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Aspectos da muisica africana Neste livro, 20 nos referirmos & musica africana, ¢ importante dizer que estamos destacando alguns aspectos principais, tomando 0 cuidado de ndo generalizar, ja que o continente apresenta uma grande diversidade cultural, com mais de mil lin- guas divididas em seis troncos linguisticos (v. mapa abaixo).” Eo mesmo caso do universo indigena em que cada povo possui caracteristicas culturais préprias, mas com alguns elementos em comum que podem ser apontados como principios a nortear a vida indigena. Para os afticanos, a musica é parte integrante da vida social transmitida oral- mente. Ela é uma misica funcional, isto é, nfo existe sem uma razio de ser, pois exerce diferentes papéis, tais como a comunicagao entre aldeias ¢ pessoas, a fungio espiritual ou relacionada aos afazeres cotidianos. Canto, instrumentos, fala, ritos, fes- tas, dangas, ligagdo com a natureza e afazeres do cotidiano sio parte de um mesmo contexto, interagem entre si e formam um todo que dificilmente é desmembrado. Assim € 0 jeito africano de lidar com a miisica e talvez essa seja a caracteristica mais marcante do continente africano. ‘Nas iiltimas décadas, vem ocorrendo muitas transformagées culturais € eco- nomicas que mostram uma adaptagao dessa funcionalidade a0 mundo mo- derno do show business. Por exemplo, © talking drum (“tambor falante”) era ‘uma espécie de telégrafo entre duas co- munidades vizinhas, exercendo assim uma fungio de comunicagio. Nos anos de 1980, cle passou a ser incorporado nas bandas pop africanas como instru- ‘mento musical, assim como o djembé ¢ outras percussées, E importante ressaltar que, ao falar- mos de misica africana, imediatamente ee Disponivel em: a relacionamos aos tambores que, sio «t tannic. con/comprons/-153245/Language- petite, oe ae Fanie-aniLangagerat tee, coves hae gat” envoltos em uma fungio magica, pois so considerados portadores das vozes “ngus afo-aiias,inguas cis, Linguas congo-cadofana inguasnilo-staiana. 134 + Outras ters, outros sone dos espititos, tendo fungao até mesmo de cura, Sem diivida, os tambores determi- ram, de forma contundente, uma das caracter a mais diftndida entre nés, embora a riqueza e a variedade estilistica do continente afticano sejam enormes, Somente nos itimos anos € que essa diversidade tem che- Sado até nés, tornando conhecidas outras facetas dessa miisica, Ritmicamente, a poliritmia” africana ¢ extremamente sofisicada e € um dos lementos que mais se destacam entre as Principais caracteristicas da musica afti- cana, além das formas ciclicas, campo fértl para a improvisacio. Os tambores e as Palmas no apenas marcam os compastos, como também acompanham a acentua- ‘slo derivada das palavras, Ao lado da polrritmia rica complexa dos tambores, podemos apreciar também © som da tora de Mali (citara de 21 cords) a suavidade des hati brs (mbiras), wti- Eaadas tanto na contagio de historias infantis como nos rituals de transe, 0 mbube (canto coral sul-afticano) ¢ a Sonoridade tinica da polifonia vocal dos pigmeus da Aftica Central, mesclado aos sons de insetos da loresta onde sivern Lit também, Por conta da diversidade linguistica, uma enorme variedade de timbres vocals asing como Uma forma de cantar especial que utiliza estalos de consoantes, conhecida lingua do click”, mais presente no Sul da Africa? Por um lado, a melodia africana soa natural aos ouvidos ocidentais Porque pos- sui algumas caracteristicas da masica europeia, como os tempos bindrios, as exealag maiores.¢0 sentido harménico-tonal”, como ¢o caso de Sansa Kroma’, que é apre- Sentada em arranjo com a misica “Cangoma” (canto dos escravos) a qual apresenta a forma responsorial, caracteristica bastante presente na misica afticana, Em contrapartida, o que diferencia a melodia africana da ocidental é 0 uso fre= quente de intervalos de oitavas, quartas e quintas, e menos de grau conjuntos ¢ ‘tiades resultantes como é 0 caso de “Yaye babs". O paralelismo vocal é um recurso frequentemente usado em diferentes contextos, sejam eles de origem tribal ou mes. clados a sonoridade dos coros protestantes. Podemos resumir algumas das principais caracteristicas presentes em boa parte do repertério da misica tradicional africana em: ticas marcantes dessa musica, sendo 3 Cio mio com diets en whist qu conbnancm um dea simi ab tin omads sa osbs Em peal siven So aes oopoeee Ime o pdt tice en dir ndvencia ou contd pas ven Por cemple geste, pos toot em compo deat eats cue ots dee eared ck ‘Emp em alg pot mia chads pont nde A respeito disso, vero video “Click Language and the San Bushmen People" Link: , Entende-se como sentido harménico-tonalo principio bisico de tensio-repouso de nica ¢ dominant, 135 + aprendizado pela oralidade; : + pritica responsorial em boa parte do repertério; + ritmos cadenciados ¢ polisritmia; + diversas expressdes vocais: canto aspirado, nasal, gutural, falsete, gritado; + coros com harmonias paralelas. ‘A misica africana exerceu uma influéncia enorme em diversos estilos pelo mundo todo, pois sua capacidade de se combinar a outros estilos ¢ tendéncias é grande, Pulso firme, ritmos cadenciados e melodias de facil memorizacao fizeram dessa mi- sica fonte inesgotavel de pesquisas ¢ de apropriagSes por varios generos musicais tis como 0 blues, o pop, rock, 0 jazz, o hip-hop ¢ a misica eletronica. Referéncias africanas na muisica brasileira ‘A influéncia dos povos afticanos se deu nas dangas populares e nos teatros musi- cais, na presenga da mésica vitalizando a sociedade e a cultura nas festas,feiras ¢ devogées religiosas, com uma larga gama de contatos e reinterpretagées da crstia- nizagio e da visio de mundo africana, (Bueno, 2001) Historicamente, o Brasil tem uma relagdo intensa com elementos culturais de diferentes povos africanos que vieram como escravos para o pais, divididos basica- ‘mente em dois grupos: os bantos € os sudaneses. (Os sudaneses jéje-nagés, da Africa Ocidental, concentraram-se, principalmente, nas cidades do Nordeste ¢ desenvolveram as formas religiosas aqui conhecidas como candomblé. Os bantos, da Africa Centro-Meridional, foram para os campos do Nordeste e Sudeste, ¢ sua presenca esta relacionada as festas populares, mescladas com elementos do catolicismo e das manifestacé; Segundo Paulo Dias (s.d,): tages profanas urbanas. {-] na misica popular tradi abrange basicamente os dois Sones; congadas, mogambi ‘opts, marujos ete, Irmandades Negr ional, a esfera de influéncia da musicalidade banto grandes grupos citados: as congadas ~ maracatus, iques, ticumbis, catumbis, taieiras, ‘cambindas, ¢a” ” Com maior presenga no estado de Minas Gerais, onde * Ceram ¢ tém ainda papel fundamental na vida religiost os 136 Outram, outro sony - afrodescendentes ~¢ os batuques — jongo, batuque de umbigada, zambé, tambor de erioula, earimbé ete, ‘candombe, sussa, A contribuisio da cultura afticana para nossa misica se relagio a0 aspecto rftmico, A misica africana privilegia o 1 neira como a concebemos, pois as melodias africanas tém w estruturagio dos idiomas daquele continente, os africanos foram incorporando, aos poucos, estruturas da cultura europeia, ¢ a partir daf surgiram outras formas de expressio, que foram se caracterizando como brasileiras. “Os sincretismos nascem assim do. entrelacamento e das influéncias mi- ‘tuas no processo de aculturasao” (Vidossich, 1975). Além da polirritmia, herdamos também a melodizagio poética ¢ as harmonias ‘vocais. deu principalmente em ‘itmo 4 melodia, na ma- ima ligagio direta com a que sio monossilébicos. Jé no Brasil, Ritmo O uso de tercinas e de acentos no contratempo, elementos caracteristicos dos Fitmos aficanos, foram incorporados & misica brasileira assim como a polis mia (principalmente 2 contra 3), que aparece em varias manifestagSes populares como no samba, no ritmo do bumba meu boi e em virias outras. Segundo Mirio de Andrade (apud Vasconcelos, 1977), a tio caracteristica sincopa presente em nossas melodias foi herdada dos portugueses, mas “nos encarregamos de desenvolver a0 contato com a pererequice ritmica do afticano”. Canto ‘Uma das formas mais caracteristicas do canto afticano é 0 canto responsorial, alternincia de coro e solista, Podemos notar correspondéncia dessa forma vocal em algumas manifestagées musicais brasileiras. O termo “puxador do samba” cor- fesponde a forma do canto responsorial africano, assim como “puxar a toada” é usado tanto na festa do boi do Maranhao quanto nas rodas de ciranda e nos ma racatus. © puxador, 0 cantador ou o mestre — esses sio alguns dos virios termos que designam a pessoa responsivel pelo canto inicial ~ canta a melodia principal €m tempo mais livre, quase sempre a capella, que, em seguida, é repetida pelo coro acompanhado de instrumentos. a7 oo} Danga e misica ‘Uma das caracteristicas marcantes da musica africana é a relaglo direta entre g miisica e a danga: “musica ¢ danga fundem-se em uma simbiose cuja importancig é considerivel entre os afticanos, notadamente nas celebragdes, ritos, cultos etc (Vidossich, 1975), O candomblé, os tambores de Mina, a capoeira, as congadas, 9 maracatu, 0 mosambique, o catumbi, entre outras manifestagdes populares, sig exemplos da fusio da misica com a danga ¢ da unido do sagrado com o profano, Desses géneros, destacamos os seguintes: Congadas - “Os cortejos com danga e misica, hoje denominados congadas oy congados, nasceram dos séquitos que acompanhavam, por ocasiao das festas publicas, 08 Reis do Congo, soberanos negros eleitos entre escravos ¢ libertos das Irmandades de Nossa Senhora do Rosario, Sio Benedito ¢ Santa Ifigénia. Semelhante origem tiveram os maracatus de Recife, as taieiras de Sergipe e os mocambiques paulistas e gatichos, entre muitas outras agremiagées” (Almeida & Dias, 1999). Segundo os e- nomusicélogos Paulo Dias e Edimilson de Almeida (Ibidem), “a ingoma, que designa © tambor ou a reunido dos devotos, ¢ 0 rosario, que faz referencia as influéncias do catolicismo, representam a configuracio complexa do congado. [...] O resultado é uum panorama de herangas bantas e cristas, reinterpretadas para dar & luz uma expe- rigncia plural, que transforma o cotidiano”. Maracatu — em uma fusio dos cortejos festivos africanos e da imitacao dos autos Portugueses para Nossa Senhora do Rosério, o maracatu é uma danga dramdtica que acontece principalmente em Pernambuco, hoje presente no Carnaval. Os principais Personagens sio o rei,a rainha, a dama do paco e as baianas. Estas tiltimas eadamado paso carregam a calunga, boneca de pano e madeira de origem religiosa, proveniente dos cultos fetichistas dos avés afticanos. A danga possui movimentos coreogrificos laborados ¢ as vestimentas carregam forte significado, Em Pernambuco, existem a See rural, também conhecido como pone Os instramentos uilizados no marie ane Sea eens (alfa, tal gong een cee aca de baque viral sto de preso (is Sanzds, entre outros) ¢ os principais padrées ritmicos si0: marist male, arrastio, parada e martelo, conforme definigao de Eder, o Rocha n° vi ‘Eder ‘O’ Rocha ea conversa das alfaias”.* 138 + Outras teres, outros sone Capoeira — de origem angolana, é uma danga que acrescentou os golpes de luta a sua origem Iidica de imitagao dos animais. Os descendentes aftos escravizados simulavam uma danga para treinar esses tipos de golpes; com o tempo, a capoeira passou a integrar a miisica popular brasileira com seus berimbaus e atabaques. O canto também se dé na forma responsorial, em que o mestre improvisa um verso € 0 coro responde alternadamente. Hi varias linhas de capoeira e € possivel en- contrar muito material sobre o assunto tanto na internet como em publicagdes antigas e atuais. O memorialista Afonso de Freitas (apud Mattos, 2007) conta que, na Sao Paulo do século XIX, escravos e libertos, depois das procissées religiosas, continuavam a festejar com suas dangas e misicas extraidas “do ruido seco do reque-reque, a0 som rouco ¢ soturno dos tambtis, das puitas e dos urucungos que, com a marimba solitéria, formavam a colecio dos instrumentos africanos conhecidos em nossa terra”, Instrumentos musicais de origem africana Boa parte dos instrumentos brasileiros, principalmente os de percussio, sio de origem africana. E evidente que algumas adaptagées foram feitas nesses ins~ trumentos ¢ muitos deles encontram-se completamente incorporados cultura musical brasileira. ‘Ngoma € o termo genérico para designar tambor na lingua banto. Os formatos dos tambores afto-brasileiros variam muito, assim como os timbres ¢ a maneira de tocé-los: com vareta ou com a mao; com os executantes sentados sobre eles; com ‘0 tambor debaixo do brago, na frente do executante, ou de lado, presos a suportes fixos etc. 37 Par saber mas, acese: 36 Hicbrae cultura afr-brasilira, de Regiane Augusto Mattos, 179. 139 is) — 16) Atabaque, tambu, inba”, caixa, bate, diembe», alfa cufea, enfim, hi uma variedade enorme de termos que de, nam esse instrumento milenar presente em todo ocontine’, afticano, Além dos tambores, a Africa nos trouxe instry. mentos de percussio melédicos como mbira (ou kalimbay), balafon, conhecido como marimba, e xilofones. Hi ainda op agogés, os chocalhos (de pé, mo e brago) como 0 caxxi, afoxé, 0 xequeré, o magaguaia™, as gungas" eo pais". Foran, trazidos também alguns instrumentos de corda, como o be. timbau e o ancestral do violino, 0 orocongo. Além da classificagao dos instrumentos, é importante com- preendé-los dentro do contexto em que so usados, isto é, funsio, significado e a forma como sio tocados, partindo da manifestagdo em que se inserem. Atabaque ~ com o nome de origem drabe,o atabaque é muito utilizado nos terreiros de candomblé. (1) Cuica (ou putta) ou tambor de onga — usada no boi do ‘Maranhio, para imitar 0 som do animal. (14) Zabumba ~ tambor largo que usa uma baqueta para produzir © som grave, na pele da frente, e uma vareta chamada “bace- hau”, de som agudo, Muito usado nos forrés, baides e xotes do Nordeste. 15] 7 Tah ome do 0 tambr de gute um met wd no bau do Rio Grande do Sul, oe ~ Buc tnbor mito gande sean inht este ao Mah, Recife, em Cuba e no Haiti, Djembe: trmo afficano para designaro tambor em forma de ampulheta, tem ‘um som forte e penetrante Alfa: nome dado ao tambor usado nos maracatus. ‘Magaqutis: chocalhos de pés usados no mosambique de Osério (Sul. ‘Gungas: chocalhos usados no mogambique de Minas Gerais, Paid: tomnozelera de guizos atada a uma das perma da nos mogambiques de 140 + Qutras teas, outros sons Pandeiro — com platinelas, tornou-se 0 simbolo do samba brasileiro, mas é usado em outros estilos, por todo 6 pais, em diversas manifestages populares. No Sul do Brasil, o pandeiro que acompanha o fandango, género de origem ibérica, também é conhecido como adufo, termo que se assemelha 20 adufe em Portugal. (16) Pandeiréo — sem platinelas ¢ de didmetro maior, 0 pandeirdo foi trazido pelos sudaneses ¢ tem parentesco com o adufe portugués (pandeiro quadrado). E muito usado no boi do Maranhio. (171 ‘Tamborim — tambor pequeno, tocado com baqueta dupla, muito usado nas escolas de samba. (18 Agogé — muito usado nas escolas de samba e no mara- catu. O agogé produz duas notas (em geral, em quintas) ¢ marca uma das claves dos ritmos africanos trazidos para o Brasil. (19) Reco-reco — raspador usado em varias partes do Brasil, de varios tamanhos provivel origem africana. (20 Caxixi - chocalho recheado de sementes proveniente da Reptiblica dos Camarées. Juntou-se ao berimbau aqui no Brasil. (21) Ganzé — chocalho feito de metal para acompanhar 0 pulso da misica, principalmente na subdivisio. (22) Xequeré ~ chocalho com sementes que ficam de fora da cabaga, amarradas em uma rede. No afoxé, o mesmo instrumento € chamado de agbé. (23) is) omg o> (20) at Berimbau - instrumento de origem angolana, muito usado na capoeira, O caxixi foi incorporado posteriormente no Brasil. (24) Kalimba (ou mbira, ou sanza) ~ instrumento feito de ca- baca ou madeira com laminas de ferro, que sio percutidas pelos dedos. Também conhecido como piano de cui Marimbas exilofones — instrumentos formados por placas de madeira de diferentes tamanhos, que so percutidas por baquetas. Os balafons africanos, dos quais provém as marim- bas e os xilofones, possuem cabacas embaixo de cada tecla, que fancionam como caixas de ressonncia, em vez de tubos ou de caixas de madeira. (26) Orocongo (ou urucungo) ~ embora quase extinto, 0 oro- congo € considerado o ancestral do violino e possui apenas uma corda, Nos desenhos de Debret, ele foi confundido com ea © berimbau, por ambos serem monoc6rdios. (271 2s) 7) 142+ Ourrs terms, outros sons

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