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Estudos de Caso em Psicopedagogia da escuta a escrita ‘eng eoueay (8810) oyuerse9 Neste livro, 0 foco é 0 Estudo de Caso como um recurso precioso que integra, ao mesmo tempo, a forma individual das manifestagées da dificuldade de aprendizagem e a forma pessoal e criativa de psicopedagogas em aco, na tentativa de (e)criar 0s instrumentos e explorar os elementos muitas vezes imprevisiveisno desenrolar da pratica psicopedagogica, A producao textual cuidadosa das autoras teve o incentivo e a fevisso criteridsa dosstextos\exetutada pela Comissao, Gientifica do Conselho Nacional da ABPp (Gestéo 2014 a 2016) ‘que considera a relevancia de instigar a producao de trabalhos que integram a preocupaco em consolidar uma atuacao profissionalrespaldada do ponto de vista teérico, metodol6gico € ético, contribuindo para a reflexao da pratica e formacao qualificada depsicopedagogos. Els0sepedoajsq wis Osea ap sopn}sy emt Galedra Matos de Franga Silva Marisa Irene Siqueira Castanho (Organizadoras) Estudos de Caso em Psicopedagogia da escuta a escrita ‘Ana Cecilia Capistrano Bezerra ‘Aires Costa Debora Silva de Castro Pereira Eliene Marla Viana de Figuolrédo Pierote Fabiani Ortiz Portella Graga Maria de Morals Aguiar e Siva lara Calerao Wana de Oliveira Carvalho Luedy Pereira de Sousa ‘Mavia Teresa Messeder Andion Rogina Rosa dos Santos Leal Rosa Marla Junquolra Selechitano pea ] j | WK AAs { OD , Ose) itor Estudos de Caso Snbaciecusecre acy da-escuta.a escrita Re ae eae BE 1. AMENINA QUE VEIO DO SUL: O SUPORTE FAMILIAR EM UM PROCESSO DE INTERVENGAO PSICOPEDAGOGICA Gale Mazo de Franc Silva Rona Maria JungueinaSeecitana Introdugaio Hé em cada um de nés uma pergunta que nao cala, De onde eu vim? Pois, € esta pergunta fundamental que dé inicio a busca de saber de uma crianga. A investigagio para o estudo de caso aqui apresentado se alicerga em trés grandes questionamentos: A busca de saber, a ansia da verdade, o manejo familiar nas {questoes referentes & aprendizagem, a adocio na perspectiva legal e simbélica. LA intervengio € psicopedagégica & perpassada por uma escuta psicanalitica® A menina no caso serd chamada de Isabella e, mesmo chegando para a intervengio Psicopedagdgica com queixas de “dificuldades generalizadas” ¢ trazendo um pos- sivel diagnéstico de Transtorno do Deficit de Atencio e Hiperatividade ~TDAH, Isabella vai ao longo da intervengéo demonstrando que tudo que precisava para se autorizar a aprender era saber sobre sua origem e, para iss0, 0 suporte familiar tornou-se imprescindivel. Descrigiio do caso A menina era bela e aqui se chamaré Isabella. Adotada por uma familia muito rica. Tinha tudo que o dinhciro pode comprar. Da sua histra, 96 sabia que veio do Sul, Desde os primeiros anos escolares, teve acompanhamento de psicélogos. Chegon para mim na quinta série. Para entrevistas preliminares (ananmnese). fo- ram necessirias duas seg6es. Toda vida escolar foi cercada de reforgo pedagégico. (8s pais queriam os bons resultados contratavam bons professores particulares Isabella nunca estudou 86, até os paradidticos eram lidos por seus professores de reforgo, mesmo assim, notas sempre na média e muitas abaixo da média. “Dif- culdade generalizada’ diziam os pais. ‘Mas, na quadea de ténis, seu desempenho era perfeito. Jogava como quem danga com rigor e arte ¢ competéncia, Isabella aceitou muito bem as sessbes de Psicopedagogia na fase de avaliagio demonstrando resisténcia na intervencéo propriamente dita. A familia insistia muito para que eu confirmasse 0 diagndstico de TDAH, hipétese trazida pela cscola. Foi dificil livrar Isabella do stigma do TDAH. Uma avaliagio apurada ‘© uma intervencio psicopedagégica perpassada por uma escuta psicanalitica me Dower deta 23 autorizavam a dizer que Isabella tinha mais possibilidades a demonstrat, que o \q_ modo de falar ¢ o olhar de Isabella poceriam fazer toda a diferenga e que todo © seu desinteresse pelos estudos era resultado do manejo familiar na educagso integral, no acompanhamento escolar e no descjo negado de saber sua origem... Delegar a terceitos 0 acompanhamento escolar foi sempre uma pritica dos pais, assim Isabella nunca assumiu responsabilidades para si sobre seus estudos, nunca se autorizou nem a pensar sobre o que deveria levar para escola no dia seguince Estive com Isabella durante trés anos, tempo suficiente para conhecer mais de perto a dinamica familiar e compreender que o amor dos pais por Isabella ain- dda estava em um nivel de muita recompensa,¢ a imaturidade da mae nao a permic tia aceitar a menina com suas limitagbes. Isabella nfo era a menina idealizada pela mie ao ir buseé-la no Sul, Isabella estava Tonge de ser a menina estudiosa, cama, enfeitada do inicio da festa até 0 fim. Isabella cra uma crianga real. Expressées como: Bit ndo sei! Eu ndo quero saber, fariam parte do seu discurso quando alguma tarefa a desafiava. Em uma dessas situagées criadas na clinica, asinalei olhando ppara ela segurando firme o meu olhar no dela: Por isco vocé se recusa at aprender! Continuet: O que voce desea saber que néo sabe? Isabella desabou em um choro & disse: Eu no si, nem quero saber, eu quero saber de onde eu vin... Onde éesse lugar xo Sul. Bstévamos no final de junho. Em julho, seus pais foram 20 Rio Grande do Sul e contaram o que sabiam sobre sua histéria, O atendimento psicopedagégico com a escuta psicanalitica foi permitindo »,, que os fantasmas que rondavam a historinha da Isabella c de scus pais fossem se \( diluindo no tempo presente e dentro da realidade. Eoos dle uma menina adotada, ¢, desinteressada, molec, revoltada, desorganizada, burra, sem vaidade, eram trans. formados em uma menina com TDAH. Mas como ser desatenta e desinteressada s6 na escola e, na quadra de ténis, ser a melhor atleca ganhando competigées em nivel nacional? Esta intervengio durou trés anos, tempo em que Isabella adquiriu 0 supor- te pealayegivo e psicopedagégico capaz de fazé-la estudar sozinha dispensando a “equipe” de professores particulares; tempo de encaminhar os pais para um atendimento especializado pata repensarem seus conflitos em telagio 4 adocdo de Isabella; tempo suficiente para que os pais liberassem Isabella para aprender por ‘conta propria ainda que as notas nao fossem as melhores; tempo em que Isabella traria para a sala de aula a mesma autonomia que sempre dispensou i quadra de ‘nis; eempo suficiente para livra Isabella do estigma do TDAH. Py [90050 cAs0 te PCOPEDAG OA a Reflexées tedricas Isabella, a menina que veio do Sul, queria saber... Mas, ina na sua histéria as marcas daquilo que foi encoberto, que nio foi representado e, assim, ela nio podia saber e nao podia aprender. Na eliniea psicopedagégica, com & posivel abservat em muitos cos que, ‘quando aspectos fundamentais da his- ‘ria do sujcito sio escondidos, podem se constituir como um segredo provoca- dor de prejuizo na aprendizagem. 1G48 com problemas de aprendizagem, Os segredos familiares, sejam sobre filhos adotivos, doengas ou situagées consideradas vergonhosas, sio estabelecidos geralmente em nome do amos, em nome da protegio. Os prejuizos simbélicos produzidos pelo segredo, por sua condigao de irre- presentvel, comprometem em diversos aspectos a constituigao psiquica da crian- ‘ee sua aprendizagem, Debieux (2001, p.125) assinala que, para os pais, a questio sobre o que de- ‘vem transmit aos filhos sobre os acontecimentos familiares vai além das dificul- dades de cada familia, Basta observar; lembra a autora, 0s segredos, a supressio ou distorgio de dados encontrados com frequencia em temas, como adocio, morte, doencas, defeitos ou questées de ordem moral, como delitos, injusticas, infide- lidades ¢ tantos outros. Assim, entre 0 dizer e © néo dizer, muitos pais adotam & solugio de nao falar sobre o passado doloroso. A autora assnala que é importante lembrar que os pais estio submetidos aos processos inconscientes e no sabem, com clareza, 0 que nos acontecimentos 0s faz calar. E dificil nio pensar e nfo reconhecer aqui as angtstias pelas quais passam ‘0s casais que, como os pais de Isabella, se recusam a contar & crianga sobre suas otigens e a “percorrer’ com cla o caminho de busca e construgio da sua histéria pessoal caso ela queira. Entre dizer € nio dizer, entre a verdade velada ou exposta, a solugio adotada pelos pais de Isabella foi a de no falar sobre o seu passado. Os pais pparecem temer (0 quedlizer as dors filha ~ dlespripios ou da fama ~ poss levilos a per dlero contol, a autoidade ea dren das norma ideas valores que pretend transmits, uma vex que o efeto dese dizer sobre filho nfo & prevsivel (..) Nio dizer € solugio que encontram para o que supéem que posa desir ofiho esua relagio com eles...) Come forma de evita enfrenara frida nareisica ex angistia «que tas temas desencadlam, evtam falar de ua isa, na suposgfo de estate poupando seus ilhos daquilo que temem. (DEBIEUX, 2001, p. 127) Deer bets 25 ‘A busca do saber humano, segundo Alba Flesler (2012), se inicia com uma negatividade em relasio ao saber consabido, Fica-se sabendo que nao se sabia “Tamanha descoberta impulsionara a erianca, se nio estiver assustada demais — esclarece Freud — a procurar a fonte, e a fonte do saber para a crianga sio os pais. Ele sio o primeiro emblema, tanto da crenga quanto da suposigao do saber (FLESLER, 2012, p.147). ‘Aos seus pas, a crianga itd direcionara pergunta: De onde eu vim? Pergunta que seabre para o desejo de conhecer, de descobrir, de aprender ¢ aprender 0 mundo, ‘Ao nao dizer, os pais parecem revelar que no suportam arcat com erros ¢ fa- thas, seus ou de outros e procuram se manter na posigao de pais ideas, pereitos ‘Assim, temos, de um lado, os pais de Isabella, angustiados com “o fato” de que sua filha nao corresponde a0 padrio de crianca idealizado por eles e nio ‘contam a filha a histéria de sua origem ~ essa histria € mantida em segredo, De outro lado, temos uma menina que nao conhece sua histria ~ que sabe apenas “que veio do Sul”, mas nem sequer sabe onde & 0 Sul. Ela sabe e pressente que hi um segredo a esse respeito. Flesler (2012, p. 148) afirma que Freud estava inclinado a pensar que as ‘espostas dos pais decepcionam os filhos por causa do engano, les "eet com hisérae” € por iso perdem a confiang2. Antes consideradosfonte de cad 0 sabe, cle decaem para 0 lugar da descrenga © as criangas continua sua pesquisa aravés da operas de tranferéneis,procurando educadores, ures, instrutores alee analistas, © tempo das perguntas do sujeito na infanca uaa fo germe da transferéncia que, jagida inicialmente com 0s pais, pode mais tad se cnlagar a outtas pessoas. (FLESLER, 2012, p. 148) Coincidéncia ou nio, a queixa expressa pelos pais quando procuram a psico- pedagoga é dificuldade de aprendizagem de Isabella E interessante observar o contraste evidenciado pelos pais entre o desempe- tnho escolar de Isabella o seu “desabrochat” na quadra de tenis. Na quadra de ténis, © movimento de Isabella em diresio & utilizagio de suas poténcias, de sua criatividade, de sua capacidade de aprender ¢ mostrar 0 ‘que aprendeu aponta para um aspecto importance: a capacidade de tesilié de Isabella Mas & possivel ir além da questéo da adogio para se pensar sobre a conexiio entre o segredo familiar c a possibilidade de Isabella poder saber ¢ aprender. “Tais questées ¢ rflexées sio importantes para apontar a fragilidade ea arbi- trariedade do segredo e o quanto as questées ligadas 4 adogio to facilmente delas se vem reféns % s1U005 DE AsO EM PSICOREDAGOGIA Na literatura, é posstvel observar a repetigdo de tramas em que segredos far siliares imobilizam a crianga e dificultam a sua aprendizagem, A imposigio de segredos familiares ~ de qualquer nacureza e, entre eles, do segredo da adogio ~ tem raizes histéricas. Scus efeitos repercutem na dindmica da relagao entre pais ¢ filhos € levam a uma reflexio sobre a sua fungio. No caso de criangas adotadas, a associagao entre o segredo € 0 estigma da adogio é apreendida intuitivamence pela crianga que supde que, se nao se pode + saber algo sobre si mesma, é porque isto deve ser ruim. E importante observar que a dificuldade de Isabella recai justamente sobre © conhecimento, E assim, algumas perguntas se impoem: O que, de fato, essa crianga no pode ser? O que precisa ser mantido na ignorancia? De qual saber no se pode conhecer? Do ponto de vista da Psicopedagogia, uma crianga néo pode ser compre- endida fora do seu campo familiar. A sua modalidade de aprendizagem, assinala Fernandez. (1991), se constrdi com base no modo como os pais a reconheceram e desejaram como sujeico que aprende e na significacao que o grupo familiar dé a0 ato de conhecer. -Aautoraafirma que a escuta clinica do discurso, da comunicagio eda lingua- gem estabelecida na familia possibilita a compreensio da modalidade de apren- dlizagem do sujeito. E possivel observar que o tipo de comunicagio que Isabella mantém com seu grupo familiar se repete, inconscientemente, nas sicuagoes de aprendizagem escolar e fica ainda mais explicito que cla nio deve ser desvinculada da vida e muito menos ficar restrta ao aspecto escola, arma Fernandez (1991), Isabella pode entender um contetido escolar, mas nao pode mostrar se aprendeu 0 que aprendcu, ‘Como todas as criangas, Isabella est inscrita em uma corrente familiar da qual é um elo e qual se submete Sou desenvolvimento psiquico e sua aprendizagem se constrocm na relagio familiar ¢ em relagio aquilo de que é herdeira e que é inconscientemente trans- mitido a ea, Por causa de tantos “nao ditos” dos pais, foi necessirio que a anamnese ocor- resse em duas sessbes. Na primeira sessio, a mae falava mais que 0 pai, parecia esconder a verdade sobre Isabella dentro da bolsa, pois se agarrava a este objeto mesmo que eu insistisse que a bolsa fosse colocada em uma mesinha a0 lado, ‘Toda a fala reference & menina dizia apenas o que Isabella nao era capaz. de faze. © discurso da mae estava essencialmente preso a0 sintoma da filha. “Ela no faz. as carefas, ea esconde as nota, cla bagunga na sala, cla nao organiza a mochila, esquece 0s livros”,Como que de sibito o pai toma a palavra e diz: “Dra, Ela nao € nossa filha", Neste momento, a mae que, até enti parecia mais falante, se cala, oer sete a respira, enche os olhos de ligrimas, torna-se frigil, pequenina e diz: “Fu sempre quis ter uma filha, mas Deus no me deu, entio fui buscar Isabella bem longe pra que nunca ninguém descobrisse”. Faco um acolhimento a esta confissio tio softida, encerro a sessio dizendo: Voltem amanha, amanha falaremos mais sobre afitha de vocés (O vinculo estabelecido entre pais efilhos ~ adotados ow nao — se consti no complexo jogo de sentimentos de fliagio e pertenga. Para Dolto A adopsio & uma adopsio por duss linhagens nao s6 por dois pais. Aceavés ianca ndo deve ser a crianga doida, & cambém verdade dos pais, € ums sociedade que di lugar a uma coisa desses pais, Redusi-la a este estado po ‘no cao dos pais biolégicos se, no scu contentamento de 2 cer no veem senéo ela, .. A adapgio nio significa poste bem como 9 ilho biolégico & posse dos pais bioldgicos...E bem iso que torna uma crianga psicdtica sero cen: ‘0 dos pais adoptiva, ser 0 substicuto do flho e nao o seu filho, (DOLTO, 1999, p. 141-142) © trabalho psicopedagégico de base analitica supde a implicagio dos pais com o sintoma, No caso Isabella, a escuta foi feita @ partir do modo como a me- nina formulava suas dfculdades de aprendizagem ¢ sua demanda, Aavaliagio ea incervencio psicopedagdgica foram marcadas pelo que ¢ dito, ‘mas foram, principalmente, os nao dicos nas entrelinhas do que era dito que nortearam © acolhimento do caso Isabella. Os conhecimentos © a experiéncia da clinica fandamentada na teoria psicanalitica mostraram um bom suporte da clinica psicopedagégica na investigagio e na busca da compreensio do significado do problema de aprendizagem de Isabella, Era preciso “escutat” Isabella a partir do modo como formulava a sua de- ‘manda. Escutar o sintoma ~a dificuldade de aprender, de mostrar o que aprendew — como ponto de partida para compreender como Isabella “pagou 0 preco” para ‘manter-se na condigio de desejo dos pais, embora ela sentisse que nao correspon- dia a0 desejo dos pais, um desejo que a imobilizava e que institufa as regras de filiagao e alianga familiae Vale lembrar ¢ considerar, aqui, um pressuposto de Aulagnier (1976) de que 6 segredo funciona como uma condigio para se poder pensar pressuposto de Aulagnier (1976) se contrapée ao significado de segredo ‘mais comumente considerado em Psicandlise, De modo geral, 0 segredo sobre aspectos importantes da histdria da crianga se constitui em uma das manifestagSes dde-um nao dito que tenderia a marcar de modo traumstico e indelével 0 processo de constieuigio da subjetividade da crianga, uma vez que tia dela a possibilidade de conhecer a sua propria histéria 28 s1y005 0 480 em psicoreaAGOGIA » e deixar a crianca experimentar o prazer ¢ 0 jogo sol Segundo Aulagniet (1976), a perspectiva de que os pais estejam ocultando pecas do quebra-cabeca de sua origem e hist6ria autoriza a capacidade que a ctian- sa adquire — qualquer crianga, adotada ou nao ~ de deliberar sobre os pensamen- {os que deseja ou nao comunicar, uma conquista importante no desenvolvimento infantil. Aulagnier (1976) confete 20 segredo um grande valor na constituigio do sujeito, uma condigéo para a formagio de um espaco psiquico cujo acesso a0 ‘outro poderia ser negado. Além de levar a mie a aceitar que nem sempre sabe aquilo que seu filho pensa, o segredo acaba por expé-la & necessidade de aprender rio do pensamento e do povlerdectilo. O segedo, compreenid deste modo, inaugara uma primeira cexperiéncia de privacidade da crianga e, nesse sentido, pensar seerctamente a afirmagio de um ato de liberdade. Reanick ¢ Salem (2010, p. 94) entendem que essas duas dimensées do se- grec nao se dispdem dle modo excludente, mas “tratam de experiéncias bastante distinease dizem respeito a dimensoes de impacto clinico extremamente relevante ¢ firequente cujos impasses produzidos na relagio transferencial com os pacientes dificilmente encontram solugées ficeis ou saidas simples" Isabella ndo vive a experiéncia de um segredo escolhido por ea, mas os efeitos de um segredo imposto. Nao usufrui da capacidade de guardar para si seus pré- prios pensamentos. Sofre, 0 contritio, 0s efeitos dolorosos de um segredo cuja divulgagio Ihe € interditada: a revelagio de sua origem, de sua histéria, Privada cde uma parte fundamental de sua historia, Isabella softe sem que seja permitido a cla conhecer a verdade que percebe de mancira sutl e, assim, ela parece sentir-se despossuda de sua propria histéria, Faltam a ela palavras para traduzir sua experiéncia, Isabella se sente estranha, como se nio pertencesse 20 mundo familiar e tem dificuldade para aprender os contetidos escolares. Para uma crianga conhecer a sua histéria, é extremamente importante na sua constituigao subjetiva € na construgio da sua aprendizagem. Nao favorecer a possbilidade de saber sobre si traz também dificuldade de a crianga encontrar recursos para se defender efetivamente daquilo que nio & dito O vanio de signi- ficagio e de sentido provocado pela imposicio do segredo ressalta a importincia da linguagem nesse processo, Trata-se de um sofrimento sem palavras, que tem um cariter patogénico dado justamente pela participagao de Isabella em uma situagio real em que wma parte importante de sua hist6ria Ihe é ocultada, mas da qual ela esté “informada” ‘de maneita inconsciente. V Como afirma Mazzarella (2006, p.102), ¢ preciso ter algum acesso & origem para se atribuir um sentido & existEncia, para se construir uma histéria propria e, ‘40 mesmo tempo, inscrever-se em uma genealogia. coe 29 Deste modo, quando se trata de um segredo imposto 20 sujeito, 0 trabs- Iho clinico tem como desafio a reconstrucéo de uma narrativa capaz de integrar 19s elementos finndamentais da histéria familiar para que sujeito, posicionado liante de sua ascendéncia, construa ao mesmo tempo um pertencimento ¢ uma existéncia singular. ‘A escuta do discurso de comunicagao ¢ de linguagem estabelecido na familia e pela familia possibilicou compreender a modalidade de aprendizagem de Isa- bella © 0 tipo de comunicagio aprendido na relagio que ela mantér com os pais no complexo jogo de filiagao e pertencimento. A sensibilidade para a escuta no caso de Isabela é uma marca no trabalho psicopedagsgico. O psicopedagogo deve apresentar-se como alguém que pode acolher, compreender e esperar, alguém que pode entender de historias de medos, de dores, de nao saber, de nao poder saber, de nio poder aprender sobre si, sobre sua histéria © sobre as contetidos escolares. A escuta psicanalitica possibilitou a Isabella estabelecer um vinculo de transferéncia com alguém com capacidade de zc revere, que pode acolher, conter € dar significado as suas comunicagbes ¢ experi E importante considerar 0 tempo do trabalho psicopedagdgico até que Isabella conseguisse expressar o scu desejo. O desenvolvimento de uma re- lacdo de confianga na possibilidade de ser acolhida, “escutada” © compre- endida, bem como a oportunidade de viver novas experiéncias de aprendi- zagem, de correr riscos de forma mais segura e expressar cada vez mais seus sentimentos, sua capacidade simbélica, permitiu que Isabela explicitasse de ‘maneira muito clara o seu desejo: Eu quero saber de onde eu vim... Onde é este lugar no Sul. Enfim, poder saber sua origem abriu espace para uma nova experiéncia de aprendizagem e para a possibilidade de aprender da experiéncia e com a expetiéncia emocional. Consideragées finais Foram trés anos do caso da menina que veio do Sul, Isabella. Durante esse tempo, seus pais foram chamados vitias vezes ou vinham espontancamente quan- do seus fantasmas e medos de perderem 0 amor de Isabella os assatavam. Essa disponibilidade dos pais, a boa vontade de se posicionarem diante de Isabella ‘como scus pais legitimos, autorizando-se na sua fungio de pai e mac, faciliearam ‘muicas mudangas de atitudes em relagio a0 manejo da educagio de Isabella. Os pais foram encaminhadas a procurar uma terapia onde pudessem falar dos seus ‘medos, insegurancas e fantasmas em relacio 4 adocio. Posicionamentos sobre a adocio de Isabella foram fazendo movimentos que abririam a relagio entre pais, 30 styoas Be soem stcoPcoacooia filha e aprendizagem pa ago da Isabella tal como cla era em suas falta e possi menos cobranga e mais a lidades. Isabella foi vivenciando na clinica psicopedagégica todas as etapas. Sub- metendo-se aos instrumentos de testagens provas proprias da Psicopeda- gogia no momento de avaliagio, tais como: Anamnese, EQCA ~ Entrevista Operativa Centrada na Aprendizagem, provas projetivas elaboradas por Jorge Visca, Desenho Hist6ria concebido por Valter Trinca, papel de Carta de auto- ria de Leila Chamat, visita 3 escola e aos jogos. Uma intervengio rica em jogos pode facilitar a comunicagio dos seus desejos inconscientes. As testagens para produgio eriativa e a utilizagio da caixa de areia, tudo isso foi desenhando a0 longo desses trés anos uma sintese avaliativa que livraria Isabella do estigma de TDAH. O resultado final da avaliagio mostrou dificuldades nos aspectos cognitivos nas areas de linguagem ¢ leitura oral ¢ escrita bem como nos as- pectos socioemocionais a serem acompanhados, mostrou também que um redirecionamento dos hibitos de estudo se faria necessério. Como encami- nhamento foi preserito: Atendimento Psicopedagégico com viés psicanalitico e foi sugerido acompanhamento terapeutico aos pais. ‘Tiés anos se passaram nesse tempo, os pais viajaram até o Sul com Isa- bella, apresentaram para ela sua cidade natal, sua origem, contaram até onde sabiam, oferecendo a Isabella, mesmo a custo de muita dot, 0 “DIREITO DE SABER”. Hoje sei que Isabella cursa Administragao em uma conceituada tuniversidade da cidade onde mora c administra com maestria sua hist6ria, sua Vida, suas aprendizagens. aes eerta 31

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