esta af para nos lembrar que a Utopia é muito maior que a soma de seus textos individuais, Bloch postula um impulso Utdpico governando tudo que seja orlentado para © futuro, na vida e¢ na cultura, ¢ que envelyeria tudo - de jogos a patentes de remédios, des mites ao entretenimento de massa, da iconagrafia & tecnologia, da arquitetura ao eros, do turismo ds piadas ¢ ao inconsciente, Wayne Hudson habilmente resume a magnum opus de Bloch da seguinte forma: Em O principio openanga, Bloch oferece uma compilagiv sem precedentex de imagens de anseias humanos ¢ devaneios de uma vida melhor, © livro comega com pequenos devaneios (parte [}, seguidos por uma expesicto da teorla de Bloch da consciéncla antecipatdela (parte TH). Na parte HL, Bloch aplica sua hermenéutica utépica ds figuras de anscio encontrdas no espelho da vida ordindria: 4 aura urdpica que cerca um novo vestldo, ds propaganda, ds belas miscaras, ds reyistas iustradas, as vestimentas da Ku Klux Klan, ao excesso festive do mercado anual ¢ do circa, aos contos de fadas ¢ 4 colportagem, 4 mitologla ¢ 4 literatura de viagem, aos méveis antigos, is ru(nas ¢ aos muscus © A Imaginagio urdpica presente na danca, ha pantomima, na cinema ¢ no teatro, Na parte IV, Bloch se volta para a problema da construgio de um mundo adequado & esperinga ¢ dos varios “esboros de uma vida melhor”, Ele oferece umas 400 paginas de anilise de utopias médicas, sociuis, sécnicas, arquitetdnicas e geogrificas, scguidas por uma anilise de panoramas de ansciog na pintura, na dpera ent poesia; de penpectivas urdpicas nas filesofias de Platse, Leibniz, Espinosa ¢ Kane ¢ do utopianismo implicito em movimentos de defesa da paz ¢ do fécio. Por fim, ma parte V, Bloch se volta para figuras de anseio de momentos realizadas, que revelam que a “identidade” ¢ a pressuposigia fundamental da consciéncia antecipatdria, Novamente, o mavimento ¢ de tirar o falego quando Bloch cabre experiéncias felizes ¢ perigosas da vida ordindria; o problema da antinomia entre o individuo ¢ a comunidade; as bray do javem Goethe, Don Ginvannt, Fiero, Don Quixote, as pegas de Shakespeare: a moralidade ¢ a Intensidade na musica: figuras de esperanga diance da mone ¢ a autoinsergao crescente do homem no conteido do mistério religiosy,' Voltaremos a Bloch logo mais; mas jd deve estar claro que sua obra levanta um problema hermenéutico. © principio interpretative de Bloch encontra sua mixima eficicia quanda revela a operagio do impulso Urdpico em lugares insuspeitos, nos quais ele estd oculta ou teprimido, Mas © que dcontece, neste caso, com os programas Urdépices deliberados c plenamente aucoconscientes? Eles também devem ser tomados como expressdes inconscientes de alge ainda mais profundo e primordial? E a que acontece com v proceso Interpretative ¢ com a filosofia do futuro do proprio Bloch, que, presumivelmente, |4 mio necesita dessa decodificagio ou reinterpretagio? Raramente, porém, o exegeta Utdpico concebe Utopias, ¢ nenhum programa Urdpico ecarrega o nome de Bloch.’ Opera, aqui, a mesmo paradoxo hermenéutico que Freud enfrenta quando, buscando ox precursores de sua aniilise dos sonhos, finalmente identifica uma obscura tribe aborigente para quem todos as sonhos teriam significado sexual — exceto os sonhos abertamente sexuais, que significariam algo diverso, Farlamos, portanto, melhor se tragdssemos duas linhas de descendéncia distintas a partir do texte inaugural de More: uma que visa & realizagdo do programa Urépico ¢ ourra a um Impulso Urdpico obscuro, embara onipresente, que encontra scu caminho para a superficie em uma variedade de expressées © pritica encobertas. A primeira dessas linhas serd sistémica ¢ incluird a pratica pollftica revalucionaria, quando esta visa a fundar uma sociedade sotalmente hava, bem como exercicios escritos na género literirio, Também serao sistémicas aquelas secessies. Utépicas ¢ autoconscientes, da ordem social que sdo as assim chamadas comunidades intencionais, além das tentativas de projetar novas coralidades espaciais na estética da propria cidade, A outra linha de descendéncia ¢ mais obscura e variada, como convém a um investimento proteano em um conjunto de assuntos suspeitosos © equivocoe reformas liberais © sonhos comerciais mirabolantes, os embustes enganosos, porém tentadores, do aqui ¢ agora, quando a Utopia serve como uma meta isca para a ideologia - a esperanga sendo, no fim das contas, também o principio dos contas do vigirio mais crudis ¢ da arte do charlatanismo, Ainda assim, talvex algumas de suas formas mais ébvias possam ser identificadas: a teoria politica ¢ social, por exemplo, mesmo quando - ¢ especialmente quando — ela visa ao realismo ¢ 4 fuga de tudo o que ¢ Utdpico; também reformas social-democratas ¢ “liberais" graduais, quando elas sda meramente alegdricas de uma transformagdo geral da totalidade social. E, jd que identificames a propria cidade como uma forma fundamental da imagem Urdpica (Junto & forma do vilarejo, que teflete o cosmos),' talvez devésemos dar lugar ao edificio individual como um espago de Investimento Utdpico, aquela parte monumental que nao pode ser o todo, mas que ainda assim tenta expressi-lo, Exses excmplos sugerem que valeria a pena pensar o impulso Utdpico ¢ sua hermenéutica em termos de alegoria; neste caso, gostarfamos de reorganizar a abea de Bloch em trés niveis distintos de contetido Urépico: o corpo, o tempo ¢ a coletividade. A /V\ PROG (COMURMDADE IN TENCIONAL THO CRETE REVOWOONAA Mas a distingdo entre essas duas linhas ameaga reavivar a velho ¢ bastante questionade projeto filoséfico de distinguir o auténtico do inaucéntico, mesmo quando se visa, ma verdade, a revelar a autenticidade mais profunda do préprio inauténtico. Isso nao tenderia a reavivar aquele antigo idealismo platdnico do desejo verdadcira ¢ falso, do prazer verdadelro e falso, da satisfagdo ou Felicidade genuina eailusdrla? E bso em uma época em que, antes de nudo, estamos mais Inclinados a crer na ilusio do que na verdade.? Como tendo a simpatizar com esta Ultima posigdo, mais pés-moderna, ¢ gostaria de evitar uma retérica que oponha a auroconsciéncia ou a consciéncia teflexiva A sua contraparte irreHetida, prefiro apresentar a distingdo em termos mais espaciais. Nesse caso, o programa propriamente Utépico ou sua realizado cnvolverd um compromisso com a clausura — ¢, logo, com a toralidade: nao foi Roland Barthes quem observou, quanto ao Utopianismo de Sade, que “aqui como em outros lugares é a clausura que permite a existéncia do sistema, ou seja, da imaginacaa"?” Mas se trata de uma premissa que traz consigo profundas consequéncias, Em More, é certo, a clausura ¢ obtida por aquela grande crincheira que o fundador faz que seja cavada entre a ilha ¢ 0 continente, ¢ que por si sé permite 4 ilha se tornar Utopia: uma secessgo radical mais tarde sublinhada pela impetuosidade maquiavélica da politica externa Utépica — suborno, assassinatos, mercendrios ¢ outras formas de Realpolitik -—, que rechaga todas as nogées cristas de fraternidade universal ¢ dircito natural ¢ deereta a diferenga fundacional entre eles ¢ nds, inimigo e amigo, de maneira peremptéria, digna de Carl Schmit, ¢ caracteristlca, de uma forma ou de outra, de todas as tentarivas subsequentes das Utopias de sobreviver dentro de um mundo ainda néo convertido ac Estado mundial de Bellamy, Como testemunho disto, o triste destino de A téba, de Huxley, ou as precaugées que sio exigidas por situagdes tho diferentes como as comunidades Walden, de Skinner, ou a Marte, de Kim Stanley Robinson.” A totalidade é, pois, justamente essa combinagdo de clausura ¢ sistema, em tome da autonomia c da autoswuficiéncia, e que, em liltima instancia, é a fonte daquela alreridade ou diferenca radical, Inclusive alien(gena, jd menclonada acima ¢ A qual voluremos de forma mais detida, Mas ¢ justamente ess categoria de totalidade que preside as formas de realizigao Ltdpica: a cidade Utdpica, a revolugao Utdpica, a comuna ou vilarejo Utdpico e, é claro, o proprio texto Urdpico, em toda a sua diferenga radical ¢ inaccitdvel diante dos géneros literdrios mais legitimos ¢ esteticamente gratificantes. E igualmente claro, pois, que esse encanto da forma ¢ da categoria de roralidade estd ausente, praticamente por definigdo, das multiplas formas investidas pelo impulso Urdpico de Bloch, Aqui, temos de lidar, antes, com um processo alegérico no qual varias figueas Utdpicas penetram a vida coridiana das coisas ¢ das pessoas ¢ oferecem um suplemento, frequentemente inconsciente, de prazer, nao relacionado ao seu valor funcional ou a satisfagoes oficiais, O procedimento hermenéutico ¢, portanve, um método em duas etapas, em que, em um primeira momento, fragmentos da experiéncia revelam a presenga de figuras simbdlicas — a beleza, a plenitude, a energia, a perfeigao — que apenas posteriormente sio identificadas como as formas pelas quais um desejo essencialmente Utdpico pode ser transmitide, Note-se que, para tanto, Bloch apela frequentemente a caregorias estéricas clissicas (que sfo, clas proprias, também teoldgicas em ultima instdncia) ¢ que, nessa medida, sua hermenéutica também pode ser compreendida como certa forma ditima da estética idealista alema, que se esgota no fim do século XX ¢ com o modernismo. Bloch tinha gostos bem mais ricos ¢ variados que Lukics ¢ tentow acomodar a cultura popular ¢ a antiga, textos tanto modernistas quanto realistas ¢ neoclissicos, em sua estética Urdpica; mas esta ¢ perfeitamente capaz de assimilar gostos pds-modernos, nio europeus ¢ massificados, ¢ essa éa razio de cu ter proposto reorganizar seu Imenso compéndio de um mode novo ¢ tripartite (corpo, tempo ec coletividade), a que corresponde — maix proximamente aos nfvels. da alegoria contemporinea. O materialismo jd estd onipresente em uma atengao ao corpo que busca corrigir qualquer idealismo ou espiritualismo que persista nesse sistema, A corporeldade Urdpica é, no entanto, também um espectro, que incide até nes produtes mais subordinados ¢ envergonhados da vida cotidiana, tais como aspirinas, laxantes ¢ desodorantes, transplantes de drgios ¢ cirurgias pldsticas, todas eles portando promessas abafadas de um corpo transfigurado. A Ieitura de Bloch desses suplementos Utdpicos - as doses de excesso utdpico cuidadosamente mensuradas em todas as nossas mercadorias ¢ costuradas coma um fio vermelho por nassas praticas de consumo, sejam sbbrias ¢ utilitdérias ow frenéticas ¢ viciantes — se aproxima agora dos mitos blakeanos de Northrop Frye dos corpos eternos projetados no céu, Entretanto, as conotagées de imortalidade que acompanham essas imagens parecem urgentemente nos mover adiante, em direcio ao nivel temporal, tornando-se verdadciramente Utdpicas apenas naquelas comunidades de sujeitos sobrenaturalmente langevos,’ camo em bblta ¢ Matusatém, de Shaw, ou de imortais, como no filme Zerdoz (1974), de Boorman, ¢ que oferecem munigao considerdyel para os antiLiépicas com a correspondente deterioragio da visio Urdpica: o tédio suicida dos anclios longevos de Shaw e 0 evan assexuado dos habitantes da Vortex de Zardoz. A politica liberal, por sua vez, Incorpora parcelas desse impulse particular em plataformas politicas que oferecem pesquisa médica de ponta ¢ cobertura médica universal, embora o apelo 4 eterna juventude cncontre um lugar mais apropriado na agenda secreta da dircita ¢ dos ricos ¢ privilegiados, em fantasias sobre o rrafico de drgios ¢ possibilidades tecnoligicas de terapia rejuvenescedora. A transcendéncia corporal, assim, também encontra ficas possibilidades no dominio do espago, desde as tuas cotidianas ¢ as salas das moradias ¢ locais de trabalho aré 0 lécus maior da cidade - como na antiguidade, quando ela refletia o préprio cosmos fisico, Mas a vida temporal do corpo jd reposiciona o impulse Uripico naquela que é a preocupagdo central de Bloch como fildsafo, a saber, a cegucira de toda filosofia tradicional em relagdo ao futuro © ds suas dimensdes singulares, ¢ a dentincia de filosofias ¢ ikdeologias, como a anamnese platénica, teimosamente presay ao passado, 4 infiincia ¢ ds origens,” Trata-se de um polémico compromisso que cle compartilha com fildsofos existencialistas, e talvez mais ainda com Sartre, para quem o futuro é praxis ¢ projeto, do que com Heidegger, para quem o futuro ¢ a promessa de mortalidade ¢ morte auténtica; ¢ isso o separa de forma decisiva de Marcuse, cujo sistema Utdpico recorre Significativamente ndo apenas a Platéo, mas, na mesma medida, a Proust (¢ Freud) para defender um ponto fundamental sobre a meméria de felicidade ¢ os vestigios de gratificagao Utépica que sobrevivem em um presente caido ¢ oferecem a cle uma “reserva permanente” de cnergia pessoal ¢ politica." Mas vale a pena ressaltar que, em algum ponto, as discussdes sobre a temporalidade sempre se bifurcam em dois caminhos: o da experiéncia existencial (em que questécs de meméria parecem predominar) ¢ o do tempo histérico, com suas urgentes interrogazoes sobre o Futuro. Defenderel que ¢ justamente na Utopia que essas duas dimensées sto reunidas sem emendas ¢ o tempo existencial é tomado por um tempo histérica que é paradoxalmente também a fim dos tempos, o fim da histéria, Entretanto, no ¢ preciso pensar nessa fusio dos tempos individual ¢ coletivo em termos de algum eclipse da subjetividade, embora a perda da individualidade {burguesa) seja certamente um dos grandes temas antiUdpicos. Mas a despersanificagao érica tem sido um ideal em muitas religises ¢ em grande parte da filosofia, enquanto a transcendéncia da vida individual encontrou representacées bastante diferentes na Ficcao Cientifica, na qual cl frequentemente funciona como um teajustamento da biologia individual aos ritmos temporais incomparavelmente mais longos da prépria histéria, Logo, a longevidade estendida dos colonizadores da Marie de Kim Stanley Robinson permite a cles coincidir de modo mais tangivel com as evolugées histéricas de longo prazo, enquanto o dispasitivo da reencarnagio, em sua histéria alternativa Years of Rice and Sais, permite a possibilidade de repetidas reentradas no fluxo da historia ¢ do descnvolyimento,'' E, embora um terceira modo pelo qual ox tempos individual ¢ coletivo passem a ser identificados um com o outro scla a propria experiéncia da vida cotidiana, de acordo com Roland Barthes, o signo quintessencial da representagdo utépica, “ht marque de !Utopie, cest fe guatidien”."’ Onde o tempo biogrdfico ¢ a dindmica da histria divergem, essa vida do dia a dia, de sucessivos instantes, permite ao existencial se dobrar no espago da coletividade, pelo menes como Utopia, em que a morte é medida em geragdes ¢ nao em individuos bioldgicos, © viajante de Stapledon, entretanto, vive a tempo em uma relatividade cinsteiniana indetermindvel, mas simbém se unc com um conjunto de outros individuos ¢ suas temporulidades em uma experiéncia coletiva para a qual nao temos categorias lingulstica ou figurativa prontas. Segue uma consideracdo que vale a pena ser citada € que marca o modo como um investimenta temporal do impulso Utdpico se move em diregdo aquela forma dhima que ¢ a figura da coletividade enquanto tal: Nao se deve supor que essa estranha comunidade mental apague as penonalidades dos explardares individuais. O discurso humano nio tem termas apropriados para descrever nossa relago peculiar. Seria tao falso dizer que perdemos nessa individuatidade, ov que fomos dissolvidos em uma Individualidade comunal, quanto dizer que sempre fomos individuos distintos. Embora o pronome “cu” seja agora aplicado a todos nés coletivamente, 0 pronome “nds” tamhém nox é aplicado, Num aspecto, a saber, a unidade da consciéncia, ¢ramox de faro um unica individuo de experiéncia; mas, ao mexmo tempo, éramas de uma manelra multe importante ¢ agraddvel distintos uns dos outros. Embora houvesse apenas um tinice “eu”, comunal, havia tamhém, por assim dizer, um “nds” diverso ¢ variade, uma campanhia visivel de personalidades muita diversas, cada uma expressando criativamente sua contribuigie singular para toda o empreendimento da exploragio césmica, enquanto todos est4vamos unidos em um tecido de sutis relagdes pessoais.'* ‘Neste ponto, a expressio do impulso Uidpico chega o mais préximo possivel da superficie da realidade sem ainda se rornar um projeco Urdpica consciente nem se converter naquela outa linha de desenvalvimento que chamamos de programa Utdpico ¢ realizacao Utépica. Os estigios prévios do investimento Urdpico ainda estavam presos nos limites da experiéncla individual, o que nao significa dizer que a categoria de caletividade seja ilimitada — j4 mencionamaos sua necessidade estrutural de clausura, 4 qual retornaremos mais tarde. Por ora, no entanto, basta observar que, na falta de qualquer politica Lrépica consciente, a coletividade se depara com umra varicdade de expressécs negarivas cujos perigos sio muite diferentes daqueles do egnismo e do privilégio individuals. OQ. narcisismo caracteriza ambos, sem diivida; mas é 0 narcisisma coletivo que ¢ mais prontamente identificade nas vdrias praticas xendfobas ¢ de grupos racistas, todas clas com sua impulsio Urépica, como sabidamente tentei explicar em outro lugar.'’ A hermenéutica de Bloch nao ¢ concebida para eximir esses impulsos Urdpicos deformados, mas, antes, fax uma aposta politica de que suas energias podem ser apropriadas pelo proceso de desmascaramento ¢ liberadas pela consciéncia de maneira andloga 4 cura freudiana - ou a reestrururagio lacaniana do desejo, Ess esperanga pode ser perigosa desorientada; mas a deixamos para trés ao voltarmos ao processo de construgdo Urdpica consciente, Os niveis de alegoria: Urdpica, dos investimentos do impulso Utdpico, podem, portanro, ser representados assim: © COLETIVO [anagégico) TEMPORALIDADE (maral) O CORPO (alegérico} INVESTIMENTO UTOPICO (0 texto) 2. O enclave Utdpico Ver vestigios do impulso Utspico por todo lado, como via Bloch, significa naturalizi-lo e, de algum modo, pressupor que cle std enraizado na matureza humana.' Tentativas de realizar a Utopia, no entanto, tém sido historicamente mais intermitentes, ¢ precisamos limitd-las ainda mais ao insistir agora em tudo o que hd de peculiar ¢ excéntrico na produgio das fantasias que di origem a elas. Devancios, em que cidades inteiras sio esbocadas na mente, nos quais constituigées sto formuladas com entusiasmo ¢ sistemas legais io incessantemente rascunhados ¢ emendados, em que as distribuigées de assentos cm festivais ¢ banquetes sio detalhadamente pensadas, em que o descarte de lixo ¢ organizado tao culdadosamente quanto a hierarquia administrativa ¢ em que problemas familiares ¢ de culdado as criangas sao resolvidos com novas propostas engenhosas - tis Fantasias parecem suficientemente distintas de devaneios erdticos ¢ merecem, por si mesmas, uma atengao especial.’ Os Utdpicos, sejam politicos, textuais ou hermenéuticos, sempre foram maniacos ¢ estrambdticos — uma deformacio prontamente explicdvel pelas soctedades caidas mas quais eles tém de exercer sua vocagio, De fara, gostaria que entendésssmas o Uropianismo nio como certo destrancamenta do politica, em um retorno a sua centralidade de direlto, como nas cidades-Estado gregas; mas, antes, como um processo em si totalmente distinto, Em uma primeira abordagem, gostaria mesmo que aquelas relagdes com o politico que o Uropianismo parece pressupor conservem um cardter constrangedor ¢ suspeito. Precisamos nos acostumar a pensar, nas nossas suciedades onde o politica foi exitosamente separado do privado, a politico como um tipo de vicio. Por qual outra razio aqueles pensadores politicos prototipics par excellence, Maquiavel ¢ Carl Schmit, estariam sempre envoltas em certa névoa de escdindalo? Mas o que cles ousam anunciar publicamente, em um heroismo indissaciével do cinismo, nossos Urépicos concebern de modo mais furtivo, em formas que evocam mais perversdo que paranoia ¢ com aquele senso passional de missio ou vocacdo do qual certo gozn nunca esté ausente. Nao buscamos agora, no entanto, uma abordagem psicoldgica, mas uma abordagem mais histérica, que teotlze as condigées de possibilidade dessas fantasias peculiares. Embora as Ukopias paregam ser subprodutos da modernidade ocidental, elas nao apareceram em tados os seus estigios, Precisamos ter uma idela das situagdes € circunstincias expecificas em que sua composigao & possivel; situagdex que encorajam essa vocagio ou talento peculiar ao mesmo tempo que oferecem materials adequados para seu exercicio, O chamamento Utdpico, de fato, parece ter algum parentesco com aqucle do inventor nos tempos modernos ¢ mobiliza certa combinagio necessiria entre a identificagéo de um problema a ser resolvido ¢ a engenhosidade inventiva com que solugées sto propostas © testadas, Existe aqui certa afinidade com os jogos infantis, mas também com o dom do exssider para ver realidades familiares de um modo fresco ¢ inabitual, bem como com as simplificagées radicais daqueles que gostam de ptoduzir modelos. Mas deve-se ter em conta também © deleite na construgao, algo maravilhosamente expressado pelos “espiritos” de Margaret Cavendish: “Tois todo ser humano pode efdar um mundo (material totdmente habitado por criaturas imateriais, cuja populagio seja de stiditos imareriais, assim como nés somos, ¢ tudo isso pode se dar dentro de sua prépria mente: ou melhor, nic sé isse, mas é pessivel crlar um munde com qualquer estilo ¢ governo que se desejar ¢ dar as criaturas daquele mundo ais movimentos, aspectas, formas, cores, percepgdes etc. como he aprouver; ¢ construir turbilhoes, luzes, pressdes e reagdes etc, que ele considerar as melhores; ou, ainda, pode-se fixer um mundo repleto de yeias, musculus ¢ nerves, ¢ tudo iso para moverem-se cum choque ou derrame. & também possivel alterar tal mundo quantas vezes se quiser, aut modifici-lo de um mundo natural para um mundo artificial; pode-se fazer um mundo de ideias, um mundo de dromos, um mundo de luzes ou tude quanta a imaginagto puder. E jd que etd em seu poder” (concluem ox espiritos) “criar tal mundo, que necesidade vocd tem de arriscar a vida, a reputagao ¢ a tranquilidade, pare conquistar um mundo material grosseiro?”,” Mas tal criagao precisa ser motivada; precisa responder a dilemas especificos ¢ s¢ oferecer para resolver problemas sociais fundamentais, para as quais o Urdpice acredira ter a solugio. A vacagio Urdpica pode ser identificada por essa certeza c pela busca persistente ¢ obsessiva por uma solugio simples ¢ definitiva para todos os nossos males. E esta deve ser uma solugdo to dbvia ¢ autoexplicativa que qualquer pessoa razodvel a compreenderia, como o inventor que tem certeza que sum ratocira melhorada se impora como convicydo universal, Contudo, ¢ a situagdo social que precisa admitir essa solugio ou, pelo menos, sua possibilidade - este ¢ um dos aspectos das pré- condigées objetivas de uma Uropia. A visio que se abre para a historia a partir de uma situagio social particular deve encorajar essax supersimplificagées; as desgragas ¢ injusticas assim visivels devem parecer moldar ¢ organizar a si mesmas em torno de um mal ou de um erro especifico. Pois o remédio Utdpico deve scr, em primciro lugar, fundamentalmente negative ¢ sc colocar como um toque de clarim para remover ¢ extirpar essa rai especifica de todo o mal, do qual nascem todos os outros. Eis a razio pela qual ¢ um erro abordar as Utopias com expectativas positivas, como se elas oferecessem visées de mundos felizes, espagos de satisfagdo © cooperagio, represemtagdes que corresponderiam, em termos de género, ao iditico ow ao pastoral, nao a utopia De fato, a tentativa de estabelecer critérios positives para a sociedade descjdvel ¢ caracteristica da teoria politica liberal, de Locke a Rawls, ¢ nia das intervengées diagnésticas dos Urdpicos, que, como as dos grandes revoluciondrios, sempre visam a aliviar ¢ eliminar as fontes de exploragdo ¢ sofrimento, em vex de formular receitas para o consolo burgués, A confusio surge das propriedades formais desses textos, que também parecem oferecer receitas; estas sdo, no entanto, mapas e planos que deve ser lidos negativamente, como algo que deve ser alcancado apés demoligées ¢ remogées ¢ na austincia de todos aqueles males menores que os liberais creem ser inerentes 4 natureza humana, Com essa resalva fundamental em mente, podemos entio fazer um inventirio das formulages urépicas mais influentes, comegando com a solucio canénica de More de abolicio do dinheira ¢ da propriedade. Esse primeira passo bdsico nio desaparece em Ltopias posteriores, mas ¢ frequentemente aprimorado por preocupagies adicionais, que incitam navos motiyos © novas ornamentagics, assim que Campanella enfatlza que a ordem deve ser efetivada por uma gencralizagdo do espago do monastério, Para Winstanley, trata-se antes da aboligio do trabalho assalariado no novo espaco dos comuns que anuncia o comego do fim da miséria social, enquanto todas as ideias de Rousseau sobre a liberdade giram em torneo da amarga experiéncia da dependéncla, Fourier ¢ 0 desejo; Saint-Simon ¢ a administragio; Bellamy ¢ o exército industrial; Marris ¢ aquele trabalho nao alienado ao qual ele chamava de arte — todos foram capazes de oferecer programas Urdpicos que poderiam set compreendidos com um tinico lema ¢ que pareciam relativamente facels de serem posts em pratica, Com Chernyshevsky, é 6 casamento ¢ “a questio da mulher” que se totha central, enquanto no periodo contemporinea tio ¢ apenas a subjetividade que dificulta a produgio Udpica. Ecotopia responde As objecées capitalistas comuns, oferccendo uma Utopia que é ecoldgica ¢ também empresarial, enquanto o tolsmo de Le Guin é um remédio igualmente ecolégico para uma modernidade fundamentalmente agressiva ¢ destrutiva, Em Skinner, a pedagogia (ou scja li camo ele a denomine) vem antes de tudo, enquante em Woman on the Edge of Time, de Marge Piercy, a rlade contemporanea, hoje familiar, de raga, classe ¢ género [gender| substicui a antiga triade de More de cobica, orgulho ¢ hierarquia - ver Capitulo 3, adiante — ¢ oferece um alvo sucinto ¢ interrelacionado,” Mas, apesar do que s¢ tem dito sobre as excentricidades do analista Utépico, esses temas ¢ diagndsticos sociais nao s40 nem aleatérios nem voluntariosimente inventados a partir da obsessio au do capricho pessoal. Ou melhor, ¢ precisamente a obsessio do Utdpico que serve como um aparato de registro de uma realidade social dada, cuja identificagio, com sorte, encontra posteriormente reconhecimento coletivo. Nada, porém, garante que uma dada preacupagdo Uirdpica ird atingir a meta, que ela ird detectar quaisquer elementos sociais realmente existentes ¢ menos ainda que ela ird enquadrd-los em um modela que explicard sua situagio para as outras pessoas. Hd, portanto, ao lado de capitules aparentemente biogrificos ¢ aleatdrios, uma historia da maréria-prima Lidpica a ser feira. Uma histdria que estd ligada & representagio, na medida em que nao sio apenas as contradigées reais da modernidade capitalista que evoluem em momentos convulsivos (como os estigios de crescimento do monstro eponimo do filme de Ridley Scott, Aden [1979]), mas também a visibilidade dessas contradicdes de um estigio hissirico a outro ou, em outras palavras, a capacidade de cada uma de ser nomeada, tematizada ¢ representada, nado apenas por meios epistemoligicos, em termas de andlises soclais ou econdmicas, mas também por formas dramiticas ou estéticas que, junto com as plataformas ¢ os lemas politicos, tio proximamente a clas relacionados, podem tomar a imaginagio ¢ falar para grupos sociais mais amplos, E, como com 0 proprio alienigena, ¢ concebivel que cada momento da representagio parega radicalmente diferente de seus predecessores; assim, os dilemas da industrializacao jd hao mais parecem ter muito em comum com a miséria causada pelos cercamentos — salvo enquanco fonte de imensa sofrimento coletiva, Contudo, para que a representabilidade seja aleangada, o momento social ou histérico deve, de algun modo, se oferecer como uma situagio, permitir-se ser lida em termos de causas ¢ efeitos, ou problemas ¢ solugées, questées © respostas. Ele deve ter atingido um nivel de complexidade que parega colocar em primeiro plano algum mal fundamental, de modo que, com isso, 0 tedrico social se sinta tentado a praduzir uma visio geral organizada em torno de um crema especifico. A totalidade social ¢ sempre irrepresentivel, mesmo para grupos de pessoas numericamente mais limitados; mas cla pode, as vezes, set mapeada e permitir que um modelo em pequena escala seja construido, no qual as tendéncias fundamentais ¢ as linhas de forca possam see mais facilmerce lidas. Em outros momentos, esse processo representacional é impossivel, ¢ as pessoas encaram a histéria ¢ a totalidade social coma um caos desconcertante, cujas forcas io indiscerniveis. Para o bem ou para o mal, esse segundo tipo de precondigao Urépica — a material — parece distinguir-se da primeira — a vocacional — da mesma forma que o objeto se distingue do sujeito ou a realidade social se distingue da percepgio individual. Mas a oposigao tradicional é meramente conveniente ¢ estamos mais interessados na interacao misterios: entre ambas em textos Utipicas nos quais elas se tornam inextricdveis, Separd-las envolve inevitavelmente um processe figural, mesmo em disciplinas objetivas, como a sociologia. Logo, se em um primelro momento caracterlzei a relagdo do Urdpico com sua situagdo social como uma relagio comum a matéria-prima, devemos agora nos perguntar sobre quais tipos de blocos de construgdo o momento histérico ofercce, Leis, trabalho, casamento, organizagio industrial ¢ institucional, comércia © troca, mesmo matérias-primas subjetivas como formagées caractcrolégicas, hdbitos priticos, ailentos, aritudes de géneto [genider|: tudo isso joga, em um momento ou outro da histéria das utopias, 4gua no moinho Urdpica ¢ se torna a substincia a partir da qual a construgio Urdpica pode ser modelada. ‘Também jd evocamos a existéncla de um tipo de oficina Utépica, como a do inventor: uma garagem na qual todos os tipas de maquinaria podem ser consertados ¢ reconstruldas. Sigamos agora, por um momento, ess figuragio espacial, que foi elaborada do modo mais complexo pela chamada tcoria dos sistemas de Niklas Luhmann, com sua dindmica fundamentada em seu conccito de “diferenciagao”, Logo, uma metafisica de inspiraséo luhmanniana postularia algo como uma substincia indiferenciada, que comega internamente a se diferenciar em muitos “sistemas” semiauténomos relacionados, embora distincos. Podemos pensar esses sistemas da forma que quisermas: a espirituosa identificagio de Kanr das faculdades da universidade com a antiga tradicgao das faculdades mentais oferece um bom ponto de partida aleatério, pois faz uma comparagdo entre a diferenciagio crescente dos varios carpos de disciplinas académicas especializadas cam a separacio de “partes” da psique, como a cognicao ¢ a vontade, umas das outras. Que essus sejam diferenciagées continuas ¢ crescentemente complexas & uma questio de historia empirica: as disciplinas tradicionais comegam a sc desmembrar uma das outras, como 2 sociologia ou a psicologia (ou, em nossa ¢poca, a biologia molecular), enquanto a literatura moderna testemunha a emergéncia de todo tipo de novas fungées psiquicas que nao cram registradas nos géncras literdrios tradicionais, Mas, agora, a justaposigao esses dois campos em evolugio (as disciplinas académicas, a psique) nos recorda da multiplicidade de outros campos contidos na totalidade (ou “sistema”) social: as classes socials, por exempla, que entio se diferenciam em um canjunto de estratos, especializagées profissionals ¢ assim por diante, ou as atividades produtivas, que se multiplicam conforme a propria industria se sofistica em pracessas tecnoldgicas ¢ cientificas cada vez mais variados, enquanto os produtos assim produzides (¢ a demanda por cles) sto multiplicados quase infinitamente, Enquanto isso, 0 sistema politico separa os juristas, que se tornam uma profissio separada orientada por um campo de conhecimenco distinto de validade propria, de seus administradores ¢ burocratas, servidores cletivos, funciondrios dos estados, das municipios ¢ federais, ao lado das multiplicagées do Estado de bem-estar, o surgimento dos assistentes sociais ¢ dos wirios ramos da sadde publica tanto quanto da pesquisa cientifica, ¢ asim por diante. Luhmann define a modernidade por meio do surgimento desse process; a pés-modernidade poderia, entio, ser vista como uma saturagao dialética em que os subsistemas, até entio semiautanemos, desses varios nivels sociais ameagam. se tornar autdnomos four court ¢ gerar uma figura idealégica muito diferente em complexidade ~ nao mais aquela figura progressiva do estagio anterior da modernidade, mas a da multiplicidade dispersa ¢ da fissio infinita. © que essa interessante figura da diferenciagao social ceria a oferecer para uma teoria da producao Utépica? Creio que podemos comegar pela proposigao de que o espago Usdpico é um enclave imaginario dentro do espago social real — em outras palavras, pela proposigia de que a possibilidade mesma de espago Urdpico ¢ resultado da diferenciagdo espacial ¢ social. Trata-se, porém, de um subproduto aberrante, ¢ sua possibilidade depende da formacao momentinea de um tipo de redemainho ou represamento autocontido dentro do proceso de diferenciagdo geral ¢ de seu fmpeco aparentemente irreversivel, Esse bolsio de estase no interior das forgas de mudanga social, em fermentagao ¢ aceleradas, pode ser pensado como um tipo de enclave dentro do qual a fantasia Urdpica pode operar," Esta é uma figura que entio nos permite combinar duas caracteristicas até agora comtraditérias da relugde entre a Utopia ¢ a realidade social; por um lado, sua existéncia ou emergéncia certamente registra a agitagdo dos varios “periodos rransicionais” nos quais a maioria das Usopias fol formulada (0 propria termo “tansicional" yeicula ese sentido de {mpeto); enquanto, por outro lado, cla sugere a distincla que separa as Utopias da politica pritica — disedncia fundamentada na existéncia de uma yona da toralidade social que parece eterna ¢ imodificdvel, mesmo dentra dessa fermentagao social que atribuimos 4 prépria época. A corte, por exemplo, oferece uma figura de um espago fechado para além do social, um espago do qual o poder emana a distancia, mas que nao pode, cle mesmo, ser pensado como modificdvel, a nao ser naqueles raros momentos em que a politica revoluciondria balanga todo © edificio social. Para as primeiras Uropias, portanto, a figura da corte como um enclave a-histérico dentro de um agitado movimento de secularizagao ¢ desenvolvimento nacional ¢ comercial oferece um tipo de espago mental no qual todo o sistema pode ser imaginado enquanco radicalmente diferente, Mas, certamente, esse espago de enclave nao ¢ senda uma pausa no impero totaliante de diferenciagéo que o aniquilard algumas décadas mais tarde - ou, pelo menos, o reorganiza ¢ o submerge na sociedade secular ¢ no espago social, Os Urépicos, no entanra, reflerem essa cegueira ainda nao revoluciondria quanto a possiveis modificagées no sistema de poder, ¢ essa cegueira é a forga deles, na medida em que ela permire que sua imaginagdo pule o préprio momento da revalucao ¢ posrule uma sociedade “pds-revoluciondria” radicalmente diferente. Para mencionar outro desses enclaves, 0 Aebby do século XVIII de eshocar novas constituigdes - que pode ser observade no context Instrutive da produgio de fantasia mais geral (¢ diferenciada) de Jean- Jacques Rousseau — ilustra de outro modo o sentido da diferenciagao entre o poder administrative ¢ burocratico ¢ a vida social em geral, ¢ as possibilidades que esse enclave diferenciado abre para a reconstrugio Urdpica, até que no século XIX ele de repente se estende para a propria sociedade ¢ jd ndo estd mais dispontvel para a especulagéo utépica, tendo se tornado difuso ¢ na verdade praricamente coextensive & nova sociedade industrial. A visko Urdpica da reorganizagio burocritica de Saint-Simon talvex tenha sido a ttima até chegarmos ds atividades constitucionals da Marte de Kim Stanley Rebinson, que refletem o surgimento de novas burocracias transnacionais — com certa ONU galactica ¢ sistemas corporativos multiplanctirios. Essex enclaves xio como um corpo estrangeiro dentro do social; neles, o proceso de diferenciagao foi momentaneamente detido, de modo que permanecem como se estivessem momentaneamente para além do alcance do social ¢ testemunhassem a impoténcia politica deste, ao mesmo tempo em que oferecem um espaga no qual novas imagens de anseios do social podem ser elaboradas ¢ experimentadas. f asim que, apesar do alvarogo comercial da Londres de More, a forma-dinheiro ainda ¢ relativamente isolada ¢ esporddica no mundo agricola que a circunda — 0 cercamento sera o passo essencial que abrird esse velho mundo ao trabalho assalariado. Podemos, assim, afirmar que a forma-dinheiro levava um po de existéncia de enclave no momento histérico de More, uma figura cognata Aquela famosa proposta por Marx, sobre o papel Internacional do dinheito em um periodo anterior: “Povos propriamente comerciantes existem apenas nos intermindios do mundo antigo, como as deuses de Epicuro, ou nos puros da sociedade polonesa, como os judeus”.” Aqui também, Resse momento ainda em grande medida medieval da “primeira modernidade", « dinheiro e 9 comércio permanecem episddicos, encarnados na ostentagdo decorativa de ouro, por um lado, ou na excitagio das grandes feiras, por outro; mas esse estacuro de enclave do dinheiro € precisamente o que permite a More fanrasiar sua climinagao da vida social em sua nova visio Udpica, Trata-se de uma auséncia que se tornard impensivel quando o uso do dinheira for generalizado a todos o« setores das economias “modernas”, quando entio a especulagio Utdpica tomar a forma de varias substituigdes: papel timbrado, certificados de trabalho, um retorno a prata ¢ assim por diante ~ nenhum dos quais oferece possibilidades Utdpicas muito convincentes, Entretanto, o paradoxo que a fantasia de Mare nos permite vislumbrar ¢ 0 modo pelo qual ese enclave monetdrio, ewe estranho corpo estrangeiro como momentancamente sc aprescntam o dinheiro ¢ © ouro, pode, a um sé tempo, ser fantasiado como a raiz mesma de toda maldade, fonte de todos ox males sociais, ¢ como algo que pode ser climinado completamente na nova formagio social Utdpica. O enclave irradia um poder sinistro, mas ao mesmo tempo ¢ um poder que pode ser eclipsado sem deixar rastro, precisamente porque estd confinado a um espago limitado. Em Campanella, quase contemporaneo de Morte, 0 estatuto de enclave desempenha um papel algo diferente: ¢ porque o manastério é um enclave dentro de uma saciedade mais genericamente diferenclada ¢ complicada que ele pode ser generalizado para fora ¢ servir de modelo Usdpicu para uma simplificayéo © uma dixiplina social. A ironia do sucesso dessa Utopia da contrarreforma entre os protestantes deve ser explicada pela observagio de Weber: a eliminagdo protestante dos monastérios tornou o mundo todo um imenso monastério no qual, como colocou Sebastian Franck, “cada cristio devia ser um monge ao longo de toda sua vida". Uma inversio similar acontece em Bacon, para o qual a emergéncia do enclave da ciéncia secular ¢ de suas cpisddicas redes transacionais, prenunciando a fundagio da Royal Society, determina a fantasia de todo um mundo organizade segundo os novos principios da pesquisa clentifica. Ambos exes modelos, que empregam idcologias de novas ¢ velhas formas do Intelectual, tm um poder de atracao sobre os intelectuais em suas variadas versées modernas, uma vez que o intelectual é, esencialmente, o habitante de tais espagos enclavicos, Isso ¢ algo que os marcianos de Kim Stanley Robinson chegam a compreender, a medida que seu ambiente social gradualmente cresce ¢ se diferencia: Quando chegamos pela primeira vez, ¢ ainda por vinte anos, Marre era come a Ancirtica, avis ainda mais pura. Estdvames fora do mundo; ads nem possuiamos colsas — algumas roupas, wm arril ¢ sd |...) Esse estade de coisas lembra o modo pré-histérico de viver ¢, portanta, nos parccia correro, porque nossos cérebros o reconheciam de trés milhdes de anos 0 praicando, Essenclalmente, nossos cérebros creseeram até sua configuragao atual em resposta as renlidades daquela vida, Entie, por consequéncia, as pessoas se tornam fortemrente apegadas iquele tipo de vida, quando tém a chance de vivé-lo, Ele permite que vocé concentre sua atengdo no trihalho real, a que significa tudo o que se fiz pars manter-se vivo ou para fazer coisas ou satisfaver sua curiosidade ou brincar. Isso ¢ utopia, John, especialmente para os primitivos © cientixtas, ‘ou seja, pant todo mundo, Assim, uma estagdo de pesquisa cientifica é, na verdade, um pequena modelo de utopia pré-histirica, extraido da cconomla monctiria transnacional por primatas Intcligentes que querem viver bem." A auséncia de dinheiro = principio fundamental de More - é pré- condicdo para essa Uropia de enclave, mas nado mais seu foco rematico, enquanto a defesa instintiva - poderiamos dizer até mesmo sociobiokigica - da Utopia como uma vida pré-monetiria lembra o comentario de id sobre a auséncia de dinheiro no inconsciente, ou mesmo a consideragao de Habermas do dinheiro como o “ruida” em um sistema essencialmente comunicativo,? Essa nota antropoldgica também nos recorda do desenvolvimento seguinte da forma Urépica, que ¢ possibilitado pela exploragao geografica c pelas narrativas de viagem dela resultantes, que sc combinam com o materialisme filosdfico para produzir uma experiéncia nova e geogrifica do enclave, na qual novas informagées sobre socicdades tribals ¢ sua dignidade quase Urdpica sio conjugadas com o determinismo climataldgica de Montesquieu. A narrativa da viagem exdtica, ao lado das Fantasias quase Utdpicas de Rousseau sobre espacas fechados como a Palénia ou Cérsega,'* se desenvalye em virias ideologias pds-Utépicas influentes — mais diretamente, no primitivismo reavivado por Lévi-Strauss « no estudo renovado do comunismo primitive ou da sociedade tribal,'* bem como, mais indiretamente, nas clausuras nacionalistas, por um lado, que propiem, em grande medida, uma secessio geogrdfica enquanco unicidade racial e, por outro, na ecologla, que reemerge da clausura do préprio planeta. Com a era burguesa ¢ Fourier, porém, algo nove comega a aparecer: o dominio da subjetividade, que Rousseau ainda mantinha separado de suas fantasias politicas sobre a vircude plutarquiana — uma construgio verdadciramente nova da sujeito ou da psique que a posterior disciplina da psicologia tentard colonizar ¢ sobre a qual a psicandlise freudiana iri estabelecer sua cabeya de prala. F caracteristica dessa produgio do novo individualismo ¢ de suas subjetividades que estas sejam agora pensadas como incomensurdveis em relagio As questées dridas e aparentemente mais objetivas de construgio social ¢ da arte de governo Utdpica, O espetacular conjunto de permutagoes Utdpicas de Fourier ¢ a dltima tentativa de solugées corajosax para essa incompatibilidade que alvorece, ma medida em que objetividade ¢ subjetividade sia reconciliadas em um conjunto de tarefas objctivas que correspondem 4 nova multiplicidade de paixdes subjetivas ¢ sto organizadas por valores feministas ¢ anticapitalistas, Depots da grande sintese de Fourier (que tem sido comparada as complexidades da dialética hegeliana),”” esse novo enclave psiquico que é a subjetividade burguesa ou moderna serd tratado essencialmente naquele codicilo & parte chamado revolugao culcural, Chernyshevsky ¢€ 0 grande precursor dessa revolugio paralela ¢ levanta, de uma sé vez, todas as questées feministas ¢ de género [gender] que dominaraio as utopias contemporaneas, enquanto deriva sua revolugdo econémica cooperativa. da industria cascira especificamente identificada pelo trabalho de mulheres, a saber, as oficinas téxteis de Vera Petrovna. Na maior parte dax veves, no entanto, a emergencia de uma nova ordem industrial iri reconfirmar aquela diferenciagdo moderna fundamental entre o subjetivo ¢ o abjetive, ¢ o paradigmatica sucesso de Bellamy se deve & forma Urdpica pela qual ele acolhe ¢ “resolve” o problema da industria ¢ da tecnologia,'" enquanto a contraposicio de Morris, seguindo a distancia os luddistas,'” se mantém reariva em sua teneativa de resgarar o trabalho nao alicnado da monotonia do trabalho fabril — um trabalho que, no entanto, reHete © expressa, em um registro diferente, a nova autonomia da arte, também gerada pelas diferenciagdes do moderno, Outro enclave potencialmente Utépico surge ness momento, entre © espago ¢ o urbanismo; nele, a Utopia da cidade jardim aparece" ¢, na préxima geragio, aquela da Bauhaus ¢ de um tipo bem diferente de arquitetura moderna revoluciondria. Diferentemente de Morris, esses esforgox mostram a influéneia renovada do conceito de secessio Urépica: as varias cooperativas anarquistas, por exemplo, ¢ as comunas rurais que a elas se seguiram muito mais tarde, nos anos 1960, sia todas baseadas em uma ideia de clausura urdpica que a Utopia j4 suburbana de Skinner talvez mio expresse de modo suficientemente programatico, A industrlalizagio aumenta muito a riqueza das nagées — o assim chamado Intelecto Geral de Marx se espalhando por toda & ordem social -,'" mas nao ¢ sentida, no periodo moderno, como tendo colonizado completamente o espago social a ponto de fechar todas as brechas ¢ tornar uma saida de tipo enchivica Impossivel. De fato, ¢ precisamente o fechamento dessas brechas — ¢ 0 advento da perspectiva de um Mercado Mundial concreto - que é agora chamado de pés-modernidade - ou globalizayao -. o que prenuncia um fim para esse tipo de fantasia Urdpica. Ao mesmo tempo, um tipo de desdiferenciagio j4 camega a reaparecer na era moderna, registrada na fusdo, a partir de Bellamy, entre Utopia ¢ socialismo. J4 indicamos que o gesto utépico inicial de More —a abolicao do dinheiro ¢ da propriedade — atravessa a tradicao Urdpica coma um fio vermelho, ora agressivamente afirmado na superficie, ora tacltamente pressuposto em formas ¢ disfarces mais singelos, (De fara, um olhar atento ao texto de More obviamente estd em nossos planos ¢ serd levade a cabo no préximo capitulo.) Mas a confluéncia entre socialismo ¢ a forma Utépica obviamente apresenta alguns problemas para a autonomia da tltima, parecendo relegar esta ao estaruto secundirio de ilustragaa ou propaginda, As utopias comunistas formam um subconjunto especial desse grupo, uma vex que refletem o fechamento ¢ a secessio Internacional desse enclave chamado “socialismo de um s6 pais"; clas sio, ademais, pos- revoluciondrias; parecem expresar um imperialismo Utdpico que busca conquistar mundos distantes, tanto geogrifica quanto clentificamente - como em Bogdanov ou Efremov -, ou regredir, como nas pastorais do realismo socialista, ao que temas chamade de metas expressées do impulso Urdpico,”” Existem ainda Utopias que expressam a profunda desilusio com a estagnagio ou desnaturalizagao da Utopia original de Lénin - aquela obra ambigua, We, de faco demonstrou ser, a um sé tempo, tinto uma Utopia quando uma distopia.”! Mas a histdria da aventura comunista nao coincide com a histéria do socialismo; e ¢ dificil ver como os problemas da sociedade industrial ¢m processo de modernizagdo poderiam ser resolvidos sem as solugies Utépicas ofcrecidas pelo socialismo. © terceiro estagio da capitalismo, no entanta, que s¢ estabeleceu pela tecnologia radicalmente diferente da cibernética ¢ dos computadores, parece agora ter tornado os dilemas da industria pesada ¢ da produgdo fabril moderna obsaletos, o que permite um retorno 4s utopias nao socialiscas, como as do anarquismo de Nozick ou aquelas implicitas no romantismo do capital financeiro encontrado no cyberpunk, O espace ciberndético é, de fato, um enclave de um novo tipo, uma subjetividade que é objetiva ¢ que — camo a tearia dos sistemas de Luhmann, mas também como o estruturalismo ¢ o pés-estruturalismo que o precedem — suprime, uma vee mais, o “sujeito centrado” ¢ se prolifera de modos novos, péds- individualistas. Esses modos, no entantoa, nao podem ser sendo coletivos — embora também em formas novas ¢ irreconheciveis — ¢ tentiremos, cm um capitulo adiante, reidentificar a fungde polftica vital que a Uropia ainda pode desempenhar hoje. 3. Morus: a janela para o género Poderiamos inventar um modo de ler Utopia (1516), de More, que tecuperasse algo do choque ¢ do frescor que seu neolatim clegante teve para seus primeiros leitares europeus? Nao sio scus componentes, no entanto, nem mesmo scus modos individuais, mas, antes, a combinagio insdlita de conotagées até entio nao relacionadas que forma esse Adpax fegdmtenon' do gencro, além de um tipo de sintaxe que poderia ordinariamente ser tomada por “humanista", mas que se encontra estranhamente transformada como parte de uma mensagem complexa que é, ela mesma, um tipo semantico tinico, Ja desde o comego, na entanto, temos de tomar uma decisio que nos colocaré diante de duas interpretagéecs distintas, uma vez que o Livro Dois, a parte propriamente Urdpica do texto, foi, como se sabe, escrito primeiro, Devemos, pois, incorperar esse conhecimento filolégico ¢ tratar o Livro Um como um tipo de segundo pensamento ou come uma recontextualizagao cautclosa ¢ politicamente prudente - embora também ousada - da descrigdo da prépria Ilha, que se distanciaria cautelosamente dos cntusiasmos de Hitlodeu ¢ limitaria suas apostas? Ou devemos permitir que a ordem atual continue a ditar um dinamismo processual no qual a visio Utdpica emerge dialeticamente das préprias contradicées da Parte Um tanto quanto do presente histérico? Esta segunda leitura alternativa, bem como a decisio interpretativa que ela exige — para que se tome seriamente a visto de More - sio reduzidas ¢ caricaturadas pela posicic revisionista ¢ antilképica - que parece sempre reemergit em periodos de estagnagao politica -. segundo a qual a “Utopia” seria, na verdade, apenas um jew desprit ¢ que os nomes idiotas (Hitlodeu = Nonsenso etc)’ deveriam ser tomados satiricamente. O melhor método é sempre o de wansformar o problema em solugao ¢ fazer dessa alrerndncia objeriva ¢ incompatvel um fendémeno interprerativa de um (meta)nivel mais clevado.' Aqui, leitura ec interpretagao se deparam com © binarismo ético fundamental em toda sua forga, ¢ somos imediatamente demandados a tomar uma posigie sobre essa questio idcoldgica par excellence, que ¢ também a questio politica fundamental ~ a saber, se as Utopias sto positivas ou negativas, boas ou mis. Nao se deve, porém, perguntar isso no inicio, mas no fim; ¢ os sinais interpretativos iniciais, aqueles que fazem girar a coda hermenéutica em algum nivel externo de leitura ¢ deciframento, serio préprios ao género. O género supostamente domina a interpretagio dos detalhes narrativas ou representacionais dentro de sua moldura, ¢, ne texto de More, ele oferece uma alternativa telativamente forte ¢ global entre duas possibilidades. Mas clas nio sig, penso cu, aquelas propostas acima, entre a Utopia tomada serlamente, como um projeto social € politico, © © pensamento Urépico ridicularizado como um sonho impossivel. Tampouco essa oposigho corresponde 3 grande proposigio dialética de Robert C, Elliott, segundo a qual a Utopia, como um género, seria o oposto ¢ 0 inverso estrutural da sdtira.’ Pois o que Elliott entendia por sdtira nao era a rejeiggo antipolitica de programas Utdpicos irrealistas ¢ extravagantes, como a aholicae do dinheiro ¢ da propriedade privada, mas, antes, o ataque apaixonado e profético 4s condigées aruais ¢ 4 maldade ¢ & estupidez dos seres humanos no munda cafdo do aqui ¢ agora, Posto desse modo, podemos ver que a alrernativa genérica de Elliott corresponde, antes, basicamente, 4 oposicae entre os dois livros de Utopia, ¢ disso segue que a interpretagao genérica do texto camo um toda dependerd, em grande medida, de qual parte tomemos como sendo prioritdria © oferecendo a chave hermenéutica fundamental. Lapp. se afirmarmos a primazia do Livro Um, quereremas colocar_ em ptimeiro plano a sdtira c sua estrutura genérica; se afirmarmos u primazia do Livro Dois, ¢ na medida em que a Wropia como um género ainda nio existia, ser a narrativa de viagem que estabelecerd o programa genérico, Independentemente do que mais cla faga, a narrativa de viagem marca a Utopia como um outro irredimivel ¢, assim, formalmente ow quase que por defini¢ao, impossivel de realizagao, Ela reforga, assim, a secession constitutiva da Utopia, uma retirada ou “dissociagio” do mundo empirico ¢ histérico que, de More i Frotopia, de Ernest Callenbach, problematiza seu valor como um modelo global - se ndo universal - ¢ desconfortavelmente reorienta 0 olhar de leitor para justamente a questio de sua realizagio politica pritica, que a forma prometia evitar em um primeiro momento. (Essas contradigées si0 claramente modificadas quando a Utopia ¢ estabelecida em um fucuro temporal, em vez de a uma distancia geogrifica; mas, na fim das contas, hoje © espace estd, uma vez mais, na agenda pos-moderna.) Mas a politica Urépica tem lugar nessa lacuna entre a recém-criada ilha de Liopus ¢ scus vizinhos nao Uidpicos: ¢ essa lacuna é o ponte no qual o Utopianismo de More comega a parecer Indistinguivel da pritica de Maquiavel - cuja codificagdo, como notado anteriormente, € praticamente contemporinea ao texto de More, Como com a construgio imaginarla da Quimera, mesmo um nao lugar deve ser montado a partir de representagdes jd existentes. De fato, © ate da cor gdo ¢ as matérias-primas assim combinadas constirucm a mensagem idcalépica. Nao podemos tentar ler o Livro Dois coma uma narrativa de viagem genérica sem nos esforcarmos para ver o lugar ¢ sentir aquele exotismo que ele oferece de modo singular, Penso nas figuras de Dante ¢ Giorto: uma estanuiria realista, mas sem quaisquer dos detalhes técnicos ¢ das verissimilirudes, complexas ¢ perspectivistas, da Renascenga — formas encobertas, cujas vestes ¢ dobras marcam uma relagdo conceitual com o mundo

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