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Além da contratransferéncia: os afetos do analista Beyond the countertransference: analyst ‘s affections J6 Gonda Resumo: O campo afetivo do analista é mais abrangente do que permite supor a nocdo de contratransferéncia. Apresenta-se uma cartografia sobre o problema dos afetos do analista em Freud, Paula Heimann, Lacan, Winni- cott e Ferenczi. Os dois ultimos admitem que o analista nao é apenas uma placa sensivel dos afetos do analisando. Os afetos produzidos no encontro clinico sao hoje o melhor instrumento com pacientes dificeis. Palavras-chave: afeto, contratransferéncia, pacientes dificeis. Abstract: The analyst’s affective field is wider than the notion of countertrans- ference allows to suppose. We show a cartography on the problem of analyst's affections in Freud, Paula Heimann, Lacan, Winnicott and Ferenczi. The last two admit that the analyst is not just a sensitive plate of patient's affections. The affections produced in the clinical encounter are today the best instrument with difficult patients affection, countertransference, difficult patients. Keywords: 1, Peicanalista, Associada a0 Férum do CPR], Professora Associada de Departamento de Filosofia e do Progcama de Pés-Craduagao em Meméria Social da UNIRIO. Cad. Psicanal,, CPRJ, Rio de Janeiro, ano 30, n.21, p.175-191, 2008 ‘Ciraule Psicanalitico do Rio de Jansizo 1s Gramitica dos afetos O campo afetivo do analista costuma ser confundido com a esfera da contratransferéncia. Por este motivo, gostaria de comegar com uma ressalva: o termo contratransferéncia alude a um campo bem mais res- trito do que a idéia de afetos do analista, tal como pretendo trabalha-la aqui. Contratransferéncia: 0 proprio prefixo contra sugere que existe uma contrapartida, uma reac4o a transferéncia do analisando. Nesse caso, a contratransferéncia é definida sempre em termos negativos, sugerindo uma simetria com outro termo positivo, a transferéncia, pela logica da acao/reagao. Assim, a contratransferéncia seria ma maneira restrita de conceber 0 afeto no analista, uma maneira de reduzir esse afeto a uma esfera apenas reativa e negativa. Na contratransferéncia, a esfera negativa aparece de duas maneiras. Numa ha o sentido de oposigao simétrica, como um sinal negativo de um termo positivo; a outra alude a um plano ético, a um valor negativo: pode se entender que Freud tenha batizado de contratransferéncia a dimensao afetiva do analista num momento em que esse afeto era visto como algo que poderia perturbar o tratamento. Em suma, considerar como contra- transferéncia os afetos do analista implica concebé-los sob um modo bem especifico, um modo reativo e negativo, como se estes afetos representas- sem uma falha, ou nao passassem de um eco dos afetos que o paciente nos dirige. O que esta sendo aqui chamado de afeto? Aqui faco uma observagao idiomética: na edigao inglesa das obras de Freud, na qual se baseia anossa Edigao Standard Brasileira, 0 psiquico foi traduzido como mental. No alemao, psiquismo é outra coisa: é a esfera da alma, da sensibilidade, da vitalidade e dos afetos. A questdo é que no inglés, no portugués e no francés, mente, alma e espirito aludem a uma dimensao semelhante: trata-se daquilo que em nés nao é corpo”. A lingua alemé, todavia, distingue trés nocdes onde percebemos apenas duas: Kérpen, o corpo como dimensao material; Geist, 0 espirito como dimensao intelectual ou racional; e Seele, a alma ou psiqué, como dimensao sensivel e afetiva. A alma ¢ a dimensao que vibra diante de uma obra de arte, de uma mnisica ou de um objeto desejado. E neste sentido que o romantismo alemao é um movimento que visa a alma, assim como Nietzsche é um filésofo que valoriza a alma, ao criticar a razdo (No Brasil o problema da traducio entre esses termos nos induz erroneamen- te a pensar que Nietzsche estaria valorizando o corpo em detrimento da alma). Na cultura alema a alma aparece como dimensao que nao é nem 2. A dualidade compo e alma proposta por Descartes no século XVII admite a alma como esfora do pensamento racional. Essa dualiciade nao poderia ser proposta por um pensador de lingua alema. Cad, Psicanal,, CPR], Ric de Janairo, ano 30, 21, p.175-191, 2008 176 Cademos de Psicanalise, CPR] Além da contratransferéncia: os afetos do analista corpo nem espirito — ela esta entre. A psicandlise, escreve Freud, é um trata- mento animico — Seelenbehandlung (FREUD, 1905) — ou seja, um tratamento que diz respeito aos afetos e aos modos de sensibilidade. O afeto seria a maneira como vibram em nds as impressoes sensiveis, vibracao experi- mentada como estado emotivo — é assim que Freud traduz o termo alemao Affekt quando escreve em francés, état emotif (FREUD, 1895 [1894]) O afeto seria, em resumo, um estado emotivo entre percepcdo e acdo, abrindo-se, numa ponta para a possibilidade de ser afetado — 0 afeto como efeito das impress6es produzidas por outros corpos ou outros sujeitos; e, na outra ponta, para a possibilidade de afetar - o afeto como vibracao que antecede ou deflagra a acdo, entendendo-se por acdo um gesto, uma palavra, uma representacao, uma atitude, uma interpretacdo. O que essa idéia de afeto sugere, ao invés de um imediatismo estimulo/resposta, ou agao/reagao, é justamente a existéncia, entre um e outro, de um intervalo de tempo, de uma indeterminacao e de uma liberdade. Os afetos do analista, nesse caso, incluiriam suas possibilidades singulares de afetar e de ser afetado por seus pacientes. Para tratar dos problemas relativos aos afetos do analista vou primei- xamente situar o campo do problema, apresentando uma rpida cartografia das diferentes formas pelas quais ele foi pensado na psicanalise. Aqui nao ha como fugir da nocao de contratransferéncia, pois ¢ a partir dela que o problema comeca a ser situado Freud O termo contratransferéncia é usado por Freud somente trés vezes nos 23 volumes de stias obras completas (cf. SANCHES, 1994). Aparece pela primeira vez em 1910 (As perspectivas futuras da terapia psicanalitica): “Tormamo-nos cientes da contratransferéncia que, nele, [no analista] surge como resultado da influéncia do paciente sobre seus sentimentos incons- cientes e estamos quase inclinados a insistir que ele [...] a sobrepujara” (FREUD, 1910, p.130) A contratransferéncia é, portanto, um inimigo a ser ultrapassado e vencido. As outras duas vezes nas quais aparece o termo estado em Observacées sobre o amor transferencial, de 1915: na primeira, Freud adverte os analistas “contra qualquer tendéncia a uma contratransferéncia que possa estar presente” na situagao clinica, ena segunda escreve que “nao devemos abandonar a neutralidade para com o paciente, que adquirimos por manter controlada a contratransferéncia” (FREUD, 1915 [1914], p.210e 214). Ou seja, a contratransferéncia seria algo contra o qual devemos estar advertidos, algo que devemos controlar, algo que devemos sobrepujar, em Cad. Psicanal,, CPRY, Rio de Janeiro, ano 30, n.21, p.175-191, 2008 ‘Ciraule Psicanalitico do Rio de Jansizo ur Gramitica dos afetos prol de umaneutralidade. Neutralidade: estadono qual nao afetamos, nem somos afetados. Nesse momento, Freud nao estava preocupado apenas com oimpacto dos afetos transferenciais sobre o analista; ele ainda se mostrava apreensivo, em 1915, quanto a possibilidade de a pratica psicanalitica ser conftndida com uma pratica sugestiva. E melhor entao que o analistanem afete — sugestione — seus pacientes, nem se deixe afetar por eles. A posicao de Freud nestes textos ¢ clara: a sensibilidade para os afetos é vista sob forma negativa, como um obstaculo para o tratamento. Mas, ainda que Freud tenha usado pouquissimas vezes 0 termo contratransferéncia, ha outras passagens em que ele discute o problema e passeia no terreno, mesmo sem utilizar o termo. Nesses momentos, mais do que debater a contratransferéncia, ele examina o problema do afeto no analista. E ai sua posigao nao é tao clara. O artigo no qual ele trata mais extensamente da questao é Recomendagies aos imédicos que exercem a psica- nélise, de 1912. Pinco no texto trés metaforas utilizadas por Freud para abordar o tema—tema que, vale dizer, ganha neste artigo uma importancia crucial, j4 que a maneira de lidar com os afetos ir configurar para Freud a posi¢ao que é propria do analista, isto 6, a posigao que o analista deve ocupar para que haja analise (FIGUEIRA, 1994). A primeira metafora é a do cirurgiao: Freud aconselha os analistas a “tomarem como modelo, durante o tratamento psicanalitico, o cirurgiao, que pée de lado todos os sentimentos, até mesmo a solidariedade humana, e concentra suas forgas mentais no objetivo tnico de realizar a operagdo tao competentemente quanto possivel” (FREUD, 1912, p.153). Através dessa metafora, Freud aconselha que o analista elimine, assim como o cirurgiao, os seus afetos: 0 cirurgido opera melhor quando no esta afetado por aquele que ele ope- ra. O problema que Freud parece se esquecer é que o cirurgiao opera um paciente que esta dormindo ou esta anestesiado, enquanto que o analista lida com um paciente afetado e afetante. Aoutra metafora é a do espelho: “O médico deve ser opaco aos seus pacientes e nao lhes mostrar nada, exceto o que lhe ¢ mostrado” (FREUD, 1912, p.157). Aqui Freud propoe que da parte do terapeuta haja um con- trole afetivo ainda mais forte: se na metafora do cirurgiao o paciente se encontrava num estado inanimado, agora quem se encontra nesse estado éo analista (cf. FIGUEIRA, 1994). Na verdade, as duas metaforas propdem um esvaziamento afetivo (Freud chega a utilizar a expressao frieza emo- cional): um analista que nao se deixa afetar. Até este momento, nao ha © nada de novo: trata-se da mesma posico que Freud apresenta em rel. & contratransferéndia. Cad, Psicanal,, CPR], Ric de Janairo, ano 30, 21, p.175-191, 2008 178 Cademos de Psicanalise, CPR] Além da contratransferéncia: os afetos do analista Entretanto, neste mesmo texto, ao utilizar uma outra metafora —a do telefone - Freud parece sugerir uma forma diversa pela qual o analista pode lidar com seus afetos. Essa metafora aparece num momento em que Freud discorre sobre a importancia de identificar o material inconsciente oculto pelo paciente. Escreve: Ele [o analista] deve voltar seu préprio inconsciente, como um érgao receptor, na direcdo do inconsciente transmissor. Deve ajustar-se ao paciente como um receptor telef6nico se ajusta ao microfone transmissor. Assim como © receptor transforma de novo em ondas sonoras as oscilagdes elétricas na linha telef6nica, que foram criadas por ondas sonoras, da mesma maneira o inconsciente do médico é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que Ihe sao comunicados, de reconstruir esse inconsciente (FREUD, 1912, p.154). Agoraa coisamuda de figura: Freud sugere aqui uma atitude bastante diversa da preconizada pela metafora do espelho: o analista nao ira sim- plesmente ricochetear o que recebe, como um objeto opaco, porém deve funcionar como uma placa receptora capaz de ser marcada por aquilo que recebe. Freud nao diz que o analista irA simplesmente devolver o incons- ciente do paciente, mas fala em reconstrugao: o analista vai “reconstruir esse inconsciente” — e para isso vai usar o seu proprio inconsciente. Nesse caso, é preciso que o analista se deixe marcar, afetar pelas ondas do paciente. Paula Heimann A idéia do inconsciente como orgao receptor ja estaria indicando um modo distinto de pensar os afetos do analista, permitindo conceber um analista que se afeta. Porém Freud nao desenvolve o tema, e sua idéia ex- plicita a respeito da contratransferéncia continua sendo a de uma reagao indesejada ao impacto sofrido pelo analista diante dos afetos do paciente, como se apenas o paciente experimentasse — ou devesse experimentar — afetos na clinica. Todavia, a idéia de um analista que funciona como uma placa sensivel, uma placa que pode ser marcada, afetada, é justamente a que vai informar uma otttra concep¢ao da contratransferéncia que comega ase difundir a partir dos anos 40 e 50, implantando-se oficialmente com o trabalho que Paula Heimann apresenta no Congresso da IPA em 1949. Esse trabalho é um divisor de aguas entre um periodo que a contratrans- feréncia era vista como obstaculo para outro em que ela passa a alavanca do tratamento (cf. MARCELLETTI DE OLIVEIRA, 1994) Nao € que Paula Heimann seja a primeira a abordar a contratransferéncia de outra maneira — Ferenczi ja havia feito isso na década de 10 — mas este trabalho inaugura o reconhecimento oficial, pelo meio psicanalitico, da contratransferéncia Cad. Psicanal,, CPRY, Rio de Janeiro, ano 30, n.21, p.175-191, 2008 ‘Ciraule Psicanalitico do Rio de Jansizo 9 Gramitica dos afetos como um instrumento titil na clinica. Vejamos o que diz Paula Heimann: “A resposta emocional do analista ao seu paciente na situacdo analitica representa uma das ferramentas mais importantes para seu trabalho. A contratransferéncia do analista é um instrumento de pesquisa dirigido ao inconsciente do paciente” (HEIMANN, 1950, p.75) Ela propde que as reagdes emocionais do analista, isto é, aquilo que ele sente na relacdo com o paciente, possam ser usadas na propria interpretacao. A partir dai da-se no meio analitico a grande difusao desse conceito: de reacao indesejada a contratransferéncia passa a funcionar como uma espécie de brissola nor teadora, de gata borralheira passa a princesa. E a hora também em que o analista deixa de ser sé um observador neutro e passa a integrar o campo de trabalho. Mas o que é que Paula Heimann esté chamando de reacio emocional do analista? Que afetos do analista poderiam ser considerados contratransferenciais? Aqui ela é ousada, e diz: todos. Contratransferéncia é tudo aquilo que um analista sente em relacio ao seu paciente (HEIMANN, 1950, p.74). Entretanto, o campo afetivo que se amplia se fechara por outro lado: esses afetos sao sempre reativos, isto é, sua fonte deve ser buscada no paciente. A contratransferéncia “é criada pelo paciente, ela é parte da personaliclade do paciente” (HEIMANN, 1950, p.75). Nao ¢ dificil pressentir 0 uso potencial que a ma-consciéncia é capaz de fazer desse conceito: no limite, um analista poderia acusar os pacientes por todos os seus estados afetivos. “Tive uma fantasia erdtica, portanto o paciente esta querendo me excitar” ou entao “Dormi na sessao, portanto 0 paciente esta querendo me controlar e me anular” Oconceito de contratransferéncia que se difunde no meio psicanalitico pressupée um analista funcionando como placa receptora, ultra-sensivel, das identificagoes projetivas do paciente, ainda que Paula Heimann nunca tenha utilizado o conceito de identificagao projetiva em seu trabalho. Esse é um fato curioso, envolvendo intrigas de bastidores: 0 trabalho de Paula Heimann, discipula de Melanie Klein, representou um rompimento com a mestra; Klein discordava da nova concep¢ao de contratransferéncia e nao queria que a discipula apresentasse este trabalho no Congresso; Heimann, por sua vez, justamente por ter rompido com Klein nao a cita nem utiliza nenhum conceito seu. Ironicamente, anova idéia de contratransferéncia se difunde unindo as inimigas: a nogSo de identificacdo projetiva supde que 0 paciente projeta para dentro do analista seus impulsos mais nocivos e as partes cindidas do seu self com o intuito de controla-lo. A uniao entre os dois conceitos permite que a cada vez que o analista fica sem aco, nao sabe o que fazer, ou simplesmente dorme, ele possa responsabilizar o paciente. Este Cad, Psicanal,, CPR], Ric de Janairo, ano 30, 21, p.175-191, 2008 180 Cademos de Psicanalise, CPR] Além da contratransferéncia: os afetos do analista seria o tinico agente do campo afetive na situagao diinica, e o analista seria uma espécie de tabula rasa sobre a qual poderiam se imprimir diretamente, sem qualquer inflexao, sem qualquer desvio, os afetos do paciente. Acao/ reagao: assim, o modo pelo qual o analista ¢ afetado poderia se transformar diretamente em saber sobre o inconsciente do analisando Lacan E contra essa relagao direta, especular, que Lacan se coloca ao criticar a nogao de contratransferéncia. Ela é “a soma dos preconceitos, das pai- x6es, dos embaracos e até mesmo da informacao insuficiente do analista” (LACAN, 1998, p.224), e é porque esses preconceitos o cegaram que Freud teria falhado no caso Dora: Freud teria tomado por natural, durante 0 tratamento, uma primazia do pai e dele préprio — dai sua insisténcia no amor de Dora pelo Sr. K, ao invés de perceber a importancia para ela da questdo da mulher, encarnada pela Sra. K.. De fato, Lacan faz uma critica tao violenta a idéia de contratransferéncia que, na Franca, as investigagdes a respeito desse tema se interrompem por mais de 20 anos. Cabe, porém, fazer a ressalva: nao € contra o afeto no analista que Lacan se indispée, mas contra as idéias de simetria e especularidade embutidas na nogao de contratransferéncia. Que o analista tenha sentimentos, isso ele nao duvida; o problema, para Lacan, é 0 analista querer evocar no paciente sentimentos rec{procos a partir de sentimentos que sao seus, como um espelho. O erro, portanto, seria a intersubjetividade, ou a pretensao a considerar a andlise como uma relac4o entre dois sujeitos. Para Lacan nao é preciso se falar em contratransferéncia: 0 que existe é a implicagao do analista na situagdo transferencial. Ou, como ele dira mais tarde: “a transferéncia é um fend- meno no qual estao incluidos, juntos, o sujeito e o psicanalista” (LACAN, 1979, p.219). Incluidos juntos, mas nao do mesmo modo: 0 analista nao esta incluido na transferéncia como um sujeito, e sim como objeto, ou melhor dizendo, como portador do agalia, do objeto fundamental do desejo do suijeito. Neste caso, ainda que a situacao transferencial inclua analista e paciente, em termos afetivos ela é via de mo tmica: o analista é aquele que afeta o paciente, causando o seu desejo, mas o modo pelo qual o analista é afetado nao é tema de investigagdo. Esses afetos nado fazem parte funcao ou da posigao do analista; sao assuinto que ele deve resolver por propria conta, possivelmente em sua andlise. Atualmente, a posicao de Jacques Alain-Miller 6, a esse respeito, ainda mais radical que a de Lacan: “Ao se procurar 0 que separa os lacanianos € 0s outros encontra-se isso: o manejo da contratransferéncia esta ausente Cad. Psicanal,, CPRY, Rio de Janeiro, ano 30, n.21, p.175-191, 2008 ‘Ciraule Psicanalitico do Rio de Jansizo Isl Gramitica dos afetos da pratica analitica de orientagao lacaniana, nao € nela tematizado, e isso é coerente tanto com a pratica lacaniana da sesso curta quanto com as dou- trinas lacanianas do inconsciente” (MILLER, 2003, p.1060). Ainda segundo Miller, se um analista volta sua atengao para a contratransferéncia, sua atitude seria ndo apenas suspeita, mas constituiria “um obstaculo episte- moldgico & elaboragao dinica do caso” e, portanto, wma falta ética. Somos assim reconduzidos as primeiras formulacées sobre a contratransferéncia, quando esta era concebida como um obstaculo a cura. Duas posicées fundamentais poderiam entao ser delineadas sobre a contratransferéncia: uma difundida por Paula Heimann, a de um analista que funciona como placa receptora, um analista que é afetado pelo paciente, caso em que a contratransferéncia pode ser considerada um instrumento a favor da analise; e outra na qual os afetos experimentados pelo analista nao fazem parte do tratamento, a nao ser como obstaculo. Nessa posicao podemos situar Lacan que termina, afinal, realizando um retorno a Freud no que diz respeito a contratransferéncia: em ambos ela aparece como uma fonte de erros, um obstaculo a anilise. Todavia, seja vista como instrumen- to, seja vista como obstaculo, as duas posigdes acabam coincidindo num detalhe: é sempre do paciente que vém os afetos (cf. DENIS, 2006). Se tudo vem do paciente, deixa-se de lado a quest&o dos afetos no analista, isso é, os modos pelos quais 0 analista afeta e é afetado. Os modos afetivos do analista nao participariam da situacao analitica, que é a situagao transferencial. Se tudo vem do paciente, seriamos levados a pensar que a transferéncia é um fendmeno que se desenvolve no analisando de manei- ra independente do psiquismo (da alma), da forma de sensibilidade e da atitude do analista—enfim, do modo como nele se passam e se transmitem os afetos. Contudo, os afetos do analista tém um impacto sobre a forma tomada pela transferéncia de seus pacientes. Esses afetos aparecem para o paciente de muitas maneiras — 0 ritmo, o tome a quantidade das interven- Ges, a decoracao do consultério, o modo de vestir-se, o fato de oferecer ou nao lengos de papel, enfim, toda uma atmosfera que dele emana, assim como 0s sinais mais diretos de acolhimento, distancia, raiva, delicadeza, paciéncia, enfado ou intolerancia. O que estou aqui chamando de afeto englobaria, assim, tanto aquilo que se pode chamar de estilo pessoal do analista, quanto as maneiras pelas quais ele recebe, processa e transmite sentimentos (Empfindung) em relagao aos seus analisandos, maneiras que certamente se modificam de pacien- te para paciente e mesmo com cada um deles em diferentes momentos. Assim, mesmo que se restrinja o campo afetivo do analista ao campo da Cad, Psicanal,, CPR], Ric de Janairo, ano 30, 21, p.175-191, 2008 1s2 Cademos de Psicanalise, CPR] Além da contratransferéncia: os afetos do analista contratransferéncia, ndo se poderia dizer que tudo vem do paciente, ou seja, que a totalidade da contratransferéncia seja produzida pelo analisan- do e marcada na placa sensivel que é 0 analista. Pode se pensar que cada situagao analitica ¢ tinica — isto quer dizer que um mesmo paciente com outro analista comporia uma situagao analitica diferente. Ora, essa situacao, justamente por ser tinica, implica afetos, da parte do analista, que nao se reduzem a reedicdes de seus pontos cegos ou A mera ressondncia daquilo que vem do paciente, mas afetos gerados naquele encontro com aquele su- jeito: afetos originais, inéditos, produzidos numa situagao especifica. Dois analistas se aventuraram a tratar desses afetos inéditos no encontro clinico: Winnicott e Ferenczi. Winnicott Winnicott trata deste tema no trabalho O édio na contratrans apresentado em 1947 e publicado em 1949, precedendo de pouco, portanto, a famosa conferéncia de Paula Heimann. O que o torna ainda mais cora- joso: num momento em que a no¢ao de contratransferéncia nao era ainda oficialmente considerada pela psicanalise, Winnicott nao apenas admite que o analista pode sentir ddio de seu paciente como é capaz de discutir © manejo clinico desse afeto. O artigo aborda o tratamento psicanalitico dos psicoticos e da relevo ao dio inevitavel na relagao com eles. “(...) a anélise de pacientes psicéticos revela-se impossivel’, ele escreve, “a nao ser que 0 ddio do préprio analista esteja muitissimo discernivel e cons- ciente” (WINNICOTT, 1947, p.277) Winnicott sublinha o quanto “o manejo de um psicdtico é inevitavelmente irritante”, e 0 quanto esses pacientes representam tma “pesada carga emocional” para aqueles que assumem o seu tratamento: “Por mais que estes amem os seus pacientes, nao podem evitar odia-los e temé-los, e quanto melhor eles o souberem mais dificil sera para o medo ec o édio tornarem-se os motivos determinantes do modo como eles tratam esses pacientes” (WINNICOTT, 1947, p.278). Para comegar a tratar do assunto, Winnicott vai classificar os fenéme- nos da contratransferéncia em trés grupos: o primeiro diz respeito aquilo que esta recalcado no analista - 0 que podemos considerar como seus Ppontos cegos; o segundo é relativo aos tracos pessoais do analista que Ihe fornecem um estilo proprio. Mas Winnicott de fato se interessa é pelo ter- ceiro grupo, no qual ele situa uma “contratransferéncia verdadeiramente objetiva”, ou seja, “o amor eo édio do analista como rea¢So A personalidade © ao comportamento reais do paciente” (WINNICOTT, p.278) Nao se trata, portanto, de uma projecdo no analista dos afetos do paciente, nao se trata Cad. Psicanal,, CPRY, Rio de Janeiro, ano 30, n.21, p.175-191, 2008 ‘Ciraule Psicanalitico do Rio de Jansizo 183 Gramitica dos afetos de um analista reduzido a uma placa sensivel, mas de um analista que experimenta afetos reais, objetivos, produzidos na situacao clinica. Trata- se de um “odio que realmente existe no analista”, e nao uma expressio de seus conflitos passados ou de um 6dio que o paciente Ihe atribui. A isso Winnicott chama de “6dio objetivo”, e o considera um “édio justificado”: o paciente se comporta, de fato, de um modo detestavel, para além de qualquer projecao, seja do analista, seja do paciente. Nao é tarefa facil para o analista, é claro, distinguir seus afetos objetivos daqueles que ele projeta ou que sao projetados sobre ele. Para isso ¢ preciso que ele tenha avanga- do na experiéncia e na andlise de seus afetos mais intimos: “A fim de nos tornarmos capazes de analisar pacientes psicéticos, devemos alcancar em nossas analises os niveis mais primitivos emnés mesmos” (WINNICOTT, 1947, p.279) No decorrer do artigo, entretanto, aquilo que Winnicott diz valer para os pacientes psicéticos sera estendido para qualquer paciente. O édio objetivo e justificado sera entdo apresentado como um fenémeno comum da clinica ordindria: “Uma das tarefas mais importantes na analise de qualquer paciente é a de manter a objetividade em relagao a tudo 0 que o paciente traz, e um caso especial desse tema é a necessidade de o analista ser capaz de odiar o paciente objetivamente” (WINNICOTT, 1947, p.279) Todavia, na analise comum ~ entenda-se, andlise com neuréticos — 0 ma- nejo do ddio é mais facil. Winnicott diz que nesses casos 0 ddio pode ficar latente, podendo ser expresso em alguns momentos como, por exemplo, no término da sesso (E talvez fosse interessante pensar 0 corte da sesso, +30 valorizado pelos lacanianos, como expresso do édio do analista - acting in, mais do que ato). Que 0 analista reconhega o seu ddio é apenas o comeco do problema. Aquestao fundamental é: 0 que fazer com ele? Como manejé-lo? Ou, de um modo mais abrangente: o que um analista faz com seus afetos na clinica? Responde Winnicott: “O édio que é legitimo nesse contexto deve ser percebido daramente, emantido num ligar & parte para ser utilizadonuma futura interpretacao” (WINNICOTT, 1947, p.279). Eé importante que essa interpretagao seja feita, ele escreve; sem ela uma andlise estaria incompleta. E preciso que o analista possa, até o fim de uma andlise, transformar em interpretacdo tudo aquilo que ele, analista, fez e sentiu nesse encontro. Mas atengao: Winnicott nao esta sugerindo que seu ddio deva ser contado ao paciente; ele afirma que o ddio deve ser interpretado. Isso quer dizer que os afetos do analista nao vao se traduzir numa declaracao, menos ainda Cad, Psicanal,, CPR], Ric de Janairo, ano 30, 21, p.175-191, 2008 ist Cademos de Psicanalise, CPR] Além da contratransferéncia: os afetos do analista numa confissdo, e sim que terdo valor de interpretacao (cf. LEHMANN, 2003, p.73). Esse 6 um dos pontos sobre os quais Winnicott e Ferenczi parecem ter perspectivas diferentes, mesmo que apresentem uma concordancia de base: ambos admitem nao apenas que o analista experimenta afetos inéditos na situacao dinica, mas também que esses afetos podem ser um instrumento para o trabalho analitico — afetos que se produzem no préprio analista, e nao afetos que nele sao projetados a partir do paciente. Ferenczi A posicdo de Ferenczi é mais controvertida e merece uma apresen- tacao a parte. Ferenczi era um especialista em casos dificeis, casos que nao podiam ser tratados nos moldes da analise classica, concebida como um tratamento paraneuroticos. Tratava-se de casos que outros analistas consideravam ina- nalisaveis ou, nas palavras de Ferenczi, de individuos que se encontravam ausentes de si mesmos. Ferenczi pensava que a causa da dificuldade nao residia nos proprios pacientes ou em alguma “resisténcia insuperavel” por eles manifestada. Pensava que a resisténcia era, nesse caso, do analista, e, Pparticularmente, do conforto do analista que se aferrava a uma determinada teoria ou a uma determinada técnica, ao invés de se adaptar as particula- ridades do sujeito em tratamento (FERENCZI, 1931, p.71). Para Ferenczi nao existiam casos inanalisdveis, o que havia era analistas que nao tinham. se analisado o suficiente. O melhor analista, dizia ele, nao é 0 sujeito bem estruturado, é 0 paciente tratado (FERENCZI, 1932, p.154). Desse sujeito tratado era requerida a experiéncia com uma dimensao que nao poderia ser circunscrita no plano da palavra. Para comunicar-se com os pacientes dificeis o analista precisaria perceber o que eles expressa- vam com seus movimentos corporais, com sua atmosfera, seus tons e seus olhares. A via privilegiada de comunicacao, nesse caso, era a via do afeto — através dela 0 analista poderia ter contato com aquilo que no paciente permanecia incomunicavel. Essa via afetiva é pensada por Ferenczi como contratransferéncia, mas no se reduz a ela: existem afetos inéditos em jogo, afetos que se produzem no encontro analitico, para além da projecdo dos pacientes sobre a figura do analista. Monique Schneider escreve que Ferenczi apresenta em relacao a Freud uma filiacdo paradoxal: ele mantém a filiagdo ao mestre, mas desenvolve justamente os temas que em Freud se encontram latentes, dissociados ou nao trabalhados (SCHNEIDER, 1988). Freqiientemente Ferenczi realiza uma Cad. Psicanal,, CPRY, Rio de Janeiro, ano 30, n.21, p.175-191, 2008 ‘Ciraule Psicanalitico do Rio de Jansizo 185 Gramitica dos afetos inversio, isto é, utiliza as descobertas da psicandlise sobre o funcionamento psiquico dos pacientes para pensar o funcionamento psiquico do analista. Um dos exemplos é 0 da comunicacao entre inconscientes. Freud havia dito que o inconsciente do analista poderia funcionar como um orgao receptor do inconsciente transmissor do paciente (FREUD, 1912/1972). Ferenczi vai pensar essa comunicagao entre inconscientes como processo da mao dupla: se o analista pode captar o inconsciente do paciente, porque nao poderia 9 paciente captar o inconsciente do analista? (FERENCZI, 1919). Numa andlise com pacientes dificeis essa possibilidade seria ainda maior, ja que eles se caracterizam justamente pela porosidade em relagao ao ambiente Ora, se os pacientes percebem 0 que se passa no inconsciente do analista, a implicacao do analista na situacao transferencial passa a ser mais radi- cal: nesse caso, 0 analista nao esta implicado apenas porque o paciente o utiliza como um objeto de transferéncia, mas mais radicalmente, porque sta pessoa interfere nas vivéncias que surgem e ressurgem por meio do tratamento, isto é, seu modo de ser e sentir induz a um determinado tipo de relagdo transferencial. Por este motivo, o analista precisaria ser capaz de reconhecer nao s6 0 que ele sente ou fantasia, mas também aquilo que ele produz, aquilo que ele propicia, aquilo que ele engendra. Nesse pon- to, Ferenczi ja estaria adiantando o que ele ira desenvolver mais tarde - a positividade dos afetos do analista. Em 1928, Ferenczi publica um artigo intitulado Elasticidade da técnica psicanalitica, no qual apresenta duas contribuigées importantes: propoe uma segunda regra fundamental para a psicandlise ~ a andlise do analista - e pensa uma metapsicologia do analista, ou mais exatamente, uma metapsi- cologia de seus processos psiquicos, investigando o que se passa do lado do analista quando este esta diante de um paciente. O trabalho psiquico que o analista realiza numa sesso é complicado, diz Ferenczi. Ele deixa agir sobre ele as associagées livres do paciente, deixa sua imaginagao brincar com esse material, ao mesmo tempo em que faz um exame e uma critica de seus proprios afetos e tendéncias (sentimentos, sensac¢ées fisicas, fantasias, imagens visuais, etc.) E 0 que é que guiaria o analista nesse trabalho tao complicado? O que é que serviria de biissola nesse movimento de ir e vir? E aqui Ferenczi 6 muito ousado. A bussola reside na capacidade de sentir com. E essa capacidade de sentir com que estariana base do tato psicoldgico do analista: saber quando e como se comunica algo ao paciente, de que forma apresentar essa comunica¢ao, como reagir a uma situagao inesperada, quando se deve calar e quando se deve falar, etc. Ferenczi afirma daramente: “O tato é a capacidade de sentir com” (FERENCZI, 1928, p.27). Cad, Psicanal,, CPR], Ric de Janairo, ano 30, 21, p.175-191, 2008 186 Cademos de Psicanalise, CPR] Além da contratransferéncia: os afetos do analista Com isso ele indica uma nova sensibilidade clinica — necessaria para tratar de pacientes diffceis. Mas atencao: nao se trata aqui de valorizar uma subjetividade arbitraria ou uma simbiose afetiva com o paciente. Ferenczi quer justamente criticar um empirismo da espontaneidade que levaria © analista a pautar suas intervengdes no investimento narcisista em sua propria pessoa. Por isso mesmo, ele nao confere ao tato — e ao sentir com —uma dimensdo mistica, mas uma conota¢do musical: “procuramos nos colocar no diapasao do paciente”, ele escreve (FERENCZI, 1928, p.36). Ao comentar essa passagem, Pierre Fédida afirma que o analista seria capaz de criar com o paciente um acorde musical, e todo acorde implica ao mesmo tempo ressonancia e discernimento das tonalidades, simetria e dissimetria (FEDIDA, 1989, p.101). Sentir com nao é ser como: éjustamente por ndo ser 0 paciente que o analista poderia sentir o que ele sente e pensar o que ele pensa sem sofrer das mesmas resisténcias, inibig6es ou dificuldades. Na verdade, diz Ferenczi, “quase poderiamos falar de uma oscilacio perpétua entre sentir com, auto-observacdo e capacidade de julgamento” (FEREN- CZI, 1928, p.32). Essa oscilacdo permanente entre 0 jogo afetivo e 0 exame critico exige do analista uma liberdade e uma mobilidade de seus investi- mentos psiquicos - dai a complexidade da metapsicologia do analista. Ele precisaria entrar em contato intimo com seus préprios afetos e tendéncias sem medo e sem inibigdes, mas precisaria saber manejé-los, colocando-os a servico do paciente: é preciso que ele saiba o que esta fazendo, por que esta fazendo e até onde deve fazé-lo. Todavia, nao é esse 0 ponto mais controvertido de Ferenczi. A contro- vérsia gira em torno da confissao: num certo momento, ele teria proposto que o analista confessasse ao paciente os afetos que este Ihe despertava, principalmente os negativos. Essa proposta foi muito criticada, devido ao perigo de descarregar sobre o paciente afetos que nao s4o os seus e de provocar a sua angtistia num momento em que ele nao estaria preparado para receber tal tipo de revelacao. Creio que é importante, em primeiro lugar, situar o contexto no qual a idéia da confissao aparece. Os pacientes de Ferenczi eram, grande parte das vezes, sujeitos que haviam passado por traumas bastante fortes e desestruturantes. E im- portante lembrar que o traumdtico para Ferenczi nao é a violéncia de um acontecimento, mas o desmentido. Assim, se digo a um sujeito que um acontecimento que Ihe afetou nao tem importancia, ou simplesmente me comporto como se nao tivesse importancia — com frieza ou indiferenca, por exemplo — eu desautorizo ou desqualifico nao apenas a palavra deste sujeito, mas também seus afetos, sua percepcao e seumodo de ser, lancando-o brus- Cad. Psicanal,, CPRY, Rio de Janeiro, ano 30, n.21, p.175-191, 2008 ‘Ciraule Psicanalitico do Rio de Jansizo 187 Gramitica dos afetos camente no sem sentido, O desmentido, portanto, nao se reduz a dimensao da palavra; ele produz a aniquilacio do sentimento de si, dai a expressao de Ferenczi — aqueles que estao ausentes de si mesmos. Da mesma forma, se um analista se aferra a uma teoria ou uma técnica ao invés de tentar se adaptar ao paciente, reconhecendo suas particularidades — aquilo que Fe- renczi chama de hipocrisia profissional - ele estaria desmentindo-o enquanto sujeito. A hipocrisia profissional é traumatica, afirma Ferenczi, e As vezes mais desestruturante do que os traumas que ocorreram no passado. Foi levando em conta o desmentido que Ferenczi contrapés a sinceridade como método para esses casos. Escreve: “Cheguei pouco a pouco a conviccao de que os pacientes percebem com muita sutileza os desejos, as tendéncias, os humores, as simpatias e as antipatias do analista, mesmo quando este esta inteiramente inconsciente disso” (FERENCZI, 1933, p.98). Se um paciente revelasse o que percebe sobre os afetos do analista e este permanecesse em siléncio, pensava Ferenczi, a percepcao deste sujeito seria desqualificada eo trauma reproduzido. Nao se tratava, portanto, de uma confissao como catarse do analista, mas de uma tentativa de conjurar o desmentido: a confissao ocorria para confirmar uma percepgao que o paciente declarava ter a seu respeito. Vale observar que a confissao jamais se tornou uma regra geral ow um procedimento aplicavel 4 maior parte dos pacientes. Por dois motivos: 0 primeiro é que para Ferenczi qualquer intervencao clinica, fosse ela uma interpretagao ou uma confissao, so poderia surgir depois e como resultado dos complexos processos psiquicos do analista, isto é, da oscilagao entre sentir com e capacidade de julgamento critico. Ao se colocar no diapasao do paciente, o analista seria capaz de perceber como, porque e até onde deveria irnas suas expressoes afetivas. O segundo motivo é que as regras gerais em. Ferenczi eram poucas e elasticas, ja que tudo dependdia da particularidade da situacao e do sujeito em andlise (A tunica regra sobre a qual Ferenczi insistiu em todos os casos foi a necessidade de andlise do analista) Nem sempre a confissao era adequada, cabendo muitas vezes ao analista conter aquilo que sente. Era a servico do tratamento de um paciente especifico que os afetos do analista, fossem eles inéditos ou projetados, deveriam se colocar. Nas palavras de Ferenczi: “acomrpanho os meus pacientes o mais longe possivel e, coma ajuda dos meus proprios complexos posso chorar com eles, por assim dizer. Se adquiro a capacidade de represar, no momento certo, a emogao e a exigéncia de descontracao, entao posso prever o éxito com seguranca” (FERENCZI, 1932, p.97) Cad, Psicanal,, CPR], Ric de Janairo, ano 30, 21, p.175-191, 2008 iss Cademos de Psicanalise, CPR] Além da contratransferéncia: os afetos do analista O modo como Ferenczi trata o manejo dos afetos traz contribuicdes importantes para a nossa clinica hoje, voltada em grande parte para os pacientes dificeis. Se em Freud os afetos sao meios para uma finalidade —a elaboracao interpretativa —, para Ferenczi os afetos sao precisamente a questao, tormando-se a elaboracao interpretativa (o que ele chama de in- telectualizacdo) o meio de atingi-los (cf, CAHN, 1995) O que é uma outra maneira de dizer que a perlaboracdo em Ferenczi é eminentemente afetiva, eamudanga se faz.a partir da experiéncia afetiva vivenciada na clinica. Dai a importancia do encontro e dos afetos inéditos nele produzidos. “Nenhum psicanalista vai mais além do que seus préprios complexes e resisténcias permitem’”, escreveu Freud (1910, p.130) Se isso ¢ verdade, o modo pelo qual uma andlise é conduzida tem a ver com a organizacao subjetiva, a sensibilidade e 0 estilo do analista e, nesse caso, uma analise avanga até 0 ponto em que essa organizagao subjetiva e essa sensibilidade permitem. A questao é que os pacientes contemporaneos demandam, e cada vez mais, outro modo de sensibilidade, mais porosa e menos blin- dada do que a exigida para o tratamento dos neuréticos, que apresentam delimitacoes subjetivas mais nitidas e convocam menos 0 envolvimento do analista. Essa sensibilidade mais porosa é conquistada no contato do analista com sua propria fragmentacao, e com seus préprios afetos. Afetos que nao sao obstaculo ao tratamento, mas que tampouco podem ser re- duzidos a transferéncia contra, como se a situacao clinica nao passasse de uum campo de vetores com sentidos opostos: vetores afetivos que viriam do paciente e outros que viriam, reativamente, do analista funcionando como placa sensivel. A vida psiquica é relacdo, encontro, e os afetos se formam entre; eles no so vetores dirigidos de um para o outro. Mais do que no analista, a placa sensivel se localiza no encontro afetivo, o nosso melhor instrumento com os pacientes dificeis — e sabemos que, ao menos em alguns momentos privilegiados, todos os pacientes sao dificeis. Jé Gondar Rua General Cristévao Barcellos, 24/701 Laranjeiras — Rio de Janeiro — RJ CEP: 22245-110 Tel.: (21) 2588-9870 E-mail: jogondar@uol.com br Cad. Psicanal,, CPRY, Rio de Janeiro, ano 30, n.21, p.175-191, 2008 ‘Ciraule Psicanalitico do Rio de Jansizo 189 Gramitica dos afetos Referéncias CAHN, Raymond. Du transfert au contre-transfert: la question de! ‘implication de!‘analyste dans le processus psychanalytique. In: Monographies de la Reoue Francaise de Psychanalyse. Section: Grands auteurs. Sandor Ferenczi. Paris: PUF, 1995. p.87-98. DENIS, Paul. Incontournable contre-transiert. Reoue Frangaise de Psychanalyse. Le contre- transfert. Paris: PUF, tome LXX, p.331-350, 2006. FEDIDA, Pierre. 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Psicanal,, CPRY, Rio de Janeiro, ano 30, n.21, p.175-191, 2008 ‘Ciraule Psicanalitico do Rio de Jansizo 191

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