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Cartografias da Pesquisa SD Sad ALOK Historia Sobre as organizadoras: ‘Ana Maria Monteiro é professora associa- da da Universidade Federal do Rio de Janei- ro, doutora em Educacao, mestre em Hist6- ria e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Desenvolve pesquisas sobre curriculo nas reas de Histéria e Educagdo, com foco em Ensino de Historia, docéncia, formacio de professores, histdria do curri- culo e das disciplinas escolares, saberes docentes e conhecimento escolar. Adriana Ralejo é doutora e mestra em Educacio pelo Programa de Pés-graduacéo em Educagiio da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desenvolve pesquisas na area de Histéria e Educa¢do, com énfase em Ensino de Histéria, atuando principalmente nos seguintes temas: livro didético, curriculo, processos de didatizacao eautoria docente. ‘0s Ultimos anos tém sido crescentes os debates sobre o lugar da Historia nas sociedades contemporaneas. Questdes acerca do Ensino de Historia, da producao do conheci- mento histérico, da natureza do oficio do historiadore deseu papel diante das demandas sociaisso temas que tém mobilizado diferen- tes setores da sociedade brasileira. Em fungo dessas questées e, ainda, coma implementacao do Mestrado Profissional em Ensino de Histéria (ProfHistéria) e apro- vagdo recente de uma Base Nacional Comum Curricular, reflexes sobre o Ensino de Historia e as pesquisas a respeito dessa rea tém ganhado cada vez mais relevancia. O que ensinar? Como ensinar? Ensino de Historia pode ser neutro? Essas perguntas tém mobilizado enormemente toda a nossa comunidade de professores ¢ historiado- res, € as respostas apresentadas expressam significativas divergéncias. Este livro, organizado por Ana Maria Mon- teiro e Adriana Ralejo, retine um conjunto de trabalhos apresentados no XI Encontro Nacional de Pesquisadores em Ensino de Histria (ENPEH) e de pesquisas de coorde- nadores de Grupos de Pesquisas em Didlo- g0 (GPDs) no mesmo evento. Seu objetivo principal consiste em oferecer um panorama do estado atual desses estudos, visando avaliar, problematizar e questionar: 0 que tem significado “fazer pesquisa” nessa érea? Quais os sentidos atribuidos ao Ensino de Hist6ria? Objeto de conhecimento? Campo de investigacdo/lugar de produgdo de conhecimento? Como tém sido enfrentados 0s desafios epistemol6gicos da contempora- neidade pelos pesquisadores dessa drea? Por apresentar um elenco de temas de tamanha importéncia, esta obra é uma contribuicéo das mais relevantes para todos aqueles que esto preocupados com © Ensino de Historia em particular e com a Educagio no nosso pais. Marieta de Moraes Ferreira Professora titular do Instituto de Histéria da UFR) Bolsista de produtividade do CNPq Ana Maria Monteiro — Adriana Ralejo (Orgs.) Cartografias da Pesquisa emENSINO de Historia Mauad X Copyright © by Ana Maria Monteiro, Adriana Ralejo et al., 2019 Direitos desta edigao reservados MAUAD Editora Ltda. Rua Joaquim Silva, 98, 5° andar Lapa — Rio de Janeiro — RJ — CEP: 20241-110 Tel.: (21) 3479.7422 www.mauad.com.br FACEBOOK.COM/EDITORAMAUADX FD] @eviroramauanx (@ @mauanxeoiToRA (21) 97675-1026 Revisao e Projeto Gréfico: Mauad Editora ZS Aewra Orarens PSE |... capes Somer fesvesgso-UFR) Cip-Brast.. CaTALOGAGAO-NA-FONTE SinpIcaTo NACIONAL Dos EDrrores DE Livros, RJ. C316 Cartografias da pesquisa em ensino de histéria / organizadoras Adriana Ralejo, Ana Maria Monteiro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Mauad X, 2019. 304 p. : il. ; 15,5 x 23,0 cm. Inclui bibliografia e indice ISBN 978-85-9068869-3 1. Historia - Estudo e ensino - Avaliagao. 2. Livros didaticos - Brasil - Hist6ria. 3.Curriculos - Planejamento. |. Ralejo, Adriana. Il. Monteiro, Ana Maria. Vanessa Matra Xavier Salgado - Bibliotecdtia - CRB-716644 Sumario Apresentagao — Cartografias da pesquisa em Ensino de Histéria Ana Maria Monteiro e Adriana Ralejo Prefacio Helenice Rocha PARTE 1 Trés territorios a compreender, um bem precioso a defender: estratégias escolares e Ensino de Historia em tempos turbulentos Fernando Seffner De lagarta a borboleta: possiveis contribuigdes do pensamento de Michel Foucault para a pesquisa no campo do Ensino de Historia Durval Muniz de Albuquerque Junior PARTE 2 Ensino de Historia: uma incursao pelo campo Mauro Cezar Coelho e Taissa Bichara A Pesquisa em Ensino de Historia no Brasil: poténcia e vicissitudes de uma comunidade disciplinar Sonia Regina Miranda Producao sobre Ensino de Histéri em pe licos académicos brasil Nadia G. Gongalves ros (1970-2016) Ensefianza de la historia en Argentina: un panorama de investigaciones y redes Maria Paula Gonzalez Pesquisa em Ensino de Historia: desafios contemporaneos de um campo de investigacao Carmen Teresa Gabriel Vestigios de leituras e escritas nas rotinas cotidianas do Ensino de Historia no Brasil (décadas de 1930-1960) Cristiani Bereta da Silva Investigar em Ensino de Historia: entre fronteiras e limites epistemolégicos Flavia Eloisa Caimi e Leticia Mistura Sentidos de “negro” no Ensino de Histéria: articulagoes em contextos de referéncia para a produgao do conhecimento no livro didatico Warley da Costa 15 19 21 43 61 63 85 113 127 143 163 187 199 Em nome da ordem: as escolas municipais paulistanas na ditadura civil-militar (1964-1985) e a professora por evocagao Helenice Ciampi Qual o lugar da diferenga na pesquisa em Ensino de Historia? Cinthia Monteiro de Araujo 0 documentdrio Os guardides da Lagoa: a universidade no espago do quilombo Carlos Augusto Lima Ferreira Os saberes dos professores sobre os conhecimentos que ensinam: trajet6rias de pesquisa em Ensino de Historia Ana Maria Monteiro 217 239 255 2n APRESENTAGAO Cartografias da pesquisa em Ensino de Historia Ana Maria Monteiro! e Adriana Ralejo* O fazer pesquisa em “ensino de Histéria” tem se configurado, no Brasil, em territério contestado e com sentidos disputados por pesquisadores das 4reas de conhecimento da Educaco e da Historia. A partir de diferentes lu- gares, referenciais te6ricos e perspectivas de abordagem, uma producao de conhecimentos sobre os curriculos e a docéncia nessa disciplina tem se cons- titufdo, sendo reconhecida e legitimada, ou nao, por seus pares. O “ensino de” como “lugar da pratica” ainda €, por muitos, desvalorizado, entendido como “vazio de saberes”, de teoria, o que repercute sobre os sen- tidos a ele atribuidos. “Ensino de”, “lugar de docéncia”, lugar teérico no qual saberes s4o mobilizados, de forma tdcita muitas vezes, mas para os quais as pesquisas tém contribufdo na compreensao da complexidade teérica da reela- boragao didatica ali realizada; “lugar politico” no qual saberes so seleciona- dos, afirmados, negados, contestados. Didaticas sao propostas na busca de re- produzir/desestabilizar hierarquias sociais, produzir identidades, memérias, problematizar posi¢6es de sujeito. Governos de diferentes alinhamentos politicos e ideolégicos tm se mos- trado atentos e interessados em promover ou controlar o ensino dessa disci- plina escolar que tem se mantido nos curriculos ha mais de dois séculos. Pelo 1 Professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lider do Laboratério de Estudos @ Pesquisas em Ensino de Historia (LEPEH), pesquisadora do Laboratério do Nucleo de Estudos Curriculares (LaNEC) e do Grupo de Pesquisa Oficinas da Histéria. Professora do Programa de Pés-graduagdo em Educagao da Faculdade de Educagéo (PPGE/FE) e do Programa de Pés- graduagao em Ensino de Historia do Instituto de Histéria (PPGEHIIH) da UFRJ. 2 Professora de Historia da educagdo basica e assessora pedagégica de dea de conhecimento. Formadora regional do Pacto Nacional pela Alfabetizagao na Idade Certa (PNAICIRJ), Pesquisadora do Laboratério de Estudos e Pesquisas em Ensino de Histéria (LEPEH), do Laboratério do Nucleo de Estudos Curriculares (LaNEC) e do Grupo de Pesquisa Oficinas da Historia. CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 7 exposto, pode-se afirmar que o ensino de Histéria é, efetivamente, um lugar politico no qual disputas em torno da relacao saber/poder se efetivam nos documentos, nas politicas, no curriculo, nas praticas escolares, na produ¢ao de memérias. Como tem se constituido esse lugar no contexto educacional brasileiro? Que perspectivas teéricas e abordagens tém sido privilegiadas? Como tém sido estabelecidas as relagGes entre diferentes grupos de pesquisa dessa co- munidade disciplinar? Entre esses grupos e os agentes das politicas governa- mentais? Entre pesquisadores do ensino da Histéria e os historiadores? Entre pesquisadores e professores dessa disciplina escolar? Acreditamos que, passados trinta anos da realiza¢ao do I Encontro Pers- pectivas do Ensino de Historia, realizado na Faculdade de Educacao da Uni- versidade de S40 Paulo em 1988 - quando, pela primeira vez, foi realizado um movimento organizado que reuniu professores e pesquisadores para dis- cutirem questées relacionadas ao ensino dessa disciplina e seu curriculo -, é oportuno e necessério tragar um diagrama das forcas e saberes que constitu- iram e constituem historicamente essa drea de conhecimentos. Cremos que, agora, temos condicGes para fazer um mapa que nos auxilie a compreender a emergéncia da producao de saberes, das relacdes de forca que atravessam essa producao naquilo que é central e tem se afirmado, mas também naquilo que tem permanecido nas margens, ou interditado, negado no meio das lutas por hegemonia travadas entre governos, institui¢des e comunidades discipli- nares por meio de politicas curriculares, discursos oficiais e/ou contra-hege- ménicos. Enfim, uma cartografia que nao apresente um “retrato” de um certo momento no qual posi¢Ges estao fixadas, mas que possibilite compreender as disputas, os movimentos, tenses e deslocamentos na dinamica de produ¢ao de conhecimentos nessa area estratégica do sistema educacional. Area de pesquisa que mereceu pouca atenco até a década de 1980, 0 en- sino de Histéria teve seu interesse instigado principalmente no contexto da abertura politica que caracterizou o fim do regime militar e a instauracdo do processo de redemocratizacao do pais. Novos tempos eram inaugurados e, entre os muitos desafios politicos, sociais, culturais e educacionais, a Histéria a ser ensinada passou a se configurar como questao a ser enfrentada. Enten- dia-se que era chegada a hora de superar perspectivas anacrénicas do ponto de vista historiografico presentes nos curriculos e de viabilizar um ensino capaz de “formar cidadaos criticos e agentes de transformagio social”. Com base em Cuesta Fernandez (1998), alguns autores defendem que, no Brasil, pode-se definir uma periodizacéo com quatro momentos de defini¢4o e redefinicdo do cédigo disciplinar da Histéria escolar: construgao do cédigo 8 ANA MARIA MONTEIRO E ADRIANA RALEJO disciplinar da Histéria no Brasil (1838-1931); consolidaco do cédigo discipli- nar da Histéria no Brasil (1931-1971); crise do cédigo disciplinar da Histéria no Brasil (1971-1984); reconstrugéo do cédigo disciplinar da Histéria no Brasil (1984-?) (SCHMIDT, 2012, p. 78). De acordo com essa proposta, prossegue Schmidt, a partir de 1984 teria sido iniciada a “reconstrucao do cédigo disciplinar da Histéria no Brasil”, periodo que pode ser caracterizado por um intenso movimento de renova¢ao na selecdo dos contetidos a serem ensinados: de uma histéria tradicional a uma histéria militante, engajada; de uma historia politico-administrativa a uma histéria econémica ou sociocultural; de uma forma de organiza¢ao cur- ricular linear para uma histéria tematica, por eixos tematicos ou integrada; de metodologias de ensino baseadas em questionarios, exercicios de memo- riza¢4o, para uma proposta de ensino baseada em problematiza¢6es e no uso de fontes que aproximam o ensino de Histéria das perspectivas da Historia dos historiadores. Assim, na década de 1980, criticas acentuadas foram apresentadas, par- tindo de diferentes grupos e por diferentes motivos. Mas o que podemos ve- rificar é que a Histéria “a ser ensinada” ou “ensinada” foi posta em questo, foi problematizada: no momento da retirada dos Estudos Sociais do curriculo do entao Primeiro Grau - em relac4o a esse aspecto havia praticamente uma unanimidade entre professores e historiadores -, optava-se pelo retorno das disciplinas Histéria e da Geografia. Mas que Historia? Que Geografia? Por outro lado, observou-se um investimento crescente de profissionais envolvidos com a formagao de professores de Histéria na busca de sua quali- ficagao em cursos de Mestrado e Doutorado e que escolheram como objeto de pesquisa o ensino e a formacdo de professores nessa disciplina. Localizados em sua grande maioria em Faculdades de Educacio, iniciaram a constitui¢do de um campo: o de pesquisa em ensino de Histéria. Esse objeto, ao longo desses anos, comegou a receber a aten¢ao dos his- toriadores que até entao nao demonstravam maior interesse pelas questGes educacionais. Ao longo dos anos 2000, temos observado um deslocamento das disciplinas de Didatica e de formagao de professores para Departamentos, Faculdades e Institutos de Histéria que buscam assumir a responsabilidade por essa formacdo e com abordagens que procuram se diferenciar daquelas assumidas pelos pesquisadores localizados em Faculdades de Educagao. Esse processo inaugura a afirmacao de um novo cédigo disciplinar? Ou estamos ainda em pleno processo de disputas pela reconstru¢ao desse codigo? Na busca de afirmacio do “ensino de” como tempo/espaco de producdo de conhecimentos, foi criado, em 1993, o Encontro Nacional de Pesquisadores CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 9 do Ensino de Histéria (ENPEH), que tem sido realizado em diferentes uni- versidades publicas brasileiras, desde a sua primeira edi¢do, na Universidade Federal de Uberlandia (UFU), até a 11*. edic&o, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2017. O ENPEH é um evento que tem se consolidado como referéncia para os pesquisadores dessa area de pesquisa ao longo de sua trajetéria. A partir de 2006, a criacao da Associa¢ao Brasileira do Ensino de Histéria (ABEH) vem contribuindo para o seu reconhecimento como 0 acontecimento mais signifi- cativo no Ambito da pesquisa em ensino de Histéria no Brasil. A décima primeira edicdo desse evento, como mencionado, foi realizada na UFRJ, na Faculdade de Educacao, campus da Praia Vermelha, na cidade do Rio de Janeiro, entre 26 e 29 de setembro de 2017. Teve como promotores, além da UFRJ, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade Federal do Estado do Rio de Ja- neiro (UNIRIO), a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) ea Pontificia Universidade Catdlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e contou com o apoio da ABEH. A Comissao Organizadora do XI ENPEH, elegeu como tematica “Pesquisa em ensino de Histéria: desafios de um campo de conhecimento”. Essa opcao deveu-se ao reconhecimento do crescimento significativo do namero de pesqui- sadores e grupos que assumem o ensino de Histéria como linha de pesquisa no século XXI, principalmente desde 2010, e cuja produgao tem sido divulgada nos principais periddicos brasileiros (GONCALVES e MONTEIRO, 2017). Apesar da satisfac¢do que essa constata¢4o produz, considerou-se que era tempo de avaliar, problematizar essa producao e questionar: o que tem signi- ficado “fazer pesquisa” nessa area? Quais os sentidos atribuidos ao ensino de Histéria? Objeto de conhecimento? Campo de investigag4o/lugar de produgaéo de conhecimento? Como tém sido enfrentados os desafios epistemolégicos da contemporaneidade pelos pesquisadores dessa area? Quais as escolhas realiza- das face a pluralidade de apostas politicas possiveis no cenério atual? Como as reformulagées curriculares propostas no atual contexto das politicas educacio- nais no Brasil tém sido significadas nas pesquisas? Desafios ou perspectivas? O “ensino de Histéria” se configura como um “cédigo disciplinar” (CUESTA FERNANDEZ, 1998) ameacado face a contestacdo da validade dessa forma de organizacao para o enfrentamento das demandas educacionais contempora- neas? O fato de se constituir como “lugar de fronteira” (MONTEIRO, 2007) entre Historia e Educacao fragiliza sua potencialidade como rea de conheci- mento? Ou expressa uma especificidade epistemoldgica reconhecida nas pro- dugGes originais que as pesquisas tém possibilitado (re)conhecer? 10 ANA MARIA MONTEIRO E ADRIANA RALEJO No contexto de reformas curriculares que colocam em questo o ensino da disciplina Histéria na educacio basica, propor a discussao dos desafios da pes- quisa em ensino de Histéria como campo de conhecimento buscou, também, atender a demandas que tém permeado as discussées sobre as reestrutura- Ges curriculares em curso no Brasil e as disputas pela hegemonia sobre essa produ¢do. Expressou, também, o anseio por reafirmar o papel do ensino de Histéria na formaco da cidadania, formagao essa que passa pelas praticas do ensino de Histdria para o desenvolvimento de posturas politicas em relagao 2 vivéncia cidada e que precisam das contribuig6es da pesquisa para a compre- ensao de seus desafios e dilemas. Nessa edicdo de 2017, os trabalhos inscritos foram organizados em quatro Grupos de Pesquisa em Didlogo (GPDs). A organizac4o constituida teve por objetivo criar espacos nos quais fosse possivel reconhecer, a partir dos traba- Thos apresentados, um panorama de quatro eixos: pesquisa; didatica e curriculo; demandas sociais; e politicas puiblicas. Como objetivo, ponderamos a possibili- dade de estabelecimento de didlogos, a verificacao de aproximacées e diferencas entre as abordagens, posicionamentos tedricos dos grupos de pesquisa repre- sentados, considerando os procedimentos tedrico-metodolégicos, as categorias, Os conceitos e as hipéteses utilizados, bem como seus resultados. Para a coor- dena¢ao dos GPDs, a Comissao organizadora convidou professores brasileiros com reconhecida atua¢4o e produco de pesquisa em ensino de Histéria. A eles foi atribuida a responsabilidade pela avaliac4o e indicac4o dos trabalhos a serem apresentados e discutidos nas respectivas sessGes dos GPDs.* Ao criar espaco para a discussdo e reconhecimento da potencialidade da area do ensino de Histéria como campo de conhecimento, buscou-se, como vimos, construir uma cartografia dessa area, na qual a dinamica das relacdes entre producdo de saberes e poderes, em perspectivas macro e micro, pudesse vir a ser constitufda e reconstituida, contribuindo para a emergéncia/redefini- ¢4o de objetos, problemas, metodologias, sujeitos pesquisadores, sentidos de pesquisa em ensino de Histéria. Em contexto no qual o ensino de Histéria tem sido interpelado e ameagado por politicas publicas e fundamentalismos que buscam controlar e silenciar praticas curriculares no pais, entendemos que essa cartografia se apresenta como forma de reafirmar o direito 4 producdo cientifica e a seu acesso, no caso, 0 direito ao conhecimento histérico, por todos os cidadaos. 3 Os nomes dos pesquisadores que coordenaram os GPDs, assim como os trabalhos apresentados, podem ser encontrados nos ANAIS do XI ENPEH. Acessar: https:/www. xienpeh. utr. b/ANAIS. CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 1 Neste livro, apresentamos os textos de pesquisadores convidados pela Co- miss4o Cientifica e que permitem aos leitores também construir uma carto- grafia de investigacGes que estao sendo desenvolvidas no Brasil, dos sujeitos e grupos de pesquisa nelas constituidos, dos sentidos atribuidos 4 pesquisa nessa area. Organiza-lo representou o desafio de reunir, com coeréncia, trabalhos com focos e abordagens diferentes. Na primeira parte, expomos os textos que dis- cutem questées teérico-politicas envolvidas no fazer pesquisa em ensino de Histéria. O texto de Fernando Seffner, que abre essa parte, analisa os territé- rios que caracterizam o campo do Ensino de Histéria. A seguir, Durval Albu- querque Jiinior, baseado no pensamento de Michel Foucault, visualiza outros olhares sobre o ensino de Historia, a partir da concepc4o de uma “genealogia do poder” que constitui o campo da Educacao. Na segunda parte, contamos com as contribui¢gdes de pesquisadores que apresentam cartografias desse fazer pesquisa. Mauro Cezar Coelho e Taissa Bi- chara enfocam os Grupos de Pesquisa registrados no Diretério do CNPq, para compreender como a Area do ensino de Histéria atua no campo académico. Sonia Miranda configura como esse campo tem se tornado um lugar de luta por representacao e legitimacao, no qual se tem constitufdo uma comunidade de pesquisadores. Ja Nadia Goncalves trabalha com um mapeamento de pro- ducées cientificas sobre o ensino de Historia registradas em periddicos acadé- micos, percebendo um aumento significativo dessas produgdes. Maria Paula Gonzalez, tragando um panorama sobre 0 ensino de Histéria na Argentina, evidencia potencialidades nas redes de cooperacao entre Brasil e Argentina que tém proporcionado didlogos, avangos e novas indagacGes. Por fim, Carmen Teresa Gabriel, com base em referenciais do pés-fundacionalismo e da Teoria do Discurso, posiciona essa area de investigacéo como um campo de luta me- diante os desafios contemporaneos enfrentados. Na terceira parte, os autores exp6em pesquisas por meio das quais é pos- sivel conhecer trabalhos nessa 4rea e compreender especificidades de apor- tes tedrico-metodoldgicos que tém sido utilizados. Cristiani Bereta aborda as praticas culturais de leitura e escrita relacionadas ao ensino de Histéria entre 1930 e 1970, permitindo um olhar sobre parte do cotidiano escolar e da cons- trucao de saberes dos estudantes. Flavia Caimi e Leticia Mistura desenvolvem argumentacdo tedrica a fim de defender a potencialidade do entendimento do ensino de Histéria como um “lugar de fronteira”, em que relagdes de poder se apresentam em didlogos e disputas. Warley da Costa apresenta resultados de sua pesquisa, que busca compreender como questées étnico-raciais sao mobi- lizadas na producdo do conhecimento histérico escolar, principalmente frente 12 ANA MARIA MONTEIRO E ADRIANA RALEJO as atuais propostas curriculares oficiais. Helenice Ciampi faz uma andlise de memérias pessoais, profissionais e institucionais, assim como de praticas de professores de Histéria da rede municipal de Sao Paulo durante o periodo da ditadura militar no Brasil, visando contribuir na percep¢ao dos professores em relacdo ao seu protagonismo, para além das amarras ideoldgicas. Cinthia Araujo enfoca politicas de curriculo para o ensino de Histéria, em busca de pa- drGes de estabilidade para a manutengio da tradi¢ao disciplinar, bem como de sinais de alternativas a tradi¢do, acreditando que o saber histérico escolar pode se tornar um espaco de didlogos interculturais. Carlos Augusto Ferreira discute o desenvolvimento de projeto interdisciplinar para a realizacdo de atividades em espaco escolar de uma comunidade quilombola no ambito do Programa Interinstitucional de Bolsas de Iniciacdo 4 Docéncia (PIBID), articulando ensi- No, pesquisa e extens4o, o que possibilita novos olhares sobre a producao do conhecimento em Historia Local, identidade, memoria e cidade. Finalizando, Ana Maria Monteiro apresenta trajetéria de pesquisa para a qual tem estabe- lecido diélogo com Lee Shulman, para analisar os saberes dos professores a respeito dos conhecimentos histéricos que ensinam. Esperamos que este trabalho possa ajudar pesquisadores e professores dedicados ao ensino de Historia a reconhecerem a sua 4rea de atuacdo, os desafios enfrentados e as potencialidades que permitem a continuidade de discussdes por um ensino de qualidade em nosso pais. Referéncias bibliograficas CUESTA FERNANDEZ, R. Clio em las aulas. La ensefianza de la Historia en Espafia entre reformas, ilusiones y rutinas. Madrid: AKAL,1998. GONCALVES, N. G.; MONTEIRO, Ana Maria F.C. Saberes e praticas docentes e ensino de historia: temas, conceitos e referenciais (1970-2014). Educagéo em Revis- ta, UFMG, v. 33, 2017. MONTEIRO, Ana Maria F. C. Ensino de Histéria: lugar de fronteira. In: ARIAS NETO, J. M. (org.). Histéria: guerra e paz. Londrina (PR): ANPUH/Editorial Midia, 2007. 323 paginas. SCHMIDT, M. A. M. dos S. Histéria do Ensino de histéria no Brasil: uma proposta de periodizacao. Revista Histéria da Educagdo, v. 16, n. 37, p. 73-91, maio-ago. 2012. CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 13 PREFACIO Helenice Rocha! Prefaciar o livro Cartografias da pesquisa em ensino de Histéria € discorrer so- bre um campo que vem se constituindo em uma espiral ascendente no Brasil, a partir da década de 1980. Década de abertura democratica e consequente reformulacdo educacional em diferentes frentes, naquele momento o ensino de Histéria viu surgirem grupos de pesquisadores preocupados com o compo- nente curricular — tanto na dimensio de seu ensino quanto na de sua pesquisa -, 0 que foi o fundamento da constitui¢do desse campo: a a¢ao conjunta. Como sabemos, uma espiral ascendente realiza movimentos que se repe- tem e se ampliam, fortalecendo sua base. A realizacao do XI Encontro Nacio- nal dos Pesquisadores do Ensino de Histéria em 2017 é mais uma demonstra- ¢4o dessa vitalidade, documentada exemplarmente neste livro. O evento foi planejado e realizado como momento impar de reunido dos pesquisadores e de grupos de pesquisa, que puderam apresentar um rico painel de suas prin- cipais reflexGes. Ao escrever este prefacio, também tenho a oportunidade de observar mais uma volta na espiral do campo do Ensino de Historia. Além do XI ENPEH, nessas quase quatro décadas colecionamos outros indicadores da maior importancia sobre a constituicdo desse campo e de sua cartografia: o Encontro Perspectivas do Ensino de Histéria, a publicagao de um sem-numero de dossiés sobre o ensino de Histéria, a constituicao formal de grupos de pesquisa e o aumento exponencial de estudos sobre o ensino de Hist6ria, bem como a diversificagao das tematicas em didlogo com diversas 4reas de conhecimento. Tudo isso atesta a vitalidade e a diversidade cada vez maiores, presentes nesse espa¢o social. 1 Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atuando no Departamento de Ciéncias Humanas, no PPGHS e no ProfHistéria. Coordena o grupo de pesquisa interinstitucional Oficinas de Histéria. No periodo de 2017-2020, pesquisadora PROCIENCIA UERJ/FAPERJ, com o projeto ‘Narrativas nos livros didaticos de Histéria: tradigao e rupturas’. CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 15 Para Pierre Bourdieu, todo campo “é um campo de forcas e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de forcas” (BOURDIEU, 2004, p. 22-23). O presente livro também registra a luta dos pesquisadores e grupos de pesquisa no ensino de Histéria. E cada realiza¢ao, especialmente as que agre- gam 0 conjunto do campo, é mais uma demonstracdo de sua vitalidade, pois alimenta intelectualmente esse coletivo de pesquisadores, os interessados no ensino de Histéria e os docentes em formacao e em atividade nas escolas. Este livro, bem como o evento que Ihe deu origem, possui uma pretensao inovadora. A de ir além das marcas constituintes do campo, entre a Educa¢ao e a Histéria. A escola é um espaco complexo, em que, para ocorrer o ensino de Histéria, diversas condigdes que extrapolam o conhecimento disciplinar precisam ser atendidas. Entre elas, é preciso que se estabeleca a rela¢do entre professor e alunos, pautada em uma cultura escolar que se construiu no tem- po, regulada socialmente. Possivelmente, pela multiplicidade de objetos, pro- blematicas e abordagens que a escola como espaco social requisita, o campo do Ensino de Histéria possua mesmo um pertencimento simultaneo e inexo- ravel a Educacao e a Histéria. Os capitulos desta obra evidenciam essa riqueza de didlogos, ao evocar ora uma 4rea, ora outra para responder as questées propostas nas pesquisas a que se referem. Como dito, especialmente a partir da década de 1980, a pesquisa sobre o ensino de Histéria no Brasil comegou a se estruturar como campo de pes- quisa. Antes, o ensino de Histéria correspondia principalmente a pratica dos professores no ensino basico em cada nivel, e eventuais incursGes ensaisticas de historiadores, educadores ou pensadores sociais acerca da sua importancia ou impactos e de sua necessidade de permanéncia ou mudanga curricular, fi- loséfica ou metodoldgica. No final do século XX houve investimentos teéricos diversos em pesquisas sobre o ensino de Histéria, propiciando o estabeleci- mento efetivo desse campo. Com 0 inicio em algumas regides do pais e irradiacao para outras, as pes- quisas sobre o ensino de Histéria comecaram a vir a publico. E, conforme vie- ram a publico as primeiras dissertagdes e teses referenciadas na Educa¢ao ou na Histéria, passou a haver o didlogo generoso com aportes da Antropologia, Filosofia, Politica, Estudos da Linguagem e outros. A escola e suas praticas, para serem escritas, exigem mesmo perspectivas que considerem sua com- plexidade. Simultaneamente, acompanhando a pés-gradua¢ao em nosso pais, constitufram-se grupos de pesquisa fomentados pelo CNPq. O XI ENPEH procurou valorizar essa forma de organizacao dos pesquisadores no Brasil. E isso tudo propicia e fortalece a espiral ascendente que mencionamos no inicio deste prefacio. 16 HELENICE ROCHA Parte significativa das contribui¢6es deste livro tangencia essas trajetérias ~ individuais e de grupos de pesquisa - que tém constitufdo o campo do Ensi- no de Histéria. Sao os olhares de pesquisadores que, da perspectiva da Histé- ria e da Educacao, apreciam aspectos, o momento e a dinamica interna desse campo, mapeiam 0 territério e fazem sua cartografia. A pesquisa do ensino de Histéria também dialoga responsivamente com as demandas sociais de nosso pais. O momento é de expectativas contraditérias no que a ele se refere como pratica no ensino basico e como formacao docente. Ao mesmo tempo que reconhecemos pontos fortes e frageis na trajetéria de nossa democracia, 0 ensino, e em especial o ensino de Histéria, vem receben- do ataques por sua potencialidade de formacdo politica das novas geracées, por seu didlogo e informacao. Esta obra também registra tal movimento, em busca de transformacao e de manutencao, na relacdo com o campo do Ensino de Histéria em sua face de pratica social da politica e da ética, a qual a pesqui- sa registra, reflete e acompanha. Finalmente, mais uma vez em inspirado movimento prospectivo de nossa espiral, voamos para as possibilidades do ensino de Histéria com o texto de Durval Albuquerque Junior. Entre as reflexes sobre o campo do ensino e as lutas para seu estabelecimento, as diversas pesquisas sobre 0 ensino de His- toria de ontem e de hoje, apés pulsarem em resposta a demandas e questio- namentos atuais, s4o acolhidas na reflex4o que propde uma poética do ensino de Histéria. Dessa maneira, 0 livro Cartografias da pesquisa em ensino de Histéria merece um lugar na prateleira das produgdes em ensino de Histéria como referén- cia da constitui¢éo do préprio campo, marco de um evento importante de pesquisadores dessa area. Parabéns aos organizadores, grupos de pesquisa e participantes que constituem cotidianamente o campo do Ensino de Histéria, fortalecendo-o inclusive em suas contradig6es e lutas instauradoras. E uma leitura instigante para os que tiverem essa oportunidade. Referéncia bibliografica BOURDIEY, Pierre. Os usos sociais da ciéncia: por uma sociologia clinica do campo cientifico. Sao Paulo: UNESP, 2004. 86 p. CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 7 PARTE 1 Trés territérios a compreender, um bem precioso a defender: estratégias escolares e Ensino de Histéria em tempos turbulentos Fernando Seffner! Vocé vé muito, mas talvez saiba pouco No lugar que visito profissionalmente diversas vezes por semestre, vejo muito, escuto praticamente tudo, sinto cheiros, percebo olhares, nao falo qua- se nada, apenas me apresento e digo o minimo, anoto tudo o que consigo anotar, poucas vezes me tocam, sé toco em alguém quando solicitado, respon- do poucas perguntas porque poucas perguntas me s4o feitas, mas sinto que muita coisa esta sendo feita porque eu ali estou, esta sendo feita para que eu olhe, e, por vezes, se aguarda a minha reagao. Fico inundado de impressGes, eo meu maior medo é ver muito e entender pouco, eventualmente esquecer, sem antes anotar. E perder meu olhar nos contornos da agitacio dos corpos e das falas e nao compreender o que esta acontecendo. O texto que segue é um esforco para dar conta de entender todas as possibilidades desse lugar, que é a sala de aula de ensino de Histéria, tal como outros esforcos escritos que ja fiz individualmente ou com colegas, como se pode ver em Gil e Seffner (2016) e Seffner (2012; 2010; 2017). Volto sempre a esse lugar que muito me agrada: estar sentado no fundo de uma sala de aula, em uma escola publica, sem outra tarefa que nao seja observar algum estagidrio ou estagidria, por vezes uma dupla em regime de docéncia compartilhada, e uma classe de alunos e alunas em aco. Mas a coisa aqui vai seguir um rumo um pouco diferente. O foco segue sendo a sala de aula de Histéria, o momento em que um professor ou uma professora, na frente de uma classe de alunos e alunas, em qualquer nivel ou 1 Docente no Programa de Pés-graduagao em Educagao PPGEDUI/UFRGS e no Mestrado Profissional em Ensino de Historia — ProfHistéria Polo UFRGS. Orientador de estagios docentes em ensino de Histéria junto ao Departamento de Ensino e Curriculo Faculdade de Educagao UFRGS. Curriculo disponivel em: http:/Mattes.cnpq.br/2541553433398672. E-mail: fernandoseffner@gmail.com CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA ral grau, busca dar andamento a explicagdes sobre a Histéria. Recolho narrativas, procuro compreender, e tra¢o um mapa. Um mapa nao descreve a realidade, e nem esse é meu propésito. Elaboro um mapa para encontrar caminhos, ru- mos, alternativas a essas aulas de Histéria. Por isso falo em territérios, mas sei que “O mapa nfo é 0 territério. [...] Um romance nfo é a vida” (VERISSIMO, 2008, p. 118). O foco €, entdo, elaborar mapas, conhecer trilhas e rumos, para dar o melhor destino aquela aula de ensino de Histéria. O melhor destino esta sempre ligado a possibilidade de acontecerem, naquelas aulas, aprendizagens significativas em Histdria, o que implica um caminho de qualidade e um bom ponto de chegada. Aprendizagens significativas dizem respeito a contetidos aprendidos e formas pedagégicas vivenciadas que facam diferenga na vida da classe de alunos e alunas, e também na vida dos estagiarios e estagiarias. A Histéria é entendida como um conhecimento narrado. Mas a narrativa nao pode ser pobre, sob o risco de ter valor meramente informativo. Ha que se combinar a narrativa de situagdes histéricas com a constru¢3o de categorias teéricas que estruturam o raciocinio histérico. Ensino de Histéria, Teoria e Metodologia da Histéria nao se separam em momento algum, embora possam ser analiticamente distinguidos no planejamento de uma aula. Naquele momento sentado no fundo da sala de aula, estou vendo alunos, alunas e estagidrios e estagiarias. Mas estou vendo também os elementos sem- pre presentes das muitas culturas juvenis a falarem pela boca do alunado; os elementos que estruturam nosso curso de Licenciatura em Histéria e toda a producdo historiografica e da area do ensino de Histéria a se expressarem na aula que foi planejada e est4 em execu¢o; percebo no desempenho dos estagidrios um mundo de coisas que Ihes veio dos anos em que estiveram sen- tados na posicao de alunos, aprendendo, entre outras coisas, a serem profes- sores; capto os tracos dos grandes embates das politicas puiblicas de Educacao e as grandes encruzilhadas e crises que assolam a escola publica brasileira nos ultimos anos; escuto falas que trazem para a sala de aula os discursos da sociedade, a saber, discursos de pertencimentos religiosos, partidarios, dos movimentos sociais, da familia, das midias, dos enfrentamentos e impasses que atravessam o cenério politico brasileiro contemporaneo; escuto referén- cias a nomes de pessoas, politicos, liderangas e organizacGes; escuto disputas entre meninos e meninas; disputas entre meninos; disputas entre meninas; queixas familiares. Estou praticando uma modalidade de etnografia das cenas escolares, apoiando-me, entre outros, nos textos da coletanea de Clifford e Marcus (2017), articulando conhecimentos de sociedade, cultura e linguagem, e com categorias préprias do campo da cultura escolar, como curriculo, apren- dizagens, relacdo ensino-aprendizagem, avalia¢io, disciplina, pedagogias cul- turais, pedagogias do género e da sexualidade, artefatos pedagégicos, jogos, 22 FERNANDO SEFFNER estratégias didaticas. O chamado “contetido” de Histéria vai sendo exposto, e vai trombando nas vidas daquele grupo de jovens. E produzindo faiscas das mais interessantes. Mas pode também produzir simples desinteresse. A conjuntura politica brasileira contemporanea esta marcada por ataques a democracia e a diversidade cultural, com retorno de praticas autoritarias. Cons- titui um desafio teérico, pedagégico e politico pensar um ensino de Histéria que incorpore a Educaco em temas sensiveis, promova indagagdes sobre os sentidos do passado e do presente, e remexa as concep¢Ges naturalizadas da formacao da nacionalidade brasileira, buscando ampliar o compromisso demo- cratico das culturas juvenis. Ha esforgos no sentido de colonizar a escola, a fungao docente e as politicas ptiblicas de Educagao pelos cédigos morais de alguns pertencimentos religiosos e do que, por vezes, se apresentam como sen- do “os valores da familia”, sem especificar exatamente de que familia se esta falando. Nessa conjuntura, é delicada a tarefa da escola que dispoe os alunos a questionarem saberes que foram aprendidos no ambito da familia e no interior dos pertencimentos religiosos. E para isso que se vai a escola, para entrar em contato com valores do mundo publico, da justi¢a social, da ética republicana, das liberdades laicas - a saber, a mais ampla liberdade de consciéncia, a mais ampla liberdade de crenca e a mais ampla liberdade de expresso. Nao se manda uma crianga a escola para que l4 se repitam exatamente os valores familiares € religiosos. E certo que aqui temos um terreno de enfrentamentos, mas vale lembrar que a tarefa da escola é dupla: alfabetizacao cientifica e sociabilidade do espaco ptiblico. As razGes de ordem cientifica - por exemplo, aquelas ligadas & satide sexual e reprodutiva - podem nao coincidir com valores familiares e reli- giosos sobre o mesmo tema. A sociabilidade no espaco publico - que contempla igualdade de tratamento entre homens e mulheres - pode colidir com crengas e moralidade religiosa que, muitas vezes, naturalizam uma “posi¢ao inferior” das mulheres. Mas, repetimos, é para isso que se vai 4 escola, para a ampliacdo de horizontes, e nao para a simples confirmaco de expectativas trazidas da familia ou outros ambientes. E isso é tarefa do ensino de Histéria? E sim, pois toda aula de Histéria tem como um dos seus objetivos viabilizar condi¢des para que alunos e alunas se interroguem sobre sua propria historicidade. Ou seja, se percebam como produzidos por processos histéricos e inser¢des sociais. Se gosto disso ou daquilo, se penso isso ou aquilo, se considero tal coisa certa e outra errada, se prefiro 0 Ocidente ao Oriente, tudo isso é o resultado das marcas histé- rico-sociais que me produziram. Posso modifica-las, claro esta, a partir do momento que me dou conta delas e dos processos de producao histérica a que fui — e estou sendo ~ submetido. Esse nao é um raciocinio individual apenas. Também a estrutura familiar em que estou inserido, a sociedade mais ampla CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 23 na qual vivo, meu pais, minha lingua de comunicacao com o mundo, a escola na qual estudo sao resultado de processos histéricos. A cada aula de Histéria acrescentamos alguns elementos para que alunos e alunas se qualifiquem para entender que sao sujeitos da Histéria. Assim percebendo, poder&o se qualificar para serem também sujeitos que fazem a Histéria, no sentido de que assumem a realizacao histérica de si mesmos e das estruturas que os rodeiam. O mundo em que vivemos nfo nasceu pronto, nao estA sempre igual, tradicdes se modificam, valores mudam, o que ja foi considerado perfeitamente dentro das leis e das normas - por exemplo, ter escravos - agora nao é mais permitido. A aula de His- t6ria é lugar adequado para aprender sobre essas questGes, com apoio em fontes e conceitos. E de uma forma dialogada, levando em conta a dimensao ética e politica do espacgo publico: local onde se negociam as diferencas entre os modos de ver, perceber e viver o mundo. Onde se exercita a tolerancia, mas, sempre que possivel, a aceita¢4o do outro. Se na minha casa posso regrar como quiser, no espa¢o publico tenho que negociar com os demais, de um modo democrati- co. Esse aprendizado é fundamental, e a escola é o lugar dele, como preparaco para a vida no espaso puiblico. A escola, mesmo quando privada, é uma extenso das politicas puiblicas de Educago, que constituem, sobretudo, um direito: a0 nascer em tal lugar, tenho direito ao mais elevado nivel de educacio ali possivel. Isso é bom para mim, e para a sociedade na qual nasci e vou viver. O ensino de Histéria ajuda a produzir um futuro para os jovens, pois lhes fornece ferramentas e informacées para entender a historicidade do mundo, situada af a propria vida de cada um. Tal possibilidade de Ihes acenar com um futuro - grandioso ou nao, mas, em todo caso, possivel de ser perseguido — revela a enorme forca do ensino de Histéria. Faz mover os sujeitos, tal como a cartomante Madame Carlota instila em Macabéa, personagem principal de A hora da estrela, de Clarice Lispector: um poderoso desejo de futuro, acenando com a possibilidade de ela conhecer um “mogo alourado”, apés ter caido em tristeza e resignacao pela perda do namorado nordestino: Até para atravessar a rua ela ja era outra pessoa. Uma pessoa gravida de futuro. Sentia em si uma esperanga tao violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela nao era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentenca de morte, a cartomante lhe decretara senten¢a de vida. Tudo de repente era muito e muito e t4o amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas nao chorou: seus olhos faiscavam como 0 sol que morria. (LISPECTOR, 1998, p. 79) Com essas preocupa¢Ges em mente, o texto busca ajudar na resposta a questao do evento que lhe deu origem: pesquisa em ensino de Histéria: de- 24 FERNANDO SEFFNER safios de um campo de conhecimento.? De olho no que ocorre no campo da historiografia, e do que ocorre no campo do ensino, e do que ocorre no entorno desses campos. O campo do ensino se configura nos dias de hoje como campo de batalha, e muito do que se faz nas aulas de Histéria tem sabor de resistén- cia para colocar a nu as estratégias do poder. A resisténcia politico-pedagégica nao é tarefa menor. Nao é por se dizer “estamos resistindo” que o trabalho de professores e professoras de Histéria deve ser visto como em condicio inferior. Parte dos esforgos de resisténcia envolve, inclusive, a propria permanéncia da Histéria enquanto disciplina escolar, em todos os niveis e graus. Uma luta ja en- frentada, na época dos Estudos Sociais, embora com outros contornos. Resistir nao é atitude nova na area do ensino de Histéria. Se uma sociedade ganha con- tornos mais nitidamente conservadores e autoritarios, nao ha garantia alguma de que tal nao aconte¢a também com o ensino de Histéria. Aqui se aposta em um ensino de Histdria dialogado e democratico, capaz de desenhar novos futu- ros. O futuro nao pode ser a repeti¢ao indefinida do presente. E com tudo isso na cabega, e muito mais certamente, que me sento no fundo de salas para assistir a aulas de Histéria. Situado esse meu lugar, que me per- mite saber das minhas possibilidades, inten¢es e aflicGes, parto dele para a ele retornar ao final deste artigo. O caminho contempla examinar trés territérios e suas praticas: um curto olhar no territério Brasil e algumas questGes de seu momento politico; um exame de alguns dos impasses que envolvem a escola publica de modo geral, e, mais particularmente, a escola publica brasileira; e algumas consideragGes sobre a figura central do empreendimento educacional, a saber, professores e professoras, tomados enquanto servidores publicos. Feito isso, retorno a sala de aula de ensino de Histéria e, coerente com a proposta de mapa ja tracada acima, identifico pistas e sugiro caminhos e atitudes. O bem precioso a defender, como alude o titulo, é um ensino de Histéria de qualidade. Brasil: se assoprar posso acender de novo? Dificil arriscar em poucas palavras uma explica¢do para o cendrio contem- 2 Otexto ¢ fruto da palestra de abertura do XI Encontro Nacional de Pesquisadores em Ensino de Histéria — Pesquisa em ensino de Histéria: desafios de um campo de conhecimento, ‘setembro de 2017, UFRJ. Na sua redag4o, buscou-se preservar algumas marcas da fala. Maiores informagdes em: https://xienpeh. ufr.br/. Acesso em: 28/01/2018. 3. A frase “se assoprar posso acender de novo" é uma estrofe da musica Jé fui uma brasa, de Adoniran Barbosa (1910-1982), e aqui empregada para indicar tempos pés-Constituigao Federal de 1988, em que o calor democratico aqueceu o pais, ao contrario das cinzas que hoje sepultaram muitas das iniciativas da época passada. CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 25 poraneo brasileiro. Mas se faz necessdrio pelo menos situar, neste texto, a posic¢&o politica de quem escreve sobre a histéria imediata, pois que ela tem consequéncias para o mapa de alternativa ao ensino de Histéria. Comeco com uma afirmacao simples: estamos vivendo um momento de atropelamento do regime democratico. O ano de 2016 teve menos densidade democratica do que o ano de 2015. No ano de 2017, experimentamos nova redu¢4o demo- cratica. E no momento em que escrevo este texto, vivemos a dtivida de saber se efetivamente teremos elei¢ao presidencial no final do ano, e se nela podera concorrer 0 candidato que tem a preferéncia em qualquer pesquisa de opiniao. Ha um clima de guerra nao declarada contra minorias sociais, o que se revela pela elevacao dos casos de agressao - e inclusive morte - de mulheres, de populacado LGBT, de negros e negras, de populacao pobre em geral, de jovens homens negros, e de outros grupos vulnerdveis socialmente. Ha, claramente, uma tentativa de criminalizar os movimentos sociais e cercear a liberdade de expressao. Protestar é tratado como crime, mesmo quando o protesto visa um governante que experimenta a pior avaliacdo em toda a série histérica das estatisticas desse tipo. Ha dois elementos fundamentais que sustentam um regime democratico, e os dois se encontram em conflito com outras légicas: 0 direito da liberdade de manifestac4o (modalidade da liberdade de expressao), na contramao da criminalizacéo dos movimentos sociais; e a existéncia dos sujeitos coletivos, os sujeitos das causas sociais, na contramao da no¢ao de sujeito empreendedor individualista. Nao ha possibilidade de democracia sem estes dois elementos: liberdade de manifesta¢ao e sujeitos coletivos. E esses dois elementos se encontram sob ataque. Associado ao fenémeno politico acima, derivam outras iniciativas que im- plicam constrangimento democritico: redugao da cidadania pela via da perda ou diminui¢ao de direitos (caso das reformas trabalhista ou da previdéncia); criminalizacdo do direito de protestar, com a vota¢ao de legislacdéo como a do terrorismo, que permite supor que manifestagGes tradicionais da cultura politica brasileira possam agora ser julgadas pela ética de ataques terroristas; criminalizaco das culturas juvenis, com exemplos claros no que se refere ao funk e ao hip-hop; crescimento dos casos de intolerancia religiosa, com invasao de locais sagrados de uma religido por membros de outra, imposi¢ao de cultos de determinadas religides em espacos putiblicos, votacao de leis de isengdo de impostos com claro favorecimento a determinadas religides; pre- dominio do discurso tecnocratico na solugao de conflitos, fazendo crer que a discussao politica atrapalha as decis6es de ordem racional, e nao permitindo perceber que a raz4o nao elimina o julgamento politico das prioridades; for- te crise na nogo de democracia representativa, com elevada desconfianca da populacao em relacao aos ocupantes dos cargos piiblicos e partidos politicos; 26 FERNANDO SEFFNER avango do discurso da meritocracia, fazendo crer que todos tém possibilida- de de igual desempenho, desde que se esforcem, e deixando de visibilizar as enormes desigualdades que caracterizam a maioria das sociedades, a brasileira em particular. No cenario global, e ja com repercussGes no Brasil, vivemos uma atmosfera difusa de oposi¢ao Oriente e Ocidente, entre nés se dissemi- nando certo medo dos “barbaros” e de um possivel “choque de civilizagdes”, afetando as ideias de nac4o - passado comum e futuro comum - e de preo- cupacdo com a “origem” de cada povo ou grupo social (TODOROV, 2010). E, por fim, 0 forte predominio de um discurso da crise, que se converteu em um modo de gerenciar a contemporaneidade, cumprindo o papel de estreitar 0 de- bate politico, pois lida com a nog¢ao de alternativa unica, em afirmagGes do tipo “tivemos que tomar tal medida por conta da crise” ou “nao ha como fazer isso por causa da crise” ou “a situacdo de crise nao permite que ...”. O encurtamen- to do debate politico explica, em parte, a volta do discurso da familia como base da sociedade, em vez de se discutir que é a qualidade do espaco publico que pode garantir uma boa base para a sociedade. Assistimos também a uma colonizac¢ao do espaco publico por valores familiares, com forte influéncia, por exemplo, na possibilidade de abordagem dos temas de género e sexualidade, e no enfraquecimento da no¢ao de Estado laico. Uma hipétese politica importante deste texto é a de que vivemos tem- pos de avanco dos discursos do privado na Educacio, comprometendo seu carter de politica publica. Dissemina-se na sociedade certa ideia de que os valores de mercado - competigao e concorréncia, liberdade de regulamenta- ¢40, direito do consumidor, livre disposi¢ao dos bens conforme a vontade de seus proprietarios, isen¢do de impostos e aposta na livre movimentacado de capital e de pessoas - seriam os mais adequados para informar as politicas publicas de Educacao, dentre outras. Com isso, nogdes de solidariedade, de reconhecimento da vulnerabilidade social de certos grupos, de estratégias de cooperacao nos estudos, de gestao democratica da escola - questao prevista em legislacao federal e de todos os estados -, de participa¢ao coletiva nas decis6es, de mitua ajuda, de cria¢do de mecanismos legais para superar desi- gualdades histéricas - como € 0 caso dos sistemas de reservas de vagas ou de cotas — seriam marcas culturais do atraso e dos privilégios, e que deveriam ser eliminadas da cultura escolar. Seguindo essa orientac4o privatista, individualista e meritocratica, o ter- ritério escolar ndo € mais visto como campo de experimentacées politicas e abertura de possibilidades, mas de treinamento para a vida como ela ¢, reifi- cando os valores sociais vigentes para as novas gera¢Ges, em vez de permitir que elas tenham a oportunidade de discutir sua pertinéncia. Paralelamente a isso toma forga a ideia de que a Educacao é um empreendimento puramente CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 27 técnico. Vale dizer que, nos regimes democraticos, o campo educacional se encontra profundamente conectado com o campo dos direitos humanos, origi- nando a Educac4o em Direitos Humanos como disciplina escolar em algumas oportunidades. Para o caso brasileiro, bastaria lembrar duas importantes po- liticas pablicas, j previstas na Constituicdo Federal de 1988: a promulgacdo do Plano Nacional de Educa¢4o em Direitos Humanos (BRASIL, 2006) e das Diretrizes Nacionais da Educacgéo em Direitos Humanos (BRASIL, 2013). A estas se somaram as legislagdes estaduais, dando forma aos comités de Educa- ¢40 em Direitos Humanos. O periodo democratico pés-Constitui¢ao Federal de 1988 nos legou uma sintonia entre politicas publicas de Educacao e politicas ptblicas de Direitos Humanos. Essa conex4o alimentou a percep¢ao de que o territério escolar é um territério altamente politico. Nenhuma sociedade delega a formacdo dos jovens a uma institui¢ao apenas por sua racionalidade técnica. Ha ai um importante componente politico. A prépria educacao é claramente um instrumento de garantia de outros direitos sociais e individuais. Certamente individuos que apresentam um grau de escolarizaco mais elevado estao em condigées de lutar por seus direitos de modo mais adequado. A trajetéria esco- lar é momento de experimentar a participacdo politica, o desenvolvimento de opinides originais e préprias sobre o mundo, o alargamento de horizontes na compreensao do social, por vezes efetivamente se afastando de alguns valores familiares ou religiosos, o que, hoje em dia, provoca imenso panico. A escola nao pode estar apartada dos acontecimentos politicos que saco- dem a sociedade, e em um momento turbulento como o que vivemos no pais, menos ainda. E é justo neste momento que crescem as manifesta¢des para que a educacdo se restrinja ao seu componente “técnico”.‘ A crianca e posterior- mente 0 jovem, enquanto realizam seu percurso escolar, o fazem dentro de uma politica publica que é reconhecida pelas NagGes Unidas - com 0 aval do Brasil - como promotora simultaneamente do direito econémico, do direito social e do direito cultural.* De modo um tanto esquematico, podemos dizer que se defrontam, em nivel global, dois campos de proposi¢aéo do que seja a tarefa educacional de oferta publica (estatal ou nao). De um lado, tendo 4 Pablo Gentili analisa duas situagdes recentes em dois paises distintos nos quais a escola se vé demandada a problematizar acontecimentos politicos do seu entomno, e as reagbes das autoridades em cada caso. Trata-se da disputa de terras na Argentina envolvendo o povo: Mapuche, e das tensdes recentes na regio da Catalunha. Disponivel em: https://elpais.com/ elpais/2017/09/13/contrapuntos/1505337330_354035.html. Acesso em: 29/01/2018. 5 O documento oficial das Nagdes Unidas sobre esse tépico esta disponivel em: https://conf- dts1.unog.ch/1%20SPA/Tradutek/Derechos_hum_Base/CESCR/00_1_obs_grales_Cte%20 Dchos%20Ee%20S0c%20Cult html. Acesso em: 25/01/2018. 28 FERNANDO SEFFNER como agente fomentador em particular as diretrizes e documentos do Banco Mundial, e campanhas do tipo “aprendizagem para todos”, se afirma que os principios basicos das politicas educacionais devem visar o aprendizado para a atuacdo competitiva junto aos mercados e devem se construir sistemas de avaliacao dos aprendizados para verificar de que modo as competéncias e ha- bilidades aprendidas na escola revelam o ajuste entre o sistema educacional e as demandas do desenvolvimento econémico. De outro lado, em especial na coletanea majoritaria dos documentos acordados pelo sistema das Nacdes Unidas e suas agéncias, que se utilizam em geral da expressao “educa¢ao para todos”, se expressa a viséo de que a tarefa educativa é mais ampla do que aquela das “aprendizagens”, contemplando fortemente lidar com valores que promovam o desfrute de outros direitos, estratégias pedagégicas partici- pativas, desenvolvimento junto aos jovens nao apenas da alfabetizacado e da habilidade de calcular, mas também a valorizacao da capacidade de negociar conflitos de forma nao violenta, desenvolver o espirito critico e a nogao de emancipacio social, atentar para as situac6es sociais em que diferencas podem se transformar em desigualdades. Para o caso brasileiro, a visio de Educacao mais préxima daquela das Naces Unidas se torna muito importante, pois ela conecta a escola com 0 compromisso de constru¢do e manuten¢ao da demo- cracia, e a democracia é um bem raro na histéria brasileira, restrita a poucos periodos. Entre nés, em geral, quando identificamos situacdes de impasse ou problemas no exercicio democratico, tendemos a solucionar isso com a redu- ¢40 da densidade democratica, processo que esta acontecendo na conjuntura atual do pais. Todo esse cendrio traz consequéncias para o ensino de Historia, e, por conta disso, a sua compreensao é importante. Escola: ir ao encontro, ir de encontro A escola, e em especial a escola publica, enfrenta conjuntura dificil j4 por algumas décadas, em parte como resultado dos confrontos ao nivel das poli- ticas publicas de Educa¢ao, ja elencados no item anterior. Sao unanimes duas constatac6es ao se pensar o caso brasileiro. A primeira é a de que a escola sofre de certo “atraso” tecnolégico e mesmo no seu desenho estrutural, frente aos “avangos” contemporaneos, especialmente em termos de flexibilidade e didlogo com as culturas juvenis. A segunda é a de que a escola ainda é 0 equi- pamento social mais importante para as tarefas de alfabetizacdo cientifica, so- cializagao e sociabilidade das criancas e jovens. Mesmo com o enorme acesso as redes sociais, muitas vezes as redes de amizades se articulam na web a par- tir das vivéncias escolares. No caso brasileiro, o grande avanco no processo de CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 29 escolarizacao ainda vem produzindo efeitos em todos os niveis, seja no acesso ao ensino superior, seja na progressao mais rapida das meninas e sua inser¢4o com mais escolaridade no mercado de trabalho, seja pelo crescimento da demanda por escolas de turno integral. No Brasil atual, a escolaridade est prevista para iniciar aos 4 anos de idade, estendendo-se até o final do ensino médio, num total de 14 anos, notAvel avanco para a situacao de duas décadas atras. Nao é mais possivel viver a condi¢4o infantil e juvenil no Brasil sem ser em estreita conexdo com o sistema escolar, e penso que ainda nao conseguimos dimensionar, de modo adequado, todas as consequéncias disso. Uma delas é bastante clara. Os ataques que cada vez mais sofrem a escola e os docentes, em parte, sao derivados do fato de que tanto a institui¢4o quanto seu corpo técnico tém cada vez mais influéncia na gest4o das culturas juvenis, ou, no minimo, de que é no territério escolar que os jovens cada vez mais vivem suas manifestacGes culturais. Embora todo o barulho produzido por igrejas e familias, é bastante evidente que essas duas instituicdes nao possuem mais 0 alcance que tinham na formacio de jovens e criancas, quando se comparam os dias de hoje com a situa¢ao de algumas décadas atras. Embora com todas as precariedades e debilidades, o alcance do sistema escolar cresceu de modo muito grande apés a entrada em vigor da legislagéo posta em andamento a partir da Constitui¢do Federal de 1988, nao por acaso conhecida como Consti- tuicao Cidada, aquela que reservou, entre todas as que o pais ja teve, a maior quantidade de estratégias de inclusao social. Selecionamos, para o 4ambito deste artigo, trés frentes de questionamen- tos, composi¢Ges, ataques e enfrentamentos com a escola, 0 que justifica 0 titulo do item, pois temos situagdes de “ao encontro” e “de encontro”, de composi¢ao amigavel e de franca hostilidade, dentro de cada uma das frentes a serem analisadas. Sao elas: de um lado, questionamentos pés-modernistas e de Ambito pés-estruturalista 4 escola; de outro, o ataque neoliberal a escola; de outro ainda, os questionamentos do mundo tecnolégico acerca dos méto- dos e modos da educagao escolar. Um fogo cruzado de trés ataques centrais a suas fundacdes modernas e iluministas. Para comegar, vale lembrar que das muitas institui¢g6es criadas pelo pensamento moderno, a escola é, certamente, a institui¢ao-simbolo dos valores da modernidade: A educacao escolarizada e publica sintetiza, de certa forma, as ideias e os ideais da modernidade e do iluminismo. Ela corporifica as ideias de Pprogresso constante através da razdo e da ciéncia, de crenga nas poten- cialidades do desenvolvimento de um sujeito auténomo e livre, de uni- versalismo, de emancipa¢ao e libertacdo politica e social, de autonomia e liberdade, de ampliac4o do espa¢o publico através da cidadania, de ni- 30 FERNANDO SEFFNER velamento de privilégios hereditarios, de mobilidade social. [...] A escola puiblica se confunde, assim, com o proprio projeto da modernidade. E a instituiggo moderna por exceléncia. (SILVA, 1995, p. 245) Quase tudo na escola, do prédio ao curriculo, da fila na entrada ao sistema de avaliacdo, da disposi¢ao das salas ao uniforme, dos documentos que exal- tam sua missao e seus valores aos modos como a sociedade a ela se refere, respira o ar da modernidade. A escola como local onde, a despeito de suas origens de classe ou raciais, de suas marcas de género ou de pertencimento religioso, todos iriam aprender e se tornariam sujeitos com iguais oportuni- dades de acesso aos beneficios da vida letrada. Essa marca forte da escola se encontra sob severo questionamento, mas ainda habita certo senso comum sobre a instituicdo, especialmente quando se trata de enaltecer sua nobre mis- sdo em cerim6nias oficiais. Definido esse “carater basico” da escola, escolhemos a primeira frente para comentar. Sao os questionamentos pés-modernistas e pés-estruturalistas que incidem, em particular, sobre a no¢ao de sujeito da educagao. No caso brasilei- ro, a explosdo de movimentos sociais e novas identidades, a partir do final do periodo da ditadura civil-militar, trouxe fortes criticas a esta figura de sujeito que parece universal, mas que, na realidade, representa o homem branco, eu- ropeu, heterossexual, urbano, de classe econémica elevada, de tradi¢ao caté- lica, sem nenhuma deficiéncia fisica ou de outra ordem. E cada vez mais claro que 0 sujeito universal dos processos educativos modernos representa uma parcela infima da populacao, sendo, para a maioria dela, um ideal a alcancar, em geral inatingfvel. Com isso, as narrativas modernas vinculadas a escola, de cultivo da razio, crescimento pelo progresso, ideais de emancipacio social e autonomia, dizem respeito fortemente a uma matriz de pensamento colonial ou colonizado, e a uma parcela abonada da sociedade, que diz representar 0 todo. A proliferagao das identidades culturais e dos movimentos sociais, a sua inclusao no sistema escolar e a pressdo que fazem para que a escola represente também sua cultura e seus valores ficam bem expressas pela situacao descrita em diario de campo das disciplinas que leciono: O grupo de alunos da Licenciatura em Historia da turma da noite tem como traco comum a forte defesa da escola puiblica brasileira. Em parte, isso se explica pelo grande ntimero de alunos e alunas dela originarios, e que, pelas politicas de reserva de vagas, alcancaram chegar a universi- dade. Dessa forma foi interessante observar as reagGes de alguns desses alunos depois de uma saida de campo e uma atividade com convidados que fizemos com a turma. Em um primeiro momento, levamos a turma CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 31 para visita a um mocambo, nao muito distante do prédio da faculdade. A lideranca negra que nos recebeu detalhou longamente o sofrimento de criangas negras na escola publica, vitimas de racismo e outras injurias. Fez fortes criticas & instituigao escolar e as politicas puiblicas de edu- cagao, pelo seu viés branco e colonizador, e incluiu nelas, com vigor, a disciplina de Historia. Na semana seguinte trouxemos como convidado para conversar com os alunos um grupo de militantes do movimento LGBT da cidade, que também abordou seus percursos escolares, impas- ses, traumas, e, particularmente, situagdes de homofobia explicita por parte de outros alunos, do corpo docente, da direcao e das politicas pu- blicas. Novamente uma das liderangas criticou a disciplina de Histéria por privilegiar apenas o relato dos homens heterossexuais, e das mu- lheres como meras figuras de apoio a esses homens. Na aula seguinte, quando entao est4vamos “a ss”, foi visivel o incémodo de alguns alu- nos e alunas, que se, por um lado, haviam entendido a pertinéncia das criticas, por outro, consideravam que assim no se ajudava a defender a escola, ja tao atacada por todos os lados, era sé 0 que faltava agora os movimentos sociais das minorias nao ajudarem a defender e preservar a escola, 0 que gerou vivo debate na turma, pois se tratava, como outros argumentaram, de tanto defender a escola piiblica, quanto de exigir nela mudangas no sentido da inclusao efetiva das minorias. (Diario de campo das aulas de estagio docente, 2017). Uma segunda frente de ataques e criticas 4 escola é 0 que podemos chamar de “assalto neoliberal ao senso comum sobre educac¢4o publica produzido pelo modernismo e pelo iluminismo e o consequente deslocamento da educa¢ao da esfera do espaco publico para 0 espago privado do consumo e da escolha” (SILVA, 1995, p. 245-246). O movimento que empurra a educacao escolar da esfera dos direitos e a faz transitar para a esfera do consumo se expressa de muitos modos, e se conjuga com o discurso da meritocracia, que entende a sociedade como dispondo de oportunidades iguais para todos, e se alguns se empenham, merecem ser reconhecidos, e se outros ndo sao reconhecidos, é porque nao se empenharam. A educagio sai da esfera dos direitos, e passa para a esfera do consumo. Ela é um capital que cada um agrega - ou nao ~ a sua trajetéria. O interesse em agregar - ou no - é percebido como individual. O ganho de agregar educacio a carreira é percebido também como individual, fruto de uma escolha pessoal, € 0 aspecto propriamente social e coletivo da educacao como politica publica fica esmaecido. A nogao de escolha anima a questao dos itinerarios formativos no ensino médio. Quando me lembro do meu tempo de ensino médio, na década de 1970, vejo que nao tive como escolher quase nada. Dessa forma, se 32 FERNANDO SEFFNER algo tivesse dado errado, eu poderia colocar a culpa na mantenedora, que, no meu caso, era o estado do Rio Grande do Sul, pois sempre estudei em escolas publicas estaduais. A propaganda governamental convida agora os estudantes a escolherem seus percursos, 0 que, em geral, é visto como atitude nao apenas de respeito, mas democratica, pois concede ao aluno ~ agora, um consumi- dor - 0 direito de escolher no suposto livre mercado das ops6es pedagégicas. Se algo der errado mais adiante, certamente j4 sabemos 0 que a autoridade educacional dira: na hora da escolha, estava brincando em vez de estudar, entao ocorre que vocé nao escolheu de modo adequado, agora vire-se, pois cada um é sujeito de si, respons4vel integral por suas escolhas e atos. Uma variacdo dessa afirmagao pode ser dita como “o seu curriculo €é um problema seu”, em absoluta sintonia com a enorme énfase nos dias de hoje na questao da avaliacao, transformada em verdadeiro farol do curriculo (VEIGA-NETO, 2013). Dito em tom um tanto cabalistico, a frase parece ser “faca 0 que quiser, escolha o caminho que bem entender, lhe damos liberdade, mas sera avaliado depois”. Melhor entdo é passar a vida escolar se preparando para a avaliacdo, © que se comprova largamente na pratica educacional e nos numerosos cur- sinhos preparatérios. Em suma, o discurso neoliberal é francamente despo- litizador do campo educacional, em que tudo entao parece se resumir a uma engenharia de processos e decisdes. A terceira frente de questionamentos é aquela que vem das tecnologias (SIBILIA, 2012), e se materializa nos atritos em sala de aula, em questdes como “devemos permitir 0 uso dos celulares em sala de aula ou nao?”. Como lidar com o buscador Google ou com a Wikipédia? Mas também proliferam propostas educacionais que louvam o potencial de aprendizagem manifesta- do quando se coloca uma crianca na frente de um terminal de computador, manipulando atrativos programas pedagégicos, com recursos nem de longe imaginaveis na sala de aula de uma escola. Certa ideia de que “todo o conhe- cimento esta na web”, e de que as criancas e jovens ja sao “incluidos digitais”, tem levado 4 defesa de um ensino feito no conforto da casa, nos horarios em que a pessoa decidir, sem a necessidade desta pesada arquitetura escolar - prédios, patios, chamadas, filas, professores, hordarios, sinetas, dire¢ao, aulas e avaliagdes com hora marcada, disciplina. A escola poderia ser substituida pelo conforto da casa, num ambiente sem fios, sem papéis, sem turbuléncias, respeitando supostos ritmos naturais da pessoa que quer aprender, ao estilo “agora estou com vontade de estudar, entéo me conecto”, “agora nao estou mais, entéo me desconecto”, e assim por diante, novamente trazendo uma aura de liberdade pessoal para essas propostas. Nao se trata aqui de negar as possibilidades das tecnologias educacionais, mas de pensar uma equacdo em que elas nao sejam vistas como portadoras exclusivas do progresso, e a escola CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 33 no seja apontada como sinénimo do atraso. A tecnologia revigora a escola, ou acaba com ela? Mais uma vez, aqui, o embate “ao encontro”, “de encontro” do titulo deste item. Ser professor é mais do que ter uma profissao, é ter uma missao! A docéncia esta entre as profiss6es mais endeusadas e romantizadas do mundo certamente, e a0 mesmo tempo entre as mais controladas, sujeitas a pressdes sociais e mal pagas, tendo em vista o que exige em termos de forma- ¢4o. A frase acima anotei do quadro de avisos de uma sala de professores, no meio de tantas outras que ja tomei nota ao longo dos anos, como: os livros sao 0s tijolos, os professores sao os pedreiros; a influéncia do professor atravessa © tempo; todos sao homens, alguns sao professores, poucos sao mestres; do- céncia é dom. As crises e impasses que rondam a profissao nos ultimos tem- pos fizeram surgir frases novas nos quadros de avisos, e dois anos atras me deparei com um cartaz, em letras garrafais, na parede da sala de professoras (efetivamente todas mulheres) de uma pequena escola de ensino fundamental na periferia de Porto Alegre, que reproduzia estrofe musical bem conhecida: “quando é ligao de esculacho, olha af, sai de baixo, que eu sou professora”.§ Nao apenas a frase era provocativa para a parede de uma sala de professoras do ensino fundamental, como a maioria delas tinha colocado uma caricatura sua ou um desenho de seu rosto, e expressdes de apoio a frase, e desabafos! Retomo aqui duas ideias ja desenvolvidas em Seffner (2016). Professores e professoras sao, em primeiro lugar, servidores publicos, mesmo quando em instituicdo privada. Manejam uma politica publica, no caso a politica publica de Educacdo, cujo desenho tem elementos decididos em niveis federal, esta- dual e municipal. Sua relacao principal é com essa politica publica. Mas, para boa parte das pessoas, a funcdo principal dos professores e professoras é de atendimento as demandas das familias e dos alunos. Nada mais equivocado. Accrianga, quando entra pelos portées da escola, esta frequentando um espago pubblico, e est diante de uma servidora publica, a professora. As regras so as regras do espaco publico, e a relagdo com a professora é a relacdo com uma figura de Estado. Esse aprendizado é extremamente importante. Assim como a sociedade faz presses no sentido de colonizar a escola ptiblica com os va- lores familiares e religiosos, faz 0 mesmo com os professores, no sentido de 6 — Musica Néo existe pecado ao Sul do Equador, de autoria de Chico Buarque, mas imortalizada na voz de Ney Matogrosso. A estrofe original termina com “eu sou professor”; no cartaz exposto, a expressdo era “eu sou professora’, 34 FERNANDO SEFFNER coloca-los em sintonia com os pais e as mes, e com a moralidade de certas religides. Essa sintonia é, inclusive, aceita e assumida por muitos docentes, em particular mulheres, que se assumem como tias ou segundas mes das criangas. Ha certa confusao entre servidor publico e adulto de referéncia, e docentes terminam por desempenhar essas duas fungGes. Claro esté que uma crianga pequena, recém ingressando na escola, nao vai ter a dimensio exata de que estA diante de uma servidora ptiblica, e o que isso significa. Mas ela pode ja ser ensinada a perceber que aquela professora € também um adulto de refe- réncia, ou seja, ndo é a mae, nao é uma tia, nao é a sua irma mais velha, nao é da igreja, nao é vizinha, nao é amiga da mae ou colega de trabalho da mae, mas é uma pessoa de referéncia — que eu gosto de chamar de um adulto de referén- cia -, situada no interior de uma instituigao publica, a escola. E uma pessoa a quem a crian¢a poder contar coisas, e de quem escutaré lig¢des, guardando com ela essa saudavel relagéo de nao ser da sua comunidade mais préxima até aquele momento. No ensino médio, por exemplo, a professora é alguém com quem o menino podera comentar seus gostos musicais, sem necessaria- mente ter que escutar queixas sobre o ruido em seu quarto. Se for professora de Histéria, poderd, inclusive, comentar algo sobre as tradicdes musicais, e em qual delas se insere seu gosto pessoal. Mais ainda, a professora poder4 ajudar o menino a perceber as distancias entre o gosto musical dela, que é de outra geracdo, e o dele, que é muito mais jovem. E a professora poderd fazer tudo isso sem ficar brigando ou querendo conduzir 0 gosto musical daquele menino, pois ele é seu aluno, no meio de tantos outros, e ela nao tem que se preocupar se ele escuta musica em volume alto no seu quarto quando os pais querem dormir. E ela poderd Ihe explicar porque nao deve escutar musica na sala de aula, por motivos outros que nao s4o os motivos da mae ou do pai para situagdes semelhantes. Esses elementos fazem parte de um trago essencial da docéncia, a saber, a liberdade de ensinar, principio assegurado na Constitui¢ao Federal de 1988, mas também em constitui¢des anteriores (SEFFNER, 2017a). Dizer que pro- fessores e professoras tém liberdade de ensinar ndo significa endossar a afir- macao que por vezes se escuta de que “ao fechar a porta da sala, quem manda 14 dentro sou eu”. A liberdade de ensinar, essencial para o exercicio docente, é uma liberdade que se encontra moderada por outras liberdades, como ocorre com todas as nossas liberdades. No caso, a liberdade de ensinar se encontra moderada pelo direito de aprender dos alunos e alunas, pela gestéo democra- tica da escola, pela tradicao curricular da institui¢do na qual ensinamos, pelos procedimentos da ciéncia que orientam a alfabetiza¢ao cientifica, pelo com- promisso que a escola tem com a alfabetizacao cientifica, por decisdes coleti- vas tomadas no ambito daquela unidade escolar ou daquele sistema de ensino, CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 35 pelos direitos constitucionais de igualdade e nao de discriminagao. E isso tem a ver com o didlogo com os marcadores sociais da diferenga, pelo compromis- so com 0 pluralismo democratico em sala de aula; com o respeito as culturas juvenis, que devem encontrar na escola um lugar de expressao; e com o direito a antidiscriminacdo. Mas isso nfo elimina a importancia de que o aluno per- ceba que aquele servidor ptiblico, chamado de professor, goza de autonomia didatico-pedagégica, e assegura que na sala de aula se respeite a pluralidade de opiniGes, outro preceito constitucional. Ensinar, explicar o mundo para as novas geracGes, é tarefa desde sempre sujeita a controles, tensGes, disputas. Mas a liberdade de ensinar - por vezes conhecida como liberdade de catedra - € elemento essencial do vinculo pedagégico entre aluno e professor, e abre a possibilidade de que os alunos e alunas percebam a professora como portado- ra de uma fun¢4o verdadeiramente intelectual. Quem defende que professor no pode ter liberdade de ensinar — é 0 caso do movimento escola sem partido — esta querendo para seus filhos catequese, e nao educacao, e que na frente das criancas esteja um papagaio, e nao uma pessoa. Vale dizer que a liberdade de ensinar é uma modalidade particular da liberdade de expressao, concedida a uma categoria profissional, no caso, professores e professoras quando no exercicio da fungao docente, tudo previsto em nosso ordenamento juridico, e desde ha muito tempo. A pré-histéria foi antes de comegar os aniversdrios de Jesus’ E retornamos a pensar a sala de ensino de Histéria. Quero pensar a aula de Histéria como local Gnico, evitando comparacées com outros locais, e evitando certa nocao de que é fora dela que se decide o que nela deve acontecer, ou que o que nela acontece deve ser 0 que tal ou qual autoridade e area do conhecimento decidem. Claro que sei bem que o planejamento, as orientacées curriculares e outros elementos listados nos tépicos acima dao um grau de previsibilidade ao que acontece ou deve acontecer em uma aula. Mas invisto um pouco aqui na- quilo que o titulo deste tépico j4 anuncia: a aula de Historia como lugar onde se ensaiam novidades, com uma linguagem toda prépria, como posto no titulo aci- ma. Vale lembrar outra letra de musica, que enfatiza a particularidade vocabular e a novidade de certo lugar, evitando estabelecer a priori comparagdes em que estes locais, o morro e a sala de aula, saem sempre perdendo, porque sempre “deveriam ser” alguma outra coisa do que aquilo que estao sendo: 7 Comentario de um aluno do ensino fundamental a propésito do estudo da linha de tempo da histéria da humanidade, gentilmente registrado e divulgado pela Profa. Camila Merg, ano 2017, cidade de Porto Alegre. 36 FERNANDO SEFFNER Tudo l4 no morro é diferente [...] O outro fato muito importante E também interessante Ea linguagem de la Baile 14 no morro é fandango Nome de carro é carango Discussao é bafafa Briga de uns e outros dizem que é burburim Velério no morro é gurufim Erro 14 no morro chamam de vacilacdo [.. Papagaio é radio Grinfa é mulher Nome de otario é Zé Mané® Voltamos ao bem precioso a preservar: um ensino de Histéria com autono- mia e liberdade de ensinar (0 maximo que se conseguir), mas prudente para sobreviver as turbuléncias atuais. Retorno 4 sala de aula de ensino de Historia indicando algumas atitudes, pistas e caminhos que me parecem promissores e produtivos. Come¢o com uma atitude que me parece forte, mas que precisa ser assumida por professores e professoras de Histéria, mesmo com as agruras dos tempos atuais, ou justamente por conta delas. Podemos chamar essa atitude de “Ensino de Histéria: a complicacao necesséria”. O ensino de Histéria nao é neu- tro, é fortemente politico, e por conta disso podemos dizer que ele se articula com ideologias e vis6es de mundo. Lida com temas sensiveis e esta profunda- mente envolvido com a produc¢ao e questionamento das posi¢6es politicas dos estudantes. Promove indagacées sobre os sentidos do passado e do presente, e remexe com concepgées naturalizadas ou de senso comum sobre aspectos da formagao da nacionalidade brasileira. Dispde os alunos a questionarem sabe- res aprendidos no ambito da familia e no interior dos pertencimentos religio- sos, bem como a se contraporem as opinides das midias. O ensino de Histéria atenta para os movimentos sociais e busca, sim, de modo decidido, influenciar nas escolhas politicas em que as culturas juvenis esto imersas. E ele faz isso em nome do pluralismo democratico, da liberdade de expressao, do direito de aprender e da liberdade de ensinar. Ele se associa nisso a gestao democratica da escola. Todos esses elementos, ja salientamos, estao presentes no ordenamento juridico brasileiro, varios deles na prépria Constituicao Federal de 1988. 8 — Musica Linguagem do morro, de autoria de Padeirinho e Ferreira dos Santos, cantada por Chico Buarque e Beth Carvalho, entre outros. Maiores informacées em: hitps://www.letras. mus.bribeth-carvalho/191091/. Acesso em: 29/01/2018. CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 37 E é igualmente importante fazer esta discuss4o com a qualidade tedrica e metodoldgica necessdria, de modo a enfrentar a guerra que hoje se trava em torno da presenga das humanidades nos curriculos escolares. Temos que assu- mir, de modo decisivo, que todo processo de formacao é também um processo de formago para a cidadania. Isso vale, inclusive, para cursos técnicos, e mais ainda para a escola basica. Ha necessidade de tomar certa distancia critica em relacdo ao lugar de onde somos, ao contexto em que vivemos, as emocGes que sentimos (NUSSBAUM, 2015), e essa tarefa é prépria das humanidades nos curriculos escolares. A desvalorizacao das humanidades esta presente nao sé nas atuais reformas curriculares, mas também em movimentos como 0 escola sem partido. Nos ultimos anos, tem sido comum pais e estudantes acusarem professores da area das humanidades de “assédio ideolégico”. Nao ocorre a essas pessoas que numa aula de biologia molecular ou mesmo de engenharia de saneamento também se desenham visdes de mundo, se tomam op¢ées poli- ticas? Em qualquer area do conhecimento e no aprendizado de qualquer tema se estabelecem tensGes entre igualdade e diferenga, estao presentes quest6es dificeis de resolver. Queremos ser iguais a quem? Queremos ser diferentes de quem? E nas disciplinas de humanidades, incluida aqui a Historia, que o debate dessas questées é feito com profundidade. Essa é uma tarefa da qual o ensino de Historia nao pode abrir mao. Nesse mapa de caminhos e pistas, outra linha € pensar um curriculo de Hist6ria fortemente habitado pela abordagem de temas sensiveis, de passados vivos. Temas sensiveis s4o aqueles atravessados por divergéncias pessoais e politicas, vis6es de mundo opostas. Um componente da educa¢4o em temas sensiveis é a capacidade de construir acordos entre individuos e grupos cujas opiniées diferem, estabelecendo um modus vivendi que implica manutengao do espaco de didlogo na sala de aula. E sinal de maturidade intelectual perceber que a vida social é composta por grande diversidade de posi¢6es, e poucos momentos de acordo ou consenso. A regra na vida social é 0 dissenso. Isso exige saber se por na posicao do outro, inclusive para melhor conhecer a sua propria. Na sociedade brasileira, temos esta marca bipolar: nos apresentamos como sendo diversos ao mundo, mas a diferenga nao é vista como riqueza nas relagGes, ela 6 sempre um problema, algo a ser eliminado ou diminuido em nome da “paz social”. Para aprender a lidar de modo democratico com a diferenga, as aulas de Historia ajudam, quanto mais nao seja para que as pes- soas aprendam a distinguir entre “nao gostei” e “tem que proibir”, pois muito do que nao gostamos nao se trata de proibir. No planejamento das aulas de Histéria, temos que assumir que a diversidade é uma questao pedagégica, diversidade nao se resume a atitudes simples de aceitar ou gostar dos diferen- tes, ela é um aspecto cognitivo e de planejamento. Nao é sé um valor moral, é 38 FERNANDO SEFFNER

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