A Serpente
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A Serpente - Nelson Rodrigues
PERSONAGENS
décio
lígia
guida
paulo
crioula
(É a separação. Décio está fechando a mala. Fecha, levanta-se e vira-se para Lígia, a mulher, que olha com maligna curiosidade.)
décio
— Pronto.
lígia
— Você não vai falar com papai?
décio
— Pra que falar com teu pai? Não falei com a principal interessada, que é você? Perde as ilusões sobre teu pai. Teu pai é uma múmia, com todos os achaques das múmias.
lígia
— Então por que você não desaparece? Pode deixar que eu mesma falo. Como é suja a nossa conversa.
décio
— Não me provoque, Lígia!
lígia
— Acho gozadíssima sua insolência. Não se esqueça que nós estamos casados há um ano e que você.
décio
— Para!
lígia
— Me procurou só três vezes. Ou não é?
décio
— Continua e espera o resto.
lígia
— Três vezes você tentou o ato, o famoso ato. Sem conseguir, ou minto?
(Décio avança para a mulher. Segura Lígia pelo pulso.)
décio
— Cala essa boca.
lígia
(com esgar de choro) — Não, não!
décio
— Você não me conhece! Quietinha! Você me viu chorando a minha impotência. Mas eu sou também o homem que mata. Queres morrer? Agora?
(Décio a esbofeteia.)
lígia
(com voz estrangulada) — Não!
décio
— Olha para mim, anda, olha!
(Pausa. Lígia olha.)
décio
— Diz agora que és puta. Diz, que eu quero ouvir.
lígia
(lenta) — Sou uma prostituta.
décio
(trincando as palavras) — Eu não disse prostituta. Eu quero puta.
lígia
(soluçando) — Vou dizer. Sou uma puta.
(Décio a solta.)
décio
— Agora olha para mim e presta atenção. Se você fizer um comentário sobre a nossa intimidade sexual, seja com quem for. Teu pai, essa cretina da Guida, uma amiga, ou coisa que o valha, venho aqui e te dou seis tiros. E quando estiveres no chão, morta, ainda te piso a cara e ninguém reconhecerá a cara que eu pisei.
(Décio a esbofeteia. Lígia cai de joelhos com um fundo soluço. Décio apanha a mala.)
décio
(num gesto largo) — Vai-te pra puta que te pariu!
(Décio sai. Logo, entra Guida, irmã de Lígia.)
guida
— O que é que está havendo nesta casa?
lígia
— Ah, Guida! Você chegou no pior momento. Nunca houve um momento tão errado!
guida
— Não fala assim. Olha para mim, Lígia. Você e Décio brigaram?
lígia
— O que você acha?
guida
— Não acho nada. Parece que está todo mundo louco nesta casa. Cheguei da missa quando Décio ia saindo. Não falou comigo, aquele imbecil. Cumprimentei, e nem bola. Você me recebe como nem sei o quê. Afinal, o que houve?
lígia
— Nos separamos.
guida
— Quem?
lígia
— Ora, quem! Guida, quer me fazer um favor? Vá para o seu quarto. Depois conversaremos.
guida
— Você e Décio? E tão de repente? Não acredito que vocês tenham se separado. Você teria me falado antes. Outro dia, eu disse a Paulo: — Lígia não me esconde nada.
Mas escuta. Papai sabe?
lígia
— Sabe como? Nem desconfia.
guida
— E o amor?
lígia
— Que amor?
guida
— O amor de vocês. Nunca, até este dia, você se queixou