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A Poética de Aristóteles

Emmanuel Carneiro Leão

Há vários anos, eu tenho em mente fazer uma pesquisa sobre as relações entre o entendimento
que propôs Aristóteles da Idea, do eidos e da ousia de Platão, e como o próprio Platão expõe tais
questões em seus diálogos. E tal comparação diz respeito à presença e à importância que desempenham
tais questões na Poética, tendo em vista o exercício e a realização das obras, ou seja, no tocante ao
fenômeno poético.

Comentário:
A questão de fundo do ensaio: O que Platão nos seus diálogos expõe como: Idea, eidos, ousia e qual o
entendimento que Aristóteles propôs dessas questões na Poética? Por que isso é decisivo? Porque será nesse
entendimento que serão julgadas as obras de arte em todo o percurso ocidental até hoje. E também será nele que
serão interpretadas todas as obras da cultura grega, embora elas precedam esse entendimento. Tal entendimento se
tornou Modelo. Trata-se, portanto, de não só questionar esse entendimento, mas também de saber se a cultura, as
artes, as obras literárias, toda produção científica, enfim, tudo na vida de um povo e de uma pessoa deve ser
avaliado por Modelos. Será esse o único critério? Educar será, então, ensinar Modelos? O que é um Modelo? Onde
está a força do Modelo? Por que tudo hoje se faz segundo algum modelo? Coloque-se no lugar dessa palavra Teoria,
Corrente Crítica, Paradigma, Cânone, Idéia, Arquétipo, padrão, e teremos apenas sinônimos aproximados, mas
essencialmente nada muda. Quando se ensina Gramática não se ensina um modelo de realização de uma língua? E
em todos os conhecimentos não se procuram os Modelos? Todas as Disciplinas não são feitas em cima de Modelos?
O que é um conhecimento científico de um disciplina? Não é um modelo de conhecimento que deve ser aceito por
todos? Estudar e formar pessoas pelas disciplinas, hoje, é reduzir a realidade e as pessoas a esses modelos prévios,
que não alcançam o seu acontecer. Em que se fundamenta o Modelo? No universal. O que é o conhecimento
universal? O grego, reduzido à Koiné, não se tornou a língua padrão, modelo, para todo o império de Alexandre e,
com isso, se fundou o Helenismo?
Há, porém, uma observação prévia muito importante: Não se podem ler e classificar as próprias
obras/diálogos de Platão segundo esses modelos. Para tanto, uma tarefa prévia se impõe, sobretudo para os
Estudos Clássicos: Como Platão expõe em seus diálogos o que seja Idea, Eidos, Ousia? Para fugirmos da
interpretação já duas vezes milenar e tornada modelo, contra o próprio pensar de Platão, temos de levar em
consideração que as obras de Platão são diálogos. E sem pensarmos o que essencialmente implica diálogo não
teremos como dialogar com as obras de Platão. Essa é uma tarefa prévia decisiva. Ler, interpretar e traduzir os
Diálogos de Platão com posições teóricas modernas é um contra-senso absurdo.

Nós sabemos que a Poética de Aristóteles é um dos textos mais difíceis de penetração e dotado
de um grande poder de enganar, isto é, ele parece fácil, parecem evidentes as colocações que Aristóteles
faz nesse escrito. Mas essa aparência, como toda a aparência, engana, pois, para enganar, uma aparência
tem que aparecer.

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Devemos ficar atentos à fala de Emmanuel. Nesta passagem, ele destaca dois aspectos essenciais: 1º. A
Poética é um dos textos mais difíceis, porque trata de questões essenciais. E por isso, numa leitura rápida e
superficial, ela tem um grande poder de enganar. É que as questões colocadas por Aristóteles parecem evidentes e
isso é uma aparência. 2ª. Mas essa aparência, como toda aparência, engana, pois, para enganar, uma aparência
tem de aparecer. Ora, o aparecer faz parte essencial da physis.
Qual é aqui a grande questão levantada e que irá decidir tudo o que depois será exposto? E é também a
grande e decisiva questão a partir da qual se decide a interpretação do que seja Idéa, Eidos, Ousia? Trata-se da
Verdade. O pano de fundo em que se move toda a trajetória do Ocidente é o entendimento do que seja Verdade.
Tendemos facilmente a opor aparência a verdade. Assim nos ensinam. Isso se sustenta? Já nos questionamos sobre
isso? Hoje vivemos sob o império da verdade da ciência. Será essa a única verdade? Não se trata de excluir e criar
dicotomias, mas também não se pode aceitar facilmente a exclusão e o império generalizado dessa verdade. Não
está aí o império da técnica, esta hoje tornada global?
Os gregos, em suas obras essenciais, não se guiavam por essa oposição entre aparência e verdade. De que
nos fala, por exemplo, o poema de Parmênides? Da Deusa Aletheia. E esta não tensiona o que aparece com o que se
oculta? Mas, exatamente no tempo de Platão, passou-se para a Homoiosis, traduzida esta palavra para o latim
como Adaequatio. Sem tematizar esta questão, será difícil entender todas as colocações tanto de Platão quanto de
Aristóteles. O grande poder da verdade da ciência está em seu valor, diz-se, universal. E o que o universal e a
ciência têm a ver com esta questão? E nós, professores, não partimos do princípio de que ensinamos verdades
científicas para nossos alunos? E não queremos com os modelos reduzir as obras de arte a conhecimentos e
classificações científicas? Portanto, educar seria educar para a verdade. Mas o que é a verdade? O que ensinamos
quando se trata de obras de arte? Não partimos da ingenuidade de acreditar que nas análises já atingimos a
verdade das obras? Será verdade? E as classificações são científicas e verdadeiras? Como se diz, correspondem à
realidade. O que é a realidade? De onde se originou essa palavra que a tudo hoje domina?
Hoje, o modelo nascido dos e com os gregos, via Aristóteles (que não era grego, mas se formou na
Academia de Platão), como veremos, tornou-se global. Como pensar a globalização sem pensar os modelos e a
questão da verdade?

E ao aparecer ela nos remete para provocações de questionamento dos vários problemas e de
várias dimensões da seguinte [tripla] questão: 1ª. Qual é a relação que há entre a experiência poética,
2ª. a experiência humana 3ª. e a experiência real do mundo. Essa integração, esse inter-
relacionamento entre a experiência humana, a criação poética e a reflexão do pensamento que a história
do Ocidente recebeu do impulsionamento da filosofia é sempre provocante em todas as áreas da sua
apresentação, da sua vigência.

São três questões que independem de modelos, teorias, culturas, épocas, religiões, disciplinas, posições
políticas etc. São questões e enquanto questões elas são prévias a tudo isso. Questão não é conceito. Mas
o pensador repete em relação a cada questão uma mesma palavra três vezes: experiência. Por quê? O
que essa palavra grega nos diz e quer sempre dizer, embora os hábitos cotidianos e seus significados
comunicativos encubram seu sentido profundo? Eks-peras. As três questões são referências obrigatórias
e como elas, na nossa vida, em nosso educar, em nossos projetos, se relacionam com a ex-periência? O que
aí se decide para cada ser humano e para cada cultura e para cada época? Quando a experiência se torna
experienciação? O que ela tem a ver com verdade, sentido, linguagem, mundo, ético, poético?

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Aqui, no caso da Poética, o mais importante é que Poética é a experiência criadora de si mesma
da condição humana.

Pelo dito aí, de uma maneira sintética e admirável, podemos reduzir a Poética a uma simples teoria, a mais uma
corrente crítica, a uma disciplina, a um modelo ou padrão de como fazer obras segundo cada gênero ou de
classificá-las e analisá-las? Claro que não. É o que diz o pensador. Sem tomar a Poética nesse sentido profundo
jamais poderemos compreender o seu lugar na nossa vida e o lugar das obras de arte em nosso projeto de
realização da vida. E, portanto, do educar poético-originário. Trata-se de pensar a condição humana como uma
experiência criadora, tomando como horizonte o nada criativo, a que se refere Platão. Bem, esta já é uma posição?
Mas foi assim que se interpretou o pensamento de Platão? Isso é o que Emmanuel se propõe a questionar neste
ensaio. Mas quais outras posições encontramos no Ocidente? Posição aí diz um modelo possível de realização da
condição humana. Como se dá, acontece, a referência em português entre ser e estar?

Por isso, o contexto humano de vida da época histórica e cultural em que viveu Aristóteles e em
que elaborou e propôs a sua reflexão e o seu pensamento sobre a poética, esse contexto é fundamental, na
minha maneira de ver, para se compreender em profundidade a contribuição de Aristóteles.

Esta passagem do ensaio é decisiva para compreendermos em toda profundidade e alcance as propostas
que se fazem presentes na Poética. Mais adiante Emmanuel dirá que o essencial nela não está nas linhas, mas nas
entre-linhas. E para termos um mínimo de acesso a elas é necessário conhecermos o contexto humano da época
histórica e cultural em que viveu Aristóteles.
Uma das questões mais difíceis em relação às obras de arte é como elas se relacionam e se referenciam
com a conjuntura e o contexto da época histórica e cultural em que o autor vive, e em que elas são elaboradas,
criadas. No caso da Poética, isso ainda é mais importante e até mais grave, pois ela se tornou o modelo a partir do
qual, na trajetória do Ocidente, se classificaram, julgaram e propuseram modelos críticos de julgamento das obras
de arte. Mesmo quando tal modelo foi combatido na Modernidade, o que ainda subsistia como orientação teórica
fazia parte das entre-linhas da Poética. Essa ignorância histórica é que leva muitos hoje a desprezar e a abrir mão
dos estudos do pensamento cultural e artístico clássicos. Isso é que temos de questionar. Mas também não se trata de
repetir os modelos em que são ensinados os estudos clássicos. Caso se insista nessa posição será uma batalha
perdida. Os estudos clássicos têm de se re-pensar desde dentro. Como? Voltando às origens, às obras originárias.
Relendo Platão, os pensadores originários, Homero, os grandes tragediógrafos, sem modelos prévios. É isso
possível? Sim. Mais que possível, é o grande desafio para os estudos clássicos. Deles surgiu o Ocidente e é voltando
a eles que o Ocidente pode se re-inventar.
Para compreender esta afirmação e enfrentar este desafio, é necessário pensarmos as relações profundas e
as referências entre contexto/conjuntura e obras de arte. Mais, a própria cultura como um todo. Não podemos nem
devemos, como posição inicial, separar as artes da ciência e da cultura. Isso já é feito tomando como base duas
posições: os modelos e a substantivação em lugar do genos ou matriz originária, e do verbal. Tomemos só um
exemplo: o particípio presente grego. Ele pode ser lido como substantivo e como verbo. O on, particípio presente de
einai (ser) pode ser lido, ou como sendo, ou como o sendo. Quando Rosa diz: “O que eu queria mesmo era ficar
sendo”. Aí, é impossível a substantivação. Mas se digo: “O sendo diz tudo que é. Bem diferente é dizer: Todo é é
porque está sendo”. Aqui temos sem dicotomias a junção poética de verbalização e substantivação. Mas sem verbo
não é possível haver substantivação. O contrário é possível. É nessa ambiguidade que surge a questão do contexto e
da conjuntura. Diga-se logo desde já que esta questão nada, mas absolutamente nada, tem a ver com a doutrina

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positivista e naturalista do século XIX, ou seja, a determinação de tudo que é e está sendo pelo meio, raça e
momento. Mas até hoje a maioria das leituras ou análises das obras de arte são feitas segundo esse modelo. É uma
leitura substantiva da realidade e da história. Nela predominam os estados, em lugar do vigorar verbal. A realidade
e a história são essencialmente acontecer poético, isto é, vigorar do sentido da verdade do ser, ou seja, da
realidade.
Em português podemos facilmente compreender a dobra em que se dão contexto e conjuntura, pois não são
sinônimas. Sem sentido não há nem pode haver con-juntura. Palavra originada do verbo latino: cum-jungere, isto é,
juntar, reunir a partir do vigorar do cum. Entenda-se aí cum- enquanto princípio que faz vigorar juntando e
reunindo as diferenças no sentido da verdade do ser. A substantivação da conjuntura dá origem ao contexto. Daí se
poder analisar e relacionar texto e contexto. Do texto podem se analisar os elementos extrínsecos e intrínsecos,
porque é uma substantivação. Da conjuntura não dá. A análise conjuntural leva em consideração diversas linhas de
força e é sempre provável, jamais definitiva. Em relação às obras se julga o contrário. Mas será? Obra não é
também o que opera? Logo, é criadora de conjunturas. Toda leitura ativa do leitor é conjuntural, porque deve
necessariamente ser dialogal, verbal.
É por isso que precisamos, no lugar de ensinar a História da literatura ou as Histórias das artes, ensinar
a História do sentido da literatura, a História do sentido das artes. É que as obras de arte, por vigorarem no limite
e no não-limite, se articulam na tensão de ser e estar, onde o estar sem o ser é o mesmo que a circunstância sem o
acontecer do sentido da realidade, ou seja, a dinâmica das conjunturas: o ser. E a conjuntura depende da dinâmica
do ser quando se dá em pro-jetos. O exemplo é o pro-jeto de Aristóteles, que fundou o Helenismo. A época é toda
essa dinâmica de ser e estar no acontecer poético.
A questão da influência do contexto nas obras, seja para fazê-las, seja para lê-las, corre o perigo de ser
resolvida pela substantivação (o predomínio do estar e o esquecimento do sentido da verdade do ser), pelos
atributos, dando-se a perda do sentido das questões que a obra põe em obra.
Como veremos, essa é a grande crítica de Platão às leituras das obras de Homero feitas na sua época. É o
que Emmanuel mostra como sendo o esquecimento do vigorar dos mitos nos ritos e a substituição deles
simplesmente pelas narrativas de vidas, de fatos, de deuses, de eventos, porque os enredos se tornam mais atrativos
para os expectadores. Isso fica bem evidente hoje não só com os best-sellers, mas também com os tabloides, os
jornais sensacionalistas. E evidente com as revistas de fofocas em torno da vida dos artistas. Quantas vezes são
confundidos e identificados com os personagens que vivem nos meios de comunicação de massa. Transfira-se esta
questão de nossa circunstância histórica para a conjuntura e circunstância de Platão e se passará a compreender a
profunda crítica que ele faz de muitas das obras produzidas na sua época. E hoje alguns críticos ainda querem
defender essas banalidades. As narrativas precisam ser pensadas a partir das questões, ou seja, do vigorar dos
mitos, porque todas as grandes obras poéticas se tecem e entretecem em torno dos mitos e suas questões. São novas
versões dos mitos.

Por isso, inicialmente, eu queria caracterizar este contexto histórico-cultural. Todos nós sabemos
que Aristóteles nasceu em 384 a.C, em Estagira, que fica na fronteira entre a Trácia e a Macedônia. Com
dezessete anos, ele vai para Atenas e se filia à Academia de Platão, onde vai fazer os cursos. E depois vai
assumir pesquisas, investigações e transmissão do conteúdo doutrinário e das provocações das questões
elaboradas por Platão.

Se prestarmos atenção, temos aí o que acontece hoje em nossas universidades e em nossas faculdades.
Com um senão, hoje tudo está já catalogado e classificado em disciplinas, com conteúdos já prontos segundo
modelos prévios, para serem repetidos pelos alunos, numa cadeia aprisionante e que anula todas as diferenças.

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Claro, esses modelos são científicos, logo, verdadeiros. Não há por que questioná-los. Será? E para onde vai o
operar das obras? Para onde vai o acontecer da realidade? Para onde vão as diferenças? Para onde vai o próprio
de cada ser humano? E onde ficam os valores éticos? Mas notemos que Emmanuel diz que a Aristóteles cabia, sim,
transmitir, mas também pensar as provocações das questões elaboradas por Platão. Nós, hoje, propomos questões
para nossos alunos? Se a realidade não cessa de mudar, como propor modelos fixos, repetidos ad nauseam?

Com a morte de Platão, entre 348/347, Aristóteles deixa Atenas. Ele era um perieco, era um estrangeiro em
Atenas, porque ele não era ateniense. E o perieco para viver em Atenas tem algumas restrições: não pode ser
proprietário, não pode orientar e fundar escolas, instituições. Isso é privativo, exclusivo dos cidadãos de Atenas.
Como é então que Aristóteles fundou no Liceu o Peripathos?

Já notamos que o contexto não é fixo, ele varia segundo as forças conjunturais. Ele está muito ligado à
conjugação do vigorar do tempo e das forças políticas dominantes. Mas estas podem ser amorfas ou se guiarem
dentro do horizonte de algum projeto. E aí surgem os grandes estadistas, os grandes pensadores e artistas para
elaborarem e procurarem executar os projetos. Qual seria o grande projeto de nossa época? É isso que temos de
pensar. E encontramos na cultura grega o grande estímulo, vivo até hoje. Até hoje nos faz pensar.

Pois é essa pergunta que está ligada a esse contexto cultural-histórico, no tempo em que viveu
Aristóteles. Qual é esse contexto? É a chamada hegemonia e domínio da Macedônia. Esta vai exercer
sobre Atenas um papel decisivo, não somente de dominação política, econômica, mas também de
orientação cultural, histórica, artística, científica e técnica. Quem é o encarregado, no domínio da
Macedônia, de cumprir e assumir a orientação dessa nova modalidade de orientar e de guiar a cultura e a
política de Atenas? É Aristóteles.

Notemos como em torno de Aristóteles se conjugam forças históricas excepcionais. Mas estas também
dependiam do gênio de grande pensador que ele era. Foi ele o encarregado de dar um sentido histórico a toda essas
forças e de elaborar não só um projeto cultural, mas também uma política de formação e expansão do seu projeto
em todo o império de Alexandre. (Foi isso o que aconteceu com Roma, na Modernidade com a Europa e hoje com os
americanos. O inglês se tornou a koiné e os valores americanos se globalizam. Não vem daí a desintegração por
que passa hoje a humanidade? Até quando?). Mas essas forças culturais Aristóteles não criou, ele já encontrou na
cultura grega. E a força originária e inovadora de interpretação encontrou nos ensinamentos da Academia de
Platão. Toda a questão vai se centralizar no fato de que ele elabora esse projeto como um modelo. (É baseado neste
modelo que se fez também a interpretação dos diálogos de Platão, contra tudo o que neles defendido e proposto:
diálogos). Em parte, não será devido ao fato das circunstâncias políticas daquele momento histórico e seu poder e
seus interesses? As propostas de Aristóteles não serão ambíguas na sua formulação? Não terá sido a sua execução
que, atendendo a diversas circunstâncias e limites dos executores, acabou levando ao predomínio dos modelos? Eu
expresso esta minha dúvida, porque defendo a ideia de que temos dois Ocidentes: o dos modelos e o dos

genos/matrizes. Nestas não há esquecimento do sentido do ser nem das diferenças, mas a tensão poética da dobra.

Ele, depois que morreu Platão, abandona Atenas, pois foi convidado por Hêrmias de Atarneu
para fundar e orientar uma espécie de Academia em Assos. Mas vai também encontrar dificuldades em
Assos. E passa somente dois anos, onde organiza uma sucursal da atividade de pesquisa, investigação e

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de ensino da Academia de Platão. Depois de organizada, vai para Mitilênia, na ilha de Lesbos, onde ele
conhece o seu grande amigo-sucessor, Teofrasto, que fará o recolhimento e a publicação dos escritos de
Aristóteles que, posteriormente, será um grande problema. Teofrasto é de Mitilênia. E foi ele que
convidou Aristóteles para aí fundar também uma sucursal da Academia de Platão. Passa somente um ano
e meio em Lesbos.
Acontece que Hêrmias, que era o príncipe protetor de Aristóteles foi assassinado. E antes de
acontecer o seu assassinato, ele o indicou a Filipe da Macedônia para ser o preceptor do seu filho,
Alexandre, seu futuro sucessor no império da Macedônia. Então Aristóteles vai para Pela, capital do
império, para orientar a formação de Alexandre. Isso é importante, porque é aí, durante a educação de
Alexandre, que Aristóteles começa detalhadamente a empreender uma pesquisa sobre a criação e a
produção cultural-artística de Atenas, seja da arte poética, literária, teatral, seja das artes cênicas e das
artes plásticas. É aí que Aristóteles levanta todo o material que vai depois utilizar na elaboração da
Poética. Por quê? Porque a educação grega de Atenas é a educação feita através da tradição dos mitos, da
poesia épica e da poesia lírica.

Como vemos, toda a elaboração da Poética se dá dentro de coordenadas precisas e que tem por detrás um
projeto abrangente e fundamental. Essas são muitas das entrelinhas a que se refere Emmanuel. Note-se que
acontece uma feliz conjugação de alguns fatores excepcionais: o grande momento da criação cultural grega, a
grande efervescência do pensamento grego e das discussões em torno do educar, isto é, da paideia grega, o grande
momento da reunião de três dimensões fundamentais para a rica eclosão do humano: um poder político forte e um
governante genial, de uma visão e inteligências extraordinárias, que foi Alexandre Magno, uma dupla de pensadores
inigualáveis, que foram Platão e Aristóteles, um momento ímpar de criações poéticas, citando especialmente,
Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes e outros escritores em outras áreas de conhecimento. Foi um momento
histórico realmente excepcional. Denys Arcand, no filme “Invasões bárbaras”, põe na boca de um de seus
personagens o dito: “Ali estava a inteligência”. Hoje, vemos que a base de tudo o que depois aconteceu no
Ocidente. E com a expansão deste, esse projeto de Aristóteles e de Alexandre tomou dimensões mundiais, isto é, hoje
se tornou modelo global.

Aristóteles incute no sucessor do Felipe, Alexandre, esse amor pelas artes que vai ser importante
para o destino futuro da sucessão do império de Alexandre. Alexandre vai morrer logo, mas deixa essa
herança para seus sucessores. Portanto, essa presença de Aristóteles em Pela, como educador e preceptor
de Alexandre Magno, é fundamental para se entenderem as questões e o encaminhamento que Aristóteles
dá a essas questões referentes às artes, em todas as suas dimensões, e de maneira particular e de maneira
geral, à cultura.

Esta observação de Emmanuel é fundamental. Toda eclosão cultural é movida pela reunião de condições
criativas e conjunturais. É a tensão em alta voltagem do nada criativo de Platão com as conjunturas, ou seja, do ser
e do estar, no acontecer poético.

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Há uma questão política presente em toda essa atividade de Aristóteles. Ela diz respeito a quê?
Diz respeito não apenas à relação de Aristóteles com as artes, mas, sobretudo, às relações de Aristóteles
com Platão, isto é, não com Platão que já tinha morrido, mas com a obra de Platão, com a orientação da
Academia. Aristóteles tem uma formação dada pela Academia, mas ele é autônomo e independente. E
essa tensão e esse conflito com a orientação que a Academia dava a essas questões apareceram, pois
Aristóteles começa a divergir da Academia e dá uma orientação diferente, que tem a ver com a situação
política de Atenas, da Grécia, isto é, da hegemonia da Macedônia.

Podemos ver aqui como ninguém se pode tornar mestre como modelo. Na própria dinâmica do vigorar do
sentido da verdade do ser, é impossível haver modelos, caso contrário, se anularia o vigorar da realidade, que é
misterioso. Isso se deu no embate de dois gênios, dos maiores que a humanidade já teve. Mas a realidade não é só
feita de gênios. Em seu mistério, ela não cessa de se inaugurar em cada sendo que ela cria, manifesta. Disso decorre
que nós, professores, temos de estar bem conscientes de que nenhum aluno é uma nulidade, é igual a outro ou
outros. Todos são absolutamente diferentes e inaugurais. Como, portanto, ensinar somente a partir de modelos?
Sim, no vigorar das diferenças há uma unidade, caso contrário seria impossível sermos ser-com, sermos sociais,
sermos-no-mundo. Mas qual é ela? Não podemos nunca partir da substantivação, mas do vigorar concreto do
universal, isto é, das diferenças na identidade do sentido da verdade do ser. Esse vigorar é a Poética, a criação
poética da condição humana. E isso acontece nas e pelas obras de arte. Mas não se trata, então, de classificações,
de análises, de ideologias, de estéticas, de gêneros, de estilos, de enredos, de vidas de personagens. Trata-se sempre
de questões como o Emmanuel dirá mais adiante. Isso é o que Platão propõe em seus diálogos. Por isso se
denominam diálogos. Se há diálogo não pode haver modelos. Temos de pensar o educar e as obras de arte como
diálogos. No diálogo necessariamente tem de haver identidade e diferenças. E então as obras de arte em seu
sentido se tornam éticas. E sem o ético não há o humano.

Dando um exemplo disso, como isso tem conseqüências fundamentais para se compreender a
relação de Aristóteles com Platão. Tem uma famosa frase que é atribuída a Aristóteles e que diz: Amicus
Plato, sed magis amicus veritas. “Sou amigo de Platão mas sou mais amigo da verdade”. Essa é uma
frase de Platão, que se pode ver no décimo livro da República de Platão. É uma frase em que Platão está
apresentando a Homero, pois sempre se disse que Homero educou não só Atenas, mas toda a Grécia.

Este exemplo de Emmanuel toca naquilo que é essencial em todo projeto de educar, em todo operar das
obras de arte. Trata-se sempre da verdade. Não importam nunca os nomes, os autores, as vidas, os interesses
sociais, as ideologias e os sistemas donos da verdade. Onde há sistema não pode vigorar a verdade, ao menos no
sentido da aletheia grega. A sociologia da literatura e das artes patina num grande equívoco. Ela, a sociologia,
como disciplina, concebe o social, enfim, a sociedade como substantivação, uma entificação. Esquece que toda a
realidade enquanto vigorar do sentido da verdade do ser é verbal. A verdade é e será sempre verbal, porque a
realidade é será sempre verbal. Por isso a verdade, enquanto sentido do ser, será sempre linguagem, e não sistema
de signos, sistema gramatical.

Homero é aquele que desenvolve e abre os caminhos para o desenvolvimento específico dos
problemas políticos, sociais, econômicos, técnicos, científicos e filosóficos de toda a Grécia. Como é que
Homero faz isso? Ele faz isso através de uma épica que transmite as várias dimensões dos personagens da

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história grega, dos heróis, das divindades, dos poderes. E a maneira de o grego entender essa mensagem
educativa de Homero é entendendo e julgando que se trata de narrativas. O que isso significa? Que se
trata na obra de Homero de prescrições, de ocorrências e de fatos. É isso que Platão vai combater durante
toda a sua atividade, quando empreende a elaboração da essência, da estrutura, do modelo do que é o
Estado, do que é uma cidade, da Politeia.

Esta passagem é decisiva para compreendermos a grande diferença entre Platão e Aristóteles. E entre o
educar poético-originário e o educar formal, substantivo, baseado em modelos. O principal nas narrativas não são
os fatos, as vidas, as prescrições, enfim o enredo, ou seja, os ritos sem os mitos, mas as questões que os mitos não
cessam de trazer do nada criativo para o pôr e dar-se sempre inaugural das diferenças. Não se podem pensar os
mitos no modelo de verdade teológica, filosófica e científica. Mito é força histórica, é acontecer poético. Narração
mítica diz desdobrar-se da realidade em sua verdade. As narrativas, esquecidas do sentido dos mitos, passaram a
querer reproduzir modelos de comportamento. E quem os procura e esteticamente se delicia com tais narrativas,
está, em verdade, se alienando, se voltando para o que ele não é, mas lhe dá o prazer de pensar que poderia ser. E
não pode ser porque o modelo não é gerador de diferenças, mas uniformizador e anulador de diferenças, do que em
cada um é próprio. Ora, disso resultou um educar para a repetição de modelos, consubstanciados em conhecimentos
do já feito, do já repetido, da reprodução, em vez do educar para o produzir, para o novo, como desafio de cada
aluno se realizar em seu próprio.

Então ele disse: não se pode entender a poesia de Homero nem a poesia épica em geral, nem a
poesia lírica, nem as artes cênicas, a tragédia, a comédia, o drama, como narrativas, isto é, como
descrição de fatos, apresentação de modelos de personalidades e de vida. Por isso, é que Platão vai no
diálogo República (Politeia), ele procura questionar e abalar essa crença de que os mitos, os poemas, as
artes nos apresentam narrações de fatos. E isso vai influenciar enormemente a maneira de Aristóteles
entender o que é mímesis, o que é imitação, como sendo o papel e a estrutura de toda a realização de uma
obra poética, de uma atividade poética. Não podemos descer para detalhes, mas estou apresentando aqui,
digamos, o princípio e a articulação geral das relações entre Aristóteles e Platão no tocante ao lugar
político e social, na cultura grega, das artes cênicas, das artes poéticas e das artes plásticas. Nós sabemos
que ao longo da tradição houve toda uma interpretação do que era a proposta de Platão, isto é, que Platão
teria expulso e colocado fora da cidade, do ideal de cidade que ele propunha, os poetas. É que tinha
colocado fora os artistas pelo fato de eles serem imitadores das imitações das idéias. Esse é o pomo de
toda a discórdia, de toda a criatividade própria de Platão e de Aristóteles. Refere-se ao entendimento do
que é idéia/eidos. Aristóteles desenvolve e prepara essa sua interpretação, essa colocação, ao
desincumbir-se da tarefa da formação de Alexandre, o futuro sucessor de Felipe, durante treze anos. Só
que no meio da formação de Alexandre, acontece que Felipe, o pai, o rei, é assassinado. E Alexandre tem
de se preparar diretamente para assumir a direção do império. Então Aristóteles deixa Péla e volta para
Atenas. Mas agora volta para Atenas não mais marcado pelo estigma de ser meteco, isto é, daquele
estrangeiro que vive em Atenas. Ele agora está por “cima da carne seca”, uma vez que continua e, com
mais força ainda, o poder da Macedônia sobre Atenas. Chegando, Aristóteles adquire logo uma
propriedade em Atenas, perto do Liceu. E funda uma Academia alternativa, o Peripathos. E isso não era

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possível, a não ser na época e hegemonia da Macedônia, porque era contra toda a tradição das leis de
Atenas.
Mas agora, com as vitórias de Felipe e, sobretudo, com as vitórias de Alexandre, é incontestável
o poder político e determinante da tradição, que não é grande, da nova orientação que o Alexandre vai dar
à cultura helenista, com três grandes princípios:1º. Simplificar a língua grega, dar à língua grega uma
estrutura dotada de um poder universal de expansão, é a chamada Kini ou koiné; 2º. Acabar com a
diferença entre o grego e o bárbaro, pois não há uma diferença de qualidade ontológica; 3º. Abolir as
diferenças culturais específicas de cada cidade, pois o que vale é a universalidade do humano. Esses são
os princípios em que se funda o Helenismo.
Kini ou koiné é o chamado grego do Helenismo. Essa primeira decisão de Alexandre vai
representar uma contribuição cultural e histórica para toda a vida de Ocidente, uma vez que essa
facilitação e essa expansão da língua grega levou consigo a política, a cultura, as artes, a ciência e a
técnica gregas, bem como as várias formas de ordenamento e organização da convivência. Isso
representou uma revolução extraordinária para toda banda oriental do mar Mediterrâneo, porque até então
as várias cidades se mantinham sempre trancadas dentro de si mesmas. Apenas elas participavam e
colaboravam nos grandes festivais entre as várias cidades, que eram as grandes celebrações de Dioniso, as
grandes dionisíacas, depois as grandes cultivações píticas, onde florescia o teatro, isto é, a tragédia, a
comédia e o drama. Isso fez com que Aristóteles chegasse a Atenas com o poder e uma autoridade que
Platão nunca teve, pois estamos numa época em que o domínio da Macedônia é decisivo. Então
Aristóteles organiza não só todos os grupos de pesquisadores e de discípulos, encarregados de dar cursos,
mas também de exercer uma atividade de pesquisa, de interpretação e de orientação, para formar a nova
elite do império de Alexandre. Era esse o ideal e a meta de Aristóteles: preparar as classes de elite e as
classes dirigentes do novo império que Alexandre já tinha imaginado ao deslocar a capital para o centro
da banda oriental do Mediterrâneo. Atenas deixaria de ser a capital, ao fundar Alexandria que depois vai
assumir todo o papel cultural que foi o ideal que Aristóteles colocou na cabeça de Alexandre.
Então essa situação conjuntural e histórica é importante para se entenderem várias colocações e
vários questionamentos que propõe Aristóteles na Arte Poética, no tocante às tragédias e às comédias. Só
que o texto que nos foi legado e conservado da Arte Poética é um texto corrompido. É um texto cujo
estilo não reflete todas essas peripécias e atividades de política cultural e social da época de Aristóteles.
Em vista desta conjuntura, depois da fundação do Liceu, Aristóteles começa a desenvolver uma atividade
de ensino e de pesquisa, de criação literária e de criação de ação de pensamento que se estende até 323,
porque novamente a fatalidade impede o exercício e o cumprimento das metas que Aristóteles tinha se
proposto e que também o seu discípulo, Alexandre, tinha estabelecido. É a morte prematura de Alexandre.
Com esta morte a situação se inverte. De autoridade incontestável da orientação política, cultural,
histórica, filosófica e artística de Atenas, Aristóteles passa a ser perseguido e tem de fugir de Atenas. Pois
se levanta logo o partido contrário aos macedônios, que agora tem força, com a morte de Alexandre. E o
grande nome vai ser, já há tempos, Demóstenes, que era um dos cabeças dos movimentos anti-
macedônios. E Aristóteles para que, como ele diz, Atenas não cometa duas vezes o mesmo crime, foge de
Atenas e vai para a casa da mãe, que estava na Eubéia e lá, um ano depois, morre.

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Essa situação da vida e da atividade do Aristóteles é espantosa porque, em poucos decênios,
Aristóteles organiza uma atividade de conhecimento, de discussão, de pesquisa, de organização, que
nunca se pensou que alguém fosse capaz disso. Nós sabemos que grande maioria dos seus escritos,
deixando de fora os Fragmentos, são escritos acromáticos, isto é, escritos que resultaram de apostilas que
os discípulos, os ouvintes, os pesquisadores que freqüentavam os cursos de Aristóteles, elaboraram. Então
não são escritos de Aristóteles como os Diálogos. Os escritos de Aristóteles destinados à publicação,
exotéricos, são os Diálogos. E destes Diálogos, curiosamente, só restaram e se conservaram fragmentos.
Não temos nenhum diálogo completo. Somente fragmentos escassos e não são grandes textos de
fragmentos. O conhecimento que nós temos da atividade criadora de Aristóteles é um conhecimento
ligado a essa atividade de apostilas, de elaboração de textos que nos cursos dados por Aristóteles
propiciavam. Ficando restrito à questão das artes cênicas, o que é o drama? O drama é uma criação
ateniense. Tragédia e comédia alcançaram em Atenas o esplendor de sua forma exuberante de criação, de
sua forma clássica, com a institucionalização das grandes competições anuais, nas festas a Dioniso, às
Leneias (1), as pequenas dionisíacas. Embora a partir do século IV, portanto 300, o século de Aristóteles,
se tenham espalhado por todo mundo grego. Atenas, apesar disso, continua sendo o centro de vida das
artes dramáticas e de toda a criatividade cultural da Ática, da Grécia.
Por isso não é de admirar que Aristóteles tenha elaborado a Poética em Atenas. Mas onde? Em
que época? Na efervescência política e cultural do domínio da Macedônia. A morte prematura de
Alexandre que o levou a fugir de Atenas para evitar perseguição, essa morte desencadeou, digamos, um
processo de definhamento, de diminuição da atividade de pesquisa, de orientação e do ensino de
Aristóteles. Nessas grandes Dionisíacas, a efervescência a política vai, aos poucos, levar Aristóteles a
decidir-se por dar uma orientação nova às várias produções artísticas de sua época, de seu tempo, isto é,
às artes cênicas, depois às artes poéticas, e se vê que, em Aristóteles, a palavra Poética tem um sentido
diferente do nosso sentido usual hoje, então Poética diz todo e qualquer arte que tem como substrato e
como base de sua criatividade uma narrativa de vida, seja comunitária, seja individual, seja singular. Por
isso, apesar de ter o nome de poesia, o poema de Parmênides para Aristóteles não é poesia. Por quê?
Porque o poema de Parmênides não trata de uma narrativa, de peripécias de criação de vida individual e
social. É um poema filosófico. Para Aristóteles não pertence a um gênero da Poética.
Com o domínio da Macedônia, uma nova necessidade política exige outra maneira de se discutir,
de se promover o lugar, a função e o papel das artes em geral, e das artes poéticas em particular, na vida
da cidade e do império. Esse era o projeto de Aristóteles. Se Felipe tinha, portanto, inaugurado e
Alexandre vinha expandindo a hegemonia da Macedônia, cabia a Aristóteles a missão de substituir o
domínio da cultura grega, conduzido esse domínio pela academia de Platão com sua filosofia, e de
orientar novas e diversas áreas da vida e da produção cultural do helenismo nascente, através do novo
projeto. E é isso que reflete a criação da Poética de Aristóteles. Na Grécia, somente Atenas oferecia
disponibilidade de material de textos, de peças, de eventos, que proporcionavam uma audiência e uma
expectativa social para uma outra teoria da tragédia, da comédia e dos demais gêneros artísticos, que
viessem a substituir a crítica que Platão tinha feito às artes poéticas. Por isso, do ponto de vista do estilo
e da composição, a Poética de Aristóteles apresenta todas as características de uma obra, como eu falei
aqui já, acroamática )(2), isto é, uma obra que é apresentada como que oralmente e se registram

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apontamentos sobre a apresentação oral. É por isso que ela apresenta uma composição ultra concentrada
e um modo tumultuado de estilo. Para explicar essa situação da Poética se admitiu ao longo da história de
se tratar de apostilas sem a orientação de Aristóteles, o que é quase impossível de ter ocorrido.
Dizer que o tratado não proveio das mãos de Aristóteles, mas de anotação de outras pessoas, de
discípulos, e que faria parte de um manuscrito desconhecido, perdido, isso não faz justiça nem ao estilo,
nem a criatividade, nem à profundidade das questões levantadas, apesar da fragmentação, na Poética de
Aristóteles. O estilo e a nomenclatura, bem como o espírito e a maneira de pensar, são tipicamente
aristotélicas. O que também significa que, comparada com as outras obras de Aristóteles, reflete uma
integridade, uma integração e uma fidelidade a maneira de pensar de Aristóteles. Quem, pois, se der ao
trabalho de atravessar a apresentação externa e penetrar, não no dito das linhas, mas do que constituem
os problemas e o desafio das entrelinhas, logo percebe o grande trabalho de articulação e de penetração
no essencial do tema que se propõe discutir a Poética, que é um tratado pequeno mas de grande e
profunda articulação de questões. Sendo por isso um escrito acroamático (2), a Poética é um conjunto de
desafios para o pensamento da posteridade histórica. No início Aristóteles vai anunciando, do capítulo
sexto em diante, que se ocupará primeiro da tragédia, deixando a comédia e a epopéia para depois. Só que
esse depois nunca houve. Ele não voltou mais para cumprir aquilo que tinha prometido. Assim na
Retórica Aristóteles nos remete para uma investigação do que é o cômico na Poética e diz que essa
discussão do cômico ele vai tratar na segunda parte da Poética, que não existe, quer dizer, que não se
conservou. Não é que ele não elaborou, não se sabe se ele elaborou ou não, sabe-se que não se dispõe do
texto. Falta por isso qualquer teoria do cômico, no texto conservado da Poética, na lista dos escritos de
Aristóteles do período helenista a Poética consta de dois livros dos quais só a primeira metade
sobreviveu. Nós não dispomos de nenhum manuscrito da segunda parte, do segundo livro. Da comédia e
da poesia jâmbica restaram apenas algumas referências e algumas remissões esparsas em autores
posteriores. Também sente-se a falta de uma discussão mais aprofundada do conceito tão importante, na
tragédia e na comédia, do conceito de cátarsis, da catarse. É um conceito médico. Aristóteles era filho de
um médico, então ele tinha formação de médico, além de formação de física do tempo, ele tinha formação
de biologia e de medicina. E ele vai usar esse termo médico catarse, que é purificação, é um purgante,
uma purgação, para exprimir e dar de novo um sentido político e social à tragédia e à comédia,
contrapondo-se à crítica de Platão de que tanto a comédia e a tragédia quanto a poesia desempenham um
papel negativo na formação do caráter do cidadão.
Uma outra questão é se Platão ensinou mesmo isso. Qual é a questão? A suposição que se fez é
de que Platão, na República, nos livros II, III e, sobretudo, X, ele está discutindo o lado negativo da
poesia, dos mitos e das emoções. Nessa suposição, largamente difundida, o estranho é o seguinte: diz-se
que Platão é contra os mitos, nessa maneira de ler a República ele é contra os mitos, dizendo que os mitos
são deletérios, são destrutivos. No entanto, ele mesmo cria mitos, ele mesmo elabora mitos, ele mesmo
usa os mitos. Como é que, sendo contra mito, Platão é um dos grandes mitógrafos e um dos grandes
pensadores dos mitos? Portanto, temos aí, pelo menos, uma indicação de que alguma coisa não está
batendo, alguma coisa não está sendo coerente. Outra coisa que se diz também é de que Platão teria
proposto a exclusão dos poetas da cidade, da convivência política, porque a poesia é uma deturpação do
perfil e da fisionomia do verdadeiro político.

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No entanto, Platão nos seus diálogos é dotado de um poder poético extraordinário. Então,
novamente, há uma tensão e um conflito entre a maneira de entender a proposta de Platão e o efetivo
exercício da criação dos diálogos de Platão. O testemunho mais claro das obras de Aristóteles dessa
questão, dessa disputa, encontra-se no livro oitavo, no capítulo sétimo da Política de Aristóteles. Para se
entender a Poética não se pode prescindir nem da Política nem da Retórica, pois o questionamento e os
problemas e os desafios são os mesmos da Poética. Aristóteles, nessa passagem da Política, ele se ocupa
com o efeito catártico de quê? Da música, isso é, a música tem também um papel e uma função de
transformação e de purificação para aqueles que se deixam arrastar e mobilizar e como que vibrar com as
várias possibilidades de manipulação da música.
A passagem de Aristóteles diz o seguinte: “O que entendemos por catarse vamos expor de
maneira genérica agora na Política, por que essa catarse é indispensável para a vida política, para a vida
dos políticos”. Isso representou na história do Ocidente a maior contribuição, dada por Aristóteles para o
desenvolvimento da política, isso é, da vida política, da ação política e não do ordenamento e da
organização legal, institucional, em nome da política. Nós vivemos hoje (2007) numa época em que,
nessa tensão entre a organização legal da política e o desempenho dos políticos, há sempre uma
contradição e uma tensão de exclusão em que se pretende subordinar aos interesses dos políticos a própria
legislação, a própria legislatura e a própria constituição que rege a ordem das várias comunidades.
Aristóteles depois diz: “... nos livros sobre a Arte Poética, vamos dar maiores esclarecimentos do
que é catarse. Mas quando se corre para Poética à procura desse esclarecimento que ele dá sobre
catarse,ele apenas dá uma definição de três linhas, não diz mais nada. Significa que o que ele prometeu,
ou ele cumpriu na segunda parte e se perdeu, ou ele não teve tempo de cumprir a promessa que fez.
Portanto, nós não sabemos se ele cumpriu ou não cumpriu a promessa. Aristóteles é, no entanto, o
primeiro que dedica um escrito especial à poesia. Não se refere a nenhum autor ou obra em particular, que
ele aceitasse, que ele defendesse, cujo valor ele propunha, ou cujo desvalor ele negava.
Toda Poética tem uma localização e conjuntura histórica, tanto interna quanto externamente,
embora, de maneira diferente, ambos os aspectos dizem respeito a Platão. Toda obra de Aristóteles,
sobretudo em sua parte crítica, está numa polêmica e numa discussão com as atividades, a criação e a
produção da Academia. O leitor de hoje deve por isso familiarizar-se com essa situação histórica e social
que se faz presente e rege toda a época de Aristóteles, para sentir toda a problemática e todo desafio que
esses escritos encobrem. Claro que numa perspectiva histórica, as novas necessidades e os novos
problemas fizeram com que se acentuassem e se escolhessem determinados desafios e encaminhamentos
de preferência a outros, o que, digamos, exige um conhecimento aprofundado de Aristóteles. É necessário
fazer um esforço de penetrar no pensamento de Aristóteles, dentro do contexto sócio-político e cultural de
sua época.
A maneira de se entender e interpretar o tratado cifra-se numa compreensão que se tornou
famosa como a teoria, ou a doutrina das ideias de Platão. A maneira de Aristóteles propor uma
interpretação da doutrina da teoria das idéias de Platão se tornou paradigmática, isso é, toda posteridade
histórica seguiu essa leitura e esse entendimento proposto pela crítica de Aristóteles. Outra questão é se é
possível entender o que Platão chama de Eidos, de Ousia e de Idéa, somente dessa maneira. Ou se é
possível entender as colocações de Platão nos Diálogos de maneira diferente daquela que propôs

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Aristóteles na sua crítica à teoria das idéias, isso é, pode-se até dizer: entendida como Aristóteles
entendeu a teoria das idéias, Platão não foi o autor da teoria das idéias.
Portanto, não se pode atribuir a Platão esse entendimento das idéias. Vou dar um exemplo:
geralmente se entende pela teoria das idéias que a idéia é uma coisa, é um real dotado de imutabilidade,
de universalidade, dotado de poder, de verdade e de conhecimento que, comparado com as coisas
sublunares ou as coisas que existem na terra, que são sempre mutáveis, que são sempre singulares e
limitadas, as idéias representam uma orientação que paira sobre a história, as condições de vida e
desenvolvimento das comunidades e dos indivíduos humanos. Essa maneira de entender a doutrina das
idéias de Platão é que constitui o grande desafio. Essa é a única maneira possível de entender a doutrina
das idéias de Platão? Ou existe uma outra maneira muito mais rica, muito mais criativa, do que esse
modo de entender? Dando um exemplo: quando nós falamos de ideal, é um derivado do termo de Platão
Idéa. Então nós falamos, ideal de quê? Nós falamos da cidade ideal, da universidade ideal. Aí podemos
perguntar: onde é que existe a universidade ideal? Responde-se citando a passagem do Diálogo de Platão
em que ele fala de hyperourânios topos, o lugar supra celeste. Uranós é o céu, lá no firmamento, hiper,
acima de, e ourânios, adjetivo derivado de Ouranos, hyperourânios significa exatamente: supra-celeste.
Portanto, existem como coisas reais, nesse lugar acima do céu, as idéias. Uma pluralidade de idéias. Só
que não se leva em conta de que Ouranos/Urano é um mito, é uma divindade, é uma força. Platão sempre
entendeu os mitos como uma força histórica e não como uma força supra-celeste. Então Ourânios topos
significa o lugar da fertilidade.
Platão está dizendo que as idéias representam o lugar da fertilidade, da criação histórica, social,
individual dos homens, da humanidade. Esse ourânios é derivado de Ouranos. E esse hyper não é
locativo, não é um lugar do espaço, do espaço cósmico. Esse hiper tem também o sentido de
intensificador, significa uma super fertilidade. Então é uma fertilidade dotada de um poder de fertilização
que não tem limite, não tem fim. Uma outra maneira de entender a teoria das idéias de Platão é de que as
idéias seriam as totalidades fechadas. Platão, no mito de Er, no final da República, está justamente
chamando atenção de que nenhum mito pode ser fechado. O mito já é um hiato, é uma hiância, é,
portanto, uma abertura dinâmica que, em cada situação, abre-se para novas possibilidades de
relacionamentos e de inter-correlação.
Segundo essa maneira de entender a doutrina das ideais de Platão, que se vai tornar objeto da
crítica da Poética de Aristóteles, o mundo sublunar seria híbrido, pois seria composto de dois mundos: o
mundo sensível das sensações, das emoções e das percepções dos indivíduos; e o mundo inteligível das
essências, dos perfis e das idéias imutáveis. Ambos os mundos pertenceriam à realidade, variando apenas
a natureza e o grau de sua realização. É aí que entra a maneira de Platão apresentar o que é a mímesis.
Logo no começo do décimo livro da República Platão diz: toda poesia não é mimética. Toda, o que
significa, a poesia inteira, a totalidade da poesia não é mimética. Ela, para ser mimética, precisa realizar
criatividades, articulações criadoras que possibilitem o inter-relacionamento e as dimensões de
articulação da convivência humana.
Por isso, entre os dois mundos se dá uma relação que Platão diz, marcada pela participação ou
meteksis e pela imitação ou mímesis, para transpor e manter o hiato e a separação ou chorismós, a divisão,
a separação, o hiato. Então, é preciso novamente acompanhar a República capítulos II, III e X para seguir,

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passo a passo, o entendimento e a interpretação da Poética de Aristóteles. Não posso fazer isso aqui
agora, pois demandaria todo um curso em que se faria um trabalho de ourivesaria de cada texto,
comparando a República e a Poética de Aristóteles.

(1)Leneias: Leneanas[1] (em grego antigo Λήναια), Leneias ou Lêneas eram um festival anual
com competição dramática, mas um dos festivais menores de Atenas e Jônia na Grécia
antiga. As Leneanas ocorriam (em Atenas), no mês de Gamelion, que corresponde
aproximadamente a janeiro. A festa era em honra de Dionísio Lenaio. Lenaia provavelmente
vem de lenai, outro nome para as mênades, as mulheres adoradoras de Dionísio. (Fonte:
Wikipedia).

(2) Acroamático. A Poética (em grego antigo:Περὶ ποιητικὶς; em latim:poiétikés), provavelmente registrada entre
os anos 335 a.C. e 323 a.C. (Eudoro de Souza, 1993, pg.8), é um conjunto de anotações das aulas de Aristóteles sobre
o tema da poesia e da arte em sua época, pertencentes aos seus escritos acroamáticos (para serem transmitidos
oralmente aos seus alunos) ou esotéricos (textos para iniciados). Estes cadernos de anotações eram destinados às
aulas do Liceu e serviam de guia para o professor Aristóteles, anotações esquemáticas destinadas a serem
desenvolvidas em suas aulas e não para serem conhecidas através da leitura. Praticamente tudo que se conservou de
Aristóteles faz parte das obras acroamáticas. (Fonte: Wikipedia).

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