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54 (OIMPERIO DODIREITO inclusive aqueles fundamentais, nfo se trata de uma piada gro- tesca. Signifiea alguma coisa afirmar que os juizes devem aplicar a lei, em vez de ignori-ta, que 0 cidadao deve obedecer Ailei, ano ser em casos muito raros, ¢ que os funcionérios pili cos sio regidos por suas normas. Parece estipido negar tudo {sso simplesmente porque is vezes divergimos sobre 0 verda- deiro contetido do direito. Desse modo, nosses filosofos do ireito tentam salvar aguilo que podem. Para fazé-lo, agarram- se a qualquer coisa que encontram: afirmam que, nos casos dificeis, os juizes apenas fingem divergir sobre o conteiido do direito, ou que os casos dificeis nao passam de discussies mmitrofes, & margem daquilo que é claro e comum a todos. Ou nto pensam que devem entrar em alguma forma de niilismo 2 propésito do dircito, A logica que preside a essa devastacao é aquela que descrevi hi pouco, 0 argumento de que, a menos ‘que os advogados e juizes compartilher critérios factuais so- bre 0 fundamentos do direito, néio poder haver nenhuma idéia ou debate significativos sobre 0 que & o direito, Nao te- ‘mos outra opgio a nfo ser confiomtar esse argumento, Trata-se de um argument filosifico, razHo pela qual a proxima etapa de nosso esquema deve set também filoséfica Capitulo It Conceitos de interpretagao (O aguilhio semantico Chamarei de aguilhio semantico o argumento que descre- vi hii pouco, e que tem causado tantos problemas 4 Filosofia do direito, Suas vitimas sio as pessoas que tém uma certa imagem do que é a divergéncia e de quando ela & possivel. Blas pensam que podemos discutir sensatamente se (mas apenas se) todos aceitarmos e seguirmos os mesmos eritérios para decidir quan- do nossas posigdes so bem fundadas, mesmo que niio possa- ‘mos afirmar com exatidio, como seria de esperar de um fil6- sofo, que critérios sio esses. Eu e vocé s6 poderemos discutir sensatamente quantos livros tenho em minha estante, por exem- plo, se ambos estivermos de acordo, pelo menos em linhas ge~ rais, quanto ao que é um livro, Podemos divergir sobre os ca- 05 limitrofes: posso chamar de livrinho aquilo que para voce seria um panfleto, Mas nio podemos divergir sobre aquilo que chamei de casos centrais. Se para voc8 meu exemplar de Moby Dick nio € um livro, pois em sua opinido romances nio sio livros, qualquer divergéncia seri necessariamente absurda. Se essa imagem simples das circunstincias em que a veréadeira divergéncia & possivel esgata todas as possibilidades, cla deve aplicar-se aos conceitos juridicos, inclusive ao conceite de di- reito. E entio que se coloca o dilema que exponho a seguir. Ou ‘0s advogados, apesar das aparéncias, realmente aceitam,em li 56 CO IMpéRIO DO DIREITO has gerais, 05 mesmos critérios para decidir quando uma afir~ magio sobre o diteito ¢ verdadeira, ou nio pode existir absolu- tamente nenhum verdadeiro acordo ou desacordo sobre o que & © dircito, mas apenas a estupidez de pessoas pensando que di- vergem porque atribuem significados diferentes ao mesmo som. O segundo termo desse dilema parece absurdo. Portanto, 08 fil6sofos do direito adotam o primeiro e tentam identificar as regras fundamentais ocultas que devem estar contidas, mas nijo reconhecidas, na prifica juridica, Eles produzem e discutem as teorias seminticas do direito. Infelizmente para essas teorias, a imagem do que torna a divergéncia possivel ajusta-se mal aos tipos de divergéncia que 0s advogados realmente tém. Ela é coerente quando advogados ¢ juizes divergem sobre fatos historicos ou sociais, sobre que palavras dever ser encontradas no texto de alguma lei, ou 4quais eram os fatos em alguna decisio judicial anterior. Em direito, porém, grande parte das divergéncias € teérica, niio ‘empirica. Os filésofos do direito em cuja opinido deve exis- tir regras comuns tentam subestimar a divergéncia tedrica por meio de explicggdes. Dizem que os advogados ¢ juizes apenas finger, ou que 56 divergem porque 0 caso que tém em milos se situa numa zona cinzenta ou periférica das regras comuns. Em ambos os casos (dizem eles), o methor a fazer ¢ ignorar os ter- mos usados pelos juizes ¢ traté-los como se divergissem quan- to & fidelidade ou reforma do direito, e nao quanto ao dircito. Af esti 0 aguilhdo: estamos marcados como seu alvo por uma imagem demasiado tosca do que deve sera divergéncia, ‘Um exemplo imaginério A atitude interpretativa Talvez essa imagem do que tora a divergéncia possivel seja muito tosca para captar qualquer divergéncia, ainda que sobre livros. Mas sustentarei apenas que ela ndo é exaustiva e, em particular, que ndo contém um conjunto importante de clr CONCEITOS DE INTERPRETACAO 7 cunstincias que inclua a argumentagdo tebrica em direi:o. Ela nfo se sustenta quando os membros de comunidades especi- ficas, que compartilham priticas ¢ tradiges, produzem e de- batem afirmagées sobre as melhores interpretagdes de tais pr ticas e tradigGes ~ quando divergem, melhor dizendo, sobre aquilo que alguma tradigdo ou pratica realmente requer em cit- ccunstincias concretas. Essas afirmages sfio muitas vezes po- Jemicas, ea divergéncia é genuina mesmo que as pessoas usem critérios diferentes para dar forma a e3sas interpretagdes; & ge~ ‘nuina porque as interpretagdes conflitantes voltam-se para 05 riesmos objetos ou eventos a interpretar. Tentarei mostrar como esse modelo nos ajuda a compreender melhor 0 argumento juridico ¢ a ver com mais clareza o papel do direito na cultura, ‘considerada em sentido mais vasto, Antes, porém, seri itil exa- inar como o modelo se aplica a uma instituigdio muito mais simples. Imagine a seguinte histéria a propésito de uma comunida- de ficticia, Seus membros seguem um conjunto de regras, que chamam de “regras de cortesia”, usando-as em um certo ni mero de situacdes sociais. Eles dizem: “A cortesia exige que os camponeses tiem o chapéu diante dos nobres”, por exernplo, € sustentam ¢ aceitam outras proposigdes desse tipo. Por algum ‘tempo, essa pritica tem um cariter de tabu: as regras simples mente estio ali, ¢ ninguém as questiona nem tenta mudi-las. Mas em seguida, talvez. lentamente, tudo isso muda. Todos desenvolvem uma complexa atitude “interpretativa” com rela~ ‘iio as regras de cortesia, uma atitude que tem dois componen- tes. O primeiro é pressuposto de que a pritica da cortesia niio apenas existe, mas tem um valor, serve a algum interesse ou propésito, ou reforga algum principio — em resumo, tem algu- ma finalidade — que pode ser afirmado, independentemente da mera descrigdo das regras que constituem a pritica. O segundo € 0 pressuposto adicional de que as exigéncias da cortesia - 0 comportamento que cla evoca ou 0s juizos que ela autoriza ~ nio so, necessiria ou exclusivamente, aquilo que sempre se imaginow que fossem, mas, ao contrario, suscetiveis a sua fi- nalidade, de tal modo que as regras estritas devem ser com- 58 OIMPERIO DO DIRETTO preendidas, aplicadas, ampliadas, modificadas, atenuadas ou limitadas segundo essa finalidade. Quando essa atitude inter- ppretativa passa a vigorar, a instituigo da cortesia deixa de ser mecinica; no & mais a deferéneia espontinea a uma ordem rrimica. As pessoas agora tentam impor um significado a insti- tuigio ~ vé-la em sua melhor luz ~ e, em seguida, reestruturi- lad luz desse significado. Os dois componentes da atitude interpretativa sto inde- pendentes um do outro; podemos adotar o primeiro componen- te dessa atitude com relaeio a aiguma instituigo sem que seja necessirio adotar também o segundo. E 0 que fazemos no caso. de jogos e competigdes. Recorremos 4 finalidade dessas priti- ‘cas ao discutirmos a possibilidade de alterar suas regras, mas nilo (a nio ser em casos muito raros)' aquilo que elas sio no momento; isso & determinado pela histéria e pela convengio. A interpretagio, portanto, desempenha um papel apenas exte- riot nos jogos e competizSes. Contudo, & fundamental para a minha fibula sobre a cortesia que as pessoas da comunidade hipotética adotem o segundo componente dessa atitude, bem ‘como o primeird; para eles, a interpretagiio decide niio apenas por que a cortesia existe, mas também o que, devidamente com- preendida, ela agora requer. Valor e contedido se confundem, Como a cortesia se moditica ‘Vamos supor que, antes de a atitude interpretativa entrar em ‘vigor com seus dois componentes, todos presumam que a fina lidade da cortesia esteja na oportunidade que ela oferece de demonstrar respeito aos membros superiores da hierarquia social. Nao se questiona se as formas tradicionais de respeito silo, de fato, aquelas que pritica exige. Estas sio, pura e sim- plesmente, as formas de deferéncia, ¢ as opgies disponiveis 1. Ver, em meu tiveo Taking Rights Scriousy, 101-5 (Cambridge, Mass. ce Lontres, 1977), a diseussio de um problema interpretative incomura num torneo de xadrez, CONCEITOS DE INTERPRETACAO 59. sto a conformidace ou a revolta. Porém, quando a atitude in- terpretativa se desenvolve plenamente, as pessoas comecam a cexigir, a titulo de cortesia, formas de deferéncia anteriormente desconhecidas, ou a desprezar ou rejeitar formas anteriormen- te reverenciedas, sem nenhum sentido de revalta, afirmando ‘que 0 verdadeiro respeito € mais bem observado por aquilo {que elas fazer que por aquilo que outros fizeram. A imerpre~ tagio repercute na pritica, alterando sua forma, e a nova forma incentiva uma nova reinterpretagio. Assim, a pritica passa por uma dramética transformagdo, embora cada etapa do proceso seja uma interpretagio do que foi conquistado pela etapa ime~ diatamente anterior. ‘A.concepgio das pessoas sobre os fundamentos apropria~ dos do respeito, por exemplo, pode variar de acordo com a po- sigGo social, idade ou sexo, ou algum outro atributo. Os princi- pais beneficiérios do respeito entio seriam, em um periodo, os membros superiores da escala social, os idosos em outro perio- do, as mulheres num terceiro, ¢ assim por diante. Ou as opi- rides podem mudar quanto A natureza ou qualidade do respei- to, passando do ponto de vista de que a demonstrago externa constitui respeito ao ponto de vista oposto, de que o respeito € apenas uma questio de sentimentos. Ou, ainda, as opinides podem mudar num dmbito diferente, sobre se 0 respeito tem algum valor quando se dirige a grupos ou quando decorre de atributos naturais, ¢ ndo a individuos em atengio & sua realiza- ‘go pessoal. Se 0 respeito do primeiro tipo nao mais parece importante, ou mesmo parece errado, entio uma nova interpre tapdo da pritica vai se fazer necessria. As pessoas passario a ver a finalidade da cortesia quase como o inverso daquilo que era no comego, no valor de formas impessoais de relagdes sociais que, devido a sua impessoalidade, nio exigem nem ne- gam nenhum significado mais vasto. A cortesia passaré entio @ ocupar um lugar menor ¢ diferente na vida social, e ja se pode antever o fim da fibula: a atitude interpretativa perder sua forga, € a pritica retornara ao estado mevénico ¢ estitico ‘que tinha de inicio. 60 OIMPERIO DO DIRETO Um primeiro exame da interpretagio Este é um exame ripido, a partir da perspectiva histarica, de como a tradigda da cortesia muda com o passar do tempo. Precisamos agora considerar mais de perto a dindmica da trans- formagio, observando os tipos de juizos, decisoes e argumen- tos que produzem cada resposta individual & tradigdo, as res- postas que coletivamente, durante longos periods, produzem as grandes mudangas que examinamos primeiro. Precisamos de informagdes sobre o modo como a atitude que chamo de in- terpretativa funciona a partir do interior, do ponto de vista dos intérpretes. Infelizmente, mesmo um relato preliminar seri controvertido, pois, se utna comunidade faz uso dos conceitos interpretativos, o priprio conceito de interpretago seri. um deles: uma teoria da interpretagdo é uma interpretagio da pré- tica dominante de usar conceitos interpretativos. (Desse modo, qualquer relato apropriado da interpretagao deve ser verdadei- ro para consigo mesmo.) Neste capitulo, apresento uma abor- dagem tedrica particulamente destinada a explicar a inter- pretagdo de pritjeas e estruturas sociais como a cortesia, ¢ de- fendo essa abordagem contra algumas objegdes fundamentais © aparentemente’vigorosas. Receio que a discussio nos leve muito além do direito, ao dominio das controvérsias sobre in- terpretagdo das quais se tem ocupado sobretudo os erticos li- teririos, os cientistas socizise os filésofos. Mas, se direito & uum coneeito interpretativo, qualquer doutrina digna desse no- me deve assentar sobre alguma concep do que ¢ interpreta- ‘io, © a andlise da interpretagdo que claboro ¢ defendo neste itulo consttui a base do restante do livro. A mudanga de di- regio éessencial. Interpretar uma pritica social é apenas uma forma ou oca- sito de interpretagio. As pessoas interpretam em muitos con- textos diferentes e, para comesar, devemos procurar entender ‘em que esses contextos diferem. A ocasiio mais conhecida de interpretagao ~ to conhecida que mal a reconhecemos como tal ~&a conversagdo. Para decidir 0 que uma outra pessoa dis- se, interpretamos os sons ou sinais que ela faz. A chamada (CONCETTOS DE INTERPRETAGAO 6 terpretagio cientifica tem outro contexto: dizemos que um cien- tista comega por coletar dados, para depois interpreté-los. Ou- tro, ainda, tem a interpretagao artistica: os erticos interpretam poemas, pecas e pinturas a fim de justificar algum ponto de vista acerca de seu significado, tema ou proposito. A forma de interpretagio que estamos estudando —a interpretagao de uma piitica social ~ é semelhante 4 interpretagio artistica no se~ ‘guinte sentido: ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e nio 0 que as pes- ssoas dizem, como na interpretago da conversagio, ou fatos nio criados pelas pessoas, como no caso da interpretagao cien- tifica, Vou concentrar-me nessa semelhanga entre a interpreta io artistica e a interpretagio de uma pritica social; atrituirei a ambas a designagio de formas de interpretagao “criativa”, distinguindo-as, assim, da interpretagio da conversagio ¢ da interpretagio cientifica, ‘A interpretagio da conversagao é intencional, e nfo c2usal ‘em algum sentido mais mecinico. No pretende explicar os sons que alguém emite do mesmo modo que um bidlogo expli- ‘ea 0 coaxar de uma ri. Atribui significados a partir dos supos- tos motivos, intengdes ¢ preocupagdes do orador, e apresenta suas conclusdes como afirmagdes sobre a “intencio” deste 20 dizer o que disse. Podemos afirmar que todas as formas de in- terpretagiio tém por finalidade uma explicagio intencional nesse sentido, e que essa finalidade estabelece uma distingio ‘entre a interpretagdo, enquanto um tipo de explicagio, ea e plicago causal em sentido mais amplo? Essa descri¢do no me parece, & primeira vista, ajustar-se a interpretagio cientifi- ca, € poderiamos nos sentir forgados, se nos deixarmos atrair pela idéia de que toda interpretagdo genuina é intencional, a afirmar que a interpretagdo cientifica nfo é, de modo algum, interpretagio de verdade. Poderiamos dizer que a expressio “interpretagio cientifica” & apenas uma metéfora, a metéfora de dados que “falam” com o cientista do mesmo modo que uma pessoa fala com outra; ela mostra o cientista como alguém que se empenha em entender aquilo que os dados tentam dizcr-lhe. Poderiamos perfeitamente acreditar que € possivel descartar « a omERio Do DiRETO ‘metifora e falar com preciso, simplesmente retirando de nos- sa descrigo final do processo cientifico a idéia de intengio. Seri entio que a interpretacio criativa também nio passa de um caso metaférico de interpretagio? Poderiamos dizer (para usar a mesma metifora) que, quando falamos de inter- Pretar poemas ou priticas sociais, estamos imaginando que eles nos falam, que pretendem dizer-nos alguma coisa, tal qual faria uma pessoa, Mas entiio ndo podemos descartar a metifo- ra, como no caso da ciéncia, explicando que na verdade temos ‘em mente uma explicagio causal comum, e que a metéfora de ilenco e significado & apenas decorativa. Pois a interpreta- ilo das praticas sociais e das obras de arte diz respeito, essen cialmente, a intengdes, ndo a meras causas. Os membros da comunidade ficticia nfo tencionam encontrar, quando inter- pretam sua pratica, os diversos determinantes econdmicos, coldgicos ou fisiolbgices de seu comportamento comur. Tam- pouco um critico tem por objetivo uma descri¢do fisiolégica dde como um poema foi escrito, Precisamos, portanto, substitu a metdfora das prdticas ¢ das imagens falando com suas pré- prias vozes, de modo a reconhecer o lugar fundamental da in- tengo na interfretagio criativa, Hi uma solugio muito conhecida, Ela descarta a metifora de pocmas ¢ imagens que nos falam, ao insistir em que a in- terpretacao criativa é apenas um caso especial de interpreta- ‘go conversacional. Ouvimos nao as obras de arte em si, como sugere a metifora, mas sim os seres humanos que sio seus autores. A interpretago criativa pretende decifrar os propési- tos ou intengdes do autor ao escrever determinado romance ou conservar uma tradi¢lo social especifica, do mesmo modo que, a conversagao, pretendemos perceber as intengSes de um amigo ao falar como fala’. Defenderei aqui uma solugéo dife- 2, Nas piginas seguints avalio 0 pressuposto de que a interpretagto cciativa deve ser interprelaydo conversocional, sobretudo ao diseuir uma ‘dia famitiar aos tericos da lteratura: de que interpretar uma obra literaria sinificereeapturar as intengSes de seu autor. Mas esse pressuposto ten Ut ‘base mais gera na literatura losifics da interprtagdo, Wilhelm Dilthey, um {Mlésofaalemo que foi especialmente influente em dar forma a0 debate sobre CONCEITOS DE INTERPRETACAO 63 rente: a de que a interpretacio criativa no é conversacional, ‘mas construtiva, A interpretagdio das obras de arte e das art cas sociais, como demonstrarei, na verdade, se preocupa es- sencialmente com 0 propésito, nfo com a causa. Mas 0s pro- pésitas que estio em jogo no sio (Fundamentalmente) 9s de ‘algum autor, mas os do intérprete. Em linhas gerais, a interpre- tagio construtiva é uma questiio de impor um propésito a um 2 objtividade nas ciéncins socials, usow a palavra verstehen para descrever tespecificamenteo tipo de entendimento que adquirimos ao saber o que outra pessoa quer dizer com aquilo que diz (poderiamos dizer que esse ¢ um sen oda compreensio no qual entender alguéen implica chegar a um enten mento com fal pessoa), em vez de descrever todas as possiveis manera ob rrodolidades de entender sew comportamente ow sua vida mental. (Ver ‘Meaning in History: Dithey's Thought oa History and Society (H. P. Rickaan, ‘und, e org. Londres, 1961] Dilthey colocou a questio de saber see como esse tipo de entendimento € possivel a despeito das diferengas cu tras; ‘encontrou a chave para seu problema na consciéncia “histrica: 0 esto de ‘spirit aleangado por raros ededieados intépretes através da reflexo sabre ‘esrutura eas eategorias gerais de suus propras vidas em um nivel de abs> tragio Ho alto que se pode supor, pelo menos como uma hipétese metodolé- «ca, que perduram no tempo. Of masires cantemporincos que deram con ridade a0 debate, como Gadamer e Habermas, tomam diregdes diferentes. Grdamer acha que a solugio de Dilthey pressupSe o aparato hogelinne que Dilthcy ansiova por exorcizar. (Ver H. G. Gadamer, Truth and Method, em particular pp. 192-214 (tadugto inglesa, 2° ed, Londses, 1979]) Acredita éncia histérica arquimediana que Dilthey imaginow possivel, livee daquila que Gadamer chama, no sentido especial que di a0 terno, de preconceitos, € impossivel, que 0 miximo que podemes esperar aleangar é ‘uma “conseitncia histria efetiva” que pretends vera histéria no a partir de nenhim ponto de vista especifico, mas sim compreender como noso pri prio ponto de vista € influenciado pelo mundo que desejamos interpreta. Habermas, por sua ver, critica Gadamer por sua visto demasiado pasiva de ‘quea diregao da comunicagdo & de mo nica, que o itérprete deve esforgar- se por aprender e aplicar aquilo que interpreta com base no pressuposto de ‘que exthsubordinado a sev autor. Habermas faz a observagio erucial (que sponta mais para a interpretago construtiva do que para a conversicioal) de que a interpretagdo pressupSe que o autor poderis aprender como intrprete. (Ver Jiegen Habermas, 1, The Theary of Communicative Action tad. de. ‘McCarthy, Boston, 1984)) © interminivel debate prossegue, dominado espe- cialmente pelo pressuposto que deserevo no texto: de que a ini altenativa a0 entendimento causa-e-efeita dos fatosscciais € o eatendimento conversa- ional com base no modelo do verstehen. ot OIMPERIO DO DIREITO objeto ou pritica, a fim de torné-lo 0 melhor exemplo possivel da forma ou do género aos quais se imagina que pertengam. Daf no se segue, mesmo depois dessa breve exposigio, que ‘um intérprete possa fazer de uma pritica ou de uma obra de arte qualquer coisa que desejaria que fossem; que um membro da comunidade hipotética fascinado pela igualdade, por exem- plo, possa de boa-fé afirmar que, na verdade, a cortesia exige que as riquezas sejam compartilhadas. Pois a histéria ou a forma de uma pritica ou objeto exerce uma coergo sobre as interpretagdes disponiveis destes diltimos, ainda que, camo ve- remos, a natureza dessa coergio deva ser examinada com cui- dado. Do ponto de vista construtivo, a interpretagao criativa & uum caso de interagio entre propésito e objeto. Segundo esse ponto de vista, um participante que inter preta uma pritica social propde um valor a essa pritica ao des- crever algum mecanismo de interesses, objetivos ou principios ‘a0 qual, se supe, que ela atende, expressa ou exemplifica. Mui- tas vezes, talvez até mesmo quase sempre, os dados comporta- ‘mentais brutos da pritica - 0 que as pessoas fazem em quais circunstincias vio tomar indeterminada a atribuigdo de va- lor: esses dados serdo compativeis com atribuigdes diferentes e antagSnicas. Uma pessoa poderia ver nas priticas da cortesia tum meio de assegurar o respeito a quem o merega devido a sua posigio social ou outro atributo qualquer. Outra pessoa pode- ria ver, com a mesma nitidez, um meio de tornar as relagdes sociais mais convencionais e, portanto, menos indicativas de jinizos diferenciais de respeito, Se os dados brutos nfo estabe- Tecem diferencas entre essas interpretagdes antagénicas, a op- ‘gio de cada intérprete deve refletir a interpretagio que, de seu ponto de vista, atribui omaximo de valor a pritica ~ qual delas &capaz de mostri-la com mais nitidez, Apresento essa exposigo construtiva apenas a titulo de anilise da interpretagdo criativa. Mas devemos observar, de passagem, de que modo a exposigio construtiva poderia ser ela borada para se ajustar 20s outras dois contextos de interpreta- ‘edo que mencionei, para mostrar, assim, uma profunda relagio ‘entre todas as formas de interpretagao. Para entender a conver CONCEITOS DE INTERPRETAGAO 65 sagio de outra pessoa é preciso que se usem expedientes epres- supostos, como o chamado principio de “caridade”, que, em circunstincias normais, tém o efeito de transformar aquilo que a pessoa diz.no melhor exemplo de comunicagdo possive?. E a interpretago de dados na ciéncia faz um grande uso de pa- Adres da teoria da construgdo, como simplicidade, elegancia possibilidade de verificagao, que refletem pressupostos con- testiveis e varidveis sobre os paradigmas de explicagdes, isto 6, sabre quais caracteristicas tornam uina forma de explizago superior outra', Portanto, a exposigaio construtiva da interp tagdo criativa talvez pudesse nos fornecer uma deseriglo mais geral da interpretacdo em todas as suas formas. Dirfamos, en- tio, que toda interpretagao tenta tornar um objeto o melhor possivel, como exemplo de algum suposto empreendimento, € que a interpretagao s6 assume formas diferentes em diferentes contextos porque empreendimentos diferentes envolvem dife- rentes critérios de valor ou de sucesso. A interpretagao aristica 6 difere da interpretagdo cientifica porque julgamos o sucesso das obras de arte segundo critérios diferentes daqueles que uti- lizamos para julgar as explicagdes de fendmenos fisicos. Interpretagao e intengao do autor A exposigio construtiva da interpretadio, contudo, pare- ceri bizarra a muitos leitores, mesmo quando restrita & inter- pretacZo criativa ou, mais ainda, a interpretagio de priticas sociais como a cortesia. [rio fazer-lhe objegdes porque prefe- rem a versio corrente da interpretagio criativa que hi pouco 3, Ver W. V. 0. Quine, Ward and Objet, 58-9 (Cambridge, Mass, 1960) © principio de caridade & presentado e aplieado num context dif reato em Wilson, “Substance without Substrata", 12, Review of Metaphysics, 521-39(1950) 4. Ver T. Kuhn, The Essential Tension: Selected Studies in Sciemific Tradition and Change, 20-51 (Chiesgo, 1977); Kun, The Structre of Scien- Life Revolution (2* ed, Chicago, 1970); K. Popper, The Logie of Sceatilic Discovery (Nova York, 1959). 66 OIMPERIODO DIREITO mencionei: de que a interpretagao criativa & apenas interpreta- gio de conversagio dirigida a um autor. Fis uma declaragao que ilustra bem seus protestos: “Sem diivida as pessoas podem fazer afirmagies do tipo que vocé atribui aos membros da co- ‘munidade hipotética a propdsito das priticas sociais que com- partilham:; sem divida elas podem propor e contestar opinides sobre como se devem eniender essas priticas ¢ dar-Ihes continui dade, Mas & uma grave confusio dar a esse ponto de vista 0 nome de interpretaedo, ou sugerir que, de certo modo, ele atri- tbua um sentido A pritica em si. Isso é profundamente engana- dor em dois sentidos. Primeiro, interpretar quer dizer tentar entender algo — uma afirmagdo, um gesto, um texto, um poe- ‘me ou uma pintura, por exemplo — de maneira particular e es- pecial. Significa tentar descobrir os motivos ou as intengdes do autor ao falar, representar, eserever ou pintar como o fez. ‘Assim, interpretar uma pritica social, como a pritica da corte- sia, significa apenas discernir as intengdes de seus adeptos, ‘uma por uma, Em segundo lugar, a interpretagio tenta mostrar © objeto da interpretagdo 0 comportamento, o poema, a pin- tura ou o texto em questo ~ com exatidio, exatamente como cle é, ¢ nfo como voce sugere, visto através de uma lente cor- de-rosa ow em sua melhor luz. Isso significa recuperar as ver~ dadeiras intengdes histéricas de seus autores, ¢ no impingir os valores do intérprete aquilo que foi criado pelos autores” ‘Vou responder a essa abjesio por etapas, © 0 esboro de argumentagdo que se segue poderia ser ttl, ainda que seja ne- cessariamente condensado. Sustentarei primeira que, mesmo considerando o objetivo da interpretagdo artistica como uma recuperago da intencdo de um autor, como recomenda a obje~ io, nio poderemos fugir 20 uso das estratégias de interpreta- do construtiva que a objegdio condena. Nao podemos evitar a tentagio de fazer do objeto artistico o melhor que, em nossa opinifo, ele possa ser. Tentarei demonstrar, em seguida, que se realmente considerarmos que o objetivo da interpretagio art tica &a descoberta da intengao do autor, isso deve ser uma com ia da aplicagao, & arte, dos métodos da interpretagio construtiva, ¢ no da recusa em recorrer a tais métodos, Sus- CONCEITOS DE INTERPRETACAO 67 {entarei, por tltimo, que as técnicas da interpretagio conversa cional comum, nas quais o intérprete procura descobrir as inten- {g6es ou significados de outra pessoa, seriam de qualquer modo inadequadas 4 interpretagio de uma pritica social como a corie- sia, pois é essencial a estrutura de tal pritica que sua interpreta cio seja tratada como algo diferente da compreensio daquilo que outros participantes querem dizer com as afirmagées que fazem a0 colocé-la em operagao. Segue-se que um cientista So- cial deve participar de uma pritica social se pretende compreen- dé-la, o que é diferente de compreender seus adeptos, Aarte ea natureza da intengio A interpretagdo artistica consiste inevitavelmente ern des- cobrir as intengdes de um autor? Descobrir as intengdes de um autor & um processo factual independente dos valores do pré- prio intérprete? Comecaremos pela primeira dessas perguntas e por uma afirmagio cautelosa. A interpretagio artistica nao & simplesmente uma questfo de tecuperar a inteneZo de um au- tor se por “inten¢o” entendermos um estado mental conscien- te, © nio se atribuirmos & afirmagao 0 significado de que a interpretagdo artistica sempre pretende identificar um pensa- ‘mento consciente especifico que coordenava toda a orquestra~ ‘do na mente do autor quando este disse, escreveu ou criow sua obra. A intengdo € sempre mais complexa ¢ problematice. Por- tanto, precisamos reformular nossa primeira pergunta. Se, na arte, uma pessoa quer ver na interpretacdo a recuperacio da intengdo de um autor, o que ela deve entender por “intengio”? Assim reformulada, essa primeira pergunta vai dar ume nova forma a segunda. Existe de fato uma distingao tio nitida, como supde a objegdo entre descobrir a intengio de um artista e en- contrar valor naquito que ele fez? Precisamos primeiro lembrar uma observagao crucial de Gadamer, de que a interpretagio deve pér em pritica uma in- tengo’. O teatro nos oferece um exemplo elucidativo. Alguém 5. Ver Gadamer, acima (0.2). 68 OIMPERIO DODIREITO que atualmente resolva produzir © mercador de Veneza deve encontrar uma concepgdo de Shylock que possa evocar, para 0 piiblico contemporineo, o complexo significado que a figura de um judeu tinha para Shakespeare e seu piilico, e por esse motivo sua interpretagao deve, de alguma maneira, unir dois periodos de “consciéncia” ao transpor as intengdes de Shakes- peare para uma cultura muito diferente, situada no término de ‘uma historia muito diferente*. Se conseguir fazé-lo, é provavel ‘que sua leitura de Shylock seja muito diferente da visio con- creta que Shakespeare tinha desse personagem. Sob certos as- pectos, poderd ser 0 contririo, substituindo desprezo ou ironia por simpatia, por exemplo, ou pode haver uma mudanga de {nfase que talvez torne a relagio entre Shylock e Jessica muito ais importante do que aos olhos de Shakespeare como diretor da pega’. A intengio artistica é, portanto, complexa e estrutu- rada: diferentes aspectos ou niveis de intengo podem entrar em conflito da maneira que se segue. A fidelidade a cada uma das diversas opinides concretas de Shakespeare sobre Shylock, ignorando o efeito que teria sua concepeZo desse personage sobre o piiblicp contemporineo, poderia configurar uma trai- ‘so a seu propésito aristico mais abstrato’. E “aplicar” esse propésito abstrato a nossa situagio é muito mais que um neu- tro exercicio histérico de reconstrugio de um estado mental anterior. De modo inevitivel, envolve as opinides artisticas do proprio intérprete exaiamente como o sugere a explicagio construtiva da interpretagio eriativa, porque tenta encontrar a ‘melhor maneira de expressar, dado o texto em questiio, gran- des ambigdes artisticas que Shakespeare nunca formulou ou, talvez, nem mesmo definiu conscientemente, mas que so pro- duzidas por nés a0 perguntarmos como a pega que ele escreveu teria sido mais esclarecedora ou convincente para sua época, 6, Devo este exemplo a Thornas Grey. 1 Jonathan Miller enfatizou © papel de Jessica em sua produgio de 1969. 8. Essa questdo & desenvolvide, no contexto da intepretagdo das leis € ds Consttuigio, nos eapitulos IX e X. Ver também Taking Rights Seriously, ‘ap. 5,e med livre A Matierof Principle cap. 2 (Cambridge, Mass, 1985}, CONCEITOS DE INTERPRETACAO 0 Stanley Cavell adiciona um novo grau de complexidade ao mostrar de que modo até mesmo as intengdes concretas & detalhadas de um artista podem ser problemiticas’. Ele obser- vva que um personagem do filme La strada, de Fellini, pode ser visto como uma referéncia a lenda de Filomela, e pergurta 0 que precisamos saber sobre Fellini para afirmar que a referén- cia era intencional (ov, 0 que é diferente, nio indelibereda). Ele imagina um didlogo com Fellini no qual o cineasta diz que, embora nunca antes tenha ouvido falar sobre essa lenda, ela reflete o sentimento que ele tinha acerca do personagem du- rante as filmagens, isto é, que ele agora aceita como parte do filme. Cavell diz que, em tais circunstancias, tende a tratar a referéneia como deliberada. A anlise de Cavell é importante para nés, no porque a questio agora é saber se ela & correta em seus detalhes, mas porque sugere uma concepeiio de inten- ‘io muito diferente da tosca concepgao de estado mental cons- ciente. Segundo esse ponto de vista, uma intuigdo faz parte da intengZo do artista quando se ajusta a seus propésitos artisticos ¢ 05 ilumina de tal modo que ele a reconheceria e endossaria ‘mesmo que ainda no o tivesse feito. (Portanto, o teste do dii- logo imagindrio pode ser aplicado a autores mortos ha muito tempo, como deve ser se pretendemos que tenha alguma utili- dade critica geral.) Isso introduz 0 senso de valor artistico do intérprete na reconstrugio da intengzo do artista pelo mencs de uma maneira comprobatéria, pois 0 julgamento que faz o in- térprete sobre aquilo que o autor teria aceito vai ser guiado por seu senso daquilo que 0 autor deveria ter aceito, isto é, seu sen- so de quais leituras tornariam a obra melhor € quais a torna- riam pior, A conversa imagindria com Fellini comega com Cavell achando que o filme ficaria melhor se visto como incluindo uma referéncia a Filometa; Cavell supde também que Fellini poderia ser levado a compartilhar esse ponto de vista, a desejar tal leitura do filme e a ver que suas ambigdes tém melhor re- 9, Stanley Cavell, Must We Mean What We Say2,eap. 8 (Nova York, 1969), Comparar com Gadamer, acim (n.2, pp. 39-55). 10 ‘oméRIO Do DIRETO sultado admitindo essa intengio, A maioria das razies que Cavell apresenta para fundamentar tal suposiglo sio as razdes dele para preferir sua propria leitura, Nao quero dizer que esse uso da intengio artistica seja uma espécie de fraude, um disfar- ce para o ponto de vista do intérprete. Pois essa conversa ima- gindria temy um importante papel negativo: em algumas ci ‘cunstdncias, um intérprete teria bons motivos para supor que o artista rejeitaria uma leitura que agrade ao intérprete. Também no quero dizer que devemos accitat a idéia geral de que a in- terpretagio consiste em recuperar ou reconstruir as intengdes de um determinado autor uma vez que abandonemos a concep- gio tosca do estado mental consciente. Hoje, muitos eriticos rejeitam essa idéia geval de maneira ainda mais sutil, e mais adiante teremos de examinar de que modo essa querela persis- tente deve ser entencida. No momento, pretendo apenas afir~ ‘mar que a idéia da intengio do autor, quando se torna um mé- todo ou um estilo de interpretagZo, implica em si mesma as convicgées artisticas do intérprete: estas serio muitas vezes fundamentais para estabelecer aquilo em que, para tal intérpre~ te, realmente consiste a intengZo artistica desenvolvida, Podemgs, se desejarmos, usar 0 relato de Cavell para cla~ borar uma nova descrigio daquilo que fazem os cidadios de minha imaginéria comunidade interessada na cortesia ao in- terpretarem sua pritica social, um relato que poderia ter pare- cido absurdo antes desta discussilo, Cada cidadio, ditiamos, esti tentando descobrir sua propria intengde ao manter essa ppritica e dela participar ~ ndo no sentido de recuperar seu es- tado mental da tiltima vez em que tirou o chapéu em sinal de respeito a uma senhora, mas no sentido de encontrar uma ex plicagdo significativa de seu comportamento que o faga sen- tir-se bem consigo mesmo. Essa nova descri¢fo da interpreta~ ‘so social como uma conversa consigo mesmo, come combi: nago dos papéis de autor e critico, sugere a importincia, em termos da interpretagiio social, do chaque de reconhecimento {que tem um papel tao importante nos didlogos que Cavell ima~ ‘gina ter com os artistas. (“Sim, isso confere sentido ao que fa- {50 a0 tirar meu chapéu; ajusta-se & nogdo que tenho de dando CONCEITOS DE INTERPRETACAO 1 seria errado fazé-lo, nogdio que até ento nfo fui capaz de des- erever, mas que agora se tora possivel.” Ou “Nao, niio faz sentido”.) De outro modo, a nova descriefio nada acrescerta & minha primeira descri¢do que possa mostrar-se itil a nds, Re- vela, apenas, que a linguagem da intengdo, e pelo menos al- gum aspecto da idéia de que a interpretagdo é uma questio de intengio, encontra-se ao alcance tanto da interpretagiio social quanto da interpretagio artistica. Na idéia de intengio, nijo existe nada que necessariamente separe os dois tipos de inter- pretagao criativa, ‘Agora, porém, chegamos a um aspecto mais importante: hi, nessa idéia, alguma coisa que necessariamente as une. Por- que, mesmo se rejeitarmos a tese de que a interpretagio criati- ya pretende descobrir alguma intengao historica real, o concei- to de intengio ainda assim oferece a estrutura formal a todo enunciado interpretativo. Quero dizer que uma interpretagzo é, por natureza, o relato de um propésito; ela propde uma forma de ver 0 que é interpretado — uma pritica social ou uma tradi- ‘lo, tanto quanto urn texto ou uma pintura ~ como se este fasse © produto de uma decisio de perseguir um conjunto de temas, ‘visdes ou objetivos, uma diregao em vez.de outra. Essa estrutu- a é necesséria a uma interpretago mesmo quando o material 4a ser interpretado é uma pritica social, mesmo quando nao existe nenhum autor real cuja mente possa ser investigada. Em ‘nossa histéria imagindria, uma interpretagio da cortesia tera ‘um ar intencional ainda que a intengo no possa ser atribuida a ninguém em particular, nem mesmo as pessoas em geral. Essa exigéncia estrutural, considerada como independente de qualquer outra exigéncia que ligue a interpretagdo as intengdes de um autor especifico, prope um estimulante desafio do qual ‘nos ocuparemos mais adiante, em especial no capitulo VI. Por que valeria a pena insistir na estrutura formal do propésito, da maneira como explicamos os textos ou as instituigdes jusi as, para além do objetivo de recuperar alguma intengo autén- tica atual? RQ oIMPERIO DO DIREITO Intengao e valor da arte ‘Afirmei, hi poueo, que o método de interpretacio artist ca que se fundamenta na intengio do autor é discutivel até ‘mesmo em sua forma mais plausivel. Muitos eriticos afirmam ‘que a interpretagio literiria deve ser sensivel a certos aspectos da literatura — 0s efeitos emocionais que ela exerce sobre os leitores, ou o modo como sua linguagem foge a qualquer redu- 40 a um conjunto espectfico de significados, ou a possibilida- de de didlogo que cria enire o artista e 0 publico, por exemplo ~ quer esses aspectos fagam ou nilo parte da intengo do autor, ‘mesmo no sentido complexo em que até o momento a exami- ramos. E mesmo aqueles que ainda insistem em afirmar que a intengo do artista deve ser decisiva quanto “verdadcira” naturéza da obra divergem sobre 0 modo como essa intengiio deve ser reconstruida Todas essas divergéncias sobre a inten- go e a arte sio importantes para nés no porque devamos tomar partido —o que ndo se faz necessirio aqui -, mas porque deveros tentar compreender a natureza da discussiio, aquilo s0- ‘bre que realmente ha divergéncia. "Aqui est uma resposta a essa questio. As obras de arte se apresentam a nds como portadoras ~ ou pelo menos assim 0 pretendem — de um valor espectfico que chamamos de estéti co: esse modo de apresentagiio faz parte da idéia mesma de tra- digo artistica. Mas € sempre uma questo um tanto aberta, So- bretudo na tradigao critica geral que chamamos de “modernis- ta”, saber onde se encontra esse valor e até que ponto ele se concretizou. Os estilos gerais de interpretagao so, ou pelo menos pressupéem, respostas gerais 2 questo que, portanto, Ficou em aberto, Sugiro, entio, que o argumento académico sobre a intengdo do autor seja considerado como um argumen- to particularmente abstrato e tedrico sobre onde se situa 0 va- lorna arte. Assim, esse argumento desempenha seu papel, jun- tamente com argumentos mais coneretos € valiosos, voltados principalmente para objetos particulares, nas priticas essen- ciais que nos propiciaa experiéncia estética. Essa maneira de ver o debate entre os eriticos explica por ‘que alguns periodos de atividade literitia so mais associados CONCEITOS DE INTERPRETACAO B do que outros com a intengdo artistica: sua cultura intelectual vyineula 0 valor na arte mais firmemente ao pracesso de criaga0 antistica. Cavell observa que “na arte moderna, o problema da jntengio do autor .. assumiu um papel mais visivel, em nossa aceitagiio de suas obras, do que em perfodos anteriores”, e que a pritica da poesia se transforma nos séculos XIX ¢ XX de tal modo que as questdes de intencio ... sio impostas ao leitor pelo préprio poema”®. Essa mudanga reflete e contribui para o desenvolvimento, naqueles periodos, da conviegao romantica de que a arte tem o valor que tem ~e coneretiza esse valor em objetos e eventos especificos — porque e quando encarna 0 g6- nio criador individual. O predominio dessa concepgio do valor da arte em nossa cultura explica nao apenas nossa preocupa¢a0 ‘coma intengio e a sineeridade, mas muito mais ~ nossa obses- so com a originalidade, por exemplo. Assim, nosso estilo de interpretago dominante fixa-se na intengo do autor, e as dis- ‘cuss6es, no interior desse estilo, sobre o que é, mais precisa~ ‘mente, a intengio artistica refletem davidas e divergéncias ‘mais afinadas sobre a natureza do génio criador, sobre o papel do consciente e do inconsciente, e sobre o que hi de instintivo em sua composigdo ¢ expressio. Alguns criticos que divergem mais explicitamente do estilo autoral, pois enfatizam os valo~ res da tradigdo e da continuidade nos quais o lugar de urn autor muda 4 medida que a tradigio se constrdi, defendem ume in- terpretagdo retrospectiva que faz a melhor leitura da obra de- pender daquilo que foi escrito um século mais tarde". Desafios ainda mais radieais, que insistem na importancia das conse- 4iiéncias sociopoliticas da arte, ou da semintica estruturalista ou desconstrucionista, ou que insistem na narrativa construida entre o autor ¢ o leitor, ou que parecem rejeitar por completo a atividade interpretativa, recorrem a concepgdes muito diferen- tes do lugar em que ¢e fato se encontra o valor conceitualmen- te pressuposto da arte. 10, Cavell acima fn. 9, pp. 228.9). 11, Ver T. §. Eliot, “Tradition and the Individual Talent, Selecied Essays (Nove York, 1952), 4 ‘OIMPERIO DO DIRETTO Essa exposicdo da complexa interagio entre a interpreta ‘gio e outros aspects da cultura é perigosamente simplista; pretendo apenas sugerir como a discussio sobre a intengo na interpretacdo, situaca na prética social mais ampla de discus- sto do modo de avaliar a arte, pressupde, ela mesma, 0 objeti- vo mais abstrato da interpretagdo construtiva, visando tirar 0 melhor proveito daquilo que é interpretado. Preciso ter cuida~ do para que ndo me entendam mal, Nao estou afirmando que a teoria da interpretagdo artistica com base na intengZo do artista seja errada (ou certa}, mas que, certa ou errada, essa questo € aquilo que ela significa (até onde seja possivel refletir sobre cessas questdes no dibito de nossa tradigao critica) devem vol- tar-se para a plausibilidade de alguma hipdtese mais funda- ‘mental sobre a razZo por que as obras de arte tém o valor que sua apresentaciio pressupde. Tampouco quero dizer que o criti- co empenhaclo em reconstituir as intengdes de Fellini ao reali- zat La strada deva ter em mente, enquanto trabalha, alguma tcoria que ligue a intengdo ao valor estético: a intengio critica no é um estado mental mais do que a intengdo artistica, Nao estou pretentendo afirmar, também, que se o critico relatar es- sa intenedo“como se ela incluisse uma reelaboragia de Filo- mela, embora isso nunca tenha sido admitido por Fellini, ele deve ter consciéncia de estar pensando que o filme seri melhor se interpretado dessa maneira, Quero dizer, apenas, que nas cit- cunstincias habituais da critica, devemos ser capazes de atri- buir-Ihe tal ponto de vista, do mesmo modo que em geral atri- buimos conviegdes is pessoas, se quisermos entender suas afirmagées como interpretativas, e nio, por exemplo, como zombeteiras ou enganadoras". Nao nego o que ¢ dbvio, isto &, 12. Circunstinciasincomuns ausentes. Imagine esta seein: um eri tice insiste em que, emboro proprio Fellini ndo se tenba dado conta enquan- to flmava, a melhor maneiea de interprotar La strada & através da histria do Filomela. Em seguida 0 crtico acreseenia que o filme, assim entendido, 6 particularmente banal, Fieamos sem saver por que ele faz tal interpreta, Nio quero dizer que tode tipa de ti pretenda fazer o melhor daquilo que 3" do Holoceusto nfo tentaria mostrar os motives de Hitler sob © ponio de CONCEITOS DE INTERPRETACAO B que 0s intérpretes pensam no Ambito de uma tradigdo interpre~ tativa a qual nfo podem escapar totalmente, A situagdo inter~ pretativa nfo & um ponto de Arquimedes, nem isso esté sugeri- do na idéia de que a interpretagdo procura dar ao que é inter~ pretado a melhor imagem possivel. Recorro mais uma vez a Gadamer, que acerta em cheio ao apresentar a interpretago ‘como algo que reconhece as imposigdes da hist6ria ao mesmo tempo que luta contra elas”, Intengdes e priticas Em resposta & objegio que apresentei a0 iniciar esta dis- cussio, afirmo que em nossa cultura a interpretagao artistica & uma interpretagdo construtiva. A grande questdo sobre até que ponto a melhor interpretagio de uma obra de arte deve ser fiel 4 intengdo do autor volta-se para a questio construtiva de saber se a aceitaco dessa exigéncia permite que a interpretagao aprimore 20 maximo a experiéneia ou 0 objeto artisticos. Os que admitem essa possibilidade, por acharem que o genio é a esséncia da arte, ou por alguma outra razio, devem fazer uma avaliagio mais detalhada do valor artistico a0 decidirem qual 6, de fato, a intengo pertinente ao autor. Devemos, agora, exa- vista mais atraente, asim como alguém que tentasse mostrar os efeitos sexis- tas de uma hiséria em quarinhos no se empenharia em encontrar ure in- \expretagio no-sexista-, mas apenas que assim so as coisas nos casos nor- mais ou paradigmiticos de interpretagio cristiva. Alguém poderia tentar ddesacreditar um escritor ao mostar sua obra naquila que ela tem de por, nd de melhor, ¢ maturalmente apresentaria seu argumento como ume iterpeta- 0, uma afirago sobre © que “realmente €” a obra do escritor em questi. Se 9 ertico realmente acredita que nenhuma outra iterpretago mais favori- vel se ajusia tio bem, seu argumento se enquadra em minha deserigdo Mas suponhamos que ele nfo acredite,e eseja omitindo uma interpretagzo mais auente, que também & aceitiveltendo-se em vita o texto. Nesse Cas, ua caratégia & dependent da avaliagio normal, pois ele 6 serd bem-suceddo se seu piblico nio pereeber seu verdadeiro objetivo; somente se acreditar que le tentou produzira melhor intespetagzo possivel 13, Gadamer,acima (a.2). 16 (OIMPERIO DO DIREITO minara abjegio do modo como ela se aplica especificamente & utra modalidade de ‘nterpretacao criativa, a interpretacaio das raticas ¢ estruturas sociais. Como poderia essa forma de in- terpretagio pretender descobrir algo como a intengio de um autor? Observamos um sentido no qual alguém poderia cogitar tal possibilidade. Um participante de uma pratica social pode- ria pensar que a interpretagao de sua pritica significa desco- brir suas préprias intenedes no sentido que descrevi. Mas essa hipdtese no faz frente & objecHo, pois a objecio sustenta que a interpretagio deve ser neutra, e que, portanto, o intérprete deve tentar descobrir os motivos e propésitos de outra pessoa. Que sentido podemos dara essa sugestio no contexto da interpreta 0 social? Existem duas possibilidades. Alguém poderia dizer que interpreta uma pritica social significa descobrir os propé: tos ou intengdes dos outros patticipantes da pritica, os cida- dios da hipotética comunidade, por exemplo, Ou que significa descobrir os propésitos da comunidade que abriga essa priti- ca, concebida como tendo, ela mesma, alguma forma de vida mental ou dé consciéneia de grupo. A primeira dessas suges- tOes parece mais atreente, por ser a menos misteriosa. Mas & excluida pela estrutura intema de uma pritica social argumen- tativa, pois & uma caracteristica de tais priticas que uma afir- magdo interpretativa ndo seja apenas uma afirmago sobre aquilo que outros intérpretes pensam. As priticas sociais so compostas, sem diivida, por atos individuais. Muitos desses atos tm por objetive a comunicagao e, portanto, convidam a seguinte pergunta: “O que ele quis dizer com isso”, ou “Por que ele disse isso exatamente naquele momento?” Se um mem- bro da comunidade hipotética diz a outro que a instituigio cexige que se tire o chapéu diante dos superiores, torna-se per- feitamente sensato fazer tais perguntas, respondé-las seria tentar compreender tal pessoa da maneira que é usual na inter- pretagdo conversacional. Mas uma pratica social cria e pressu- pie uma distingao crucial entre interpretar 0s atos ¢ pensamen- tos dos participantes um a um, daquela maneira, ¢ interpretar a pritica em si, isto é interpretar aquilo que fazem coletivamen- CONCEITOS DE INTERPRETACAO 7 te, Ela pressupde essa distingio porque as afirmagies ¢ os ar- ‘gumentos que os participantes apresentam, autorizados e esti- mulados pela pritica, dizem respeito ao que ela quer dizer, nijo ao que eles querem dizer. Essa distingdo nif teria importincia efetiva se os partici panies de uma pratica sempre estivessem de acordo quanto & melhor interpretagao dela. Mas eles nao concordam, pele me- nos em detalhes, quando a atitude interpretativa & intensa, De- vem, na verdade, concordar sobre muitas coisas para poderem compartilhar uma pritica social. Deve compartilhar um voca~ bulirio: devem ter em mente mais ou menos a mesma coisa ‘quando mencionam chapéus ou exigéncias. Devem compreen- der o mundo de maneira bastante parecida, ¢ ter interesses conviegSes suficientemente semelhantes para reconhecer o sen- ‘ido das afirmagdes de todos os outros, para traté-las comoafir- ‘mages, nfio como meros ruidos. Isso significa nfo apenas usar ‘0 mesmo dicionario, mas compartilhar aquilo que Wittgenstein chamou de uma forma de vida suficientemente concreta, de tal ‘modo que um possa encontrar sentido ¢ propésito naquilo que 0 outro dize faz, ver que tipos de ctencas e de motivos dariam um sentido a sua diego, a seus gestos, @ seu tom de voz, ¢ assim por diante. Dever, todos, “falar a mesina lingua’ em ambos os sentidos da expressiio. Mas essa semelhanga de interesses ¢ conviegdes s6 deve manter-se até um certo ponto: deve ser sufi- cientemente densa para permitir a verdadeira divergéneia, mas tio tio densa que a divergéncia nao possa manifestar-s. Portanto, cada um dos adeptos de uma pritica social deve estabelecer uma distingZo entre tentar decidir 0 que outros membros de sua comunidade pensam que a pritica exige, & tentar decidir, para si mesmo, o que ela realmente requer. Uma vez. que se trata de questées diferentes, os métodos inter- pretativos que ele usa para responder a esta altima questio nfo podem ser os métodos da interpretagdo conversacional, dirigida a individuos um a um, que usaria para responder & primeira. Um a social que se oferece para interpretar a Pritica deve estabelecer a mesma distingdo. Se assim o dese 8 0 IMPERIO.DODIREITO jar, ele pode dedicar-se apenas a reportar as diversas opinides que diferentes membros da comunidade tém a respeito daqui~ Jo que a pratica exige. Mas isso ndo configuraria uma inter- pretagio da prética em si; se ele se dedicar a esse outro proje~ to, deve abrit mao do individualismo metodolégico e empre~ ‘Bar os métodos que os que estio submetidos a sua andlise usam para formar suas préprias opinides sobre aquilo que a cortesia realmente exige. Ele deve, portanto, aderir & pritica que se propde compreender; assim, suas conclusdes nao serdo relatos neutros sobre o que pensam os membros da comunidade, mas _afirmagdes sobre a cortesia que competem com as deles" Que dizer da sugestdo mais ambiciosa de que a interpreta- ‘so de uma pritica social é interpretago conversacional diri- ida 4 comunidade como um todo, cancebida como uma enti- dade superior? Os filésofos tm explorado a idéia de uma cons- ciéncia coletiva ou de grupo por muitas razies e em muitos contextos, alguns dos cuais pertinentes & interpretagio; discuto 14, Haberrfas observa que a citneia social difere da cigneia natural exa- famente por esta raze. Afimma que, mesma quanda descartamos & concep. nnewtoniana da ciéacia natural como explicagdo dos fendmenos teoricamente neutros, em favor da concepgio modema de que « teoria de um cientista determinari aquilo que ele vé como dades, ainda assim continua existindo ‘uma importante diferenga entre a ciéncia natural ¢ a social. Os cientsias so- ciais jé encontram seus dados préintespretados. Devem compreender 0 con portamento do modo como este ja & compreendid pelas pessoas que tém tal ‘comportamento; um cientista social deve ser pelo menos um participante ‘virlual” das pritieas que pretende descrever. Deve estis pronto a julgar ber ‘como a reportar, as afirmagies que fazem seus sujeitos, pois, a menos que ‘possa julgi-los, nfo poder compreendé-los. (Ver Habermas, acima, n. 2, pp. 102-11.) Argumento no texto que um cientista social que tente compreender ‘ume pritica social argumentativa como a pritica da eortesia (ou, como afit- rmarei, do direito) deve paricipar do espirito de sews participantes, mesmo ‘que sua participagio seja apenas “viral”. Uma vez que nfo pretendem inter- pretar-sc entre sid maneira conversacional quando apresentam seus pontos de ‘vista sobre 2s verdadciras exigincias da cortesia, tampouco pode fxzé-lo 0 cientista quando apresenta seus pontos de visa, Sua interpretagio da cortesia dye contestar 2 deles e, portanto, set uma inerpretagio construtiva, ¢ nllo conversacional. CONCEITOS DE INTERPRETACAO D alguns deles em uma nota", Mesmo que accitemos a dificil on- tologia dessa sugesizo, contudo, ela ¢ invalidada pelo mesmo argumento que é fatal & menos ambiciosa. A interpretagiio conversacional é inadequada porque a pritica a ser interpreta- da determina as condigSes da interpretago: a comunidade hi- 15. A idéia de uma consciéncia social ou de grupo parece oferecsr urna ‘ga 3 uma sia dficuldade que, como pensam muitos, ameaga a possbilida- de da interpetagdo conversacional através de culturas épocas. Como pode- ‘mos esperar compreender o que alguém escreveu ov pensou em wna cultura diferente, muito tempo aris, ou © que suas priticase instituigdes soca sig- nifcavam para cle? Nao podemos compreendé-lo a menos que vejamos 0 ‘mundo como ele 0 vé, mas nfo podemos deixar de vé-lo do modo eomo ji 0 ‘vemos, « modo como o expressam nossa linguagem e nossa cultura, e a partir esse ponto de vista suas afirmagées podem parecer tolas e imotivadas. (Para ‘uma verso desse argumento em um context juridico, ver Robert Gordon, “tfistricism in Legal Scholarship", 90 Yale Law Journal 1017, 1021 [1981}) [Nao pedemos esperar apreender 0 que a pakwra “cast” signifin para pessoas ‘quo nunca foram afetadas por ela, assim como no podemos compreender alguém que afirma estar sofrende € no 8 ndo se import, como tambén m0 ‘enlende por que slguém deveriasofrer. Contudo, se pudermos acetar que a8 ‘eulturas © as épocas podem tr uma especie de conscincia duradoura, eque a propria histria tem sua vida mental abrangent, as pessoas de um periodo ‘podem esperar compreender as de outro, pois tds paricipam de uma cons- ineia comum com signiicados duradouros que compartilham, Essa ambi- cosa idéia separa os alos conversacionais de determiadas pessoas, expres- sand seus interesses pressupestos individuals, o que exprime os propositos ce motivos de unidades sociais mais amps, em dtima instneia da propria vida ou da mente [Nao posso discutir aqui a ontologa do espitito de grupo ou avalidade dd sugesto de que ce ofeece uma solus3o a problema do solamente cultu- ral. (Veracima,n.2, as etagbes de Dilthey, Gadamere Habermas.) Vals assi- nalar,contudo, que o problema sera diffe! e ameacador somente se 0 que estiver em questio fora interpretago conversaciona, e noe intepretagao Cconsnutiva. Quando & convenienteadotae a attudeinverpretativa que dessre- ‘vono texto com relagio a alguma cultura diferente (ver, por exemplo,a dis- ‘eussto dos sistemas juridiens pervesos e estrngeiros, no capitulo II), enta- ‘mos compreend®-In iio em termes conversacionais, mas antes fazendo dela 0 :melbor possfvel, dados os nossos propisitos © nosss convieydes. Se pensar mos que esse objetivo exige que descubramos ou adoteros as conviegdes reais que poderiam no ser as nossus-~ dos protagonists histoicos,o pro= blema do isolamento continsaexistndo. E possvel que no eonsivasros, de ‘manirasensatz atribuira Shakespeare nem mesmo a intengio relativamente 80 ‘OIMPERIO.DO DIRETTO potética insiste em que interpretar a cortesia no se reduz a uma questio de descobrir o que uma pessoa em particular pen- sa sobre ela, Portanto, mesmo supondo que a comunidade & uma pessoa distinta, com opinides © conviegdes proprias, al- gum tipo de consciéncia de grupo, esse pressuposto apenas aerescenta d historia uma outa pessoa cujas opinides um intér- prete deve julgar ¢ contestar, ndo simplesmente descobrir ¢ re- portar, Ele deve ainda estabelecer uma distingZo, entre a opi- nio que a consciéncia de grupo tem sobre aquilo que € exigi- do pela cortesia, que ele pensa poder descobrir ao refletir sobre seus motivos e propésitos distintos, e aquilo que ele, o intér- prete, pensa que a cortesia realmente exige. Ele ainda precisa de um tipo de método interpretative que possa usar para por & prova 0 julgamento daquela entidade, uma vez descoberto, ¢ esse método no pode consistir numa conversago com essa entidade, ou com qualquer outra coisa. Comegamos esst longa discussio estimulados por uma importante objegzo: de que a descrigio construtiva da interpre- tagao criativa é errada porque a interpretagao criativa é sempre interpretagio conversacional. No caso da interpretagio das priticas socidis, essa objegao € ainda mais inadequada que no aso da interpretagao atistica. A descrigao consirutiva deve de- frontar com outras objegdes, em particular com a objegio que examinarei mais adiante, neste capitulo: de que a interpretagao construtiva nao pode ser objetiva. Mas devemos estudar um pouco mais esse modo de interpretagao, antes de colocé-io de novo a prova. sbstraia de provocar, entre seus contemporinens, uma determinada reagd0 complexe a Shylock. Mas esses problemas, quando sie, se translormam em razdes para adapiar as exigcias da intepretagdo constratva Aguilo que po- demos aleanga, para encontrar no teatro alguma dimensio de valor que nos emia fazer o melhor possivel de O mercador de Veneza (ou dos anteceden {es germinicos do dizete consuetudinirio) sem uma especulag3o duvidosa sobre estados de esprto acs quais nfo tems acesso devide bareires culty rs. Pois na interpretago eonstrutivaas intengBes histrieas na si os funda rmentos consttutivas da compreensto inleetativa. A ieapacidade de ect perirlas no € um dessstre interpetativ, pois exstem outras maneiras, quase sempre muito melhores, deencontar valor nas tradigdos is quaisaderimos, ‘CONCEITOS DE INTERPRETACAO 81 ‘Etapas da interpretagdo Precisamos comegar a refinar a interpretagdo construtiva, ‘ransformando-a em um instrumento apropriado ao estudo do direito enquanto pritica social. Teremos de estabelecer ume dis- tingdo analitica entre as trés etapas da interpretagdo que apre- sentaremos a seguir, observanda como sio necessirios, em uma comunidade, diferentes graus de consenso para cada eta- pa quando se tom em vista 0 florescimento du atitude interpre~ tativa. Primeiro, deve haver uma etapa “pré-interpretative” na qual so identificados as regras e os padrdes que se conside- ram fornecer o contetido experimental da pritica. (Na interpre- tagio de obras literdrias, etapa equivatente é aquela em que so textualmente identificados romances, peas, etc, isto é, a etapa na qual o texto de Moby Dick é identificado e distingui- do do texto de outros romances.) Coloco “‘pré-interpretativo” entre aspas porque, mesmo nessa etapa, algum tipo de inter~ pretagdo se faz necessério. As regras sociais no t&m rotulos que as identifiquem. Mas é preciso haver um alto grau de con- senso ~ talver uma comunidade interpretativa seja bem defini- da como necessitando de consenso nessa etapa ~ se se espera ‘que a atitude interpretativa dé frutos, e podemos, portanto, nos abstrair dessa etapa em nossa anzlise ao pressupor que as clas- sificagdes que ela nos oferece sto tratadas como um dado na reflexio e argumentagio do dia-a-dia, Em segundo lugar, deve haver uma etapa interpretativa, em que o intérprete se concentre numa justificativa geral para 095 principais clementos da pritica identificada na etapa pré~ interpretativa. Isso vai consistir numa argumentagdo sotre a conveniéncia ou nao de buscar uma pritica com essa forma ge~ ral. A justificativa nio precisa ajustar-se a todos os aspectos ou caracteristicas da pritica estabelecida, mas deve ajustar-se © suficiente para que o intérprete possa ver-se como alguém {que interpreta essa pritica, no como alguém que inventa uma nova pritica'. Por dltimo, deve haver uma etapa pés-interpre- 16, Para uma discussio mais aprofurdada dessa distingZo,e da inter- pretagdoeriativa em termos geri, ver Dworkin, "Law as Interpretation”, em 82 omMpéRIO DO DIRETTO tativa ou reformuladoca & qual ele ajuste sua idéia daquilo que 1 pritica “realmente” requer para methor servir justificativa ‘que ele aceita na etapa interpretativa. Um intérprete da comu- nidade hipotética em que se pratica a cortesia, por exemplo, pode vira pensar que uma aplicagio coerente da methor justificativa dessa pritica exigiria que as pessoas tirassem os chapéus tanto para soldados que voliam de uma guerra quanto para os no- bres. Ou que ela exige uma nova excecdo a um padrio estabe- lecido de deferéncia: isentar os soldados das demonstragdes de cortesia quando voltam da guerra, por exemplo. Ou, talvez, até mesmo que uma regra inteira estipulando deferéncia para com todo um grupo (ou toda uma classe) de pessoas deva ser vista como um erro luz dequela justificativa”, Em minha sociedade imaginiria, a verdadeira interpreta- ‘do seria muito menos deliberada e estruturada do que sugere essa estrutura analitica. Os juizos interpretativos das pessoas seriam mais uma questio de “ver” de imediato as dimensdes de sua pritica, um propdsito ou objetivo nessa pritica, ¢ a con- seqiiéncia pés-interpretativa desse propésito. E “ver” desse mo- do nio seria habitualmente, mais penetrante do que o mero fato de concordar, com uma interpretacdo entio popular em alum ‘grupo cujo ponto de vista o intéxprete adota de maneira mais ou The Politics of Tatepeetation 287 (W. J.T. Mitchell, or. Chicago, 1983). Fish, “Working on the Chain Gang: Imespretaion in Law and Literature”, 60, Texas Law Review 373 (1982); Dworkin, "My Reply to Stanley Fish (and Walter Benn Michaels): Pease Don’t Talk about Objectivity Any More”, em The Polities of Incerpretaion, 287; S. Fish, “Woong Aysin”, 62. Texas Law Review 299 (1983). Os anges de Dwvorkin foram reeditados, ainda que 0 segundo esteja modiicadse abreviado, em A Mater of Principle, caps. 67. 17, Poderfamesresumir essa ts etapas na observago de que a intr- protagdo procura estabelecer um equlibrio ene a descrgfo pré-nterpre ‘a dewma pritica social euma jusiticaiva apropriada de tal prtica. Tomo a prlavra “equilibria” emprestada de Rawls, mas essa descrigdo da intenreta- (0 € diferente de sus descigio do racicinio sobre a justiga. Ele contempla 0 ‘equilibro entre o que chama de “intigBes” sobre a justia © uma tari for- ‘mal que une essa intugSss. Ver John Ravis, A Theory of Justice, pp. 20-1, 48.50 (Cambridge, Mass, 1971). interpreta de uma ptica social procura equilibria ence justficava da priticae suas exigencins pbs (CONCEITOS DE INTERPRETACAO 83 menos automética, Nao obstante, haverd uma controvérsia ine~ vitivel, mesmo entre os contempordneos, a propésito das exatas ddimensdes da pratica que eles todos interpretam, e a controvér- sia serd ainda maior quanto & melhor justificativa para tal pri- tica. Pois jé identificamos, em nossa exposi¢ao preliminar da natureza da interpretagdo, muitas maneiras de divergit. Podemos agora retomar nossa exposicio analitica para compor um inventirio do tipo de conviegées, erengas ou supo~ sigdes de que uma pessoa necessita para interpretar alguma coisa. Ela precisa de hipdteses ou convicgdes sobre aquilo que é valido, enquanto parte da pritica, a fim de definir os dados brutos de sua interpretacdo na etapa pré-interpretativa; a titu- de interpretativa nao pode sobreviver a menos que membros da mesma comunidade interpretativa compartilhem, ao menos de maneira aproximada, as mesmas hipéteses a propésito disso. Ela também precisard de convicgBes sobre até que ponto a jus- tificativa que propde na etapa interpretativa deve ajustar-se as caracteristicas habituais da pratica, para ter valor como uma {nterpretagiio dela e nfo como invengao de algo novo. Pode ame- {hor justificativa das priticas da cortesia, que para quase todo o mundo significa basicamente a demonstragio de deferéncia para com seus superiores sociais, ser aquela que de fato no vai exigir, na etapa da reformulagdo, nenhuma distingo em ter- ‘mos de posi¢do social? Seria esta uma reforma demasiado ra- dical, uma justficativa demasiado inadequada para valer como uma interpretagao? Uma vez mais, nio pode haver uma dispa- ridade muito grande entre as conviegdes de diferentes pessoas sobre tal adequago; s6 a histéria, porém, pode nos ensirar 0 que deve ser visto como excesso de discrepincia. Finalmente, essa pessoa vai precisar de convicydes mais substantivas sobre 05 tipos de justificativa que, de fato, mostrariam a pritica sob sua melhor luz, ¢ de juizos sobre se a hierarquia social é dese- Javel ou deploravel, por exemplo, Essas convicgGes substanti- vvas devem ser independentes das convicgdes sobre adequago que descrevemos hi pouco; do contri, estas Gltimas no po- deriam exercer coergiio sobre as primeiras, e, a0 final, a pessoa 84 OIMPERIO DODIREITO rio poderia distinguir entre interpretagao ¢ invengio. Mas, para que a atitude interpretativa floresca, essas convicgées nilo pre~ cisam ser tio compartithadas pela comunidade quanto a nogo do intérprete acerca dos limites da pré-interpretago, ou mesmo ‘quanto a suas conviegdes sobre o devido grau de adequay Fildsofos da cortesia Identidade institucional ‘No capitulo I, passamos em revista as teorias ou filosofias clissicas do direito, e sustentei que, lidas da maneira habitual, esas teorias so intiteis, uma vez que paralisadas pelo agi semantico. Podemos perguntar agora que tipo de teorias filos6- ficas seriam iteis as pessoas que adotam a atitude interpretativa que venho descrevendo a propésito de certas tradigaes sociais, Vamos supor que nossa comunidade imaginiria de cortesia se -vanglorie de ter um filésofo ao qual se pede, nos verdes anos da atitude interpretativa, que prepare uma exposigao filoséfiea da coriesia, Ele,recebe as seguintes instrugdes: “Nao queremos suas préprias conceppies autdnomas, que tém tanto interesse quanto quaisquer outras, sobre aquilo que a cortesia realmente exige. Queremos uma teoria mais conceitual sobre a natureza da cortesia, sobre o que é a cortesia em virtude do proprio sent do da palavra, Sua feoria deve ser neutra sobre nossas contro- vérsias cotidianas; deve fornecer os antecedentes conceituais ‘ow as normas que regem essas controvérsias, sem tomar parti- do.” O que pode ele fazer ou dizer em resposta? Esti na mesma situagio do cientista social que mencionei, que deve aderir as priticas que descreve. Nao pode oferecer um conjunto de re- gras semfinticas para o uso apropriado da palavra “cortesia”, ‘como as regras que poderia oferecer no caso da palavra “livro”. ‘Nao pode dizer que, por definigao, tirar o chapéu diante de uma senhora um caso de cortesia, do mesmo modo que se diria ‘que, por definigio, Moby Dick é um livro. Ou que mandar uma nota de agradecimento é um caso limitrofe que se pode consi- CONCEITOS DE INTERPRETACAO 85

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