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Bib i - Mn OR Mee ee eee ne CR cece en Renee a ue EM ene Pre RC SMU Re Ce ee ne Ree eee ete ecco a PCR Rum CR sci icUy arial es eens aC Rei eee ey Oe eee cur mice Rule Cone Me uee ha eeC Re te Mt ce Eee eer eur (Mera Rete cnr okci Cee RR ei Peet ee tii Coa Ons iao) rele rs moevt st erett Curso livre de abolicionismo penal edsonpassetti (coord.) ® loukhulsman Tater Mose et Bol eee thiagorodrigues @ veramalagutibatista Curso Livre de Abolicionismo Penal Nu-Sol/PUC-SP B® sitora Revan 8.0.2 2076 ate Copyright © 2004 by Edson Passeti (org.) Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Lida, Nenhuma Parte desta publicagio poderé ser reproduzida, seja por meios mecdnicos, eletrénicos ou via eépia xerogréfica, sem a autorizagio prévia da Editora, Revisao Vanessa Salustiano Roberto Teixeira Capa ‘Andre Degenzjan Eudson Passett Thiago Rodrigues Impressao ¢ acabamento (Erm papel off st 75, ap pagina clettica, em tipo Toronto 11/13) Passeti, Edson (org.) CCurso livre de abolicionismo penal ~ Rio de Janeiro: Revan, 2004. 168p. ISBN 85-7106-304-4 1. Cigncias sociis APOIO: Nu- Sol ~ wwwemu-solore ru-sol@nu-solorg Prodoc-Capes/PEPG em Ciencias Sociais/ PUC-SP. o seu olhar melhora o meu. Amaldo Antunes Sumiério Curso livre Edson Passetti (91 A atualidade do abolicionismo penal Edson Passetti (13) Alternativas & justiga criminal Louk Hulsman [35] Pela aboligio do sistema penal Maria Liicia. Karam [69] Pena public: Nilo Batis em tempo de privatizagao [109] Linguagem-fronteira e linguagem-percurso Salete Oliveira (17) Drogas, proibicio e abol Thiago Rodrigues [131] das penas Histéria sem fim Vera Malaguti Batista [153] Bibliografia [160] Curso LIVRE Edson Passetti O curso livre realiza interesses singulares, niio s6 de profes- sores, pesquisadores ¢ estudantes, mas de pessoas antenadas num tema, numa espee‘fica maneira de interferir. Ele nio exige pré- requisitos, pode ocorrer numa universidade ou em qualquer lugar. No curso livre ndo esto em jogo a freqiiéncia, a avaliacdo final, o dominio disciplinar do professor, horério para termina, 0 niimero de aulas/hora regulamentadas pelo Estado, a emisstio de diploma, certificado ou atestado, uma determinada retérica para ser entendida de maneira uniforme. O curso livre nao é parente de palestras beneficentes, da filantropia. Ele provoca e se destina aos irrequietos. O curso livre propicia possibilidades de contatos, aproxima- Ses, trocas de experiéncias, invengdes de priticas, amizades, amores intensos, refeicGes divertidas. O curso livre € mais e me- nos do que professor, aluno ¢ sala de aula com uma especifica bibliografia. Promove associabilidades. O Nu-Sol (Niicleo de Sociabilidade Libertéria do Programa de Estudos P6s-Graduados em Ciéncias Sociais da PUC-SP) vem realizando junto ao Prodoc-Capes, uma pesquisa sobre a toleran- cia com énfase nas préticas abolicionistas penais. Hé algum tempo debate regularmente com pesquisadores do ICC — Instituto Carioca de Criminologia -, e encontrou, em novembro de 2003, uma sema- ha para fazer acontecer um curso livre sobre o abolicionismo pe- nal, capaz de gerar sistematizagdes, novas diividas, mais debates € outras pistas para a pesquisa. Formou-se, entio, um pequeno grupo de professores ~ composto por Maria Lticia Karam, Edson Passctti, Salete Oliveira, Thiago Rodrigues, Vera Malaguti e Nilo Batista —com a responsabilidade de apresentar e problematizar 0 abolicionismo penal. Definiu-se a seqiléncia das aulas, ocorridas A noite, durante uma semana, a partir das 19:30 horas, na sala P- 65, do Prédio Sede da PUC-SP. Um piblico atento, polemizador e amigével, na perspectiva nietzschiana em que o amigo ¢ 0 melhor inimigo, compareceu as sessdes, de infcio sentando-se segundo a conhecida disposigo em fileiras do ensino disciplinar, para em duas sessbes alterar 0 espa- ¢0, distribuindo-se em volta do palestrante. Cada aula foi acompanhada de vibrantes discuss6es, rechea- das de solicitagdes de esclarecimentos. Afinal, abolicionismo pe- nal no é uma prética muito conhecida, apesar de estar sendo mais difundida, Assim, o curso livre pode trazer elementos para a pes- quisa problematizadora da tolerdncia e abriu percursos para que pessoas do piiblico se inteirassem desta experiéncia liberadora. ‘Trazer 0 curso para o livro exige uma nova disposigao. Ja- mais serfamos capazes de repetir as palestras com as nuances de vores, efeitos de murmiirios, sobressaltos, sorrisos e gargalhadas, estudando seriamente este assunto, Muitas aulas estavam redigidas, outras esbogadas seguindo a dindmica da interagdo com o publi- co, ¢ isso fez de cada aula um acontecimento. Sob a forma de livro pensei em propor algumas mudangas que pudessem trazer informagées complementares a quem assis- tiu a0 curso e que apresentassem ao novo participante uma estru- tura inédita e surpreendente como as sessGes naquele novembro. Por ser um curso livre, apresento as aulas dispondo os pa lestrantes por ordem alfabética. Cada leitor poder entaio comegar e levar seu curso adiante da maneira que achar mais conveniente, fazendo seu jogo de amarelinha, Também por ser um curso livre, introduzi uma aula extra, com Louk Hulsman, o pensador indis- penséivel para se acompanhar o abolicionismo penal. Nao haven- do condigdes por meio do livro para se estabelecer um didlogo direto com cada professor, informo seus respectivos e-mails, pro- piciando um encontro pessoal e intransferivel. Um curso livre nilo se repete e, ao mesmo tempo, deve saber responder as singu- laridades. 10 curso livre de abolicionismo penal por nés ministrado retorna, revisado, ao seu piiblico original e o vé expandido pelo livro, Mais do que isso, pode ser utilizado para cursos entre inte- ressados, formando grupos, independentemente de seus vinculos universitérios, propiciando a outras pessoas novos envolvimentos com a aboligéo do castigo. Da mesma maneira, cada um de nés que ministramos aulas se revé pela leitura, aprende com a escrita © se amplia. Um curso livre nao tem fim e no é aprisionado por nenhuma grade curricular. E feito para desmembrar-se. © abolicionismo penal é uma prética anti-hierérquica que no se limita ao sistema penal. Trata da demoligdo de costumes autoritérios difundidos na cultura ocidental, ancorados na autori- dade central de comando com o direito de dispor dos corpos. O abolicionista penal sabe que todo direito emerge de um acontecimento violento, Nao fala com exclusividade sobre justiga criminal nem de sua tio combatida seletividade dirigida, na maio- tia dos casos, a pobres e diferentes. abolicionismo penal é uma pratica de liberdade que soma experimentos. Aproxima-se da corrente descriminalizadora visan- do a contengaio da criminalizagiio de novos comportamentos ¢ alia- se & difustio das medidas de redugiio de danos, Esta préximo da criminologia critica caracterizando os efeitos das penas alternativas © aemergéncia neoliberal do Estado Penal. E parceiro das humani- dades abordando os costumes desestabilizadores das sociedades. Quase sempre recorre a situagdes-problema em que pessoas esto envolvidas com sexo, drogas e jovens infratores, para delas extra- ir outras praticas distintas da normalizagéo do sexo, das politicas de ago afirmativa, das terapéuticas ou difusio de uso medicalizado de drogas destinadas a ampliar potencialidades produtivas e de docilizagio, e do confinamento de jovens em programas inter, pluri, multi ou transdisciplinares, diante de mobilizagGes midiaticas fas- cistas de redugo de idade penal © abolicionismo penal é uma atitude na fronteira que desestabiliza inclusive o saber académico, hoje algo mais do que necessario, quando o seu discurso vem se tornando cada vez mais ul policiador, O abolicionista penal é aquele que comega abolindo 0 castigo dentro de si, Inventa uma linguagem, um estilo de vida, em que, mesmo nfo se apartando das utopias, atua no presente de ‘maneira heterotépica. Nao deixa para 0 futuro 0 que € preciso fazer agora. 2 A ATUALIDADE DO ABOLICIONISMO PENAL, Edson Passetti Defender o futuro na juventude contra as imagens arruinadas do futuro: “Pensando neste lugar da javentude grito, Terra! Ter. ral”!, A hist6ria acontece no instante da vida de cada um, livre das acificagdes, idealizagées ¢ contemplagdes transcendentais produ- zidas pela ciéncia da Hist6ria. As forgas lutam por liberdade, resis tem ao poder, realizam sua juventude pela recusa & acomodagao no pasado e a uma utopia consoladora no futuro, A atuago no pre- sente inventa uma vida desembaracada de regras fixas, constantes € imutdveis ao se apartar da naturalizago da obediéncia e da conser- vagio dos costumes da sociedade como se fossem componentes de ‘um bem maior a ser eternamente preservado. Os entrechoques inevitéveis da existéncia caracterizam a vida, a0 mesmo tempo, como conservagiio ¢ invengao, Querer fazer dos jovens ‘imagem de seus pais, das leis e das crengas tradicionais ¢ tentar man- ter 0 ideal de civilizagdo fundado no preenchimento da cabeca de cada ‘um com “uma quantidade descomunal de conceitos extrafdos do c nhecimento maximamente mediato das Epocas ¢ dos povos do passa- do, no da intuigio imediata da vida’*. O aspecto que interessa na con- servagdo, nfio sendo a previsibilidade dos impedimentos, é 0 de culti- var uma tradicéo sobre o que ndo cessa de inventat. Para o jovem nio hé um destino final tragado pela adequa 40 ao moderno sistema de recompensas e punigdes, O joveme a crianga nfo so idéias, mas pessoas exercitando represses ou delas se libertando, reproduzindo castigos em nome da superioridade ' NIBTZSCHE, Friedrich, Segunda considerago intempestiva, da utitidade e desvantagem da historia para a vida, Rio de Janeiro, Relume Dumaré, 2003, p. 89. * Idem, p. 92. ou 0s abolindo para inventar outras maneiras horizontais de expe- rimentar liberdade. No final da primeira metade do século XIX, Max Stimer? alertava para os efeitos do iluminismo, da transcendentalidade € dos valores universais superiores na formago do jovem, preten- dendo docilizar o transtomado instante de ditvida quando se € empurrado para a metamorfose em adulto, ao mundo de equilt- brio, amor, ajuizamento e convivéncia pacffica. E tentando supri- mir a rebeldia em nome da boa sociedade, ordeira e justa, que os superiores definem um imperativo da verdadeira vida humana, que dispde cada pessoa num respectivo enclausuramento chama- do adulto, cidadao, trabalhador livre e responsdvel, racional se- guidor das normas ¢ leis. Exige-se a abdicagao da crianga e do jovem em cada um, do instintivo e do intempestivo, em nome da razio solene e do respeito aos valores superiores estampados nas representagdes da vida material. Pretende-se, neste momento, fi- nalizar 0 acerto de contas com as rebeldias passadas e toleradas: tanto as favordveis ao ajuizamento na sociedade, capazes de esti- mular reformas titeis, quanto aquelas perigosas contornadas por meio de aconselhamentos, escolarizagao ou encarceramentos, Vida adulta é a concepcao universal que uniformiza cada crianga e cada jovem, por meio dos conceitos de inféncia ¢ ado- lescncia, em responsdvel cidadao adulto conformista. Assim res- ta ao adulto lembrar com melancolia a sua inflincia e adolescén- cia, um tempo perdido, sem volta. O ideal que a maioridade da vida adulta Ihe prometeu e nao trouxe se transforma em idealizagdo pelo avesso do passado, E assim caminha a humanidade: cada jovem deve reconhecer no momento em que é transformado em adulto que ser menor € uma inferioridade e, depois, seguir a con- tinuidade das coisas. B preciso maioridade juridica, eis 0 sentido da maioridade moderna! Ela requer a interiorizagao do estranho paradoxo: a vida uniforme para individuos livres. 3” STIRNER, Max. 0 dinico e a sua propriedade. Lisboa, Antigona, 2004, 14 Stimer e, mais tarde, Nietzsche apontaram para a importn- cia de tornar-se crianga, a reviravolta sobre 0 dominio societal que obstaculiza as singularidades. Nada contém criangas e jovens, nem conceitos, ameagas de castigos, exercicios de punigao, internagdes em escolas ou prises, ou mesmo o sonho da maiori- dade que Ihe trard a liberdade dos pais e o aprisionamento as hie- rérquicas instituigdes da sociedade, Sabendo disso a melhor parte da sociedade formula os conceitos certos para a vida reta, norte- adores do melhor educar para a infaincia e a adolescéncia. E edu- cando com base na interiorizagio do medo e na aplicagao de casti- g0s que a sociedade se proclama capaz de domar as impulsividades destes pequenos seres. Ela pretende levar cada um a0 conhece-te 4a ti mesmo e &s mentiras necessdrias, como recomendou Plato a respeito da educagao para criangas num regime perfeito. Mas isso ndo € inevitivel. Stimer, Nietzsche e mais tarde Michel Foucault* apanharam a mestna sugestio ea dimensionaram no ambito de uma vida em expansiio, Da afirmativa adveio a divida: o que fazer de si ‘mesmo? Para retorcer a retilinea predisposigao da boa sociedade e assustar os mentirosos necessérios, os desestabilizadores reviram modelos, c6pias, segurangas racionais, universais e uniformidades Nao desconsideram os comegos mesquinhos dos instintos, que os. ajuizados suprimem conclamando todos & adeséo as verdades de- sinteressadas, universais, maiores. Ao contrério, explicitam sin- gularidades, as invengGes e suas conservagdes em existéncias des- vencilhadas do medo e do castigo. Dentre as miiltiplas singularidades ha o abolicionismo pe- nal. Ele ndo é propriedade de ninguém, nao postula ser universal, no se orienta pelo saber dos profetas intelectuais, das imagens de * FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do College de France (1970- 1982), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p, 109. Ver, em especial, RAGO, Margareth, ORLANDI, Luiz B. L. & VEIGA-NETO, Alfredo (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressondncias nietzschianas. Rio de Janeiro, DP&A, 2002, organizado a partir do Col6quio Que es- tamos ajudando a fazer de nds mesmos? 15 futuros arruinados. E um discurso estratégico composto de forgas liberadoras ¢ libertadoras das praticas punitivas modemnas. Ele quer provocar uma conciliac2o, no no Ambito universal fundando uma ordem apaziguadora como imaginaram Sélon ¢ Kant, celebrando ‘um tratado de paz. fomentador de novas dizimagGes, escravizagdes. A conciliagao para o abolicionista penal se volta para a imediata situagdo-problema, condicao singular que envolve tragicamente pessoas num instante de suas existéncias em que foram atacadas, imoladas, violadas, mortas. Efeito do imprevisivel, do intempes- tivo, da desrazio, do ressentimento, do desejo, a situago-proble- ma abarca desde vitima e algoz aos envolvidos no acontecimento, abolicionismo penal nio é s6 uma utopia que constata ex- clusées e discriminagdes; € uma pritica de liberdade que ni des- conhece o poder dos juizes, promotores, advogados, técnicos das humanidades, pais, educadores, administradores ¢ carcereiros. Diante do drama gerado por furtos, roubos, seqilestros, homicidi- 65, violentagdes e acidentes, jamais apaziguados pelo direito pe- nal, remete aos riscos da tragédia ao propor a conciliago para interceptar praticas punitivas. O abolicionismo penal é mais do que aboligio do direito penal ou da pristio moderna. Ele problematiza a sociabilidade autorité- ria que funda e atravessa 0 Ocidente como pedagogia do castigo em que, sob diversas conformagies hist6ricas, atribui-se a um superior 0 mando sobre o outro. Abala o dominio no qual a crian- ga e 0 jovem encontraram-se confinados & condigo de assujei- tamento imposto pela obediéncia as hierdrquicas regras da educa- ‘¢do na infancia ena adolescéncia ¢ a0 modelo do adulto legitimador de mentiras necessérias. 1. Libertagio ¢ liberagao Quando parecia haver a crenga na continuidade das prisdes, na proliferago dos direitos ¢ no desgastante embate decorrente da guerra fria estabelecida entre Estados imperialistas confron- tando o universal revoluciondrio de inspiragdo francesa e socia- 16 lista com o universal democrético glorificador do Estado norte- americano, os movimentos de jovens, em 1968, trouxeram desestabilidades, pelos diversos locais do planeta, abalando as certezas universalistas. Do seu interior, emergiu o abolicionismo penal como utopia para a sociedade igualitéria, mas também como potencialidade na atualidade. Com ele emergiu um redimensionamento libertério da sociabilidade que produziu préticas de subjetivagdes singulares problematizando o sistema penal. Ele néo aparece como uma al- ternativa e muito menos como mais uma utopia decorrente das rebeldes décadas de 60 e 70. O abolicionismo penal requer préti- cas libertadoras. Desse ponto de vista, ainda que possa ser toma- do como a utopia da sociedade igualitéria livre de prises e mani- cémios, ele € mais € menos do que isso. Como explicitou Louk Hulsman’, seu pensador mais radical, o abolicionismo penal co- mega na prdpria pessoa. Est além da libertagdo. E também uma pratica de liberagao. As intensidades provocadas por priticas liberadoras libertadoras ndo provocam a sensagdo de se andar por um cami- nho claro, tragado e pavimentado, como o das utopias. O abolicio- nismo penal constr6i percursos que sfo atravessados segundo as situagées-problema, apresentadas ¢ equacionadas diante das re- formas penalizadoras formalizadas em lei e disseminadas pelos costumes autoritérios. O abolicionismo penal nfo lida somente com os conceitos da justiga criminal, com os efeitos do direito penal, a formagao ‘académica de profissionais nas universidades, com as idas e vin- das do condenado até a prisio, sua vida confinada ou sob os re“ centes controles sutis do regime das penas alternativas. O abolicionista penal se relaciona no dia-2-dia com cidadios que se ‘negam a discutir o fim dos castigos, acreditam na sua eficdcia, na + HULSMAN, Louk. “Temas e conceitos numa abordagem abolicionista 4a justiga criminal”, In, Verve, vo. IL $0 Paulo, Nu-Sol, 2003, pp. 190-219, 7 sua importincia para demarcar limites, nas palmadas e nas pe- quenas surras. Até mesmo quando o abolicionista penal explicita 20 surdo que 0 castigo consentido entre as partes é de outra potén- ccia da que postula 0 direito penal e as préticas tradicionais funda- das em costumes transcendentais de religido ou razo, nao raras vezes, é tratado como inconseqiiente, irresponsével ‘Nao é incomum 0 abolicionista penal ouvir dos humanistas ser um ut6pico € nao haver discordancias com suas propostas. ‘Todavia, alegam scus oponentes ¢ seus estranhos simpatizantes que no presente a coisa é diferente. E preciso mais direitos sociais, para punir menos, ou punir mais e encarcerar mais, em nome da protec aos bons cidados, independentemente da sua situago de classe, pois hé pobres que ndo si criminosos, jovens de peri- ferias que sdo ordeiros, e também, burgueses ctiminosos, buro- cratas corruptos, e, desta maneira, em nome dos ideais superiores, amontoados de preconceitos engrossam volumes imensos de vros, ampliam a algaravia nas rédios e ruas, amplificam palavras € imagens nos jomais e revistas, televistes e fluxos de internet, em nome da sociedade segura, ordeira, confidvel e tolerante for- ‘mada pelos bons cidadzos. Os fluxos contempordneos de vidas conjugam democracia e punigdo, representagio eleitoral € participacdo na politica e em programas econdmicos, caracterizando uma era institucional fun- dada na seguranga, confianga e participacdo, trindmio gerado pela fusdio entre obrigagoes formais de Estado e colaboragdes sociais, ndo-governamentais®, ‘A busca por ampliagdes de seguranga, pela confianga em au- ‘oridades centralizadas e por participagiio constante caracteriza uma era de diplomacias que produz uma pletora de direitos que nao con- tém as maneiras de castigar exteriores a lei. A mais noticiada é a execugo sumdria realizada por integrantes de gangues, matadores profissionais contratados, ou policiais, num regime de pena de morte © PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle, S20 Paulo, Imaginétio, 2003. 18 que progride independentemente da lei universal, ou melhor, diante dessa mesma lei, que faz vistas grossas para algo que ndo cessa ¢ que orienta na administragdo, culpando os individuos e poupando as instituiges. O alegado crescimento das seculares agressbes de pais e parentes contra a prole é outra maneira de castigar que ganha grandes espacos nos noticirios a partir dos anos 90. Neste caso, ainda que o sistema penal apresente respostas punitivas para de- nincias averiguadas, a grande maioria dos casos jamais ultrapassa © siléncio que cada um impée a seus ouvidos. Um siléncio que reconhece 0 poder do mais forte, do superior diante dos menores mais fracos, tal como dispdem as priticas de uma sociabilidade autoritiria. A crianga ¢ 0 adolescente permanecem sendo proprie- dades particulares dos pais ou do Estado. Esto sob o regime do uso da orga gerador de mais violéncias, segundo os efeitos das desobe- diéncias. Diante da justa medida punitiva, imposta por pais ou pelo Estado, proliferam desmedidas consentidas que se expandem sobre outros mais fracos, irmios de sangue ou colegas de carceragem. Dos castigos corporais as ameagas de uso da forga para obter obedi- &ncia da crianga, as préticas exteriores a lei culminando no exterm{- nio, passando pelas diversas maneiras de torturar em nome da ver- dade, vivemos, no Ocidente, a hist6ria da continuidade dos casti- gos; uma histéria que exige reformas, atualizagio de mitos, alternativas, mas que nao admite ruptura com o imperativo: € casti- gando que se educa. De maneira andloga, mas invertida, hé também uma socieda- de sem penas regrada pela conciliagdo como maneira de equacionar uma situagio-problema levando, por exemplo, motoristas de auto- méveis a acertar uma indenizagao apés colisdo, prescindindo de policia e do direito penal. A maneira do direito civil, em que os diversos conflitos so acordados entre as partes para se resolver uma pendéncia, situagdes-problema podem ser equacionadas se- gundo suas singularidades dispensando-se do sistema penal. ‘A sociedade sem penas vive no interior da sociedade punitiva. composta, muitas vezes, pelos mesmos homens, mulheres, crian- gas ¢ adolescentes. Sua existéncia reflete néo haver pessoa que no 19 tenha cometido, sequer, uma infragdo. E € neste instante que uma atitude inventiva ¢ libertéria € capaz de evitar 0 trajeto para 0 vio- lento sistema penal (da policia ao tribunal). Muitas pessoas sabem muito bem do que estou falando quando, mesmo resguardadas em ‘caramanchées da moral enobrecedora da superioridade dos valores que professam, atuam corrompendo autoridades. Explicitam com sua conduta a visibilidade do universal como verdade interessada e particular. De fato, o universal Estado com sua justiga para todos no passa de uma instncia de poder e corrupeo impossivel de ser extirpada. A continuidade da crenga no Estado, na universalidade das leis e nas préticas penalizadoras provoca o espetiéculo de moralidade encenado pela difusdo da ética do combate & corrupso. ‘Trata-se de um gigantesco programa de dentincias que funciona para atualizar o sistema penal (abarcando o tribunal, televisdes, intemnet, policia, miseraveis), pretendendo suprimir arbitrariamente a sociedade sem penas ou utilizando-a segundo o interesse préprio, por meio de mentiras necessérias. Um crime nada mais € do que a qualificag%o de repulsa a certos costumes em defesa da sociedade, num determinado mo- mento da hist6ria, E corriqueiro encontrar priticas consentidas transformadas em crimes e vice-versa. Tomemos como exemplo © uso das drogas. Nos séculos XIX e inicio do XX elas compu- nham parte das delicias burguesas do Ocidente. Ao mesmo tempo ram usadas pelos empresdrios coloniais como mortificadores alu- cindgenos nos investimentos em expansio para o Oriente, como atesta a Companhia das {ndias Orientais na india e na China. Para quem ganhava com lucratividades econémicas e politicas, como a Inglaterra, as drogas eram mais que um prazer nos sales. Para os demais geravam crimes, guerras e assujeitamentos. No mesmo perfodo, 0 dlcool, nos Estados Unidos, passou a ser proibido le- vando 2 diversificagdo de corrupgdes de jufzes a professorinhas. Anos mais tarde voltou a ser liberado deixando caminho aberto para outras préticas de suborno, Enfim, é pelo proibicionismo que as corrupgées se expandem, multiplicam-se as segurangas, acres- centam-se novas punigdes. No final do século XX, atravessadas 20 pela medicalizagio, o puritanismo ¢ os programas de satide ¢ re~ presstio de Estado, as drogas nao deixam de continuar gerando proibigdes, ilegalismos, lucratividades, aprisionamentos, julgamen- tose corrupgoes, da mesma maneira que sabemos no haver trafi- co sem Javagem de dinheiro que nao passe por instituigées 2elo- sas da moral superior vigente. As drogas exemplificam o duplo jogo da moral e dos miiltiplos efeitos das éticas correlatas. Punigées e seletividades De fato a sociedade sem castigos existe, também, porque é im- possivel ao sistema penal punir todos aqueles que cometem uma in- Jfragéo lei, Ele funciona de maneira seletiva, enderegado aos que infringiram o direito de propriedade. No capitalismo, a propriedade privada material, o corpo da pessoa ou seus bens, No socialismo, a propriedade estatal e seus derivados imateriais. Em ambas as socie~ dades, as pessoas consideradas criminosas devem ser retiradas de circulago, caracterizando uma maneira de educar a todos, conheci- da como)prevengtio geral] Numa, sob o regime democratico, 0 alyo preferenciat da seletividade recai sobre o pobre que rouba, furta, es- tupra, mata. Noutra, é sobre o subversivo que desestabiliza a ditadu- ra. Assim, nas duas sociedades, sob regimes democréticos ou ditato- riais, qualquer infracdo 2 lei, material ou imaterial, caracteriza um crime contra todos, combatido de modo seletivo e identificando o infrator como perigoso. Diante da infragio selecionada pelo sistema, 1 vitima se transforma em testemunha de acusago de um crime co- metido contra a sociedade. Entio, em lugar da sua indenizagao, 0 Estado investe em punir 0 julgado culpado. O resultado final do pro- cesso leva 0 condenado ais penas altemativas ou ao encarceramento em pris6es, manic6mios, quando nao em manic6mios judicidrios ~ lugar em que se confina & pristo perpétua, sob a avaliagao cientifica da psiquiatria, o infrator considerado incapaz. de discernimento ou acusado de crime de comogao piblica. : A prevengio geral é sempre seletiva, Os perigosos sao tidos como anormais. subversivos, assaltantes, pobres, etnias diversas, a pessoas, grupos ou classes tidos como intolerdveis. No caso da to- Jerante cultura neoliberal ~ que se afirmou desde os anos 80 como reagdo as liberagdes atingidas nas duas décadas anteriores -, prolife- ram direitos, recomendagdes de condutas, controles simulténeos, ‘miséria disseminada, comandados por um Estado que se diz ausen- te do mercado ¢ que amplia sua atuagao penalizadora e policial’, Para além dos medos € dos castigos os normais constroem, em nome de uma vida idilica, penalizagdes normalizadoras sobre criangas, monopélio das armas no Estado e complexos policiais, Prisionais e assistenciais que funcionam oscilando entre progra- mas de reeducagio e reintegracdo do chamado infrator a propos- {as para trancafié-lo e perder a chave da cela, Neste momento re- conhecem que houve um fracasso inevitével na sociedade. Nem a familia, a escola ou a prisao foi capaz de normalizar a pessoa. Contudo, diante da iminéncia de um momento que pudesse pro- Vocar a reversio da sociabilidade autoritaria, o medo de si préprio faz com que a pessoa clame pelo prazer de morte, caracterizando © terrivel instante em que normais seus correlatos anormais se tangenciam. Os pequenos fascismos aparecem diferenciando-se dos exterminios consumados no interior das gangues, por justi ceiros e comandos policiais. © fascismo reaparece neste momen- ‘0, sob qualquer regime, expressando mais do que a decadéncia econdmica de setores conservadores. O medo que sentem dos que consideram inferiores somente pode ser superado pela atuagao incessante da méquina repressiva do Estado, conjugando mais do 7 Segundo Foucault, o “neoliberalismo americano busca estender a raci- onalidade do mercado, os esquemas de anélise que ela prope e os cri- Iérios de decisio que sugere a dominios no exclusivamente ou no prioritariamente econdmicos. No caso, a familia e a natalidade ou a delingtiéncia e a politica penal”, FOUCAULT, Michel, op. cit., p. 96. Sobre o Estado penalizador, ver em especial “De I'Etat social 4 "Etat pénal ~ Actes de la récherche em Sciences Sociales”, BOURDIEU, Pierre (org.). Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, vol. XI. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2002. 2 que aumento de punigdo, mas prsio perpétuae pena de morte, © adesio explicita a esquadrdes de justiceiros. Entre os a los inferiores, por sua vez, este instante explicita um transbordamen- to de represso para além do ambitopolciale fa reaparecer na figura do miserdvel edo criminoso 0 monstro que habit a ‘e que precisa ser exterminado por mimetizar e explicitar horror dos demais ; . oe rato iio so os libertrios que ameagam a lei universal. Eles tendem a levar a experiéncias liberadoras, desembaragando- as das uniformidades, revertendo-as em singularidades como re- gras m6veis, segundo uma situago-problema. A ameaga 8 lei i versal est no seu ideal de coninuidade, ransformando-se cm fas- cismos, legislagdes de excegées, 0 inverso do que foi idealiza 7 © fascismo, enfim, acaba sendo a exceedo tolerada pelo liberal diante de uma radicalidade liberadora. De fato, também, como conhecemos na histéria recente da II Guerra Mundial, 0s liberais escolheram apoiar 0s fascists contra os socialists estatstas por considerarem que esse totalitarismo era mais ae e funciona- como escudo contra o socialismo em expans: ; ees prisdes &s penas alternativas, passando pelo exten sem esquece servis momentos de geno), rava-se uma guera cv) nas prifriss das metopoles. A herana legada peo neolberlsmo fortes a penlizagao em detimento das polities soins fez das orgaizagdesno-governamentas as mais promissres proprerias da filantropia. Diante deste quadro, novamente emerge o imperativo da reforma do sistema penal, postulando sua atualizagfo segundo os mei- (0s do momento para tomé-lo mais ripidoeeficiente, Os reformadores do sistema penal, hé mais de século, nfo cansam de constatar 0 fracasso da prisdo como forma de reeducar © O liberalismo radical de Henry David Thoreau, no século XIX, expres- ssando a desobediéncia civil, nfo deve ser confundido com esta postura, ‘Ao contrério, sua recomendago de néo-governo o aproxima dos anar- {quistas. Do mesmo modo, pelo avesso, 0 scialismo estatal eo fascismo também se tangenciam para além da conjuntura dos tratados de If Guerra ‘Mundial, como registrou a histéria antes e depois do conflito bélico. 23 € reintegrar o infrator depois de passar um certo tempo cumprin- do pena, Encontram outras respostas punitivas associadas & conti nuidade da pristo, como foi o caso do regime das penas alternati vas. No inicio se imaginou que isso levaria a uma redugio do encarceramento, mas em pouco tempo se constatou ser uma polf- tica complementar & intermagao, uma maneira de punir mais pe- quenas infragdes seletivamente capturadas pelo sistema penal, compondo o que ficou conhecido como politica de rolerdincia zero. Ao seu lado, os reformadores investiram em programas de educa- ‘¢40 da polfcia, contando muitas vezes com o apoio de organiza- {ges nilo-governamentais no gerenciamento de condenados a penas fora da prisdo. Ampliaram, enfim, 0 aparato repressivo-administra- tivo do Estado para a sociedade e atualizaram os equipamentos ¢ a legislacdo sobre o uso de armas, ‘Todo este conjunto em aberto de reformas penais em escala planetéria reconhece que a prisZo € um fracasso, o sistema penal, injusto, lento, retrégrado. Cada reforma apenas repoe ~e isso deve ser dito — um cfrculo viciado de justiga penal que no suporta 0 que escapa da padronizagao politico-cultural’. Na atualidade, as politicas de tolerdincia zero acabaram influ- enciando também os estudiosos das prises. Loic Wacquant mostra que as pesquisas atuais sobre a vida nas prisdes se concentram em andlises a distancia, Tratam de dados estatisticos, taxas, formas efi- cientes da administragio carcerdria””. Abandonaram os estudos so- * O antropélogo Claude Lévi-Strauss (Tristes trpicos, Sio Paulo, Com- panhia das Letras, 1998) afirmou que as sociedades chamadas primi tivas incorporam os desvios de seus integrantes de maneira antro- Pofigica; as sociedades civilizadas, a0 contrério, nfo suportando o diferente procuram expulsé-los ou confiné-los em arquipélagos re- pressivos. Caracterizam-se como sociedades antropoémicas. ~ " Ver também sobre 0 assunto, MATHIESEN, Thomas. “A sociedade espectadora. O ‘pandptico” de Michel Foucault revisitado”, In, Mar- gem, vol. VIII. So Paulo, Educ/Faculdade de Cigncias Sociais PUC- SP, 1998, pp. 77-95. 24 bre 0 cotidiano na prisio, o que também acaba refletindo no desa- parecimento de reconhecimento na legitimidade dos levantes e re- belides de prisioneiros. Wacquant constata que a subcultura ccarceréria ndo mais “uma reagdo as privagées sofridas na pristio, ‘mas [6] importada da rua”"'. No caso estadunidense, pertencer a luma raga é 0 trago dominante nas prisdes, fazendo com que o anti- 0 cédigo do prisioneiro contra guardas e carcereitos acabe sendo abafado pelo cédigo das ruas dominado pela violéncia e lideres de gangues. A fusio rua-prisdo € reexportada pela pristio e difundida Para a sociedade pelos circuitos comerciais e de midia tradicional, ‘como glorificagdo do gueto ou da periferia. Pode-se afirmar que tal rocesso niio é exclusivo dos Estados Unidos. Ele compe um flu- xo de valores que atravessa as diversas camadas sociais em estgio de decadéncia e que se apropria desta fusdo rua-prisio, indicada Por Wacquant, por meio de modulagdes de vestustio, giria, misica clipes, construindo um trajeto cada vez mais fascista. A prisio atual procura neutralizar o delingiiente, isold-lo em gangues, afastando de seu interior grupos de defesa de direitos. Amplifica 0 paradigma da lei e ordem que apela diretamente ao ressentimento popular que exige que a prisfio faga da vinganga uma politica piiblica. Os efeitos dessa situago, por conseguinte, segundo Wacquant, podem ser resumidos em trs pontos: difusio da nogio encarcere o criminoso e jogue a chave fora; despolitizagio da prisdo, deslegitimando qualquer forma de rebeliao; identifica ‘e4o do preso com o rebaixado cultural. O encarcerado permanece sendo um corpo sobre o qual se investem dor, castigos, produtivi- dade, moral e equipamentos de controle, como os derivados da economia computacional’?, " WACQUANT, Loie. “A cor da justiga: quando guetoe prisdo se en- contram ¢ se mesclam', In, LINS, Daniel & WACQUANT, Loic (orgs.). Repensar os Estados Unidos: para uma sociologia do super- poder. Campinas, Papirus, 2003, p. 181 " CHRISTIE, Nils. A indiistria do controle do crime. Rio de Janeiro, Forense, 1998. 25 ‘Aseletividade do sistema penal expressa a impossibilidade de se punirem todos os infratores e reconhece nfo haver necessidade de castigar qualquer infragdo. Trata-se de uma falcia dizer que ha infragdo mais ou menos grave (sendo nfo haveria exterminios dissociados da caracterizagio de crimes hediondos). A seletividade do sistema penal dimensiona os privilégios, segrega os demais como pperigosos e os associa aos mais pobres. Discrimina, como por exem- plo, no Brasil, menores ¢ adolescentes segundo as classes sociais, transformando, na atualidade, o Estatuto da Crianga e do Adoles- cente, um suposto universal, nurm empecilho’ ordem penalizadora’*. ‘Ocncarceramento, por sua vez, €dispendioso para 0 Estado, nfo reintegra ou ressocializa, funcionando ainda como escola do crime, CContudo, internagdes para menores de idade e pris6es para adultos es- tabelecem outra continuidade dinamizadora dos efeitos da relagio rua- prisio. Trata-se, agora, de um investimento no imeversivel que le} rma qualquer ago repressiva e que ultrapassa, inevitavelmente, oli da propria le, abrindo espagos para a difusio de fascismos. O direito penal no 6 someint a vinganga de sangue transformada «em impessoal lei universal, Sob o regime de ‘olerdincia zero € uma polf- tica pablica de investimento na naturalizagio do castigo, no perpétuo cencarceramento € no exterminio regular. O universal lema de defesa da sociedade permanece como defesa dos inieresses dominantes, € ndo se “esgola nests trajtos até agora mostrados. Ao chegar ao sistema penal, mniltiplas séries de acordos e corrupgées slo vivenciados pelos agentes a lei ¢ 0 infrator, provocando outras filtragens no sistema penal. Os ispositivos seletivos, portanto, no obedecem apenas a uma associagio entre pobreza e criminalidade. Envolvem também autoridades ¢ crimi- ® Mesmo sendo impossivel dissociar no interior do ECA medida socioeducativa de pena. O empecilho esté no fato de o Estatuto ter sido elaborado sob inspiragio do welfare-state numa época, a dos anos 80, em que se disseminava o neoliberalismo pelo planeta. Na atuali- dade ele é defendido pelos militantes dos direitos humanos, politicos & intelectuais comprometidos com ampliagio de direitos sociais. E com- batido pelo ampliado conjunto penalizador que atravessa aestratificagio social ite 26 nnosos de todas as classes sociais, com seus arranjos circunstanciais, pac- ‘os € contratos que acabam em diversificagao de investimentos, pena de ‘morte, reforma de delegacias, reeducagdo e introdugdo de novos equipa- Imentos, novidades académicas. Neste cftculo viciado — seria estranho se no fosse real ~ os setores pauperizados so os que mais pedem por seguranga, ali naquele lugarzinho de confinamento chamado periferia, onde se acostumam com a miséria, se assustam com violéncias, produ- zem policiais e criminosos, ¢expressam a dignidade de ser pobre, corre- ‘o, limpo e escolarizado. A prevengao geral é seletivae a seletividade éa politica do sistema penal: no hé crime que nio seja politico. 3. Abolir os castigos: resposta-pereurso O abolicionismo penal é um percurso no qual pessoas atuam. lado a lado compondo um fluxo que vai dos envolvidos na situagao- problema aos intelectuais nas universidades, construindo-se uma nova Jinguagem. Para Louk Hulsman,o intelectual atuante no abolicionismo penal nio é mais o herdeiro do ilumninismo com a pretenso de con- duziro movimento social. Concordando e incorporando as reflexes de Michel Foucault, compreende que o intelectual néio é mais o agen- te de conscincia superior, mas um parceiro envolvido diretamente no acontecimento, atuando na demoligao do direito penal moderno. Oabolicionismo penal passa a ser uma prética que néo desconhece as implicagdes de poder ¢ dominio resultantes da relago entre direito penal e ciéncias humanas, posicionando-se favordvel a tomadas de decisdo que abdiquem da aplicago universal da lei e da uniformida- de dos procedimentos para tratar cada caso como singularidade!* Outros abolicionistas penais como Nils Christie e Thomas Mathiesen lidam com 0 abolicionismo penal como um itineratio a ser percorrido por meio da critica hist6rica ao dominio do direito de classe, levando a linguagem juridica ao seu limite e sinalizando para a sua superagao * Para Hulsman, o castigo € algo que implica a concordancia entre as partes. Imaginar a supressio, por completo, dos castigos ¢cair na mes- ‘ma vala dos absolutos e das transcendentaidades de que se afasta. 21 ‘coma realizago da utopia da sociedade igualitéria, Por diversos ins- tantes estes fluxos se tocam, misturam e atravessam, para se distin- sguirem e apartarem em seguida, quando abordam os efeitos do dit to penal © abolicionismo penal de percurso esté préximo do liberta- mo, realiza a intensidade da vontade de querer na atualidade, atuando estrategicamente na possivel quebra da uniformidade. O abolicionismo penal de itinerério, por-sua vez, lida com 0 conhe- ccido, pode até chegar a encurtar 0 caminho, mas nfo se desobriga de reconhecer a universalidade e a superiotidade dos juizes, pro- motores ¢ advogados. Ambos os abolicionismos néo se excluem, ‘mas compdem estratégias. De maneira andloga pela qual Hulsman se aproxima de Foucault e daqui se abrem perspectivas libertarias indicadas pelos anarquistas desde William Godwin, no final do século XVIII. Christie e Mathiesen aproximam 0 abolicionismo da criminologia critica e desta maneira, segundo os acontecimen- tos, as possibilidades de reversfo do direito penal para as singula- ridades das situagdes-problema esto colocadas e dependendo do querer das pessoas"*. De fato, para estes, a aboligdo do castigo é ‘uma nova moral, enquanto que, para os libertétios, a aboliglio do castigo, ao comegar em cada um, é uma ética que se elabora na invengio da vida e de outros costumes para viver. 0 abolicionismo penal provoca, como se pode notar, uma escolha entre certeza no saber ¢ vontade de querer, movendo seus integrantes para fluxos diferentes, ainda que no deixem de se tocar. Para 0 abolicionismo libertério niio se combate o fim da pu- nigio no capitalismo com a diversificagio ou a redugio de direi- 5 Caberia aqui uma observagio. Os anarquistas do século XIX estariam ‘em parte enfeixados ao lado dos abolicionistas de itinerdrios, defen- dendo uma nova moral, afirmando & utopia igualitria, em especial Piotr Kropotkin, Entretanto, convém lembrar que os anarquistas, di ferentemente de outros socialistas, afirmam a existencia de suas pri ‘cas no presente, etrafegam por percursos libertérios. De outra manci- ra, com i850 se esta mostrando que na hist6riaa idéia de espirito, de universal e de utopia esté arruinada pelas praticas de liberdade. 28 tos sociais. Isso pode levar a embates sobre maneiras de reformar, como se verifica desde a tiltima década do século XX entre defenso- res das derivagSes do neoliberalismo e os diversos socialistasestaistas. Os direitos sociais podem ser, comparativamente, sob certas cir- cunstancias histéricas, meios para a contengio de politicas de se- ‘gregacdo social, encarceramento prisional um redutor de desequi librios sociais, ampliando as praticas de tolerancia. No interior das fronteiras capitalistas encontraram repercussdes no Estado de Bem-Estar Social, tanto na Europa quanto na América do Norte. Porém, com 0 neoliberalismo introduzindo o discurso da liberda- de de mercado com a democracia politica, desmanchou-se 0 welfare-state © apareceu em seu lugar um Estado Penal. Este se desinteressa pela prioridade em reintegragdo ou ressocializagio dos criminosos, para exercitar uma politica de condenagio 4gil € intensa, que difunde a crenga no trancafiar e jogar as chaves fora. Punir € 0 verbo repetido que circula entre zunzuns ¢ algaravi- ‘as € que contagia as pessoas pelos diversos segmentos sociais. De- fesas racistas reaparecem acusando categoricamente pessoas de se- tores mais pobres como sangue ruim, assim como estrangeiros, migrantes e grupos étnicos miserdveis. E como se, mais uma vez, ‘apenas o pobre, limpo e agora, escolarizado, fosse 0 cidadao a ter acesso a alguns equipamentos sociais minimos e poder aproveitar as maravilhas da mobilidade social acenada pelo capitalismo; como se fosse possivel esquecer que 0 complemento do direito penal é sempre o direito social & educagio universal. Vive-se em um perfo- do de reducZo da tolerancia cuja prética explicita ficou conhecida como tolerdncia zero. E como ndo hé nada compartimentado nem proprio numa sociedade como a nossa, em pouco tempo, os socia- listas comegaram a defender também a folerdncia zero, como ma- neira de expandir controle de empregos respondendo favoravelmente {as sondagens de opiniao publica, e apresentando suas versdes auto- rais de reformas para o sistema penal. abolicionismo de percurso se aparta das aproximagdes geradas pelos efeitos de mais ou menos tolerfincia encenados no Estado moderno. Toma seus cuidados no interior de uma prética 29 libertéria que nfo se pretende condutora e esclarecedora da hist6- ria da imobilidade ou da ignorancia dos povos. Esta em jogo, sim, «propria existéncia de pessoas atravessadas pela situago-proble- ma: vitima, suas pessoas préximas ¢ os efeitos da dor da perda, 0 algoz.com suas razdes e desrazdes. Sé nfo est em jogo a consa- gragiio da vitimizagdo ou o inocentar aprioristico de um algoz. Desde William Godwin os libertérios sabem que € impos- sivel querer suprimir da vida 0 acontecimento da morte arbitré- ria e de maneiras de confrontos que envolvem traigdes e trapa- as. Os libertérios afirmam a vida e seus costumes horizontaliza- dos dissolvendo as relagées de hicrarquia desde a educaco de criangas até abolir 0 dominio patriarcal nas relagdes amorosas. Para eles, a imposigdo de limites na vida da crianga expressa 0 comando adulto, cujo exercicio se encontra no uso legitimo da forga ou na ameaga de wtlizé-la. Da mesma maneira, 0 Estado moderno vive do possfvel exercicio do seu poder no limite, so- bre a geografia ¢ a populagio, por meio da lei universal ¢ do monopélio do uso da forga. Esté em jogo a imposigao da defesa do império da virtude, do aperfeigoamento da legislagio universalista e do investimento em extirpar o mal. Constréi-se, desde entdo, 0 discurso da prevengio geral pelo direito moder- ‘no, em nome da defesa da boa sociedade. 3s libertérios buscam afirmar o local ¢ 0 heterogéneo. Sa- bbem que Estado ¢ dominio e ndo se define por maximizagao ou minimizagio de governamentalizagdes. Mas 0s libertirios nfo se preservam no interior de programas de preparagio para a nova sociedade, esté-se livre, também, de utopias consoladoras. Séo heterot6picos"* que atuam no presente procurando solugdes sin- gulares na batalha cotidiana da vida, atravessando como némades ' PASSETTI, Edson, “Vivendo e revirando-se: heterotopias libertérias nna sociedade de controle”. In, Verve, vol. [V. So Paulo, Nu-Sol, 2003, pp. 32-55; ¢ “Abolicionismo penal: um saber interessado”. In, Dis- cursos sediciosos, vol. XII. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Cri- minologia e Revan, 2002, pp. 108-118. 30 08 relevos ¢ as superficies lisas, enfrentando desafios e procuran- do, diante de uma situago-problema, respostas-percurso!” Diante de uma situago-problema, uma ou mais respostas-per- curso. Resposta que no se fundamenta numa universalidade, numa unio ou absolvicdo. Mas, a0 contrario, resulta da conversagio, esta prética existencial em que se busca convencer 0 outro e ser por ele convencido. Nao é, por conseguinte, um didlogo sobre o escla- recimento de um superior (juiz, promotor, técnico em humanida- des, pastor, pai) a seu discipulo, a quem feriu a prevencao geral a quem se pretende educar. Trata-se de um didlogo de risco estabele- cido entre as partes envolvidas ¢ que introduzem um contraposicio- namento das autoridades de Estado. O percurso, por isso mesmo, permanece desconhecido e singular, recusando a regularidade do acontecimento ou das estatisticas das possiveis respostas-percurso, incluindo margens, taxas de acertos, reincidéncias ou modelos. A singularidade demanda atengio e tempo dos envolvidos, incluindo as autoridades judiciais, que a moderna aplicago da pena nfo re- quer por se voltar para a rapidez ¢ eficdcia da aplicacao, segundo 0 questiondvel e indescritivel eritério de periculosidade internando e acoplando-se aos regimes de penas alternativas. A resposta-percurso para cada singularidade requer tempo para tomada de decistio a partir da conciliagao entre as partes ¢ acompanhamento do desenrolar daquilo que foi acordado entre eles'*. A solugdo para cada caso é pois tinica, como tinica é cada pessoa. A tomada de decisiio requer aboligdo da cabeceira da mesa F Devo este termo a Salete de Oliveira a partir de seminério interno realizado em 1999, no Nu-Sol, sobre a critica ao abolicionismo penal € &s propostas de modelos alternativos & lei universal. Naquela oca- silo descartamos a nogo de modelo e os modelos tragados por Louk Hulsman (concitiatério, compensaistio,terapéutico, educativo), pelo seu teor académico ¢ aderimos a de resposta-percurso. "ste breve enunciado explica aos técnicos e autoridades judiciais por- {que 0 abolicionismo penal nao & uma politica de desemprego. Ao mesmo tempo, informa que 0 procedimento atual é também abolido e 31 ou do degrau superior onde se encontra a mais alta autoridade. Ela exige que sejam dissolvidos lugares e patamares, levando a horizontalizar as conversas para a tomada de decisfio, Dessa ma- neira est4 abolido também o seqilestro da vontade dos envolvi- dos, transformados anteriormente pelo direito penal em testemu- nhas. O Estado permanece, mas funcionando como indenizador das partes, nao Ihe cabendo o papel de administrar as respostas- percurso, ser guardido dos bens ou pessoas, ditar as regras da pre- vengo geral. Ele permanece como presenca de autoridades que esto pessoalmente envolvidas com os riscos e dele se apartando. Nao hi pois medida dé seguranga (para proteger as autoridades do que se considera louco), nem tampouco acertos entre técnicos © autoridades, isentando-se da decisfio, mediante a continuidade ou cessagao de periculosidade do apenado, segundo laudos de especialistas. A situaco-problema leva as partes envolvidas a re- conhecer 0 risco da decisao, as necessidades de revisio, o fim da economia politica das penas que varia segundo as circunstancias, hist6ricas. O abolicionismo penal sabe que ahistéria ndo éinvariante, tanto quanto niio haver uma ontologia do crime. E os abolicionistas sabem e querem atuar estrategicamente nesta guerra” Cuidados com criangas ¢ jovens ultrapassam a familia e a instruco governamental, disseminadores de obediéncia impesso- al e delago mediante sigilo absoluto. Os libertarios bifurcaram seus caminhos no século XIX. De William Godwin a Mikhail Bakunin a educagdo de criangas foi vista como atuagao da autori- dade racional dos adultos levando & poténcia das préticas liber- Teposiciona os contabilistas do sistema penal a avaliar, inclusive, 0 barateamento de custos. Ao abolicionismo penal interessa a indeniza- «20 da vitima e nfo o investimento em punigdes como encarceramento (ou modelos alternatives. '” E assim que tem atuado 0 Nu-Sol, envolvendo-se com priticas capa- zes de abolir o castigo para criangas e jovens regulamentadas como ‘medidas socioeducativas pelo Estatuto da Crianga e do Adolescente (ECA). Ver www.mu-sol.org. 32 Bibi heii Gi BUAU HEREULING tdrias, na medida em que as criangas crescem, inventando costu- mes livres de autoridades superiores. Outro percurso, o proposto por Max Stirner, trata da liberagdo dos instintos problematizando a razio superior dos adultos (0 que seria questionamento também do julgamento de valor libertario inicial da educagio proposto pelos demais). Entretanto, num campo estratégico € heterotépico, os abolicionistas penais aprendem e ensinam segundo as situa- es-problema. Nao se trata neste caso de contemporizar, mas acrescentar os efeitos de positividades das resisténcias entre ertdrios, segundo o mesmo e coerente principio que aproximae distancia os abolicionistas de percursos itinerdrios. De sorte que nem percurso, nem itinerdrio podem ser apanhados por uma fata- lidade, excluir ou subordinar. A aboligao do castigo 6 valoragdo de novos costumes, como resposta-percurso para situagdes-problema. Nao é apenas um efeito ou derivagdo do direito penal. Sua existéncia € 0 reconhecimento que nossa cultura se funda numa sociabilidade autoritéria, que nenhum regime democrdtico consegue conter ou dissipar (basta lembrar os indesejaveis campos de concentracio e de exterminio disseminados por meio dos efeitos da democracia, tanto quanto ‘0s pequenos e grandiosos gestos fascistas de pena de morte ‘genocfdio). © abolicionismo penal é a constatago que uma sociedade sem penas existe e que dela se faz uso autoritério ¢ libertario; que a uniformidade inexiste; que muitos querem o pluralismo como consagragdo de uma tenebrosa uniformidade que perpetua a pre vengdo geral; que alguns se imaginam capazes de guiar os demais por meio do seu esclarecimento, Hé uma associabilidade libertéria que se difunde por mirfades de associagdes, inventando vida onde se quer conservagiio, e diante do conservadorismo de hoje em dia, afirma a conservagao libertaria da inovagao. E preciso defender a juventude contra as imagens arruinadas de futuro. Nio como defensores da verdade, mas como pessoas capazes de propiciar experiéncias de liberdade no presente. Con- tra o bolor das utopias, o frescor das heterotopias libertérias. 33 ALTERNATIVAS A JUSTICA CRIMINAL” Louk Hulsman Este trabalho versa sobre altemativas justiga criminal, embora nfo enfiente o tema geral do castigo. Vejo a punigdo como forma de interacdo humana em diversas préticas sociais: na familia, na escola, no trabalho, no esporte. Neste sentido, todos conhecemos o castigo ‘em ambos os seus papéis, o passivo do ser punido e 0 ativo “daquele ‘que pune”, ‘A imagem que as pessoas tém da justiga criminal, em boa parte, se baseia na apresentagao de suas atividades, como estas sio passa- das pela mfdia. Quando participam indiretamente da justiga crimi- nal, ou avaliam o sistema como espectadores, as pessoas 0 fazem com base em uma imagem produzida pela midia, Na justiga criminal tusa-se a linguagem da punigdo; assim, as pessoas acreditam que haja ‘uma congruéncia entre 0 contexto do castigo que thes é familiar, com base na experiéncia direta, e os processos desenvolvidos no interior da justiga criminal, Esta congruéncia, no entanto, nfo existe. 2 Texto originalmente publicado em GIORGI, Raffaele de. 1! Dirito e la Defferenza — Scritt in Onore di Alessandro Baratta, vol 2. Lecce, Pensa Multimedia, 2002, Tradugao de Maria Léicia Karam. 2! Nos contextos sociais que pude conhecer, em muitas partes do mun- do, as interagoes baseadas na punigdo referiam-se a situagées proble- réticas simples, de menor importincia, Instncias mais complicadas ‘ou mais importantes sempre eram enfrentadas de maneira diversa, [sto vale também para 0s profissionais atuantes nas organizagdes que formam a base material do sistema. A divisto do trabalho dentro do sistema toma praticamente impossfvel uma experiénciadireta, por parte dos funcionérios, das diversas atividades que, em conjunto, formam o processo de criminalizagéo. Ao que, no interior do sistema, definido profissionalmente como “castigo” (determinadas decisdes judiciérias e sua execucao) falta a relagdo “aquele que pune — aquele que é punido” . E exata- mente na relagdo “aquele que pune” ~“punido” que se deve buscar a caracteristica da “punigao” (ao contrério da violencia). Na justica ‘criminal, as atividades (e as experiéncias) formalmente denomina- das castigos nao sdo, pois, assimiléveis aos eventos que, fora dela, silo considerados como punigdo. Na prética, chamar tais atividades de punicdo significa criar uma legitimagao infundada; em conse- aéncia, nao considero a justica criminal como um sistema destina- do a dispensar punigdes, mas sim um sistema que usa a linguagem. da punigo de modo a esconder os reais processos em curso e pro- duzir consenso através de sua errnea apresentagio, assimilando- 1s aos processos conhecidos e aceitos pelo piiblico. A linguagem convencional no discurso piblico esconde as realidades relaciona- das &s situagGes problematicas (crimes) e & criminalizagio. Farei, assim, inicialmente, algumas observagées sobre a lin- guagem ea posicio do estudioso a respeito de nosso tema: no se pode falar de justica criminal e de alternativas sem indicar os valo- res que queremos levar em considera¢o na comparagdo entre um enfoque do ponto de vista da justiga criminal ¢ uma situagdo em que 0s enfoques so outros. Em seguida, falarei dos valores, examinando, portanto, quiio realistas sfo as opinides sobre a justica criminal (e no penso que 0 sejam), quando apontarei trés erros fundamentais nas idéias do- minantes sobre esta. {0 “completa” pressupde um acordo entre quem pune e quem ‘quem pune” querendo punir e quem & punido aceitando a atividade daquele que pune como punigdo. & até possfvel que alguém perceba uma decisio por parte de um outro como uma punigao, embora quem puna nio tivesse tal intengo. Tomemos como exemplo 0 caso de alguém a quem, no Ambito de seu trabalho, sao atribufdos encargos por ele percebidos como degradantes, assim tendo a errada suposigio de aque tal mudanga de atribuigdes seria uma forma de punigao. 36 Coneluirei, entéo, com algumas propostas (priticas) para um novo enfoque da questo das alternativas, 1. A linguagem e a posigio do estudioso Um debate priblico em Cérdoba Em outubro de 1996, tive o privilégio de participar de um debate piblico em matéria de seguranga, na cidade de Cérdoba (Argentina). O debate foi promovido por uma organizagio de vo- luntérios denominada “El Agora”, que se propée a incentivar os cidadaos a expressar suas préprias opiniées e promover ativida- des diversas em matérias de interesse piblico™ (O debate comegou com pequenos grupos de 10 a 15 pessoas, Qualquer um que estivesse interessado poderia se inscrever. “EL Agora” fornecia-um coordenador para cada grupo. Os temas em discussdo, na primeira reunido, eram os seguintes: As vezes, voce se sente pouco seguro nesta cidade? Em que contexto, em quais circunstincias? O que pode ser feito para diminuir essa sensagao de inseguranga? Quem e como pode contribuir para este fim? ‘Na primeira rodada de discuss6es, os participantes nao fala- ‘vam como especialistas, referindo-se sim a experiéncias pessoais, sensagdes e a suas opinides como cidadiios. Os participantes nio procuravam despertar 0 consenso dos demais; deveriam apenas procurar se identificar com as diversas experiéncias, sensagdes & necessidades expressas pelo grupo. 7" ‘No final da tarde, resumfamos todas as opinides e posigdes ex- ppressas em cada grupo em um tinico grande esquema, no qual, obvia- ¥ Glandia Laub, socidloga argentina que trabalhou por longo tempo no Ministério de Assuntos Sociais na provincia de Cordoba, Argentina, {em um papel primordial nesta organizagdo. Participa também das ati- vvidades do Férum Europeu para a Seguranga Urbana. Encontrei- pela primeira vez, no émbito das atividades do Forum; a participagio nestas atividades foi, para mim, de grande ulilidade para uma melhor ‘compreensdo dos temas debatidos neste ensaio. 37 mente, haviamos deixado espaco para as observages sobre as agées ‘a serem adotadas em relagdo aos transgressores. Esta seo, no en- tanto, permaneceu praticamente vazia. Os participantes desejavam vvariadas agdes concretas que poderiam ser classificadas nas categori- as de reparacio ¢ prevengao, mas 0 tema “punigdo dos criminosos” ~ argumento central do debate oficial — s6 aparecia marginalmente. Na medida em que nao havia uma colocagdo natural deste tema nas ages concretas sugeridas pelos participantes dos grupos de trabalho, as palavras nfo se encaixavam na linguagem do discurso oficial, Nao Ede se espantar, pois, que todos os especialistas, chamados a comen- tar o resultado da discussio nos grupos de trabalho, apontassem a surpreendente diferenga entre as duas linguagens. A academia ¢ a linguagem sobre crime, justiga criminal e seguranga A meu juizo, os estudiosos, que atuam nos campos relacio- nados ao debate sobre crime ¢ justica criminal (e que concordam com os valores criticos presentes na tradigio académica)*, tém uma dupla tarefa: a) descrever e analisar os processos de criminalizagao, de modo a permitir a determinagio das conseqléncias e de sua legitimidade; ') dar uma mao a quem (profissional ou no) procura en- frentar situagdes problematicas* (do ponto de vista da re~ ® Refiro-me, antes de tudo, a0 valor eritico académico traduzido na ex- pressio “‘nio é necessariamente assim”: valor critic emancipatério. ‘Uma parte significativa da produgo académica refere-se a valores que, de fato, no emancipam, Explicarei mais adiante © de mancira mais detalhada que o fato de alguns aspectos de uma situagdo darem origem a processos de criminalizagao (priméria ou secundéria) nao necessariamente signil ccaque tal situacao seja efetivamente problematic. Organizagdes como 38 paragio e/ou prevengio), objeto de criminalizagao secun- déria ou de pretensdes de criminalizagio primaria” . Para levar a cabo esta dupla tarefa, faz-se necesséria uma linguagem. Esta linguagem no pode ser aquela em que se pratica e se legitima a justica criminal. Tendo em conta que 0 uso de tal linguagem possibilita o estabelecimento da legitimidade da justi- ca criminal, & luz de determinados valores explicitos, é melhor partir da formulacio de tais valores, que nos indicaro onde ¢ a policia, os tribunais, o poder executivo e o parlamento ocupam-se principalmente de atividades criminalizantes, porque 0 fato de fazé-o & percebido como sendo de seu interesse ¢ 0 de nifo fazé-lo como sendo potencialmente danoso, O mesmo vale, em boa parte, para os atores singulares dentro destas instituigdes. Considerando @ lingua- ‘gem prevalecente no debate sobre a justiga criminal (¢ no debate poli- tico em geral) € facil, para os atores singulares, neutralizar “a prépria responsabilidade” no que conceme as conseqUéncias.. Digo “dar uma mio a quem..." € ndo “desenvolver modelos para..” por aque estou de acordo com a definigdo de Foucault (“Qu’apelle--on pu- nit”. In, INGELHEIM, F [org]. Punir mon beau souci. Bruxelas, Presses Universitaries de Université Libre, 1985) do papel do estudioso em re- lagdo a estes temas. Conforme sua opinido, 0 estudioso ndo deveria se cesforgar para se revestir do papel do profeta-intelectual que diz &s pessoas ‘que fazer, fomecendo-Ihes esquemas de pensamento, objetivos e meios (que ele desenvolve em sua mente, trabathando ali com os instrumentos {que tem A disposigo—modo tradicional em que trabalharam muitos estu- FATTAH, E. From a handful of dollars to tea and sympathy. Amsterdam, 9 International Symposium on Victimology, 1997. 47 Isto permite determinar 0 modo em que se desenvolve 0 “compor- tamento” dos procedimentos correntes. Resumindo, a justia criminal consiste, de um lado, nas ati- vidades de determinados érgaos enquanto frutos da organizagio social e cultural antes descrita e, de outro, no acolhimento e na legitimagio destas atividades nos diversos segmentos da “socie- dade”. A aboligio volta-se para ambas as rea organizagées ¢ seu acolhimento na “sociedade”. O resultado de um debate racional sobre nossos temas é in- fluenciado, de um lado, pelos valores que fazem as vezes de ori- entagio para os participantes e, de outro, pelos fatos extrafdos da propria tealidade, de que falarei em seguida, ‘Tr€s sto 0s erros fundamentais a propésito da “realidade efe- tiva’, desempenhando um papel na discuss2o e influindo, de ma- neira determinante, no processo de decisio, ss atividades das a) A “criminalidade oculta” (cifta negra) e a normalidade (neutralidade) dos efeitos penais. Para compreender este erro, fazem-se necessdrias algumas informagGes sobre o desenvolvimento de nosso conhecimento no campo que, na criminologia, se chama de “cifra negra”, Inicialmente, os criminélogos — para terem uma idéia da fre- aquéncia ¢ da natureza de um crime — trabalhavam com os “dados estatisticos” extrafdos das atividades dos tribunais penais.. Quando se descobriu que muitos fatos potencialmente cri- minosos, comunicados a policia nem sequer chegavam as salas dos tribunais (por diversos motivos, dentre os quais a autoria ig- norada), 0s criminélogos comecaram a trabalhar mais com as es- tatisticas da policia do que com as dos tribunais. A diferenca en- tre os crimes comunicados (nas estatfsticas policiais), em relagio as estatisticas dos tribunais, foi definida como cifra negra. Ha algunas décadas, comegou a se desenvolver uma nova perspecti- vva sobre a cifra negra, quando foram sendo introduzidas as pes- 48 quisas de autodentincia ¢ de vitimas™ ¢, em seguida, as técnicas de observagaio. Sabemos, agora, que a efetiva criminalizacdo é um faio raro e excepeional No campo da criminalizagio, baseado em “procedimentos reativos” (existem pessoas que se sentem tratadas injustamente em uma situago, mas, na pratica, a policia s6 age depois que € feita uma comunicag0), a razo principal de fatos de natureza criminosa nao serem criminalizados € que as vitimas no 0s co- municam 2 policia. Existem, no entanto, muitos outros motivos: talvez a polfcia niJo tena tido tempo para se ocupar da noticia do crime; ou no encontrou o culpado; ou considerou o fato um pro- blema e nio um crime. Ou o tribunal ndo teve tempo para se ocu- pat do fato, ou sobrevieram outros obstaculos processus No setor da criminalizagao, baseado em “procedimentos agentes (ativos)” (como transgressGes ligadas & droga ou A segu- ranga do transito), € dificil, para a policia, chegar ao conhecimen- to dos fatos. Este motivo, somado aos limitados recursos da poli- cia para se ocupar de fatos notaveis, sob um ponto de vista admi- riistrativo, 6, aqui, a principal razao de a “efetiva criminalizagZo” (adiscusso de uma causa em uma sala do tribunal ou a aplicago de outras espécies de sangdes formais) ser um fato to raro. ‘A esmagadora maioria de fatos passfveis de criminalizagiio (“grave” e “menos grave") pertence, pois, & cifra obscura. Todos esses fatos so, assim, tratados fora da justica criminal, Digo, in- tencionalmente, “tratados", porque niio devemos cometer o erro 5 Nas pesquisas de autodentincia pergunta-se a pessoas, selecionadas por amostragem, qual a frequéncia em que cometeram atos potencial- mente criminosos, em um determinado perfodo, ¢ quantas vezes se seguiu uma intervengdo da justiga criminal, Nas pesquisas com viti- mas, fazem-se perguntas sobre a freqiiéncia ¢ a natureza do problema conseqiiente a um ato de tipo criminal, Em muitos paises - EUA, Holanda etc. as pesquisas com vitimas acontecem regularmente € conduzem a estaisticas separadas, que vio formar a base priméria de dados para os crimin6logos (juntamente com as estaisticas dos tribu- nais € da poticia). 49 de pensar que o que no estd nos autos nio esteja no mundo (exis- lente). O fato de nao estarmos a par de que alguém esteja se ocu- pando de algo nfio implica que isto nfo esteja acontecendo, Na vida, cada coisa € gerida por quem esté nela diretamente envolvi- do. Em um outro contexto*S, forneci detalhados exemplos das di- versas maneiras pelas quais fatos de natureza criminal so enfren- tados fora da justiga criminal e como, a meu juizo, seria preciso conduzir pesquisas neste setor. Aqui, limitar-me-ci a algumas ob- servagdes gerais, Quase todos os fatos problematicos para alguém (pessoa, ‘organizacdo ou movimento) podem ser enfrentados em um proce- dimento legal, de um modo ou de outro (justiga criminal, justiga civil ou administrativa), mas, na realidade, muito poucos efetiva- mente 0 so, como demonstram os mimeros negativos, tanto na justiga criminal, como em outras formas de justiga. A maioria das alternativas a justiga criminal é de natureza prevalentemente nio- legal. Estas alternativas, geralmente, nio sfo “invengées” de pes- soas envolvidas na definigdo-das regras penais ou legais; so, a0 contrério, aplicadas, quotidianamente, por quem se acha direta ou indiretamente envolvido em fatos probleméticos. ‘Tratamentos de tipo nao-legal so “estatisticos”; “normativa- mente” (na normativa das pessoas envolvidas), portanto, a “legis- lagi” da regra 6 uma rara excegdo, Sempre foi assim, ainda é assim e, provavelmente, seré também no futuro. Esta realidade, no entanto, € menos aparente, quando tomamos como ponto de partida o conceito de “normatividade”, como € normalmente en- tendido no debate tradicional da justiga criminal. S6 ali, de fato, encontramos uma normatividade em que a justiga criminal é a regra, freqtientemente se pressupondo (inconscientemente) que isto seja um dado estatistico — contrariamente a qualquer conheci- ‘mento cienttfico *SHULSMAN, Louk. “The abolitionist case: alternative crime polices”. In, Israel Law Review, vol. XXV, n® 3-4, 1991. 50 A excepcionalidade da efetiva criminalizagio® de condutas que poderiam ser consideradas criminosas e o fato de que, em re- gra, tais condutas sio enfrentadas de varias formas, sobre as quais no temos maiores informagées, so, sob diversos aspectos, rele- vantes para a determinagio da legitimidade da justiga criminal, Os aspectos negativos da justiga criminal (para quem realiza ‘a ago e para quem Ihe é préximo; para a pessoa que sofreu o dano no evento criminalizavel; para os funciondrios das instituigdes e para o paiblico em geral) foram tratados de maneira exaustiva em outro lugar”, De todo modo, gostaria de deter-me um pouco mais em um aspecto. O fato de a criminalizagio de fatos criminalizéveis ser estas cae normativamente excepcional traz um novo argumento & discus- sto sobre a legitimidade da justiga criminal. O modelo de referéncia a justica criminal no € um modo normal de interagio entre cida- «dios e profissionais. Muitas das atividades promovidas pelos profis- sionais, no Ambito da justiga criminal, se chocam com os requisitos das convengGes sobre direitos humanos. Tais conveng@es trazem ex- ‘ceges relativamente aos requisitos do modelo de justica criminal, mas apenas quando tal excegdo é necessdria em uma sociedade de- ‘mocrética®* . Quem poderia reivindicar que “é necesséria uma exce- ‘obstanie, o impacto negative da criminalizago sobre alguns seg- ‘mentos da populagao é muito superior ao que normalmente se supte. Mesmo em um pais como a Holanda (com uma populagio carceriria relativamente baixa), um estudo estatistic, realizado nos anos 1960, indicava que 1 homem em 10, morto em um determinado perfodo, tnha estado encarcerado pelo menos uma vez. Em algumas cidades america- nas, mais da metade da populagdo negra masculina, entre 18 e 45 anos, est na prisio, em liberdade vigiada, ou em livramento condicional * HULSMAN, Louk & CELIS, J. Bernart de (orgs.). Penas perdidas. Rio de Janeiro, Luam, 1997, ™ Bstas sio as palavras utilizadas na Conveng&o Européia de Direitos Humanos. 51 40", sabendo que a criminalizagio é uma rara excegto e ignorando como 0s fatos em tela sdo enfrentados fora da justiga criminal? b) O fato de um evento ser criminalizdvel nao é indicativo do nivel de vitimizagao. A tese de que os fatos criminalizéveis seriam mais proble- méticos para as vitimas do que fatos ndo-criminalizaveis 6, efeti- vamente, errada, Para se dar conta disso, basta examinar nossas, experiéncias pessoais. Tais experiéncias so confirmadas por pes- quisas baseadas neste tema. ©) A criminalizagao nao é uma resposta especffica aos even- tos, mas sim um modo especifico de olhar para os eventos ¢, as- sim, de construir os préprios eventos. 4. Conclusio Alternativas d justiga criminal. Algumas adverténcias ‘A. Antes de dar alguns exemplos de diversas “alternativas”, vale sublinhar que as discussdes sobre alternativas a justiga crimi- nal freqlientemente se desenvolvem em um contexto em que os pressupostos da justiga criminal, que criticamos neste trabalho, no so realmente postos em questo, Na maioria dessas discus- sdes, a existéncia de crimes e criminosos é considerada um fato natural e estabelecido, e nao 0 resuiltado de processos seletivos de definigdo, abertos a uma escotha social. Por isso, gostariamos de formular algumas “adverténcias”, em relagio a diversos erros que, com freqiléncia, so cometidos: 1) Quando falamos de alternativas a justiga criminal, ndo estamos falando de sangGes alternativas, mas sim de alter- nativas aos processos da justiga criminal. Tais alternativas podem ser de natureza prevalentemente legal, ou nao. 32 2) Com bastante freqiléncia, as alternativas a justiga crimi- nal so consideradas uma resposta alternativa a0 compor- tamento criminal. Assumindo tal ponto de vista, nfo leva- mos em consideragdo que todo enfoque legal 6, antes de tudo, um modo de construir (ou, se se quiser, de recons: truir) um fato. Buscar alternativas & justiga criminal signi fica, em primeiro lugar, buscar definicdes alternativas de fatos que podem provocar processos de criminalizagio. A resposta alternativa dada em uma alternativa & justiga cri- minal &, pois, uma resposta a uma situagdo que tem uma “forma” diversa e “dinamica” diversas dos fatos, como estes surgem em um contexto de justiga criminal” 3) Em muitas discussGes sobre alternativas & justiga criminal, nos achamos diante do equivoco que nos leva a ver aquilo que chamamos de “prevengo ao crime” como uma coisa justa € desejével. A meu juizo, nfo € necessariamente assim, por duas raz6es: em primeiro lugar, o que € definido como “crime um determinado estgio do desenvolvimento legal, no € ne- cessariamente uma “coisa ruim”, Pode ser neutra ou indife- rente; pode ser mesmo desejével ou heréica. A lei penal ea pritica do sistema de justiga criminal nfio podem ser usadas como padriio absolutamente autorizado para julgar o “justo” ® Muito interessante a este propdsito é HANAK, STEHER, STEINERT (rgemisse und Lebenskatastrophen. Bielefeld, AIZ, 1989), porque nos permite fazer uma comparagdo entre situagdes problemsticas criminalizaveis e ndo-criminalizéveis. Com freqiiéncia, as pessoas envolvidas nos debates sobre a justica criminal esto tio “possufdas” pelos mitos e imagens que os permeiam que nfo se dio conta de que a auséneia de reagio da justiga criminal a um fato criminalizavel nfo significa que este nfo seja enfrentado (quid non est in actu est in mun- do). Se houver uma pessoa diretamente envolvida, para a qual um fato criminalizével € problemiético, esta pessoa sempre terd o que fa- zer com aquele fato, de um modo ou de outro, podendo, assim, pedir ajuda a profissionais ou a ndo-profissionais, 33 ‘ou 0“errado" de um comportamento. Em segundo lugar, mes- mo quando “crime” se refere a uma coisa definida por todos 8 implicados como um “problema”, poderia ser nocivo para © desenvolvimento humano e social tentar erradi Descobrir 0 mundo das alternativas B. Quase todos 0s fatos probleméticos para alguém (pessoa, ‘6rgio ou movimento) podem ser enfrentados em um procedimen- to legal, de um modo ou de outro (justiga criminal, civil ou admi- nistrativa); na realidade, muito poucos efetivamente o s0, como indicam os nimeros negativos, tanto da justiga criminal como das outras formas de justiga. A maior parte das altemativas & justica criminal é de natureza predominantemente ndo-legal. Estas alter- nativas, geralmente, ndo sio “invengdes” de pessoas envolvidas na definigdo das regras penais ou legais, sendo sim aplicadas, quo- tidianamente, por quem se acha direta ou indiretamente envolvi- do em fatos problemiticos. Tratamentos de tipo ndo-legal sio “estatfsticos”; “normati- ‘vamente” (na normativa das pessoas envolvidas), portanto, a “le- gislagdo” da regra é uma rara exceeao. Sempre foi assim, ainda € assim e, provavelmente, o serd também no futuro. Esta realidade, no entanto, € menos aparente, quando tomamos como ponto de partida 0 conceito de “normatividade”, como é normalmente en- tendido no debate tradicional da justiga criminal. $6 ali, de fato, encontramos uma normatividade em que a justica criminal é a regra, freqlentemente se pressupondo (inconscientemente) que {sto seja um dado estatfstico ~ contrariamente a qualquer conheci- mento cientifico. Trarei, agora, trés exemplos para jogar um pouco de luz so- bre alternativas “escondidas”. Nao com a pretensao de poder — agora ou no futuro — dar um retrato exato e representativo do que sucede neste mundo: estou firmemente convencido da impossibi- lidade de faz8-lo. Procurarei simplesmente — mediante estes trés exemplos ~ convencer 0 meu piblico, por ser necessério, que 0 34 modelo da justiga criminal distorce 0 modo pelo qual “imagina- mos” os fatos criminaliz4veis, procurando ainda indicar formas possiveis para enfrenté-los, para poder mudar nosso discurso e nos- sas ages. As alternativas niJo sfo utopias distantes, mas parte da vida quotidiana, continuamente inventadas pelos atores sociais. Desenvolverei, aqui, trés exemplos: © Umeaso de agao reparatéria coletiva, conduzida por quem steve diretamente envolvido (a hist6ria de um furto em que esteve envolvida minha famflia) (1); © Alguns resultados de uma pesquisa empfrica sobre a utili- zagGo da lei civil por mulheres que se sentem vitimas de violencia sexual (2); ‘* Alguns resultados de uma pesquisa de ago como meio para provocare sustentar 0 envolvimento da comunidade no tra- tamento de situagdes criminalizdveis probleméticas (3). 1, Um caso de ago reparatéria colet esteve diretamente envolvido™ a, conduzida por quem Anos atris, aconteceram trés furtos com arrombamento em nossa casa, no intervalo de duas semanas. Pelo menos o primeiro foi daquele tipo odioso em que muito pouco é efetivamente furta- do, mas muitas coisas so destrufdas. Cheguei em casa, abri a porta e vi ovos quebrados por toda parte (e néo tinhamos pissa- ros!) af, me dei conta de que um quadro e partes da mobilia tinham sido feitos em pedacos e que havia montes de charutos * Sobre este caso, veja-se também HEGENHUIS, Stijn. “The Disapperance ‘ofa Victim Position”. In, BLAD, J. R., MAASTRIGT, H. van e UIL- DRIKS, N. (orgs.). The Criminal Justice System as a Social Problem: ‘an Abolitionist Perspective; veja-Se 0 1 1. 355 pelo chiio, Pouco a pouco, fui formando a imagem do que aconte- cera. Em tais circunstincias, anda-se pela casa e A medida que as cenas vo sendo absorvidas, a pessoa é tomada pela raiva; pelo menos, eu fiquei com muita raiva e senti necessidade de quebrar 6s ovos na testa de quem provocara aquela destruigio, de pegar suas coisas e destrui-las, e depois perguntar se tinha gostado da experiencia, Como vitima, porém, meus sentimentos eram mais compli- cados, porque, enquanto vagava pela casa, dizia a mim mesmo: “Gracas a Deus, nfo destruiram aquilo!”, com um certo alivio. De fato, tinham destrufdo muito menos do que poderiam, demons- trando até uma certa moderagdo. Mais tarde, me senti aliviado, quase contente, por nao ter perdido muito mais. Assim, além da raiva, experimentei alfvio e mesmo uma certa curiosidade em sa- ber por que tinham feito aquilo, o que significava ~ os ovos, 0 monte de charutos, outras coisas bizarras? Em seguida, veio a policia para tirar as impresses digitais ¢ voltou, mais uma vez, depois de alguns dias. O policial, que, den- tre outras coisas, ajudou bastante, me disse que o fato de tirar as impresses digitais ndo significava necessariamente que chegaria uma detengio, pois, freqiientemente, estas eram pouco nitidas e, mesmo quando o eram, poderiam pertencer a jovens delingiientes ainda no registrados. E preciso deixar-Ihes uma possibilidade, sugeriu, ¢ eu concordei plenamente. Tudo somado, me pareceu uma espécie de ritual; no entanto, foi interessante falar com os policiais, perguntar-Ihes sobre a hipétese de os responsaveis se- rem jovens. Visto que essas coisas niio acontecem com freqiiéncia nas casas de Dordrecht e, considerando a quantidade de coisas danificadas, poderia, por acaso, ser obra de alguém que tivesse alguma coisa a ver conosco? Alguns dias mais tarde, minha mulher veio em casa & tarde e ouviu vozes em seu interior: era evidente que lé estavam nova- mente os intrusos. Conseguiu até ver as pessoas, embora nao tio bem a ponto de poder identificé-las. Desta vez, nfo provocaram muitos danos, mas, de novo, romperam um saco de ovos e leva- 56 ram alguns objetos. A policia veio novamente; a esta altura, ja cram velhos conhecidos! Apés cada um desses furtos, tomamos novas precaugdes para prevenir-nos de outros, mas, depois de al- guns dias, voltando para casa, descobrimos que os intrusos tinham estado Id pela terceira vez. Nao havia danos aparentes e faltavam apenas poucas coisas. Ainda que parega estranho dizer, estéva- ‘mos nos habituando a estas invasdes e até julgivamos poder deli- near o perfil dos culpados. Sabfamos que, provavelmente, eram trés; eu imaginava o que diria se os encontrasse, acontecimento que esperava ser possivel. Obviamente, minha mulher estava es- pecialmente assustada com tal perspectiva. Depois do terceiro incidente, comecei a pensar que os la- rdes eram, antes de tudo, corajosos, por voltarem ao mesmo Iu- gar onde tinham sido perturbados poucos dias antes. Além disso, pensei que demonstravam uma grande atrago por nossa casa € lum certo fascfnio pelos estranhos objetos que ela continha. Isto me fazia sentir que eu tinha alguma coisa em comum com eles, visto que, naturalmente, gosto da minha casa e das minhas coisas. fato de as tiltimas visitas terem sido menos destrutivas talvez significasse que estavam comegando a gostar daquele lugar tanto quanto eu. Digo isto, nao para sugerir que eu nao tivesse as reagdes de raiva que mencionei inicialmente, mas especialmente para res- saltar a natuteza bastante complexa das sensagdes que se experi- ‘mentam em circunstincias como essas. Sempre me interessei pelo modo como eu € os outros reagem a fatos criminalizéveis e desco- bri que este é um processo ambfguo e complicado, multifacetado. Como este caso, obviamente, nao era diferente e por pensar que, como dizia inicialmente, nao € preciso “roubar” os conflitos 0s outros, perguntei se poderia falar com os autores, caso fossem. capturados. Cerca de duas semanas depois, a despeito de todas as estatfsticas indicativas de que apenas um pequeno percentual de furtos ocorridos na Holanda € satisfatoriamente resolvido (em Dordrecht, cerca de 25%), telefonaram-me da policia, informan- do que os responsdveis tinham sido presos, em razio de seu envolvimento em um ato de vandalismo praticado em uma cidade 37 proxima, Disseram que tinham recuperado parte de nossos bens € ‘me pediram que fosse idemtificé-los. Descobri, entio, que a poli- cia tinha muitos objetos, alguns dos quais eu nfo tinha sequer dado falta; quase tudo foi recuperado, exceto uma faca de que falarei mais adiante. Nao é uma faca preciosa, mas muito afiada; cu a obtivera hé pouco, na Finlindia, uso-a para cozinhar e, para mim, tem um valor muito especial Dos trés jovens, dois tinham 16 anos ¢ 0 outro 17. Pedi para falar com eles. A policia me disse que ndo teria objegdes, se a familia consentisse. Assim, contataram os pais de um dos rapa- zes, que se puseram de acordo: fui visitar a familia naquela mes- ma noite. Nao tinha idéia de como seria, pois no temos modelos para estas ocasides. O rapaz era muito menor do que o ladrdo que eu havia imaginado; parecia tio pequeno, com culos, quase como ‘um passarinho, Imaginava mostrar-lhe meus sentimentos, fazen- do-o se arrepender de suas agdes. Dei-me conta, porém, de no poder fazé-Io; tinhamos dificuldade em nos falar. De todo modo, nio tive dificuldade em me identificar com os pais, para quem tinha sido horrivel. Depois de descoberto 0 que tinham feito, dois dos rapazes fugiram de casa, deixando os pais em sua angustiosa procura, Enfrentavam, agora, um drama similar ao meu ¢ isto fa- cilitava a identificagdo, Comparado ao que senti como pai em ci cunstncias semelhantes, 0 furto tomnava-se uma coisa menor € {sto influiu bastante em meus sentimentos a respeito dos fatos. Comecei, assim, a falar com 0 rapaz, pensando em algum tipo de ressarcimento de sua parte pelo que tinha feito. Quando Ihe per- ‘guntei se havia alguma coisa que quisesse fazer, me respondeu “nio propriamente”; isto criou uma espécie de liame entre nés, pois foi uma resposta realista e sincera, Entendia o por qué de ele responder assim aquele homem estranho que fora & sua casa, Per- ‘guntei-Ihe, entio, sobre a faca — talvez insignificante em relagio aos danos causados, mas de fundamental importéncia para mim — e tal pergunta se revelou o inicio de uma compreensio verdadeira entre nés, Deu-se conta de que eu queria a faca e que isto era algo «que poderia fazer; poderia tentar encontré-la para mim, Procura- 58 ‘mos, entiio, os outros rapazes e seus pais, Encontramos 0 mesmo tipo de dificuldade de comunicagZo, Finalmente, fomos em grupo para a minha casa, onde os pais se sentaram conosco na cozinha, enquanto os rapazes se puseram a procurar a faca em um hotel abandonado, ao lado da casa. Durante a discussio, eu disse: “Agora, que vocés conhecem a minha casa, deverio entrar pela porta principal; é por ali que se entra’. Dizer isso fez com que me sentisse satisfeito. Depois, me contaram a triste hist6ria da outra filha. Neste momento impor- tante, ficava evidente que o modelo de referencia da justiga crimi- nal, efetivamente, segmentava, de modo artificial, a situagao. Cor- tava os lagos entre pessoas normalmente ligadas entre si; em certo sentido, tornava irreal a situago ao nivel social, Para os pais, era lum grande drama de que deviam falar a cada momento, ainda que no soubessem exatamente 0 que tinha acontecido, Tinham al- ‘guns fragmentos de informagao por parte da policia e de seus fi- |hos, mas nfo uma imagem corrente dos fatos. $6 apés estarem todos juntos naquela casa € que compreenderam, pela primeira vvez, a seqiiéncia dos acontecimentos que depois discutiram com os filhos. Neste ponto, a coisa comegava a adquirir uma dimensio real, O envolvimento do sistema de justica criminal levara os pais a dizerem “nao € responsabilidade do meu filho, mas dos outros”. Isto significava que tinhamos levado os rapazes a serem tratados individualmente, separando-os uns dos outros, de forma pouco Util Afinal, acabaram por se envolver como um grupo no assunto que conduzira todos & minha cozinha. Os rapazes encontraram a faca ¢ 0s pais, muito mais hébeis manualmente do que eu, comegaram a arrumar as coisas na casa. Isto nos deu a agradével sensagio de estarmos ocupados em uma atividade comum e, assim, podermos nos conhecer melhor. Dei-me conta de que o problema entre pais e filhos era que os pais continu- amente se referiam aos furtos, 0 que aborrecia mortalmente os ra- ppazes. Por isto, achei que seria uma boa idéia eles partirem em féri- 8 para encontrar novos estimulos, Pensava que estévamos empe- nhados em um debate estéril, por tempo demasiadamente longo. 59 ‘Um deles pertencia & burguesia; outro era filho de operirio e o ter- ceiro estava desempregado e sem dinheiro e, portanto, sem condi- ‘goes de pagar uma viagem. Ponderei que um acampamento seria relativamente barato, mas eles no tinham barraca; assim, Ihes em- prestamos uma e eles safram de férias por um breve perfodo. Os pais nos ajudavam e 0s rapazes apareciam no domingo, ou as vezes com maior freqiiéncia, para trabalhar no jardim. Parecia que eles gostavam de vir & nossa casa; as vezes, a freqiiéncia de suas visitas era até um incOmodo, pois tinhamos outras coisas para fazer! Um dos motivos que os levara a furtar em casas era o fato de se aborrecerem na escola ~ motivo bastante comum ~ e terem co- megado a matar aula. Numa dessas ocasiGes, estavam observando hotel abandonado e notaram nossa casa, que Ihes chamara a aten- io pela variedade do que continha — um misto de Gruta de Aladim © Ali Babé e 0s 40 ladrdes! Resultado da crise causada pelas inva- s6es foi o esclarecimento de alguns aspectos da relago pais-filhos ea mudanga de escola para outra onde se deram muito melhor. Estévamos seguros e ressarcidos dos danos materiais; tinha- ‘mos nos tomado uma espécie de tios para os rapazes € amigos para os pais. Quanto a mim, aprendi muito sobre a vida de pessoas em situagées das quais, antes, sabia muito pouco. Tudo somado, revelou-se uma experiéncia titil para todos nés, € no exagero a0 diz8-lo. Se as coisas nao tivessem se desenvolvido assim, néo teri- amos ganho nada com essa experiéncia. Nao € que o tivesse pre- concebido; simplesmente, dei a partida com minha visita aos rapa- zes e a suas familias. Depois, as coisas tomaram seu préprio curso. A tinica parte que dizia respeito especificamente a mim era meu conhecimento dos procedimentos da justiga criminal. Passaram-se seis meses antes que 0s rapazes fossem indiciados pelos furtos ¢ outros sete ou oito meses antes do processo. Durante todo esse tempo, nenhum dos varios érgios dos servigos sociais jamais veio me procurar; por outro lado, eu no fui a eles porque, do ponto de vista da pesquisa, me interessava ver o que aconteceria. Um certo ntimero de pessoas dos servigos sociais, de diver- sos érgios, conforme as condigdes sociais, procurou as familias, 60 gue receberam conselhos ¢ sugestdes contraditérias, tanto que, freqlientemente, vinham me ouvir sobre 0 que fazer. Quando as acusagdes foram formalizadas, nem eu nem minha mulher via~ mos o que se poderia ganhar com um processo: niio nos parecia que uma audiéncia fizesse sentido. Assim, telefonei para a inte- grante do Ministério Paiblico, que mora em frente a mim, e, como o tribunal ficava nas vizinhancas, fui falar com ela pessoalmente, no na qualidade de professor de direito penal ¢ criminologia, mas como vitima. Ficou sensibilizada com a narrativa dos fatos, ‘mas insistiu que, com trés furtos com arrombamento € outros atos de vandalismo, seria necessério ter um processo. Mas, embora pensasse inicialmente em uma pena a ser cumprida na prisio, mudou de opiniao, dizendo-se pronta a sugerir uma dispensa con- dicional, Nao obstante minha oposig%o, insistiu em afirmar que a justiga criminal no é apenas um assunto privado, devendo levar em considerago também o interesse pilblico. Minha mulher co- mecow a rir; tanto eu, quanto a integrante do Ministério Pablico, unimo-nos & sua risada. Aconteceu, pois, a audiéncia, que, a meu jufzo, foi muito comovente. A acusagao puiblica havia se preparado bem ¢ disse que conhecia —e, afinal, aceitava ~ 0 modo pelo qual enfrentara- mos a situagdo; o tinico motivo pelo qual queria processar 0s ra- pazes era para enfatizar a gravidade de furtos com arrombamento, como aqueles sofridos por nés. Era importante o que estes simbo- lizavam. A meu ver, juiz também foi bastante compreensivo, falando de modo inteligfvel para todos € ao mesmo tempo com muita dignidade e sustentando importantes teses jurfdicas ~ capa- cidade interessante esta. Dirigimo-nos ao tribunal todos juntos, saindo de minha casa — éramos oito ou nove -, porque estévamos todos um pouco ner- ‘vosos; tinhamos tomado um café e um copo d’dgua juntos, para aliviar um pouco a tensio. Sentamo-nos no mesmo banco na sala do tribunal e, embora sendo um pouco surdo, eu ouvia perfeitamente; todos falavam muito claramente. No entanto, os outros se lamentavam que os 61 funcionérios falavam muito baixo; estava claro que nao compre- endiam bem o procedimento, talvez porque ainda estivessem muito tensos. Inobstante as circunstincias favordveis ~ nos conhecfa- ‘mos muito bem e eu tinha explicado exatamente o que acontece- ria —ndio compreenderam praticamente nada, Um dos rapazes con- fessou que estivera nervoso por semanas, pensando na audiéncia no tribunal; no era, pois, falta de interesse. Outro disse que esti- vera a ponto de adormecer; lembrei-me que, quando tenho uma briga séria com minha mulher, as vezes me sinto muito cansado— ‘uma espécie de valvula de escape para evitar uma sobrecarga emo- cional Esta € a hist6ria que me ensinou muito sobre 0 modo pelo qual a justiga criminal segmenta, de modo atificial, o que vai em nossos coragdes. Obviamente, niio quero generalizar excessiva- mente essa experiéncia, mesmo pensando que nio foi nada de excepcional — embora o pareea, na medida em que dela fiz parte, descrevendo-a detalhadamente. Tenho conhecimento de exemplos semelhantes na Holanda (nao é, porém, facil conhecé-los). Hou- ve, por exemplo, um caso de homicfdio, na Holanda, em que os pais da moga morta e os do assassino se encontraram e estabelece- ram uma relago importante, tanto para eles quanto para o hom cida, Pense-se ainda no exemplo do trem de Molucche, em que os ex-reféns continuaram a se confraternizar e a visitar seus seqiles- tradores na prisio. Esses exemplos corroboram nossa experiéncia, ou seja, que, em determinadas condigdes em que se reage de modo a oferecer uma resposta mais coletiva e menos fragmentada aos fatos criminalizaveis, oferece-se um enorme potencial aos membros da comunidade para que tomem providéncias fecundas e reparat6ri- as, tanto para vitimas quanto para criminosos, permitindo superar a antitese vitima-criminoso na relagao entre eles. Em contraste, as respostas tradicionais a fatos criminalizéveis do excelentes exemplos do que Nils Christie chama de “subtra- 40 dos conflitos”, na medida em que, com freqiiéncia, inibem a tendéncia natural dos homens para a unio diante de uma crise, o impedindo, assim também, os desenvolvimentos sociais e pessoais, que poderiam se produzir em tais casos. Isto significa, a meu juizo, que um dos aspectos importantes do “envolvimento comunitirio” — idéia hoje subscrita pela maioria, mas que poucos sabem exata- mente o que € ~ consiste na tentativa de recuperar a possibilidade de as pessoas comuns poderem se envolver diretamente em respos- tas sociais orientadas pelo ponto de vista da vitima. Para voltar por um momento ao que sugeria Wilkins, temos, no contexto micro, os processos de atribuigdo de culpa ~e a ago reparatoria vinculada a este fato particular ~ e, no contexto macro, 6 processos de agdes reparatérias e de controle —a questo de como enfrentar este tipo de fatos e como mudar a organizagio social para tomé-la mais simples. Na unio destas duas esferas, 6 importante que todos os 6rgtios que tenham a ver com a justiga criminal — a policia, os professores, a acusagao piblica, os operadores sociais, as possibilidades positivas de respostas a fatos criminalizsveis de modo a estimular um maior envolvimento pablico. Antes de tudo, se no temos 0 conhecimento ou as idéias iniciais sobre como se mover, € dificil, ao ponto mesmo da intimidago, que uma pessoa qualquer se ponha a fazer alguma coisa. Mas, uma vez iniciado 0 processo, este pode deslanchar autonomamente, ‘Temos a firme convicgao de que o que fazemos ao seguir este curso de aco é simplesmente reativar algo ja existente na sociedade. © desenvolvimento deste potencial niio depende de encontrar respostas para o problema do crime — quem esté envol- jo nao se sente imbuido dessas questdes — mas, muito mais, de enfrentar uma situagdio critica imediata que requer uma ago. De- pende, porém, das atitudes e da atividade do servigo policial, por sua posigo-chave como ponto de acesso ao sistema da just criminal e, por outro lado, como recurso para quem se vé direta- mente envolvido. Com efeito, foi a polfcia que possibilitou minhas préprias ‘agbes, pois se no tivesse resolvido 0 caso, dando-me as informa- ‘g0es que possuia, eu nao teria podido visitar as familias. 63

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