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RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

Estados Unidos e América Hispânica:


espelhos para uma jovem República
Flávia Maria Ré 1

“- Que pensais do resultado da doutrina de Monroe?

- [...] Deixai-me contar o que ouvi, uma vez, de um pobre


homem no interior do Brasil. Perguntei-lhe qual a oração
que costumava rezar e ele disse-mo:

- Uma muito simples – e depois, acrescentou:

- Antes usava outra, que era esta: „Com Deus me deito e


com Deus me levanto, sob a guarda do Pai, do Filho e
do Espírito Santo‟.

- E por que não continuastes a rezá-la? – perguntei. – É


bonita.

- Ah, senhor! – replicou ele. – Disseram-me que eu


obrigava toda a Santíssima Trindade a ficar acordada
toda noite, enquanto eu próprio dormia profundamente.

Pois bem, transplantando-a do sacro para o profano, a


invocação da doutrina de Monroe pela América latina
recorda-me, por vezes, o escrúpulo tocante deste meu
patrício. Todos dormimos profundamente com as portas
abertas, enquanto ficas [sic] de vigia toda a noite”.

Entrevista do Embaixador Joaquim Nabuco publicada em


Chicago Tribune, 10 de julho de 1905.

1
Este artigo é a versão modificada do 2° capítulo da minha dissertação de Mestrado defendida junto ao
Departamento de Ciência Política da USP, sob o auspício da CAPES. Agradeço aos pareceristas da
revista pelas valiosas sugestões feitas com base em atenta leitura da primeira versão, cabendo-me,
naturalmente, a exclusiva responsabilidade pelo texto final.

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Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

Resumo

Este texto tem como objetivo trabalhar com a reflexão dos


intelectuais brasileiros sobre os Estados Unidos e a América Latina no
contexto conturbado dos primeiros anos da república brasileira, ainda
muito marcada pela instituição monárquica. A escolha dos autores
presentes neste artigo, assim como o enquadramento por nós
empreendido no interior do trabalho foi intencional no sentido de deixar
claro que os brasileiros passaram a olhar com mais atenção os
exemplos fornecidos pelo continente depois da Proclamação da
República. Porém, a divisão do texto em duas partes busca evidenciar
também duas visões conflitantes nesse período em relação ao
processo de “americanização republicana”. A primeira parte é dedicada
às primeiras críticas à política de aproximação com os Estados Unidos,
cuja obra de Eduardo Prado, A ilusão americana, seria a marca dessa
vertente. Na segunda parte, procuramos mostrar como dois autores,
Joaquim Nabuco e Oliveira Lima, ainda fortemente atrelados às
concepções monárquicas, iriam buscar o exemplo, tanto institucional
quanto civilizacional, na imagem de república fornecida pelos Estados
Unidos, ao mesmo tempo em que recusavam o exemplo e a
aproximação com os demais países latino-americanos. Nesse sentido,
já nos primeiros anos da república, pudemos ver de forma mais
explícita em Oliveira Lima as concepções de base racial e civilizacional
guiando fortemente sua interpretação. Nesse sentido, se formos
capazes de demonstrar que a discussão em torno do Pan-
americanismo no Brasil e da escolha por uma aproximação com os
Estados Unidos tinha um forte viés fincado na questão da raça e da
civilização, talvez possamos contribuir para iluminar uma face das
relações entre o Brasil e as Américas desenvolvidas sob a política do
Pan-americanismo na Primeira República.

1. Introdução

Com o advento da República, a política externa brasileira voltou-se para


uma deliberada aproximação com os Estados Unidos, país que reconhecera,
quase de imediato, o novo regime político do Brasil. Contudo, isso não
significou que tivessem sido abandonadas as ligações com a Europa,
especialmente com a Grã-Bretanha, marca registrada das nossas relações

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exteriores durante o Império2. Porém, nem o processo de “americanização


republicana”, nem a aproximação com os Estados Unidos eram unanimidades
no Brasil no final do século XIX. Parte dos intelectuais da época tinha severas
críticas a essa política e aos seus propositores. Em livros, na imprensa e no
próprio Congresso, homens públicos discordaram exaltadamente do que
consideravam uma abdicação da soberania ou uma armadilha imperialista, no
caso das relações com os Estados Unidos. Havia também aqueles que
discordavam do que consideravam uma “desastrosa” solidariedade latina entre
os países ao sul do continente.
Nesse sentido, dizia Rio Branco no seu ofício de 12 de junho de 1902,
que “ela [a Doutrina de Monroe] tem sido até hoje um espantalho para impedir
intervenções européias, e nos tem servido de muito em algumas ocasiões”
(Apud Lins,1965, p. 249). Euclides da Cunha, por sua vez, refere-se ao nosso
recuo espavorido diante do “espantalho do perigo sul-americano” (Cunha, 1995,
p. 194). A linguagem fantasmagórica de dois dos maiores personagens da
República brasileira reflete a preocupação em torno da Doutrina Monroe e do
tema do Pan-americanismo que conviveu paralelamente, no Brasil, nas
primeiras décadas republicanas, com o debate acerca da superação da
Monarquia e da construção da República recém proclamada e da transição do
trabalho escravo para o trabalho livre e assalariado.
A partir de meados do século XIX teve início entre os pensadores do
continente americano um forte debate em torno da polêmica Doutrina Monroe.
Também no Brasil, cada um, ao seu modo, procurava justificar sua posição
política; ora condenando-a como expressão do imperialismo ianque; ora
defendendo-a como forma de proteção dos países americanos em relação aos
perigos externos; ou ainda, como uma forma de integração dos países do
continente (Cf. Pereira, 2006, p. 59). Na primeira década republicana, diante do
quadro internacional que se apresentava – com os rumos das Repúblicas

2
Com a Proclamação da República em 1889, a diferença de regime não mais existia como elemento de
diferenciação e distanciamento entre o Brasil e as Repúblicas hispano-americanas. Entretanto, o Brasil
republicano reforçaria assim, uma tendência de aproximação com os Estados Unidos. Como observa
Oliveira Lima: “De começo o Império tinha contado muito com a simpatia britânica porque a cisão do
Reino Unido favorecia os interesses comerciais ingleses, e da Inglaterra se importou o constitucionalismo
como sistema de governo; mas a tendência de aproximação política foi mais pronunciada para o lado da
América do Norte. Das repúblicas neo-espanholas distanciavam o Brasil antipatias peninsulares herdadas
e transplantadas e prevenções filiadas na sua natureza imperial que parecia pronunciar absorções e
emulações”. (Oliveira Lima, s. d., p. 469-470).

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hispano-americanas e a preponderância no continente dos Estados Unidos –


muitos pensadores brasileiros foram buscar na América hispânica e ou nos
Estados Unidos referências para reforçar suas concepções políticas, fossem
elas Monárquicas ou Republicanas.
Cabe lembrar que nesse momento a problemática brasileira passa a
existir como parte de um sistema mais abrangente, o das Américas, pois a
planta “exótica” do continente havia sido arrancada com a República. O
movimento da neocolonização, agora sob o controle norte-americano, a
aproximação ideológica com os Estados Unidos, em detrimento de suas antigas
relações com a Europa e a experiência de uma instabilidade político-financeira
tanto do Brasil, quanto das suas vizinhas repúblicas sul-americanas,
impulsionaram as interpretações continentais, a auto-análise, a investigação de
seus elementos constitutivos e das diferenças culturais entre os países
americanos. Houve, neste período, um evidente fortalecimento de uma
consciência americana no Brasil, ainda que o exemplo norte-americano tenha
sido aquele que ganhou a adesão efetiva da maioria dos intelectuais 3.
O contexto internacional, marcado pela corrida imperialista entre os
países centrais, também trouxe para a ordem do dia reflexões em torno das
representações daqueles países em sua relação com o Brasil. As operações
políticas com os Estados Unidos e com o continente americano, ganhando
forma através do monroísmo e sob a égide da política pan-americanista,
começavam a ganhar importância para os intelectuais do período que
principiaram a conferir-lhes sentido e os rumos que seriam, mais tarde, em
linhas gerais, retomados e aprofundados por Rio Branco.
Desse modo, no contexto mais amplo do debate político-intelectual da
Primeira República, surgem interpretações concorrentes a respeito das
possibilidades de os Estados Unidos, como civilização e ordem institucional,
constituírem um modelo nesse campo para o Brasil. Ao mesmo tempo,
colocava-se também a questão de saber o quanto de fato o país pertencia, ou
poderia pertencer, a uma desejável ou não, unidade continental, incluída aí a
América hispânica.

3
Sobre o período em questão, Antonio Candido, expressa que “foi nele que se desenvolveu a reflexão
mais sistemática sobre a América Latina, em escritos devidos a homens de elevado porte mental, como
Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Eduardo Prado, Oliveira Lima e um menos ilustre mas sem dúvida mais
lúcido neste terreno, Manoel Bomfim”. (Candido, 1993, p. 132).

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O meio intelectual brasileiro do final do Império e começo da República


colocou-se no centro desse debate e dos variados embates políticos que o
tema da americanização republicana suscitou. A discussão e o aparecimento
de obras em torno do tema do Pan-americanismo deram-se entre os partidários
de vários matizes do novo regime e seus adversários de toda ordem, não
apenas monarquistas, mas republicanos, críticos aos rumos referentes à
inserção internacional do Brasil, ou já desiludidos ou inconformados com a
tibieza e lentidão das mudanças internas do país.
Nesse sentido, Angela Alonso, ao analisar o debate político-intelectual
da primeira década republicana, salienta que o golpe republicano de 1889
suscitou manifestos, ensaios, romances, historiografia, memórias e auto-
biografias que permitiram mapear duas principais movimentações intelectuais
nesse período. Enquanto os republicanos escreveram, como era de se esperar,
legitimando o novo arcabouço político e a sociedade nova que também se
estabelecia, os monarquistas por sua vez, escreveriam louvores ao antigo
regime e à sociedade aristocrática que estava desmoronando juntamente com
eles4.
O combate à tradição imperial ficou acirrado e violento no segundo
governo da República. Floriano Peixoto, ao assumir em fins de 1891,
centralizou o poder, nomeou jovens militares para o governo dos estados,
interveio na economia para conter a crise econômica do Encilhamento, fechou
jornais e decretou prisão de opositores. A ação de Floriano na repressão à
Revolta da Armada, com o auxílio norte-americano, ajudou a formar a imagem
de “consolidador da República” que adquiriu entre seus contemporâneos e na
historiografia. A ação de Floriano marca também o aparecimento de uma
corrente político-ideológica denominada jacobinismo5, que tem como marcas

4
Para Alonso, com a instauração da República, em 1889, o debate político-intelectual brasileiro ganhou
nova estruturação, sobrepondo duas clivagens: “A primeira refere-se ao contexto político e aos conflitos,
palpáveis e nevrálgicos, acerca do formato e dos mandatários do novo regime. [...] A outra clivagem,
menos lembrada, e de visibilidade mais difícil, diz respeito ao contexto social de luta entre os estratos
sociais dominantes na monarquia e os estratos ascendentes com o novo regime”. (Alonso, 2009, p. 133).
5
O florianismo ficou próximo a que Vovelle chamou de “jacobinismo transhistórico”: “o termo „jacobino‟,
assim como o conceito de jacobinismo, pertence a este registro excepcional em que uma palavra,
escapando de seu limite geográfico e do contexto histórico de seu nascimento, reveste-se de um
significado mais geral, que designa, para o bem e para o mal, uma atitude, um comportamento e até uma
visão de mundo. [...] o jacobinismo não remete diretamente a um sistema social ideal determinado. Ele é
geralmente associado ao sistema de valores nascidos da Revolução Francesa, mas seu conteúdo
democrático não é universalmente reconhecido. Ele chega a ser contestado, na medida em que seu
conteúdo é ambíguo e discutido (burguês ou popular?). Ao invés de se fechar em um programa preciso, o

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centrais o nacionalismo, o anti-monarquismo e o florianismo (Cf.QUEIROZ,


1986). O jacobinismo tinha como base a Primeira República Francesa e
consolidava a visão da nação em armas contra a ameaça monarquista – toda e
qualquer oposição ao grande líder passa a ser vista como uma ameaça às
próprias instituições frágeis da nascente república, que deveria ser protegida
acima de tudo.
Os monarquistas, que não aderiram em princípio à República,
bifurcaram-se em “monarquistas de espada”, como Saldanha da Gama, um dos
líderes da Revolta da Armada, que acabou por pegar em armas para defender
o antigo regime; ou, em “monarquistas de pena”, órfãos da sociedade de corte,
incluídos aí, tanto membros do extinto Partido Conservador, como Afonso
Taunay, Rio Branco e Eduardo Prado, quanto do movimento reformista, como
Rodolfo Dantas, André Rebouças, Joaquim Nabuco e Afonso Celso Junior.
Criaturas de uma cultura aristocrática e filhos da elite política imperial foram
ceifados pelo golpe de 1889, quando em preparação para assumir o controle
do país6:

O desaparecimento do Império pôs abaixo sua carreira política, a


perspectiva de futuro e o lastro social. Essa conjunção de estragos
gerou amarguras intensas. Com sua repugnância pelo belicismo, nisso
devedores de sua formação de corte, viram que seu terreno de briga era
a palavra. Em ensaios, manifestos, romances, defenderam a tradição
monárquica, que esboroava, e criticaram a republicana, que se
construía, concentrados em duas tópicas: a forma da mudança (o golpe
militar) e a arquitetura política do novo regime, de um lado, e os valores
e o estilo de vida da sociedade republicana, de outro (Alonso, 2009,
p.139).

Dentre os brasileiros que reforçariam suas concepções monárquicas,


buscando no continente americano exemplos para reforçar suas posições,
estariam, entre outros, Eduardo Prado, Joaquim Nabuco e Manoel de Oliveira
Lima. Embora em alguns aspectos divergentes, esses intelectuais debatiam a
política oficial “americanista” que se implementava desde a época da
proclamação da República. Eram monarquistas com uma bagagem pessoal

jacobinismo se caracteriza – como foi dito de diversas formas – por uma „maneira‟”. (Vovelle, 2000, p. 25-
26.)
6
Como seus sucedâneos franceses, “eles conservaram um prestígio tradicional, fortemente psicológico,
[..] mas tinham perdido as bases reais do poder. Foram incapazes de manter seu estamento”. (Auerbach,
2007, p. 247).

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predominantemente européia e exprimiram de maneira enérgica suas posições,


opondo-se ou aos Estados Unidos, como Eduardo Prado, ou à América
hispânica, como Nabuco e Oliveira Lima. Mas, ainda que a proposição
monárquica tenha sido embalada num período reconhecidamente marcado por
diferentes e acirradas polêmicas, pelas mais diferentes vozes, entre os
intelectuais das mais diferentes orientações ideológicas – no tom ameno do
consenso – , convém, contudo, não deixar que esse coro dos monarquistas
obscureça a compreensão das diferentes razões e sensibilidades latentes às
aparentemente unissonantes vozes dos seus defensores. A advertência de Karl
Mannheim parece válida no contexto: “Palavras jamais significam a mesma
coisa quando usadas por diferentes grupos, ainda que no mesmo país, e leves
variações de sentido nos fornecem as melhores pistas para as diferentes
tendências de pensamento numa comunidade” (Mannheim, 1986, p.81).
Assim, optamos por trabalhar com os textos de autores que foram
escritos durante a primeira década republicana. A opção por agrupá-los
decorre não tanto do fator cronológico, mas ao fato de que foram escritos num
contexto de grande instabilidade institucional em relação ao novo regime.
Como sabemos, o governo de Floriano fora muito conturbado: o militarismo, a
crise econômica, a intervenção estrangeira dos Estados Unidos para conter a
Revolta da Armada, a Revolta Federalista no Rio Grande do Sul, além do
enfrentamento entre jacobinos e monarquistas em tumultos urbanos. A época
era, para além de mudanças, de muitas críticas. Nesse sentido, Eduardo Prado
aproveitaria para direcioná-las tanto sobre a nova ordem institucional quanto ao
repertório de idéias que legitimavam o novo regime, qual seja, a crítica ao
americanismo republicano – crítica essa que já vinha estampada no título do
seu livro: A ilusão americana. Rui Barbosa, no calor da hora, aproveitaria a
repercussão do livro de Eduardo Prado para criticar os rumos militaristas e pró-
Estados Unidos que a república que ajudara a construir estava seguindo.
Já Joaquim Nabuco e Oliveira Lima, ambos monarquistas, que não
aderiram de imediato ao novo regime, buscaram além da crítica institucional,
pensar o lugar no Brasil no processo civilizatório e a principiar a discussão sobre
o Pan-americanismo. Com a República, começávamos a nos afastar da Europa,
mas começávamos também a olhar para a civilização que se desenvolvia no
Novo Mundo. Nesta direção, na segunda parte deste texto, pretendemos

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compreender de que forma esses dois intelectuais construíram, ainda no


ambiente conturbado dos primeiros anos da república, imagens diferenciadas
sobre os Estados Unidos e a América Latina. Essas imagens pautavam-se, por
um lado, na visão dos problemas e questões concomitantemente postas ao
Brasil e aos demais países do subcontinente, formados em sua maioria por uma
população mestiça, como o Brasil; e do outro, pelo modelo de república
civilizada, moderna e composta predominantemente por uma população branca,
representado pelos Estados Unidos.
Diante das imagens construídas por Nabuco e por Oliveira Lima – este,
de modo muito mais explícito do que o primeiro – e das interpretações delas
decorrentes, pensamos não ser infundado buscar demonstrar que a escolha
pela aproximação com os Estados Unidos, em detrimento de uma aproximação
com os demais países do continente, para esses autores, tinha estreita relação
pautada pela questão racial e civilizacional do período. Procuraremos, dessa
forma, jogar luz sobre esse aspecto do relacionamento entre o Brasil e os
Estados Unidos, que se estabeleceu, nos primeiros anos do século XX, no
interior do Pan-americanismo e tentar demonstrar que, ao terem em vista
contribuir para os processos de construção do Estado-nação e de modernização
do Brasil, esses autores construíram uma interpretação que via na solidariedade
e na aproximação com o país do norte do continente a possibilidade de se
equiparar com aquela civilização, diferentemente dos resultados possíveis com
uma aproximação com os países latino-americanos.

2. As primeiras críticas à “ilusão americana”

Eduardo da Silva Prado (1860-1901) foi um dos mais ferrenhos críticos


da República brasileira recém proclamada e da política Pan-americanista.
Eduardo Prado era membro de uma das famílias mais ricas de São Paulo, cuja
fortuna tinha origem na agricultura (açúcar e, principalmente café) e no
comércio. Cresceu cercado pelo luxo do salão de sua mãe, Veridiana Prado, no
bairro de Higienópolis, um dos pontos mais importantes de encontro da vida
intelectual e artística da cidade. Depois de formar-se em Direito pela Faculdade
do Largo de São Francisco em 1881, iniciou uma viagem ao redor do mundo:

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durante quatro anos visitou a Europa, o Oriente Médio e os Estados Unidos7.


Em 1886 fixou residência em Paris, tornando-se o local um ponto de encontro
favorito entre os intelectuais de língua portuguesa: freqüentavam o salão
parisiense de Prado desde exilados literários como Eça de Queirós e Ramalho
Ortigão, a brasileiros como Rio Branco, Domício da Gama e Joaquim Nabuco
(Cf. Skidmore, 1994, p. 53-70).
Após a derrubada da monarquia, Eduardo Prado mergulhou num ataque
frontal à república8. Inicia seu ataque às instituições republicanas já em 1889,
na Revista de Portugal (de dezembro de 1889 a junho de 1890) publicando uma
série de artigos ácidos contra o novo regime, reunidos depois em livro intitulado
Fastos da ditadura militar no Brasil. Nesses artigos, Prado “conseguiu realizar a
primeira sistematização das críticas à República brasileira, contendo já os seus
escritos a maioria dos elementos que caracterizaria todo o movimento
monarquista” (Janotti, 1986, p. 30)9. Prado permaneceu dois anos na Europa
depois de proclamada a república, lançando de lá suas criticas. Volta ao Brasil
em 1892, tornando-se um ativo participante do movimento monarquista. No ano
seguinte, publica o seu principal livro, A ilusão americana, de 1893 – cuja
primeira edição foi confiscada pelo governo republicano10.

7
Essas experiências lhes renderam a base de uma série de artigos de viagem sobre centros urbanos:
“Chicago é a cidade mais brutal do mundo. Estou na realidade extenuado com a viagem e ansioso para
ver-me livre deste país que é uma fornalha e onde para abrir-se a boca paga-se um dólar e outro para
fechar-se. Decididamente o mundo é Paris”. (PRADO, 1902-1903 apud SKIDMORE, 1994, p. 54). Pode
ter havido outro fator para que Prado atribuísse tanta antipatia aos Estados Unidos, como sugere Gilberto
Freyre: “Há quem atribua – recolhemos a informação de pessoa idônea, antigo Ministro de Estado que
teve acesso a documentação numerosa e a gossip quase oficioso sobre as atividades brasileiras no
estrangeiro – o ódio sistemático em que se aguçou em Eduardo Prado a antipatia [...] aos Estados
Unidos, a certa experiência infeliz que o ilustre paulista teria tido em barbearia elegante daquela
República: erradamente tomado por negróide – era de fato muito moreno, podendo ser confundido com
um indiano em trajo tropical – teriam lhe recusado serviço na tal barbearia, alegando o „color bar‟. Que o
estrangeiro desculpasse, mas aquela „shop‟ era só para gentlemen brancos. O ressentimento pessoal,
estendido a atitude de publicista, explicaria o antiianquismo sistemático que fez Eduardo Prado – na
Europa tratado como um príncipe [...] escrever um dos livros mais veementes aparecidos no Brasil na
época: A ilusão americana”. (Freyre, 2000,p.152).
8
A defesa apaixonada de Eduardo Prado pela Monarquia não encontrava ressonância em sua família.
Eduardo era o quarto filho homem de Veridiana Prado. O mais velho, Antonio da Silva Prado, grande
cafeicultor, teve intensa vida política: foi Ministro da Agricultura (1885), Ministro dos Negócios
Estrangeiros (1888) e Conselheiro do Império. Abolicionista de última hora, aceitou a República,
elegendo-se em 1890 deputado à Constituinte. Foi prefeito de São Paulo de 1899 a 1910 e, em 1926,
com 86 anos, foi um dos fundadores do Partido Democrático de São Paulo. O segundo filho, Martinico
Prado, também fazendeiro, era republicano de longa data. Caio, o terceiro, faleceu em 1889.
9
Os títulos são: “Destinos políticos do Brasil”; “Os acontecimentos do Brasil”; “Práticas e teorias da
ditadura no Brasil”.
10
O livro de Eduardo Prado (1860-1901) contra um relacionamento mais estreito com os Estados Unidos
não foi bem visto no momento em que Floriano Peixoto buscava o apoio norte-americano para conter a
ameaça dos seus oficiais rebelados, em um meio bastante conturbado, decorrente da Revolta da Armada.
Quando esta fracassou, foi forçado, junto com outros monarquistas, a fugir do Brasil. Sob o decreto de
sua prisão, Eduardo Prado deixa o Brasil em 1894 e, no ano seguinte, ao regressar, torna-se proprietário
do jornal O Comércio de São Paulo, principal órgão, durante os seis anos seguintes, de disseminação da

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Eduardo Prado não teceu críticas apenas à República brasileira, mas


estendeu-as a todas as repúblicas americanas, dos Estados Unidos aos países
hispanos. A comparação extremamente negativa das repúblicas hispânicas
serviria como mote para criticar o regime político brasileiro, como em artigo
denominado “Agouros e Presságios” – escrito durante a Presidência de
Prudente de Morais – ao comentar mais uma reeleição de Porfírio Díaz no
México:

A forma republicana na América Ibérica, como nos demonstra a


experiência de quase um século, é inevitavelmente militarista e pessoal.
É uma fatalidade histórica a que não é licito fugir. Debalde se têm feito
tentativas de governos civis. [...] Essa sombra apagada e triste, que se
chama um presidente civil, foi quase sempre imposta aos leitores por
algum caudilho, cansado de governar e que acha bom, por decência,
interromper um pouco o seu governo [...]. Ora, o governo continua
militarista sempre, embora o presidente não seja militar. [...] Uma
república sul-americana, sem o seu competente homem militar, é uma
coisa vaga, inquietante, é um estado de transição, um interregno triste e
pouco duradouro (Prado, 1959, p. 65-68).

O Paraguai também foi alvo de suas críticas. Estreitamente ligado à visão


oficial do Império que propagandeava o autoritarismo e a política agressiva de
Solano López como responsáveis pela deflagração da Guerra do Paraguai,
Prado conclui:

propaganda de restauração da monarquia e de ataques ao regime republicano. O jornal extinguiu-se em


1897, em meio ao clima antimonárquico exacerbado pelo conflito de Canudos, e Prado novamente deixa
o país. Retorna em 1898, em um ambiente mais tranqüilo, com a presidência de Campos Salles, dividindo
seus últimos anos de vida entre Paris e a capital brasileira, mantendo as suas concepções monarquistas.
(Cf. Skidmore, 1994, p. 53-70). A proibição, pela ditadura de Floriano de A ilusão americana, de nada
valeu. A obra ganharia ainda maior atualidade com o passar do tempo. O livro repercutiu, profundamente,
na opinião pública brasileira, como reconheceu Dunshee de Abranches, jornalista, presidente da
comissão de diplomacia da Câmara dos Deputados e ardoroso defensor da política realizada pelo Barão
do Rio Branco, em obra dedicada a analisar a política exterior do Brasil: “A ilusão americana, famoso livro
publicado no Brasil logo após a proclamação da República, produziu incontestavelmente uma larga
repercussão em todo o país. [...] Fôra mesmo mais longe: propusera-se a demonstrar que, na grande
República do setentrião, os males e os perigos para as outras nações do continente estavam tanto nas
instituições quanto nos homens; tentara assim incitar os sentimentos patrióticos dos brasileiros,
proclamando que muito mais pernicioso e voraz era o imperialismo “yankee” do que o imperialismo
europeu; [...] concluía por augurar dias calamitosos e desesperados para os povos latinos que, nesta
parte do mundo, acreditavam ter encontrado na doutrina de Monroe e nas gloriosas tradições liberais da
mais poderosa das potências americanas, elementos vitoriosos e indestrutíveis para a segurança da sua
autonomia política e consolidação sempre crescente das suas liberdades públicas”. (Abranches,1945, p.
35-38). Dunshee de Abranches pronunciaria em 21 de Outubro de 1911 na Câmara dos Deputados, um
enorme e exaltado discurso rebatendo as críticas feitas à atuação política do Barão do Rio Branco. Ver,
Abranches, 1945, p. 137-202.

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Infeliz Paraguai! Bem vingado estás tu neste momento vendo que o


Brasil, teu orgulhoso vencedor de outrora, é hoje o imitador do que tu
foste há trinta anos! Os brasileiros, que tanto desprezaram os costumes
semibárbaros da política paraguaia, têm hoje em casa o que tanta
compaixão lhes inspirava na casa de seus inimigos. Nem mesmo faltam
os aduladores da ditadura, como os tinha López. (Prado, 1959, p. 105-
106)

Prado inverte, portanto, o argumento republicano de que a retenção da


Monarquia era indício de atraso e que a criação da República lançaria o Brasil
numa nova era marcada pela influência civilizadora do liberalismo republicano
presente na América. Argumentava que fora o Império de Pedro II, aquela “flor
exótica” no Novo Mundo que fazia do Brasil uma civilização singular, pois havia
garantido a unidade da América portuguesa, num território mais vasto que o dos
Estados Unidos continental.
Assim, ao apresentar a sua condenação à República brasileira, Prado
teceu considerações concomitantemente sobre os Estados Unidos e os demais
países hispano-americanos. Seu livro, A ilusão americana tornou-se o mais
eloqüente tratado antiamericano surgido no país, onde alegava que o Brasil
estava perdendo sua soberania política em virtude da “fraternidade” com os
Estados Unidos, induzida pela República. Argumentava ainda que os
republicanos haviam levado o país ao caos, tornando-o presa fácil para os
desígnios expansionistas dos Estados Unidos, cuja constituição procuraram
imitar. Prado tenta evidenciar por todo o livro que a história havia demonstrado
a incompatibilidade fundamental entre os interesses brasileiros e os norte-
americanos.
Já a América espanhola, segundo Eduardo Prado, ao adotar o modelo
norte-americano por ocasião dos movimentos de independência durante o
século XIX, teria renegado suas tradições. Interessante é observar que Prado
acusa os Estados Unidos por terem uma política externa invasora, tirânica,
arrogante e oportunista, enquanto as Repúblicas da América espanhola são, por
outro lado, identificadas com o militarismo e o caudilhismo. Entendia como
perda da identidade brasileira a imitação, pelos republicanos, de modelos
políticos estrangeiros, da qual a Constituição de 1891 era o exemplo óbvio.
Como seus vizinhos da América espanhola, o Brasil havia adotado em 1889

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o mesmo grande erro em que os hispano-americanos tinham caído no


primeiro quarto do século, isto é, quando artificialmente se quis impor ao Brasil
a fórmula norte-americana. [...] E nós, tardiamente, fomos tomar parte da
fastidiosa e desalentadora tarefa em que vivem, há noventa anos, os hispano-
americanos, isto na longa, vã, tormentosa e já degradante e inútil tentativa,
quase secular, de querer implantar na América Latina as instituições de uma
raça estrangeira (Prado, 1957, p. 46).

Seu ataque à imitação das instituições norte-americanas era um meio


também de atacar o principal aliado dos republicanos brasileiros, enquanto
elogiava a Inglaterra, que apoiava os restauradores monarquistas. Prado via
sem números de males na influência norte-americana no Brasil, inclusive a
manutenção da escravidão durante o Império:

Não teríamos conservado por tanto tempo aquela instituição iníqua, se a


maior nação da América não tivesse tentado legitimá-la, e se, da parte
escravocrata dos Estados Unidos, não nos viesse o incentivo, se não
chegasse até nós a notícia do que se dizia e do que se fazia nos
Estados Unidos para defender a escravidão (PRADO, 1957, p. 169-170).

Em A ilusão americana, Eduardo Prado deixa explícito o seu repúdio ao


Pan-americanismo: não eram apenas as diferenças histórico-culturais do Brasil
em relação aos Estados Unidos que eram apontadas no livro, mas a diferença
do Brasil em relação à América Hispânica, negando qualquer possibilidade de
integração entre os países do continente americano: “A fraternidade americana
é uma mentira. Tomemos as nações ibéricas da América. Há mais ódios, mais
inimizades entre elas do que entre as nações da Europa” (Prado, 1957, p. 8).
Sustentava essa premissa arrolando diversos conflitos – do México à
Patagônia – envolvendo fundamentalmente disputas territoriais, além de
elaborar um catálogo de agressões dos Estados Unidos à América Latina.
Quanto ao Brasil, considerou que seus centros mais populosos, no litoral,
estavam mais próximos da Europa, pela facilidade da viagem, do que da maior
parte dos demais países americanos: “separado deles pela diversidade da
origem e da língua; nem o Brasil físico, nem o Brasil moral formam um sistema
com aquelas nações” (Prado, 1957, p. 10).

233
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

Para reforçar a idéia de que o Brasil constituía uma unidade


independente do restante da América, Prado apelou também para a suposta
veracidade do mito da Ilha Brasil. Segundo o mito, o Brasil seria um território
insulado, envolvido pelas águas de dois grandes rios – o Amazonas e o Prata –,
cujas nascentes seriam num mesmo lago interior. O Brasil, imensa ilha11,
formaria sozinho um continente, e só posteriormente teria se fixado às vertentes
orientais dos Andes: “Esta junção é, porém, superficial; são propriamente suas e
independentes as raízes profundas e as bases eternas do maciço brasileiro”
(Prado, 1957, p.10). Ora, o movimento argumentativo de Prado é o de distinguir
o Brasil português da América espanhola – que, para ele, eram sinônimos de
guerras civis, revoluções, anarquia política, militarismo, autoritarismo, ditaduras,
corrupção, ruína financeira – não bastavam as distinções lingüísticas, culturais,
históricas, era necessária uma segregação natural, fruto dos desígnios divinos.
A grande distância entre Brasil e Estados Unidos era marcada, segundo
Prado, pela diferença da raça, da religião, da índole, da língua, enfim, pela
história e tradição dos dois povos (Cf. Prado, 1957, p. 7). A questão mais
relevante era a discordância profunda com a opção latino-americana pelo
regime republicano, o que, segundo ele, seria mera imitação das instituições
norte-americanas. Salientava que os Estados Unidos não auxiliaram as
independências das colônias ibero-americanas e que a tão invocada Doutrina
Monroe não passava de uma estratégia política para intensificar o poder e a
interferência dos Estados Unidos nas questões internas dos países americanos.
Prado fez referências à inúmeras atitudes intervencionistas dos norte-
americanos nos países latinos do continente: o apoio à separação do Texas e
posterior anexação deste território aos Estados Unidos; a subseqüente guerra
contra o México; o atentado norte-americano às Ilhas Malvinas em 1831,
facilitando a ocupação posterior da ilha pelos ingleses; a usurpação do governo
nicaragüense pelo flibusteiro William Walker, com o apoio norte-americano, e a
posterior invasão de Honduras; o interesse dos Estados Unidos em construir o
canal inter-oceânico; a pressão sobre os governos de diversos países do
continente, pelo pagamento de indenizações por prejuízos a empresas e
cidadãos norte-americanos, com ameaças de intervenção militar; e outras

11
Sobre o mito da Ilha - Brasil, ver (Magnoli,1997), p. 45-61.

234
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

situações francamente desfavoráveis aos países latino-americanos (Cf. Prado,


1957, p. 12-97). Diante desse quadro, afirma que “não há país latino-americano
que não tenha sofrido as insolências e às vezes a rapinagem dos Estados
Unidos” (Prado, 1957, p.93-94).
Prado procura, em sua obra, desconstruir a versão oficial sobre o Pan-
americanismo – integração fraterna dos países americanos, em benefício de
todos – de forma contundente: desde a Doutrina Monroe, o objetivo dos Estados
Unidos sempre foi o de conquistar terras e mercados no continente, em
detrimento dos interesses e direitos dos outros países americanos, utilizando-se
para isso de arrogância diplomática, e sempre que julgasse necessário, a força
militar. A política Pan-americanista, segundo Prado, tinha como objetivo o
escoamento da produção norte-americana que ultrapassasse a demanda
interna e, no intuito de concretizar esse projeto, impor tratados de reciprocidade
comercial a fim de abrir os mercados latino-americanos para os produtos norte-
americanos, em situação de enorme vantagem sobre os produtos europeus12.
Embora reconhecesse os Estados Unidos como uma potência econômica
possuía uma visão predominantemente negativa dos valores e do governo
desse país. Enquanto julgava, por um lado, que o governo era formado por uma
plutocracia que não manifestava preocupação em minimizar a pobreza de uma
parcela significativa da população, por outro, condenava os aspectos sócio-
culturais do povo americano (uma vez que a pena de morte e o linchamento
eram comuns), conforme nos expõe nessa passagem:

O espírito americano é um espírito de violência; o espírito latino,


transmitido aos brasileiros, mais ou menos deturpado através dos séculos e dos
amálgamas diversos do iberismo, é um espírito jurídico que vai, é verdade, à
pulhice do bacharelismo, mas conserva sempre um certo respeito pela vida
humana e pela liberdade. O rábula de aldeia é, sem dúvida, um ente inferior,
mas em todo caso, é superior, como unidade social, ao capanga e ao mandão
(Prado, 1957, p.175).

12
Prado foi também um dos grandes críticos do Convênio Aduaneiro de 1891. Sua posição é explícita
nessa passagem: “em troca de um favor fictício e ilusório, em seguida a uma negociação em que a má-fé
norte-americana se tornou evidente, o Brasil concedeu isenção de direitos às farinhas de trigo dos Estados
Unidos, deu isenção a vários outros artigos americanos”. (Prado, 1957, p. 150-151).

235
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

Eduardo Prado, embora não use o termo imperialismo, ataca criticamente


o capitalismo norte-americano e percebe a tendência que se manifestava cada
vez mais forte no continente:

Hoje, o industrialismo ainda tem algumas esperanças de se salvar e o


povo não tem ainda a consciência nítida da sua força. As dificuldades do
presente já são, portanto, bastante graves para o capitalismo, e a
plutocracia americana procura, a todo o transe, sair das suas
dificuldades e para isso volta-se para o estrangeiro. É para o estrangeiro
que os políticos norte-americanos querem abrir uma válvula para o
excesso de produção (Prado, 1957, p. 141-142).

O objetivo principal, entretanto, de Eduardo Prado não foi combater o


imperialismo norte-americano e, muito menos, o sistema capitalista, tanto é que
defendeu as monarquias européias, também imperialistas e capitalistas, em
vários momentos da sua obra. O fim primordial de A ilusão americana era
defender a monarquia e atacar o regime republicano e presidencialista no Brasil,
uma vez que Prado considerava o regime monárquico a opção “natural” dos
países latino-americanos, dadas as suas características histórico-culturais (Cf.
Baggio, 1999, p. 67). Dessa perspectiva, via que, tanto para o Brasil quanto
para os países hispano-americanos, a monarquia era a forma de governo mais
adequada para assegurar a estabilidade política, a ordem, a paz, a unidade
territorial e a prosperidade econômica. Assim, o Brasil teria abandonado em
1889 o regime monárquico, mais adequado à sua prosperidade, imitando as
instituições norte-americanas, em detrimento de suas próprias tradições. Ainda,
o histórico das trajetórias das repúblicas hispano-americanas, a partir das
independências, marcadas por guerras civis, governos autoritários, militarismo e
caudilhismo, auxiliavam Prado na defesa de suas posições, de onde conclui: “o
furor imitativo dos Estados Unidos tem sido a ruína da América” (Prado, 1957, p.
44).
Ora, a América hispânica representava, desse modo, tudo o que o Brasil
não deveria ser: republicano, militarista, violento. E era no que o Brasil, na visão
de Prado, a partir de 1889, havia se transformado. A imagem da América
hispânica como permanentemente violenta, politicamente instável, comandada
por caudilhos e imersa na convulsão social povoou a visão brasileira sobre seus
vizinhos e Eduardo Prado foi um dos intelectuais que colaboraram intensamente

236
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

para esta interpretação. Além de se tornar uma obra símbolo da luta


monarquista e anti-republicana, A ilusão americana trouxe o elemento polêmico
da propaganda anti-estadunidense, num momento muito delicado em que o
Brasil tentava consolidar, tanto a sua política interna, com o novo regime
republicano13, quanto a sua política externa, na busca de uma maior
aproximação com os Estados Unidos.
A crítica de Eduardo Prado arregimentaria novos prosélitos. Rui Barbosa,
que participou ativamente das construções institucionais republicanas e que fora
fortemente influenciado pelo pensamento político constitucional anglo-
americano, não vacilou, contudo, em apoiar as advertências de Eduardo Prado,
cujo livro, – A ilusão americana – considerava “feito de ciência, verdade e
patriotismo” (Barbosa, 1998, p. 93). Em uma série de artigos publicados no
jornal A imprensa, ao longo de 1899, Rui Barbosa criticava ferozmente o
monroísmo e a política intervencionista norte-americana que estava sendo
realizada no continente. Segundo o autor, um pouco de reflexão e de história
bastaria para

...advertir na facilidade com que, para os estados fracos, se converte em


tutela a intrusão doméstica dos poderosos, [...] para saber que a
Doutrina de Monroe no uso diplomático dos Estados Unidos, tivera, em
todos os tempos, um caráter exclusivamente norte-americano, que a
face por ela apresentada ao resto da América era puramente uma
limitação da soberania das outras repúblicas (Barbosa, 1998, p. 94).

Rui Barbosa exprobrou o apelo do governo de Floriano Peixoto para a


intervenção dos Estados Unidos na Revolta da Armada e a tentativa de erguer
uma estátua de Monroe como sinal de reconhecimento:

A ditadura de 1893, na sua luta contra a violência das dificuldades


interiores, estendeu mãos implorativas para o governo dos Estados
Unidos. [...] Veio pronto o auxílio solicitado. A interposição da bandeira

13
Gilberto Freyre assim se expressou sobre o debate em torno do pan-americanismo nos primeiros tempos
da República: “[Eduardo Prado] Exagerou-se, é certo, em sua ianquifobia no livro, ainda hoje famoso, A
ilusão americana – ao mesmo tempo antiianque e anti-republicano; mas não faltava de todo fundamento
histórico ou critério sociológico às críticas aos pan-americanistas brasileiros ingenuamente certos de vir a
República integrar-nos como por mágica num sistema continental de nações de todas fraternas, em
conseqüência de o constituírem repúblicas na sua maioria inspiradas no exemplo da anglo-saxônia. Só
ingênuos, na verdade, deixariam de enxergar, nas relações dos Estados Unidos com a maioria das
repúblicas que caricaturescamente lhes seguiam o exemplo, o desdém do forte pelos fracos; o desprezo de
uma gente ordeira pelas turbulentas, suas vizinhas, aliás, por simples e superficial acidente”. (Freyre,
2000,p. 191).

237
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

estrelada cortou o litígio pendente entre as forças legais e as forças


revolucionárias na baía do Rio de Janeiro. [...] Pouco depois do fácil
resultado o almirante americano, cuja interferência no conflito esmagara
a insurreição naval, deliciava os seus compatriotas, em Nova York, entre
as manifestações espumosas de uma festa repercutida pelos jornais,
com a reivindicação hilariante do triunfo sobre a esquadra brasileira
rebelada. Mas nós não fomos ingratos. O júbilo da legalidade satisfeita
deu-se pressa em coroar, entre os beneméritos da república brasileira,
entre os seus salvadores, as imagens de Benham, Cleveland e Monroe
(Barbosa, 1998, p. 100-101).

Os Estados Unidos, vedando o continente à cobiça da Europa, não


fizeram mais que reservá-lo para os futuros empreendimentos de sua ambição
(Cf. Barbosa, 1998, p. 102-103). A ilusão americana, segundo Rui, passara, no
Brasil, por várias transformações sob a influência dos interesses políticos e da
ignorância nacional. O autor se sentia no dever de desmascará-las, “porque a
nossa consciência não se pode submeter à corresponsabilidade numa falácia, a
que a história e a experiência se opõem” (Barbosa, 1998, p. 101). Rui Barbosa,
forte opositor da Doutrina Monroe, previa que, com a vitória dos Estados Unidos
sobre a Espanha, na guerra hispano-americana de 1898, a diplomacia européia
procuraria um modus vivendi “adaptável à política imperialista da Casa Branca”
(Barbosa, 1998, p. 95). No seu artigo de 9 de junho de 1899, intitulado “A
história repete-se”, o jurista chama a atenção para a paridade entre duas
épocas: a do Império brasileiro, quando há mais de cinqüenta anos, o Brasil, o
Peru, a Bolívia discutiram a navegação do rio Amazonas e temeram anexações
pelos Estados Unidos, com a situação atual, que é “mutatis mutandis a mesma:
a intervenção dos Estados Unidos em Cuba e a anexação voluntária do
arquipélago de Havaí determinam a ressurreição da velha idéia, que condensa
a suspeita do momento” (Barbosa, 1998, p. 113-114).
Mas, Rui Barbosa não deixaria de demonstrar também certa indignação
pelas repúblicas latino-americanas, ao referir-se ao “desleixo latino-americano”.
Para ele, os latino-americanos teriam menosprezado a política de neo-
colonização que estava sendo empreendida pelos europeus e norte-
americanos, pois, animados pelas reminiscências da sua emancipação “com a
fatuidade, a imprevidência e a imaginação próprias das raças, cuidaram ter
assegurado a sua independência para a eternidade” (Barbosa, 1998, p. 96).
Chega a afirmar que a confiança dos latino-americanos decorria das

238
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

reminiscências de noções das origens indígenas que teriam resistido à época


da colonização hispânica, contra a incursão estrangeira. O tom final do artigo
conclama o continente a ser previdente e ressalta que uma aliança com os
Estados Unidos trariam prejuízos ao resto da América. No entanto, embora Rui
Barbosa fosse muito crítico à presença da política norte-americana no
continente e principalmente, no Brasil, não deixa também de explicitar a forma
hierárquica com que via as demais repúblicas latino-americanas. De forma
bastante pessimista, quanto ao significado das relações com os Estados Unidos
que se configura na Primeira República, Rui Barbosa previa para o Brasil um
destino semelhante ao das demais repúblicas latino-americanas: “No caldeirão
aparelhado ao pantagruelismo da política invasora, vai na mais confusa
promiscuidade com índios e mestiços toda a descendência portuguesa e
espanhola debaixo deste céu, e com as mais desafamadas, as mais fracas
repúblicas deste continente, as melhores, ou as mais fortes, como o México, a
Argentina e o Chile” (Barbosa, 1998, p. 78).

3. Joaquim Nabuco e Oliveira Lima: os Estados Unidos como


modelo de ordem civilizacional e institucional na América

Ao nos debruçarmos sobre as tensões no interior do pensamento dos


monarquistas brasileiros nos primórdios da República, percebemos que estes
faziam leituras com diferentes gradações ressaltando a importância do regime
anterior e da sociedade em que este se baseava frente à emergência e
consolidação da forma de governo republicana. Impulsionados pela crítica de
Eduardo Prado e de outros monarquistas, os porta-vozes do antigo regime
procuraram refletir e ao mesmo tempo relacionar e avaliar a política externa
brasileira frente aos seus novos pares republicanos no continente. O fato era
que embora desenvolvessem percepções a respeito do papel e da relação do
Brasil com os países latino-americanos e os Estados Unidos partindo das suas
convicções institucionais monárquicas, o contexto era, contudo, republicano.
É nesse sentido que talvez seja interessante analisar a articulação entre
a forte defesa de uma volta à monarquia por Eduardo Prado e sua rejeição a
qualquer Pan-americanismo que aproximasse o Brasil da grande potência
republicana, os Estados Unidos. Assim, torna-se importante acompanhar de

239
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

que modo Oliveira Lima e Nabuco embora sendo também monarquistas,


divergiam de Prado ao defenderem e justificarem a política de aproximação
com o país do norte de forma positiva.
Nos textos de Joaquim Nabuco que servem de fonte para o nosso
trabalho é possível identificar a construção de uma imagem unificada da
América do Sul com base em atributos negativos no que tange a vida pública
desses países do subcontinente. Assim como a todas as repúblicas sul-
americanas e à brasileira, o autor atribuía a sustentação do regime apenas à
violência militar e ao militarismo dos seus presidentes. Recorrendo aos
mecanismos políticos do Império brasileiro, Nabuco argumentaria que as
repúblicas do subcontinente seriam endemicamente instáveis devido à
ausência de instrumentos de mediação das facções em luta. Uma vez que o
Poder Moderador fora abolido, seria o “elemento militar” aquele que ascenderia
naturalmente e conduziria a política partidária: “substituíram o Imperador pelo
Imperator [...]. Deodoro pelo simples fato de suceder ao Imperador ele se
achou com os mesmos poderes, sem as normas, está visto” (Nabuco, 1890, p.
10 apud Alonso, 2009, p. 139) Diante do quadro endêmico das repúblicas sul-
americanas, Nabuco não titubeia em traçar um prognóstico: “A República, nos
países latino-americanos, é um governo no qual é essencial desistir da
liberdade para obter a ordem” (Nabuco, 1890, p.14 apud Alonso, 2009, p.140).
É interessante, porém, verificar que Nabuco expressa sua aversão ao
“americanismo” republicano, mas deixa claro através do qualificativo “Sul-
Americana” que não se referia à república anglo-saxônica na América.
Lançando mão de um manifesto nacionalista contra o americanismo
republicano, Nabuco diria:

Eu lastimo a atitude suicida da atual geração, arrastada por uma


alucinação verbal, a de uma palavra – república, desacreditada perante
o mundo inteiro quando acompanha o qualificativo – Sul Americana. [...]
a esse plagiarismo Americano, devemos opor outro sentimentalismo
natural, vivo, verdadeiro: o Brasileirismo (Nabuco, 1891, p. 4 apud
Alonso, 2009, p. 140). (grifos do autor)

Não era de se estranhar que Joaquim Nabuco, um monarquista de pena,


recorresse à escrita para combater a República e exaltar a Monarquia. Reagiria
à República “no momento em que o passado nacional corria] risco de ser

240
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

mutilado”, recorrendo a estratégias: uma, seria o enaltecimento de feitos e de


estadistas do passado, compondo sua versão da história do Segundo Reinado,
sob a forma aparentemente inofensiva de uma biografia do pai 14. Valeu-se
também de outra estratégia, com dois livros publicados no calor da hora:
Balmaceda (1895) e A intervenção estrangeira durante a revolta de 1893
(1896)15.
O livro que nos interessa mais imediatamente da fase monarquista de
Nabuco durante os primórdios da República é Balmaceda16. O livro expõe as
suas críticas monarquistas sobre a República: valendo-se da crise chilena –
com analogias óbvias com a brasileira – para armar análise comparada de
conjunturas políticas, Nabuco procurou refletir sobre Balmaceda com o objetivo
de obter subsídios para tecer críticas ao regime republicano brasileiro e, mais
especificamente, ao período militar de Deodoro da Fonseca e de Floriano
Peixoto17. Nessa obra expõe também o seu interesse pela América Latina,
pois, desde o 15 de novembro, segundo Nabuco, o Brasil começava “a fazer
parte de um sistema político mais vasto” (Nabuco, 1895, p. 212), o da América
do Sul. No início do seu trabalho justificou o interesse pelo Chile ao afirmar que
a cada dia tornava-se mais importante para os brasileiros “conhecer o estado
político da América do Sul” (Nabuco, 1895, p. 7).
O período de 1886 a 1891 da história chilena foi o alvo do interesse de
Nabuco. Confessou ser um admirador do Chile e o comparou ao Brasil, países
que se destacariam como exceções no cenário latino-americano, afirmando
que “há mais energia nacional [...] nessa estreita faixa comprida entre a

14
Um estadista do Império, obra na qual narra a história política do Segundo Reinado tendo como
elemento organizador dos fatos a carreira política de seu pai, Nabuco de Araújo, cujo primeiro tomo ficou
pronto em 1884, mas só veio a público em 1898 (Nabuco, 1997).
15
O livro saiu como artigos no Jornal do Comércio, em agosto de 1895 e, em livro, no começo de 1896. O
assunto principal é a Revolta da Armada e o governo de Floriano. Valendo-se de documentação primária,
sobretudo artigos de jornal, o objetivo era político: avaliar a sociedade e as instituições republicanas pela
ótica imperial. Publicado já no governo de Prudente de Moraes, a conjuntura permitiria aos monarquistas
voltarem à cena na crítica aos republicanos. Nabuco carregou nas tintas, numa verve monarquista que
opunha a barbárie republicana à civilização imperial. A paixão pela revolta está na dedicatória do livro a
Augusto de Castilho, capitão do navio que asilou os revoltosos monarquistas (Nabuco,1990a).
16
Trata-se da reunião, pelo autor, de uma série de artigos publicados no Jornal do Comércio, de janeiro a
março daquele ano, nos quais Nabuco analisava a questão da deposição do presidente chileno, em 1891,
a partir da obra de Julio Bañados Espinosa, Balmaceda, Su Gobierno y La Revolución de 1891.
17
Nos limites do nosso trabalho não abordaremos os argumentos monarquistas de Nabuco em
Balmaceda construídos através do paralelismo entre os acontecimentos no Chile e as analogias com a
República no Brasil. A ênfase recairá sobre a argumentação construída por Nabuco em relação a sua
visão da América Hispânica já nos primórdios da República. A reconstrução da imagem das Repúblicas
sul-americanas por Nabuco em Balmaceda será fundamental para compreendermos as concepções
posteriores de Nabuco à frente da Embaixada brasileira em Washington, já adepto da República.

241
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

Cordilheira e o Pacífico do que em todo o resto da América do Sul” . Nesse


sentido, Nabuco afirma que

...apesar de sermos nós [o Brasil] a sociedade sem exceção alguma a


mais igualitária do mundo, e de ser o Chile, pelo contrário, uma
aristocracia política, tínhamos a mesma continuidade de ordem, de
governo parlamentar, de liberdade civil, de pureza administrativa, de
seriedade, decoro e dignidade oficial. Um e outro governo eram
exceções genuínas na América do Sul, saliências de terra firme entre
ondas revoltas e ensanguentadas (Nabuco, 1895, p. 3).

Os dois países seriam “saliências de terra firme entre ondas revoltas e


ensanguentadas”, ou seja, a monarquia brasileira e a república chilena seriam
exemplos de ordem e estabilidade, contrastando com os demais países da
América Latina, marcados pelas turbulências políticas e pelas guerras civis.
Brasil e Chile tiveram que superar crises que colocaram em risco, segundo
Nabuco, suas tradições políticas: o Brasil, durante o período de consolidação
do regime republicano, com o domínio dos militares no comando da vida
pública entre 1889 e 1894 e o Chile, durante o governo de Balmaceda.
Demonstrava-se assim, afirmava Nabuco, a tese que os monarquistas sempre
sustentaram contra os republicanos: a perda da liberdade e a corrupção da
república, tanto no Brasil quanto no Chile:

Figurava-se tão paradoxal animarem-se os Republicanos com os


resultados do Chile como se animarem com os da América do Norte, porque o
Chile, ainda que de raça espanhola, era tanto uma exceção como os Estados
Unidos – exceção que se podia considerar um capricho de ordem moral na
formação da América do Sul, como há aparentemente tanto capricho na sua
estrutura geológica (Nabuco, 1895, p. 208).

Na forma de um “capricho” ficava naturalizada no autor a


excepcionalidade do Chile, o qual, ainda que formado pela mesma raça cujas
supostas características conformavam a imagem negativa da América
hispânica, aproximava-se de algum modo do corpo social saxônico da América
do norte – única nação, conforme Nabuco, a qual caiu bem as vestimentas da
república.

242
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

Nesse sentido, importa-nos aqui, menos o tema da inadaptação


institucional, o qual pode ser posto nas contas das posições monarquistas-
parlamentares do autor, rebatendo a República, do que o contraste construído
entre, de um lado, nacionalidades débeis, “em menoridade permanente”, com
“tradições sem resistência” e, de outro, uma nacionalidade forte, cuja opinião e
organicidade política colocam-se acima de qualquer governo pessoal. Nabuco
desenvolve tal comparação no que toca a ordem institucional relacionada às
qualidades inatas do corpo nacional das Repúblicas sul-americanas e dos
Estados Unidos:

Em nossos países onde a nação se mantém em menoridade


permanente, as liberdades, os direitos de cada um, o patrimônio de
todos, vivem resguardados apenas por alguns princípios, por algumas
tradições ou costumes, que não passam de barreiras morais, sem
resistência e que o menor abalo deita por terra. A esses países, onde a
lei é frágil, não se adaptam instituições que só pode tolerar uma nação
como a Norte-Americana (Nabuco, 1895, p. 49).

Em Joaquim Nabuco é possível perceber que a imagem da América


Latina aparece como uma incógnita em relação ao avanço, posto que
inexorável, da civilização universal. A imagem do subcontinente se constitui
com base em atributos negativos no tocante à vida pública dos países latino-
americanos. Ao percebermos os termos com os quais Nabuco trabalha,
podemos ter claro como o autor constrói a imagem do subcontinente como uma
porção inferior da América, refratária à civilização:

De fato, dado o progresso da Moral universal, não é possível que a


civilização assista indefinidamente impassível ao desperdício de força e
atividade humana que se dá em tão grande escala em uma das mais
consideráveis seções do globo, como é a América Latina. A
manutenção de um vasto Continente em estado permanente de
desgoverno, de anarquia, é um fato que dentro de certo tempo há de
atrair forçosamente a atenção do mundo, como afinal a atraiu o
desaproveitamento da África (Nabuco, 1895, p. 212).

Os atributos negativos – “desperdício”, “desaproveitamento”,


“desgoverno” – enunciam um subcontinente à margem dos mais elevados
valores da civilização, e até mesmo sob certo sentido, “selvagem” na
comparação recorrente com a África. Nesse sentido, Nabuco não deixa de

243
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

indagar quanto à perspectiva futura da América Latina: “como se fará a


redenção dos países centro e sul americanos? Onde acharão eles amparo
contra seus governos extortores? Como se fará nascer e crescer em cada um
deles a consciência do Direito, da Liberdade, da Lei, que neles não existem,
porque não podem ter sanção alguma?”(Nabuco, 1895, p. 212)
Nabuco interpretaria o episódio do governo de Balmaceda e sua
deposição no Chile como fenômeno típico da história e do cenário político
contemporâneo da América do Sul, formulando assim, uma imagem constituída
predominantemente sob atributos negativos. Nessa direção, condenando o
reformismo balmacedista: “o pescador infeliz, cuja rede apanhara no fundo do
mar a garrafa em que estava encerrado o terrível gênio sul-americano, e que o
soltara em terra chilena foi o próprio Balmaceda” (Nabuco, 1895, p. 77). Dentro
desse raciocínio, Nabuco, baseado no exemplo do Chile iria reforçar de forma
ainda mais evidente a construção de uma imagem unificadora do subcontinente
sob a égide de uma padronização negativa. Notemos os termos que Nabuco
utiliza para destacar a potencialidade de desordem pública, quase eterna:

... em toda a América do Sul, há neste momento, como tem havido


sempre, uma porção de revoluções à espera somente de um pretexto
para rebentar. Os golpes de Estado são ocasiões preciosas, de primeira
classe, que despertam o maior entusiasmo revolucionário, e por isso o
presidente que fornece aos ânimos já mal refreados dos seus contrários
um motivo dessa ordem, lança a um paiol de pólvora o morrão aceso
(Nabuco, 1895, p. 187). (grifo nosso)

A imagem de um subcontinente afetado por uma doença crônica,


portanto, enfermo, conduz a análise de Nabuco para a apresentação de um
diagnóstico, quando afirma que “de muitas doenças graves costuma-se dizer
que foi no princípio um resfriamento mal curado; a história da América do Sul
parece não ter sido outra coisa senão uma revolução mal curada”, cujo
prognóstico não poderia ser de caráter mais monarquista: “O que a América do
Sul precisa é de um extenso Poder Moderador, um Poder que exerça a função
arbitral entre partidos intransigentes” (Nabuco, 1895, p. 205).
Ora, ainda mais expressivo é o painel comparativo traçado por Nabuco
no que tange a ordem institucional, revelando claramente como o autor via
hierarquicamente as duas Américas, afirmando que as instituições norte-

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Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

americanas são impróprias para as raças latinas: “desde que se sente em


conflito com o Congresso, Balmaceda não procede como um presidente dos
Estados Unidos, consultando as opiniões mais autorizadas e mais seguras em
matéria constitucional; procede à verdadeira moda sul-americana, ouvindo os
comandantes de Corpos” (Nabuco, 1895, 195).
Em outro texto, “O dever dos monarquistas” – escrito no calor da hora e
publicado originalmente também em 1895, no Rio de Janeiro – Nabuco
responde extensamente à carta do Almirante Jaceguay, publicada no Jornal do
Comércio, em setembro daquele mesmo ano, sob o título Dever do momento,
na qual o almirante incitava Nabuco à colaboração com o novo regime. Nabuco
não deixaria de tecer um paralelo entre república e instabilidade institucional na
América do Sul:
... muito mais extensa e profunda do que a degeneração republicana da
monarquia no Brasil não é a degeneração monárquica da república em
toda a América do Sul? A verdade é que em um meio onde não existe a
pressão social é impossível que a forma de governo conserve perfeitos
todos os seus característicos, seja ela a monarquia, seja muito menos,
a república (Nabuco, 1990b, p.40).

Afora o tema de momento do texto que refletia a discussão sobre a


adaptabilidade institucional, Nabuco parece insinuar a tese de que, frente a um
organismo social débil, não é mesmo possível a adaptação perfeita de
nenhuma ordem institucional, ou no limite, poderíamos dizer, civilizada, como
seria o caso da adaptação institucional na América Latina (Cf. Silveira, 2003, p.
224-225). O mal latino-americano não seria de natureza essencialmente
institucional e a resolução não seria encontrada na ordem do político, pois,
“não são as instituições que não têm raízes; é o solo que não tem consistência
e cujas areias o menor vento revolve” (Nabuco, 1990b, p. 43). Se o mal não é
da ordem do político e das instituições, a que Nabuco se refere como “solo
[in]consistente” na América do Sul? Tudo indica que se trataria de um mal, uma
inferioridade na comparação com a América saxônica – ao mesmo tempo
natural e persistente.
Veja-se que, respaldado na observação de Tocqueville, Nabuco indaga
de seu interlocutor, o almirante Jaceguay: “que impressão não lhe causarão
estas dolorosas palavras caídas de uma pena tão prevenida a favor da

245
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

democracia como era a de Tocqueville: „quando penso na alternativa de


miséria e de crime em que vivem aqueles países sou forçado a pensar que
para eles o despotismo seria um benefício‟”? (Nabuco, 1990b, p. 51)
Respaldado na observação de Tocqueville, Nabuco reforçará a imagem
de que à América Latina caberia a única solução possível, a ditadura, e que ao
privar essa parte do continente da Liberdade, privá-la-ia também de um dos
pilares da construção da idéia de América. Não sendo de se estranhar assim,
que a idéia de Liberdade coubesse, nesse sentido, apenas aos Estados
Unidos. Notemos deste modo, como Nabuco diferencia o Brasil da América
Latina para poder se espelhar na outra superior América: “a ordem porém que
o torrão brasileiro deve querer produzir não deve ser a planta que cresce estéril
na América Latina e sim a que na América Saxônia dá a liberdade como fruto”
(Nabuco, 1990b, p. 48).
Assim, o despotismo aparece para Nabuco como a solução para as
“sociedades debilitadas” da América Latina. Porém, o autor constrói uma
imagem diferenciada de um Brasil frente a essa América. Embora este país,
por princípios naturais e históricos, compusesse uma unidade latino-americana,
dela ao mesmo tempo deveria apartar-se da imagem dicotômica tradicional
América portuguesa/ América hispânica para poder espelhar-se na outra
exemplar América, a do norte.
Ora, na perspectiva dos monarquistas, o americanismo republicano
enfileiraria o Brasil com a outra América, a Espanhola, rumo ao caudilhismo, ao
despotismo, ao militarismo e quem sabe, até mesmo à fragmentação do país.
Eduardo Prado e Joaquim Nabuco representavam os velhos temores da elite
imperial que aspirava elevar o Império à altura das monarquias européias e
afastá-las das repúblicas abaixo do Equador. Nabuco em suas conclusões
revela um dramático tom pessimista, deixando evidente que a América Latina
estaria longe, ainda que não apenas naquele momento histórico, de alcançar a
civilização:
Um problema de tal complexidade não poderá ser resolvido pela
própria geração que o formular. À distância em que estamos do tempo
em que ele há de amadurecer, a forte refração dos preconceitos atuais
não deixa imaginar o modo que a civilização há de encontrar para se
introduzir no nosso Continente. [...] Não será a absorção pela Europa, a
menos que se entenda no sentido de uma recolonização Européia da
América com elementos que asseguram o predomínio das novas

246
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

aluviões, porque é mais do que provável que a imigração se realize no


próximo século em escala tal que os nossos organismos anêmicos,
alguns mesmos raquíticos, não tenham capacidade para assimilá-la
(Nabuco, 1895, p. 212-213).

Joaquim Nabuco examinava a América Latina, refratária segundo o


autor, ao avanço do processo civilizatório, diante das duas fontes universais de
expansão desse processo: a Europa e, a partir da República, os Estados
Unidos. É importante notar que Nabuco escrevera Balmaceda antes da guerra-
hispano-americana que marcaria a expansão imperialista dos Estados Unidos.
Nesse sentido, é preciso perceber o modo como Nabuco interpretava a
Doutrina Monroe e o Pan-americanismo, descartando inicialmente e de modo
definitivo a possibilidade de que o Velho Continente, pelos instrumentos da
recolonização ou do protetorado, viesse a constituir-se no agente “introdutor de
um processo mais estável da civilização” no subcontinente. Ao findar o século
XIX, Nabuco afirmava que

É difícil imaginar uma alteração no equilíbrio europeu que forçasse a


Europa a reconquistar a América ou a sujeitá-la, como fez com a África
e a Ásia, à sua direção e ao seu governo. Pode-se ter como certo [...]
que a Europa deixará o Novo Mundo fazer bancarrota com os capitais e
interesses que ela lhe houver confiado, sem pensar um só instante em
compensações territoriais ou em estender através do Atlântico a sua
área de influência (Nabuco, 1895, p. 213).

Porém, se o risco, ou o que o autor entende como “solução civilizatória


possível” – da colonização ou do protetorado europeu – estavam afastados,
Nabuco levanta inevitavelmente novas indagações: “Se a solução não pode ser
o protetorado europeu, será por acaso o Monroísmo? Os Estados Unidos, que
já assumiram a proteção do Continente, desde que se comprometeram a
defendê-lo contra as invasões da Europa, sentirão um dia que essa garantia
lhes dá direitos ou que lhes impõe deveres?” (Nabuco, 1895, p. 213-214).
Nesses termos, Nabuco parece rejeitar que os Estados Unidos viessem a
praticar intervenções diretas, no sentido da colonização ou do protetorado em
larga escala no continente. Buscando respaldar sua posição, Nabuco usa
significativamente o exemplo brasileiro, com a questão do momento, qual seja,
a de uma reação monárquica interna. Assevera, nesse sentido, que “seria

247
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

preciso desconhecer o caráter nacional do povo americano para se supor, por


exemplo, que se o Brasil restaurasse a sua monarquia, os Estados Unidos
impugnariam essa volta às nossas antigas instituições”. Novamente aqui,
Nabuco ressalta a incompatibilidade institucional da República no continente
americano, cuja exceção seria os Estados Unidos: “Se eles impedissem o
Brasil de ter o governo que lhe parecesse melhor, estavam moralmente
obrigados a governá-lo sob sua responsabilidade; não tinham o direito de
condenar um povo ao despotismo e à anarquia por causa de um tipo de
instituições, para as quais só eles possuem a resistência e o corretivo preciso.
Governá-lo, porém, – como?” (Nabuco, 1895, p. 214)
Devemos perceber, deste modo, que Nabuco, na sua representação
original do monroísmo, na década final do século XIX, por um lado, reforça a
noção fundamental da superioridade naturalizada da civilização anglo-
americana, posta nos atributos do povo e no sistema de governo, cuja
adaptação perfeita se deve à índole natural daquele povo; por outro, faz
repousar sobre este “caráter superior”, a justificativa isolacionista daquela raça
e a impossibilidade histórica de que o monroísmo se desdobrasse nas soluções
representadas pelo colonialismo, pelo protetorado e pelas anexações pelos
quais se havia constituído a Federação. Assim, afastada a solução colonial em
larga escala, os “Estados Unidos [...] rejeitariam para Estados da União cada
um dos candidatos da América Latina”, pois, segundo Nabuco, “a nação
americana está convencida de que todo acréscimo de população, de hábitos,
crenças e índole inteiramente outras, causaria um profundo desequilíbrio em
seu sistema de governo e uma incalculável deterioração de sua raça” (Nabuco,
1895, p. 214-215).
Dessa forma, Nabuco apontará como uma solução possível para a
questão latino-americana uma espécie de pan-americanismo de origem latina.
A solução para o problema teria que “ser procurada dentro mesmo de cada um
dos nossos países, mas depende da formação em torno deles de uma opinião
interessada em seu resgate, que auxilie os esforços, ou quando mais não seja
registre os sacrifícios, dos que em qualquer parte lutarem pela causa comum”.
A imagem de um pan-americanismo latino passa por uma visão aristocrática,
nos moldes do liberalismo do autor, onde destaca que o possível avanço
civilizatório do subcontinente estaria atrelado a existência “em todos esses

248
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

países [de] homens cuja cultura rivaliza com a mais brilhante cultura européia e
que podem formar a Liga Liberal do Continente” (Nabuco, 1895, p. 215).
Posteriormente, Nabuco abandonará a idéia de que tal União dos países
latino-americanos – fundada em uma opinião comum da elite intelectual e
política em prol do progresso, da paz e da estabilidade – poderiam constituir-se
como definidoras de um padrão civilizatório. Assim, o padrão civilizatório latino-
americano não poderia constituir-se efetivamente, de forma isolada, mas
apenas no interior de um Pan-americanismo de dimensão hemisférica e de
iniciativa norte-americana, fundado, portanto, no monroísmo, sob o risco,
menos calculado do que inevitável, da perda de uma unidade latino-
americana18.
Assim, a política do Pan-americanismo, iniciada no final do século XIX
para incentivar a integração dos países americanos sob a influência dos
Estados Unidos, foi discutida em várias obras publicadas desde esse período
até a década de 20. Não por acaso, em finais do século XIX e no processo
mais amplo de americanização da República, as representações dos Estados
Unidos como modelo de ordem civilizacional e institucional, começariam a
ganhar forma em diversos intelectuais, passando a se constituir em um grande
interesse nacional, como testemunha Oliveira Lima:

No Brasil fala-se ou muito bem ou muito mal dos Estados


Unidos. Apontam-nos os seus admiradores como o único modelo a
seguir sem discrepâncias, o melhor figurino a copiar nos mais ligeiros
pormenores [...]. Os seus detratores culpam-nos de todos os crimes,
desde a ambição devoradora de terras e nacionalidades, até à
corrupção política e social mais desbragada. À parte os exageros do
fanatismo, a verdade está incomparavelmente mais com os primeiros. É
pelo menos o que me ensinou uma estada de três anos no grande país
americano, que eu tanto desejaria ver imitado pelo meu no ingente
progresso material19 (Oliveira Lima, 1899, p.1).

18
Nesse sentido, não há para Nabuco uma longa história com a idéia de monroísmo, será somente na
defesa do direito do Brasil na questão com a Guiana Inglesa que a concepção de uma política monroísta
para o Brasil começa a fazer sentido, porque ela se torna palpável e passível de efetividade ganhando
uma real dimensão política. Quanto ao conceito de “pan-americanista”, atribuído às concepções de
Nabuco à frente da embaixada brasileira em Washington, “como um ardente defensor dessa causa nos
termos em que usualmente se julga, ou seja, de um missionário da união e solidariedade incondicional de
todos os países americanos, encontra barreiras em sua visão hierarquizada dos países, na sua idéia de
relacionamentos preferenciais independentes e na perseguição de interesses nacionais brasileiros alheios
a de outros”(Pereira, 2006 p. 124).
19
O livro trata-se de uma reunião de artigos publicados na Revista Brasileira durante os anos de 1896,
1897, 1898 e 1899 e de trechos de correspondência publicadas pelo Jornal do Commercio do Rio de

249
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

Entre os monarquistas, Joaquim Nabuco e Oliveira Lima20 foram


exemplos significativos daqueles que construíram uma imagem nova sobre a
condição modelar e de superioridade da civilização norte-americana no
continente, de inteiro acordo, portanto, com a tendência da política exterior
brasileira na Primeira República.
Ao escrever sobre os Estados Unidos, Oliveira Lima não escondia seu
deslumbramento e o impacto causado após um período de permanência
naquele país. Cotejou Brasil e Estados Unidos para concluir pela desvantagem
do primeiro em todos os aspectos que analisou: sociais, econômicos, políticos
e culturais. O impacto da comparação parecia maior quando se considerava
que os dois países eram frutos do moderno capitalismo europeu:

Na América do Norte apoderou-se de mim e a breve trecho


converteu-se quase numa obsessão, uma forte impressão do nosso
atraso, que na Europa eu nunca havia experimentado, acostumados
como justamente andamos a considerá-la um antiqüíssimo campo de
experiências e de progressos. Do outro lado do Atlântico porém, num
país de civilização tão moderna quanto o Brasil, a comparação impõe-
se irresistivelmente, em nosso grave desabono, com o seu cortejo de
considerações psicológicas e sociológicas (Oliveira Lima, 1899, p.17).

O conjunto de artigos que compõe o livro de impressões de Oliveira


Lima é “paradigmático da [sua] concepção evolucionista da história”. (Malatian,
2001, p. 124). Os Estados Unidos representavam o ápice do progresso
possível a uma nação naquele momento em termos materiais, políticos e
culturais. Sua interpretação tinha como pressuposto a convicção da
superioridade do mundo anglo-saxão em relação ao mundo ibérico, identificado
como “trópicos”, onde o autor não encontrava condições geográficas nem
raciais para que as nações alcançassem elevado grau de evolução. Oliveira
Lima encontraria nos Estados Unidos respostas para questões que

Janeiro, nos anos de 1896, 1897 e 1898. O livro alcançou público amplo tanto nos Estados Unidos, no
Brasil e mesmo em outros países. (Cf. Malatian, 2001, p. 122-123).
20
É necessário ressaltar que o ingresso de Oliveira Lima no serviço diplomático ocorreu num contexto de
reorganização da diplomacia brasileira em seus quadros e direcionamentos. Isso teria levado o jovem
Oliveira Lima a empreender uma estratégia para garantir que não pairassem dúvidas sobre sua
identificação com a República e conseqüentemente, não afetasse o seu trânsito no Ministério das
Relações Exteriores do Governo Provisório da República, preocupação que abandonou completamente
em 1903, direcionando e declarando-se abertamente favorável à monarquia. (Cf. Malatian, 2001, p. 80).

250
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

permaneciam insolúveis no Brasil: a comparação do “figurino político” das


repúblicas do continente, a imigração européia controlada e branqueadora, a
política externa audaciosa e afirmativa, a concessão de direitos civis, porém
não políticos aos negros.
De fato, Oliveira Lima trouxe à superfície nessa obra uma questão que
começaria a ocupar papel central nas duas primeiras décadas republicanas e,
de vários modos determinantes, nas construções dos autores que serão
examinados ao longo do nosso trabalho. Trata-se da aplicação da noção de
raça nas formas de representação do padrão civilizatório norte-americano,
particularmente na definição civilizacional daquele país, em contraste com a
brasileira e a da América hispânica.
Como nos lembra Silveira, em relação a Joaquim Nabuco, precisamos
considerar os compromissos políticos do autor em passado recente21, o que
evidentemente não o deixaria em uma posição confortável ao tratar a questão –
de extrema atualidade e relevância no contexto – da superioridade da raça
branca e os possíveis efeitos de uma miscigenação com “raças inferiores”, ou
mesmo das conseqüências sociais da presença destas como componentes da
população de um país (Cf. Silveira, 2003, p. 168). Entretanto, Nabuco não
deixaria de mencionar o choque racial na América, asseverando, nesse
sentido, que para o norte-americano,

a igualdade humana fica dentro dos limites da raça; já não


falando do chim ou do negro – que seria classificado, se vencesse o
instinto americano, em uma ordem diferente da do homem – nunca
ninguém convenceria o livre cidadão dos Estados Unidos, de que o seu
vizinho do México ou de Cuba, ou os emigrantes analfabetos e os
indigentes que ele repele dos seus portos, são seus iguais (Nabuco,
1963, p. 142)22.

21
Embora os textos referentes ao período abolicionista de Nabuco não sejam aqui objeto de análise,
podemos localizar a ambigüidade que a todo momento perpassa a obra do autor, como por exemplo, em
certas passagens em que transparece a hierarquização das raças: “Muitas das influências da escravidão
podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros
ainda, às suas superstições grosseiras”; já em outra passagem, parece tentar mitigar constantemente a
importância da influência racial na formação nacional: “o mau elemento da população não foi a raça
negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro”. (Nabuco, 2000, p. 101 e 100, respectivamente).
22
A citação encontra-se em Minha formação. Trata-se de coletânea de artigos publicados primeiramente no
Comércio de São Paulo, em 1895, posteriormente pela Revista Brasileira, sendo reunidos em livro pelo
autor em 1900. Segundo Nabuco, “a data do livro para leitura deve assim ser 1893-99, havendo neles
idéias, modos de ver, estados de espíritos, de cada um desses anos. Tudo o que se diz sobre os Estados
Unidos e a Inglaterra foi escrito antes das guerras de Cuba e do Transvaal, que marcam uma nova era para
os dois países” (Nabuco, 1963, p. 3).

251
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

À primeira vista, temos a impressão de que a constatação de Nabuco


aponta para a atribuição de uma característica negativa do princípio de
igualdade do povo norte-americano. Porém, cabe-nos a dúvida de que, ao
percebermos que para a elite intelectual brasileira – provável público
interpretativo de Nabuco – o atraso era posto como sendo decorrente da
presença de “raças inferiores”, sendo predominante a noção moderna da
superioridade da raça branca – a constatação de Nabuco, não seria, em
reverso, interpretada no Brasil justamente como o motivo da força e do poder
do povo branco norte-americano, sendo portanto, algo a ser seguido?
Em outra passagem, embora sem concordar inteiramente com seus
termos, Nabuco oferece destaque a um trecho de uma entrevista concedida por
Herbert Spencer a um periódico americano. No trecho reproduzido por Joaquim
Nabuco em Minha formação, referia Spencer sobre o futuro dos Estados
Unidos, onde dizia: “de verdades biológicas deve-se inferir que a mistura
eventual das variedades aliadas da raça ariana que formam a população
[americana] hão de produzir um mais poderoso tipo de homem que tem existido
até hoje”. (Nabuco, 1963, p. 156). Mesmo sem concordar inteiramente com os
termos de Spencer, Nabuco não deixa, no entanto, de destacar a idéia corrente
de raça biológica e, ao comentá-la, afirma que “é possível que seja aquela a lei
biológica da mistura ariana”, embora o tenha feito para destacar mais uma vez
o fato de que a Europa “ainda” suplantava os Estados Unidos como modelo de
civilização.
Apesar de considerarmos aqui Joaquim Nabuco e Oliveira Lima como
pertencentes a um mesmo pólo no debate a respeito das interpretações e
imagens construídas favoravelmente aos Estados Unidos em relação àquelas
construídas em detrimento à América Latina, isto não quer dizer, porém, que
não reconheçamos as diferenças entre esses dois autores. Diferenças existem e
são muitas. A opção por agrupá-los aqui partiu da escolha de suas obras,
produzidas no contexto de grande instabilidade política no país. Nesse sentido,
pensamos ser interessante analisarmos as interpretações surgidas nos
primeiros anos do novo regime, momento em que os autores se voltaram
imediatamente para os exemplos fornecidos no continente americano.

252
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

Talvez aqui se tornem mais visíveis as tensões e contradições no interior


do monarquismo na época, pois tanto Oliveira Lima quanto Nabuco embora
sendo monarquistas, acrescentariam novos elementos para justificarem a
política de aproximação com os Estados Unidos, o que não vemos em Eduardo
Prado. Neste sentido, torna-se fundamental reconhecer a ênfase que Oliveira
Lima atribui aos elementos geográficos e principalmente raciais para demonstrar
comparativamente, como esses argumentos estavam presentes no modo de
pensar também de Nabuco – é claro que percebidos de maneira menos nítida
pelo forte envolvimento deste com o movimento abolicionista. Ora, se Oliveira
Lima e Nabuco partilhavam do argumento de Eduardo Prado pela defesa da
monarquia como fator responsável pela preservação da integridade territorial, da
estabilidade política e da depuração racial frente ao horror dos países vizinhos
da América do Sul, a isso acrescentariam os argumentos de origem racial. Não
deixariam também de salientar e propor o modelo de soluções implantado para
essa questão no caso norte-americano buscando desse modo, a justificativa
para que pudessem afirmar que o Brasil e os Estados Unidos deveriam
continuar se aproximando, não obstante as diferenças nas formas de governo.
Assim, Nabuco realiza nos primeiros anos da República uma crítica mais
explícita às instituições das repúblicas sul-americanas e apenas tangencia o
debate sobre raça. Ora, não podemos nos esquecer da trajetória intelectual e
política do autor: Joaquim Nabuco, considerado um dos líderes da campanha
abolicionista, não poderia operar com os conceitos de raça tão abertamente. No
entanto, por um lado, se Nabuco não opera diretamente com os termos
relacionados à “raça”, não deixa de estabelecer, por outro, a hierarquia entre os
povos do continente, através de seus níveis civilizacionais, associando
instabilidade institucional com a “índole natural do povo” latino-americano. É
aqui, portanto, que já podemos reconhecer que, para Nabuco, se
inevitavelmente, tornáramos uma nação republicana, deveríamos nos espelhar e
nos aproximar da república do norte, exemplo de estabilidade institucional e de
civilização no continente.
Por sua vez, Oliveira Lima utiliza-se do viés explicativo de “raça” e “meio”
para caracterizar a América Latina e ressaltar a superioridade da América
Anglo-saxônica de modo muito mais explícito, construindo um discurso no qual

253
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

as operações com os termos relacionados à temática racial aparecem de modo


mais claro do que em Nabuco. Nessa direção, nos afirma Oliveira Lima:

A grandeza dos Estados Unidos tem sido, como é corrente,


constituída pela considerável imigração européia, além do gênio ativo e
inventivo da própria raça colonizadora. Este fator é também essencial. A
diferença de resultado na colonização dos dois continentes, ou melhor,
da América Inglesa e da América Latina, deve mesmo filiar-se mais que
tudo nas qualidades das respectivas raças conquistadoras (Oliveira
Lima, 1899, p. 53-54).

As noções determinantes do universo intelectual de Oliveira Lima – raça


e meio – sustentaram argumentos sobre a superioridade natural de um povo,
nesse caso, o anglo-saxão, sobre outro – os latino-americanos. As formas de
representação do povo americano derivaram de modo bastante direto, da
noção da herança racial: no contraste Brasil/Estados Unidos, a representação
do passado, referente aos processos de colonização nas Américas,
introduziram um modo de naturalizar e internalizar – com o fundo biologista do
conceito de raça e determinista da noção de meio – a desigualdade e o
contraste entre as duas unidades continentais representadas. Oliveira Lima
construirá um discurso que não deixaria dúvidas quanto a sua forma de ver as
populações inferiores e os problemas derivados da presença negra no
continente.
A princípio, a análise de Oliveira Lima parte do que considera um
problema comum para o Brasil e os Estados Unidos no final do século XIX.
Esse problema comum, bem como a sua resolução, seria a justificativa para os
brasileiros guiarem o olhar para aquele país: “tudo concorre [...] para tornar
especialmente interessante para nós o problema do futuro social dos Africanos
e seus descendentes nos dois grandes países do continente americano, que
[...] foram [...] os que maior quinhão receberam desta imigração forçada”. De
modo muito claro afirma assim, qual seria o mal do qual a América padecia,
atestando ainda, a quase unanimidade de opiniões a respeito: “o negro na
América é um mal, da mesma forma que foi a escravidão uma peste social”.
“Ninguém, penso, cogitará em negá-lo”. A associação com a experiência pós-
escravidão brasileira e a norte-americana é transposta diretamente nas páginas
de Oliveira Lima: “o Sul dos Estados Unidos, cuja decadência ainda dura desde

254
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

a guerra da Separação, malgrado a capacidade de trabalho da raça branca e


especialmente dos Nortistas que afluíram após o triunfo federal, e malgrado
também a opulência natural do solo” (Oliveira Lima, 1899, p. 19). Daí, a
identificação do “problema” norte-americano com o brasileiro é direta, pois “o
Sul dos Estados Unidos é o nosso Norte. Ali penetra ainda dificilmente a
imigração estrangeira, receosa do clima [...] e não menos receosa da
concorrência do negro” (Oliveira Lima, 1899, p. 51).
Os problemas derivados da presença negra eram essencialmente os
mesmos, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, o que os diferia eram as
formas de relacionamento que os brancos latinos e os anglo-saxões
estabeleceram com os negros. Se, de um lado, nos Estados Unidos, “a sorte
dos trabalhadores [negros] era infinitamente pior do que no Brasil”; do outro
lado, no Brasil, “o trabalho escravo era mercê da superior predisposição ao
afeto da raça latina e do seu menor desprezo pelas raças inferiores” (Oliveira
Lima, 1899, p. 21). Nesse sentido, diante da comparação de tratamentos
dispensados ao negro, Oliveira Lima cogita a possibilidade de o modelo anglo-
saxão de relações inter-raciais ser adotado frente ao modelo latino, no Brasil23.
Ao incorporar, em larga medida, algumas noções do segregacionismo
sulista norte-americano, Oliveira Lima apontaria assim, os equívocos e os
acertos do tratamento dos brancos dispensado aos negros nos Estados
Unidos, como modelo potencial para o Brasil. Um dos equívocos estaria por um
lado, na multiplicação do negro; do outro, ao atribuir-lhes direitos políticos: “o
perigo do negro, se por um lado está na sua multiplicação, por outro lado,
reside no erro cometido pelos vencedores de 1865 atribuindo-lhes direitos
políticos”. Oliveira Lima salienta as formas de tratamento das “raças inferiores”,
aparecendo como ideal o limite físico da segregação representada pelas
reservas indígenas. Lamenta, porém sua inaplicabilidade à população negra,

23
Uma questão candente para os republicanos brasileiros da época era a definição da identidade
nacional em termos de raça. Com sua obra sobre os Estados Unidos, Oliveira Lima recebera de José
Veríssimo crítica publicada na Revista Literária do Jornal do Comércio, com o título de “O país
extraordinário”. Em meio aos elogios da análise, percebe-se, porém, a discordância antiamericana de
José Veríssimo com relação ao julgamento, que considerava deslumbrado, de Oliveira Lima em relação
aos Estados Unidos. Ao seu ver, a obra era excessivamente otimista e benevolente em relação àquele
país e revelava a adesão ao universo racista norte-americano, aceitado sem distanciamento crítico: “é
curioso que Brasileiro, certamente sem os preconceitos de raça que aqui, quando existam, são
superficiais e insignificantes, o observador entrou tanto no ponto de vista americano, sofreu tanto a
influência do meio, que se não escandaliza por forma alguma, antes aceita como naturais e normais os
termos em que os yankees puseram a questão”. (Veríssimo, 1899 apud Malatian, 2001, p. 130).

255
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

pois estavam inseridas no sistema produtivo, eram de maior número e


acobertadas, ainda que equivocamente, segundo o autor, pela cidadania: “não
existe uma questão índia porque os selvagens, acantonados em suas reservas,
[...] das contendas públicas só conhecem o uísque e os cobertores que lhes
fornecem os contrabandistas e comissionados do governo” (Oliveira Lima,
1899, p. 31). Quanto aos acertos que os Estados Unidos obtiveram no
tratamento da população negra, Oliveira Lima destaca a diluição da população
negra pelos vários estados, no sentido de evitar a excessiva concentração nos
estados sulistas:

O êxodo da população negra tem sido [...] tentado nos Estados


Unidos desde o estabelecimento da República da Libéria. Ainda em
1889-90 discutiu-se no Senado Federal um bill [...] para providenciar
acerca de emigração do Sul da população de cor, derramando-a entre a
população dos outros estados, impelindo-a para as terras devolutas do
Oeste ou, sonho delicioso, despejando-a nas costas africanas (Oliveira
Lima, 1899, p. 43).

Desse modo, Oliveira Lima, ao traçar os “atributos naturais” da raça


negra também estabelece de forma igualmente naturalizada qual seria o
possível lugar a ser ocupado pelos negros em uma sociedade moderna, como
eram os Estados Unidos e como deveria ser o Brasil: “o negro como
trabalhador e dirigido pelo branco oferece, na opinião dos entendidos,
qualidades preciosas pela sua obediência e rija musculatura. [...] Para a vida
agrícola, sobretudo independente, não possui requisitos bastantes” (Oliveira
Lima, p. 31-32).
A questão do “problema negro” para Oliveira Lima estava estreitamente
associada à imigração européia para os Estados Unidos. Primeiramente, o
autor distingue um marco zero diferenciador no Novo Mundo, onde a imigração
européia dos anglo-saxões à América do Norte é associada com a formação da
nacionalidade e do modelo civilizatório superior desenvolvido nos Estados
Unidos. Nesse sentido, Oliveira Lima associará, já no processo colonizador, os
dois conceitos – meio e raça – para revelar o traço inevitável da superioridade
anglo-saxã. No processo de colonização, os anglo-saxões superaram até
mesmo as intempéries naturais: os colonizadores ingleses e portugueses
depararam-se com obstáculos “idênticos”, ainda que a natureza “era

256
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

manifestamente mais clemente no continente sul que no norte”. Deste modo,


se alguma diferença de condições existia, ela fora favorável à colonização
portuguesa, mas a diferente composição racial que se formou na América
Anglo-saxã e na América latina teria sido a responsável pelos assimétricos
graus de civilização. No interior desse processo e como seu fruto, o Brasil
formaria assim

um corpo anêmico e fraco, porque gerado por uma raça


açodada, com uma vontade mais ardente que tenaz, de fé proselítica e
ganância tumultuosa, que desembarcava sôfrega por alcançar num
momento a conversão em massa do gentio e as riquezas fabulosas dos
sonhos medievais. Os Estados Unidos formam pelo contrário o produto
forte, próspero, admirável, de uma raça mais nova, mais cheia de seiva,
menos pejada de antiguidade e de tradições, e que consigo levava o
senso positivo da vida (Oliveira Lima, 1899, p. 56).

É interessante observar como Oliveira Lima trabalha com


representações do Brasil e dos Estados Unidos que ganham significado
quando expressas por pares de oposição. Enquanto a primeira, “anêmica e
fraca”, resultante dos cruzamentos com “raças inferiores”, a segunda, “forte,
próspera, admirável”, deriva da preocupação entre os norte-americanos de
uma “certa seleção consciente no qual entram como fatores o vigor físico e a
limpeza de origem”, revelando assim, as assimetrias existentes entre os povos
do Novo Mundo. Antes de significar um puro esnobismo, a preservação da
pureza da raça, segundo Oliveira Lima, adquiriu entre os norte-americanos,
uma significação mais elevada, contribuindo para impulsionar esse povo para o
progresso, oposto ao Brasil, em que o cruzamento com outras raças constituiu
fator de atraso:

Procurou-se sempre conservar pura a raça branca, e mesmo


entre esta exerce-se uma certa seleção consciente na qual entram
como fatores o vigor físico e a limpeza de origem. Por isso a raça
americana vinga e prospera num meio cujas condições eram
indubitavelmente inferiores às nossas, em vez de definhar fisicamente e
atrofiar-se moralmente (Oliveira Lima, 1899, p. 212).

Vemos, desse modo, a questão racial posta no centro do modelo


imigratório americano, como meio substancial de preservação da pureza

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RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

branca dos primeiros anglo-saxões aportados na América. Tanto o papel


crucial da imigração européia quanto a capacidade singular de assimilação de
emigrantes de raças consideradas “não degradantes” da América são
sublinhadas por Oliveira Lima como “o nervo do progresso americano, não só
pelo que diz respeito ao aumento da população e à possibilidade para esta de
conservar-se afastada de misturas degradantes, como pelo que toca à
disseminação civilizadora e à adoção entusiástica pelos forasteiros da nova
pátria” (Oliveira Lima, 1899, p. 86).
Oliveira Lima enfatiza de modo evidente as possibilidades de que a
imigração tal como ocorrera e ocorria nos Estados Unidos se constituísse num
modelo imitável pelo Brasil. Dessa maneira, o “problema negro” se constituía
numa relação singular com um modelo civilizatório para o Brasil, ou seja, a
imigração européia. Por isso, os Estados Unidos, entre outros motivos, foram
tão importantes para o debate intelectual brasileiro na Primeira República.
Oliveira Lima, empenhado na discussão sobre a necessidade de
“branqueamento” do país e sobre o futuro possível dos negros na sociedade
brasileira não deixaria de trazer para o debate nacional o papel que os Estados
Unidos desempenhavam, ao menos potencialmente, no enfrentamento de um
problema representado como grave e análogo ao brasileiro. Papel pelo qual, os
Estados Unidos e sua sociedade, branca, recebiam a marca natural de
superioridade e a condição universal de modelo, digno de ser imitado. Assim, o
padrão civilizatório dos Estados Unidos deveria ser seguido de perto, pois a
imagem construída por Oliveira Lima quanto à possibilidade de futuro dos
países latinos na América só indicaria sinais de tragédia: “cairão assim quase
todos os nossos países latino-americanos, se não os salvarem a sã imigração
européia, com todas as conseqüências morais que comporta, e a prática das
virtudes que explicam o poderio da raça saxônia, dentro das terras tropicais
habitadas pelas raças inferiores” (Oliveira Lima, 1899, p. 457).
Em concordância com Nabuco, Oliveira Lima representa a posição
brasileira no continente como singular devido ao regime monárquico que teria
conseguido manter a estabilidade a despeito das revoltosas repúblicas do
continente. O autor insere em uma tradição histórica a “geral simpatia”
brasileira pelos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que representa uma
suposta imagem do Brasil naquele país, a qual consagra o critério diferenciador

258
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

brasileiro – a paz interna monárquica – relativamente ao mundo hispânico, visto


como um todo: “por mais que nos tenhamos esforçado por estragar uma
reputação adquirida em muitos anos de paz interna, somos tidos [nos Estados
Unidos] na conta de gente de mais juízo do que o comum dos Hispano-
americanos: as nossas revoluções são em média decenais e as deles anuais”.
Notemos também todo o discurso onde se privilegia a desconfiança entre os
países do continente, ressaltando por outro lado, a precedência do Brasil na
amizade com os Estados Unidos: “dá-se também o fato de havermos
ininterruptamente manifestado geral simpatia pela República anglo-saxônica,
apesar da nossa prévia organização monárquica, ao passo que no México [...]
os Estados Unidos só encontravam justificada desconfiança, no Chile e na
Argentina, ciúme e mesmo má vontade alimentada por vários incidentes”
(Oliveira Lima, 1899, p. 435).
Além da histórica proximidade do Brasil e Estados Unidos, Oliveira Lima
aponta motivos contemporâneos que seriam também responsáveis pela
suposta imagem privilegiada do Brasil nos Estados Unidos. A série de ações
representadas por Oliveira Lima foram apresentados como “o sincero apoio
prestado na conferência pan-americana [de 1889] pela nossa delegação à
delegação norte-americana; a co-participação no tratado geral de arbitramento;
a boa vontade internacional expressa na confecção de um convênio de
reciprocidade; finalmente o auxílio moral prestado aos intentos americanos nas
diversas fases da questão cubana” (Oliveira Lima, 1899, p. 436).
Daqui desponta a preocupação de Oliveira Lima de reforçar a imagem
de uma aproximação contínua entre Brasil e Estados Unidos, ressaltando que
todas as questões que porventura, neste século, foram aventadas entre os dois
países, foram amigavelmente ajustadas, e nem poderiam ter sido diferentes,
pois, não teriam passado de acidentes triviais na vida das nações, “cuja
regulação é a moeda corrente da diplomacia e apenas requer um pouco de
sangue frio e ausência de prevenções” (Oliveira Lima, 1899, 437). Dentre
vários desses incidentes, o autor descreve sua contestação a uma crítica à
aproximação Brasil/Estados Unidos, da já mencionada obra de Eduardo Prado,
A ilusão americana, cujas críticas percorreriam o ambiente da Primeira
República:

259
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

O sr. Eduardo Prado faz de sua má vontade aos Estados Unidos


um dos artigos da profissão de fé monárquica no Brasil. Discordando
antecipadamente deste modo de ver, um dos maiores estadistas do
Império, o Conselheiro Paulino José Soares de Souza, visconde do
Uruguai, ao dar na Nota de 22 de abril de 1851 ao ministro americano
David Tod as razões por que o Governo Brasileiro julgava
desnecessária a celebração de um tratado proposto por esse diplomata
para regular as relações mercantis e outras entre os dois países,
referia-se à República como a “mais poderosa nação americana, da
qual tem o Brasil recebido não equívocas provas de consideração e
simpatia, e com a qual tem cultivado relações de subida importância
para ambos os países”24 (Oliveira Lima, 1899, p. 442).

Oliveira Lima compreendeu e sintetizou bem sobre quais termos


estavam fundadas as relações materiais entre os dois países. Se o Brasil
procurava consumidores para a sua produção natural e agrícola nos Estados
Unidos; os Estados Unidos, por sua vez, procurava deslocar para o Brasil o
excesso de sua produção industrial: “A maior parte do nosso café e da nossa
borracha, um pouco do nosso açúcar [...] para aqui [Estados Unidos] vêem;
para lá [Brasil] buscam eles mandar em maior escala o que nos fornecem os
países manufatureiros europeus” (Oliveira Lima, 1899, p. 447).
Aludindo novamente a Eduardo Prado, assevera Oliveira Lima que “à
Ilusão americana é conveniente contrapor a Realidade americana”. Ou seja,
embora os Estados Unidos fossem uma nação mais populosa, muito mais rica
e muito mais forte do que o Brasil, a boa amizade, a união entre os dois países
não significariam a subalternação desse último, como apontou Eduardo Prado,
já que não éramos, de acordo com Oliveira Lima, uma “quantité negligeable”,
mas “a primeira potência da América do Sul pelas dimensões [...], pela
importância do nosso comércio, pelas reservas da nossa riqueza” (Oliveira
Lima, 1899, p. 450-451). Vale observar que a assimetria na relação é
apresentada e imediatamente convertida, no plano da representação, em
“amizade” e “união”, tanto no que se refere aos interesses nacionais de ambos
os pólos quanto no que se refere às relações do continente, no sentido da
construção ideal do Pan-americanismo.

24
Cabe sublinhar aqui, que apesar de Oliveira Lima procurar dar sustentabilidade histórica aos seus
argumentos, utilizando-se de uma citação de Paulino José Soares de Souza, o fato é que na realidade, as
relações do Brasil com os Estados Unidos durante o Império foram bem conturbadas, a exemplo da
discussão da navegação do rio Amazonas.

260
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

Oliveira Lima representa a posição brasileira no interior do quadro da


construção ideal do Pan-americanismo, como singular, posta entre a
autoridade norte-americana e a necessária e conveniente adesão hispânica ao
sistema. Novamente em concordância com Nabuco, Oliveira Lima coloca o
país na condição de interlocutor privilegiado da potência norte-americana em
contraste com as objeções de desconfiança apresentadas dos países
hispânicos, ressaltando assim, uma troca de conveniências na relação bilateral
entre o Brasil e os Estados Unidos, ao invés das relações multilaterais que
deveriam caracterizar o Pan-americanismo:

Aos Estados Unidos convém a nossa simpatia, que já lhes tem


sido útil e sem a qual eles correriam muito o risco de isolamento no
continente meridional. A nós convém-nos não menos a simpatia da
grande República, cujo proceder tem sido sempre tão liso e correto para
conosco. A época é pouca para isolamentos (Oliveira Lima, 1899, p.
451).

É, assim, na perspectiva da preponderância dos Estados Unidos no


continente que Oliveira Lima examinaria a Doutrina Monroe e suas possíveis
conseqüências na construção do sistema pan-americano. O autor interpretaria
o sentido do monroísmo como componente da política externa dos Estados
Unidos, inapelavelmente, ligado ao interesse nacional do país: “a política
externa dos Estados Unidos resumiu-se toda em dois princípios: neutralidade
nas questões européias (princípio dos dois hemisférios) e preponderância nas
questões americanas, precisado o primeiro por Washington, o segundo
formulado por Monroe” (Oliveira Lima, 1899, p. 362). Destacando o sentido
histórico da unilateralidade da Doutrina Monroe, Oliveira Lima articula dois
elementos, primeiro, o caráter unilateral, explicado historicamente e ancorado
nos argumentos da superioridade anglo-saxônica; de outro, as conseqüências
civilizatórias, política e moralmente benéficas para o continente como um todo:

Em 1823 os Estados Unidos teriam agido motu proprio, sem


esperar a reclamação de algumas das demais nações do continente;
mas então, quando as nações latino-americanas estavam sem forma
cristalina, e saídas de um estado mais degradante que a escravidão [...]
o seu papel de paladino ex officio estava traçado e só envolvia benefício
e proveito sem humilhação nem rebaixamento. A República anglo-
saxônica havia efetivamente chamado a si a defesa da democracia,

261
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

regime que hoje ainda é ela a única na América a compreender e


praticar na sua plenitude (Oliveira Lima, 1899, p. 378-379).

Nesse sentido, é possível flagrar em Oliveira Lima, de um lado, a


naturalização do expansionismo norte-americano e, de outro, a caracterização
de tal expansionismo como missão civilizatória. A própria superioridade da
civilização norte-americana é posta na base explicativa do domínio que se
interpreta como absolutamente “inevitável” e, nesse sentido, não submetido a
condicionamentos sócio-históricos de algum modo politicamente contornáveis,
inscrevendo-se na ordem, portanto, dos fenômenos naturalizados, sobretudo
em sua férrea inevitabilidade:

Neste fim de século [...] nenhuma República latino-americana


pode [...], mesmo imperfeitamente, ombrear com os Estados Unidos na
colonização integrada, desenvolvimento industrial, adiantamento
intelectual, [...] vigor, opulência e esplendor. A preponderância pois da
nação norte-americana no continente é mais do que uma intenção
manifesta, é uma condição necessária, um resultado fatal, a que não há
fugir (Oliveira Lima, 1899, p. 365-366).

A interpretação de Oliveira Lima, produzida imediatamente no contexto e


pelo resultado da guerra com a Espanha, com as anexações do Havaí, de
Porto Rico, das Filipinas e com o protetorado em projeto sobre Cuba, segue
afirmando que a própria “superioridade natural” das tradições político-
institucionais e do povo americano, “conseguirá fornecer às anexações uma cor
justificada e esforço civilizador e não de uma mera ostentação de poder”
(Oliveira Lima, 1899, p. 426). O autor tece a consideração de que a América
Latina poderia contar com uma base firme de apoio da nação norte-americana,
no que esta tinha de superior, para fazer frente a uma expansão que se fizesse
fundada exclusivamente na força bruta dos interesses materiais dos Estados
Unidos.
Ora, Oliveira Lima reafirmaria que dependeria dos países latino-
americanos não se tornarem dependentes dos Estados Unidos, pois, era
fundamental que aliassem o espírito de trabalho, de paz interna e de tolerância
a fim de tratar da prosperidade nacional e afastar o pavor das anexações. A
explicação para anexação não poderia ter fundo mais determinista: aqueles
menos preparados ou que aparentassem sinal de fraqueza serão

262
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

inevitavelmente submetidos ao poderio dos mais fortes. Seguindo a tendência


dominante no contexto internacional de seu tempo, Oliveira Lima colocava
como natural a expansão imperialista:

As anexações espreitam sempre os países fracos, gastos e


corrompidos, como a Polônia, a Turquia e a China; não se afoitam em
ameaçar os países ordeiros, laboriosos e progressivos. A desagregação
só dá-se nos organismos sociais decrépitos ou incapazes de prosperar,
nunca nos organismos sadios e florescentes. Proclamar receios de
absorção é dar testemunho da própria impotência para os conflitos da
civilização (Oliveira Lima, 1899, p. 452-453).

Reafirma ainda Oliveira Lima, que a “civilização nos trópicos há [...] que
ser continuamente imposta, dirigida ou fiscalizada [...]; uma vez abandonada a
si própria, mesmo quando exercida pela raça branca [...] tende a abismar-se na
degradação ambiente, como o provam [...] as colônias britânicas nas Antilhas,
e o demonstram [...] quase todas as nações latinas do continente” (Oliveira
Lima, 1899, p. 427). É baseado, portanto, na idéia de superioridade da raça
saxônica como garantia de uma expansão civilizatória, por um lado, e de outro,
pela garantia de um agente fiscalizador, em virtude da “degradação tropical” –
mais uma vez ressaltando de forma negativa o continente americano – que o
autor elegerá como potência colonizadora-civilizadora da raça saxônia, os
Estados Unidos, pois “ninguém de boa-fé contesta [...] que saberão colonizar
melhor do que a Espanha, isto é, que saberão dotar as ex-colônias espanholas
com condições de progresso material diferentes das que atualmente possuem”
(Oliveira Lima, 1899, p. 484). Nesse sentido, propõe uma comparação:

Havaí, que é de fato mais de meio século uma colônia


americana, de um lado, e do outro Cuba e Porto Rico, aí estão para
serem cotejados e responderem por si a interrogação [...]. Comparem-
se as ruas asseadas de Honolulu, os seus vistosos edifícios, a sua
salubridade, o seu ar de prosperidade e riqueza, com a imundície em
que se achava Santiago ou a Havana, as suas casas leprosas, as suas
epidemias, o seu ar de abandono e de pobreza (Oliveira Lima, 1899, p.
485).

Torna-se desnecessário diante do exposto ressaltar a força do contraste


civilizatório apontado por Oliveira Lima, do mesmo modo que realça as

263
RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

realizações do governo militar norte-americano em Cuba. Cabe ressaltar que,


influenciado pelas relações amistosas entre o Brasil e os Estados Unidos, que
haviam passado pela arbitragem norte-americana favorável ao Brasil na
questão do território das Missões (1895), Oliveira Lima legitimava, com seus
artigos, a concretização da aplicação da Doutrina de Monroe em sua versão
atualizada de contraponto ao imperialismo europeu na América. A todas essas
investidas, Oliveira Lima deu seu aval, aliás, reproduzindo as atitudes do
governo brasileiro, o único da América Latina que, alegando neutralidade,
demonstrou simpatia pelos Estados Unidos e chegou a ceder-lhes navios
durante a Guerra Hispano-Americana.
Ora, a proposição de Oliveira Lima não poderia ser mais clara em
termos de um ideal civilizatório para a América, impondo-se do povo superior
para o inferior uma limpeza civilizatória, material e espiritual. Entretanto,
ressalta o autor, o povo inferior ainda permaneceria irredutível na sua
inferioridade natural, uma vez que “mais difícil do que as condições materiais é
[...] mudar a natureza do povo cubano, o seu espírito volátil [...], leviano e
irrequieto”. Aliada a superioridade civilizatória dos norte-americanos estaria a
sua benevolente atenção à autonomia das nações americanas: “muito resta por
fazer e quão precisa é uma mão de ferro que saiba ao mesmo tempo respeitar
as liberdades essenciais, as quais os Americanos estão absolutamente
dispostos a não imolar” (Oliveira Lima, 1899, p. 489-490).
É com base em tal quadro de representação das Américas que Joaquim
Nabuco e Oliveira Lima construíram uma imagem dos Estados Unidos como
padrão civilizatório e de ordenamento institucional. Essa imagem foi construída
a partir de conceitos, atuais naquele contexto, como raça, meio, progresso e
atraso e contribuiu para naturalizar a noção de superioridade associada à
civilização saxônica na América. O painel composto associava a idéia de
inferioridade à América Latina, vista como um todo – que se manifestava na
supostamente crônica incapacidade para o auto-governo – sempre na
comparação com a América saxônica. Tal inferioridade era relativizada, no
interior desse painel, por meio da construção da idéia de superioridade do
Brasil frente à América hispânica, de modo geral, o que se fundava no passado
monárquico, posto como fundamento da estabilidade interna e, a partir dessa,
do progresso futuro.

264
Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

O que pretendemos deixar claro aqui também é que o discurso de


Oliveira Lima e de Joaquim Nabuco não resultou apenas de uma mera
constatação, mas antes, procuraram responder aos problemas prementes na
sociedade de sua época. Como bem sintetizou Gildo Marçal Brandão,
“nenhuma grande constelação de idéias pode ser compreendida sem levar em
conta os problemas históricos aos quais tenta dar respostas e sem atentar para
as formas específicas em que é formulada e discutida; ao mesmo tempo, que
nenhuma grande constelação de idéias pode ser inteiramente resolvidas em
seu contexto” (Brandão, 2007, p. 33). De todo modo, tanto Oliveira Lima quanto
Joaquim Nabuco emprestavam sua posição de poder intelectual para dar
contundência e atualidade à forma de representação da civilização americana,
considerada a relação Brasil/Estados Unidos, frente à elite brasileira, intérprete
e receptora dessa forma de representação.
Joaquim Nabuco e Oliveira Lima ao tratarem das formas de
representação do padrão civilizatório norte-americano, em contraste com o
brasileiro e dos demais países americanos, contribuíram para a construção da
imagem da superioridade da civilização norte-americana na América. Através
de suas representações discursivas, fundamentaram a construção da
americanização republicana, embora isso significasse colocar os Estados
Unidos na posição modelar de República-mãe da América e não
necessariamente, ampliar o escopo de representações e relações positivas
com os demais países americanos (Cf. Silveira, 2003, p. 298). Nesse sentido,
ambos os discursos se constituíram a partir dos mais atualizados e complexos
instrumentais de análise, os quais carregaram consigo uma série de noções
típicas do universo intelectual do período considerado.
Assim, um novo projeto político-intelectual se consubstanciara com o
Manifesto Republicano em 1870 com a indicação do pertencimento do Brasil à
América. Outro elemento também marcaria profundamente o início da nossa
República: a entrada de Rio Branco como Ministro das Relações Exteriores
(1902) e a criação da embaixada brasileira em Washington (1905).
Concomitantemente com esses acontecimentos, as teorias
racialistas/evolucionistas compartilhariam o mesmo quadro da Primeira

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RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

República25. Nesse sentido, a convergência de aspirações nacionais com os


fatores internacionais – a americanização da república, o Pan-americanismo e
o exemplo da modernização política e social oferecida pelos Estados Unidos,
em contraste com o das demais repúblicas americanas – propiciou solo fértil
para novas interpretações, inquietações e formulações de projetos para a
nação pelos intelectuais brasileiros no início da República.
Diante desse turbilhão de temas que fervilhavam nos primeiros anos da
Primeira República, os intelectuais brasileiros que atuavam na arena política,
direta ou indiretamente, ou, como intérpretes da realidade social e divulgadores
de visões de mundo, necessitavam de novos argumentos intelectuais para
reforçar suas posições. Novas explicações que “reorganizassem e
reexplicassem a natureza de seu ambiente social e institucional, [...] e que
ligassem seu trabalho a uma significativa meta poderia proporcionar condições
para arregimentar novos prosélitos” (Graham, 1973, p. 241). Merece destaque,
portanto, num momento em que as relações do Brasil com os Estados Unidos
tomavam novo rumo num contexto de expansão do monroísmo sob a égide
pan-americanista, a imagem da superioridade anglo-saxã na América entre os
pensadores do período.
Convém ressaltar que, a partir de 1905, Oliveira Lima seria o crítico mais
importante da aproximação Brasil/Estados Unidos, sob a condução do primeiro
embaixador brasileiro em Washington, Joaquim Nabuco. Ao contrário deste
que via na amizade com os norte-americanos um elemento central da nossa
política externa, além de sua idealização histórica e perene, Oliveira Lima
entendia a relação com os Estados Unidos de forma calculada. Advertia que no
horizonte de nossa política externa a relação Brasil/Estados Unidos deveria ser
pensada em termos de interesse e assimetrias de poder no interior do
continente. E aqui se afastava peremptoriamente de Nabuco: a aproximação
com os Estados Unidos deveria ser vista com cautela e não como um
imperativo. Sua preocupação advinha da interpretação que os Estados Unidos
faziam da Doutrina Monroe, utilizando-a como uma política exclusiva de aporte
unilateral no continente.

25
A expressão consagrada de Sílvio Romero, o “bando de idéias novas que esvoaçou sobre nós de todos
os pontos do horizonte”, correspondia a absorção, a partir de 1870, no cenário brasileiro, de teorias de
pensamento até então desconhecidas, como o positivismo, o evolucionismo e o darwinismo.

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Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n. 3, pp. 222-271, 2011.

Alertava também Oliveira Lima que a condição política para que a


inevitável liderança política dos Estados Unidos não se convertesse no interior
do sistema Pan-americano em predomínio absoluto era a unidade latino-
americana. Diferentemente de Nabuco, que defendia a liderança hemisférica
dos Estados Unidos, Oliveira Lima via como necessária, a pan-americanização
da Doutrina Monroe, ou seja, era necessária a cooperação entre “os mais
prósperos” da América Latina para uma associação posterior com os Estados
Unidos, de modo a afastar a orientação predominante rooseveltiana, que
dificultava naquele momento, a efetivação de um sistema continental.
Apesar de crítico a uma aproximação com os Estados Unidos, Oliveira
Lima não concordava, todavia, com uma aproximação com a América Latina,
como um todo, nem tampouco possuía uma visão otimista desta parte do
continente. É visível nesse sentido, que o autor realiza uma operação
fragmentadora do continente, baseada no conceito de progresso e civilização e
nos seus fundamentos explicativos de caráter racialista, destacava a Argentina,
o Chile e o Brasil de uma imagem da América Latina unificada sob atributos
negativos.
Por sua vez, Joaquim Nabuco, apesar da necessária ponderação ao
analisar os seus discursos – frutos da sua ocupação de um cargo oficial na
política brasileira – deixou evidente que no interior do pan-americanismo, o
único país com o qual tínhamos que nos aproximar era com os Estados Unidos.
A América Latina, ainda não tinha entrado no palco da civilização e ao Brasil,
portanto, era imprescindível diferenciar-se do restante do continente através da
incorporação dos elementos brancos advindos com a imigração européia, tal
qual o exemplo que Nabuco tanto admirava da grande república do norte.
Nessa direção, a insistência do embaixador brasileiro em Washington ao manter
uma política de alianças somente entre os dois países revelava também a sua
visão hierárquica do continente ao considerar a civilização norte-americana
superior a da América Latina. O pan-americanismo pensado por Nabuco
colocava os Estados Unidos como o líder do continente, cabendo ao Brasil o
papel de interlocutor privilegiado entre esse país e os demais países do
subcontinente. Para garantir tal papel, era imprescindível que o país recebesse
imigrantes europeus, ultrapassasse a Argentina na quantificação de sua

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RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

população branca e mostrasse-se ao mundo como uma nação embranquecida


com a possibilidade de alcançar um nível elevado de progresso e civilização.
Podemos nesse sentido, perceber a face de um tipo de Pan-americanismo
pensado por Oliveira Lima que, apesar de propor a união entre as repúblicas
“excepcionais” da América Latina o faz com base nos atributos civilizacionais e
da composição étnica desses países. Apesar de propor uma aliança no interior
do pan-americanismo entre as três repúblicas latinas, o modelo a ser alcançado
ainda continuava a ser o da América saxônica, com o seu nível civilizacional e
seu povo predominantemente branco.
Nesse sentido, buscamos demonstrar que a discussão em torno do Pan-
americanismo era envolvida diretamente com a discussão racial do período. Ou
seja, para além do discurso de que uma aproximação com os Estados Unidos
seria uma via de superação do atraso, através de uma aproximação com os
valores e instituições norte-americanas, a aproximação com os Estados Unidos
ou com a América Latina passava, para alguns desses intelectuais brasileiros,
pela questão racial. Integrar-se aos Estados Unidos significaria representar-se
como um país com possibilidade de alcançar um patamar civilizacional;
enquanto a integração com a América Latina significaria persistir na imagem de
um país mestiço e, por conseguinte, fadado ao atraso. A questão civilizacional
interferiu nas interpretações de aproximação ou de distanciamento desses
intelectuais com os Estados Unidos ou com a América Latina no início da
República26. São essas questões, que, incluindo todo um arcabouço de um
discurso racial – muitas vezes um discurso velado – freqüentemente
contraditórias nas suas próprias proposições, é que nos instigaram a adentrar
mais a fundo no embate travado por estes pensadores nos primórdios da
República em torno do Pan-americanismo.

26
Roberto Ventura observou que, até a década de 30, a maioria das obras foram orientadas pelas noções
de raça e natureza: “A defasagem política e econômica entre a América do Norte e a sua contraparte latina
levou ao recurso a causas geográficas e raciais, para dar conta do „atraso‟ do Brasil ou da América do Sul,
o que prolongou a disputa do Novo Mundo na crítica literária brasileira do século. [...] Introduziu-se, na
literatura e na crítica brasileira, uma visão exótica ou um olhar de fora, que trouxe uma imagem negativa da
sociedade e da cultura local, expressa na oscilação entre ufanismo e cosmopolitismo, na tensão entre a
ideologia civilizatória e o projeto nacionalista” (Ventura, 1992, p. 41).

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4. Considerações Finais

Neste artigo, buscamos evidenciar que semelhante ao Brasil, a América


Latina, no final do século XIX e início do XX, viveu um momento de intenso
debate intelectual, com temáticas similares, em que se discutiram questões
pertinentes a um período marcado pela intensificação do processo de
modernização, bem como os projetos para a superação do atraso e para a
elevação dos níveis do progresso e da civilização nesses países.
No Brasil, as questões internacionais viriam coincidir com uma época de
grandes transformações. Parte de uma geração de intelectuais estava
perdendo suas referências pessoais e políticas em meio ao desmoronamento
do mundo construído durante todo o século XIX, primeiro com o esgotamento
da causa abolicionista, depois com a queda da monarquia e todos os outros
processos que tomavam lugar no plano mundial, entre eles a perda da
centralidade européia, o imperialismo e a ascendência dos Estados Unidos no
continente americano. Eduardo Prado, Joaquim Nabuco e Oliveira Lima
viveram esse dilema em sua época e se viram pressionados a reverem seus
conceitos e reestruturar seus pensamentos diante da realidade cultural e social
da qual faziam parte. Tais temas ora ocultavam, ora tornavam explícitos os
conflitos e tensões que vivenciavam. Mas, independentemente do quanto se
esforçaram para imitar os modelos e estilos europeus admirados, nossos
autores sempre estiveram falando e escrevendo, cada qual, sobre o seu tempo
presente. Dessa atitude não puderam escapar: mais que isso, permitiram que a
força das realidades políticas com as quais estavam envolvidos aparecesse
subjacente aos seus trabalhos. Assim, admitir a historicidade dos seus textos
torna-se a condição necessária para compreendermos as suas idéias. Nessa
direção, Eduardo Prado, conhecido pelo seu europeísmo, relutou em aceitar a
república e a “ilusão americana” advinda com o novo regime. Ferrenho
defensor monárquico e da cultura européia, suas críticas à política de
aproximação com as Américas podem ser entendidas no binômio “civilização” e
“barbárie”. Os Estados Unidos seriam considerados pela visão de Prado como
uma nova barbárie na ordem da civilização e difusor de um imperialismo cruel
na ordem das relações internacionais no continente.

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RÉ, Flávia M. Estados Unidos e América Hispânica: espelhos para uma jovem República.

Nabuco e Oliveira Lima, encontravam, no entanto, nos Estados Unidos,


um povo da mesma raiz racial que os ingleses e, por isso, com potencialidades
latentes de desenvolvimento de uma civilização na América que estava
surpreendendo em vários aspectos. Ao pretendermos buscar o início da
identificação ou afastamento dos dois autores com os países americanos
percebemos que, ao definirem a necessidade de uma aproximação estreita
com os Estados Unidos, assumiam argumentos, não só em termos políticos
mas também civilizacionais e raciais. A posição que o Brasil assumia no interior
do Pan-americanismo, como aliado mais próximo dos Estados Unidos,
proporcionava uma identidade e interesse comum de desenvolvimento,
proteção e uma espécie de “aliança” com o país mais “evoluído” no sistema
americano.

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Submetido em 2011-07-19
Aceito em 2011-10-26

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