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REFLEXÕES ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE BUROCRACIA E

PATRIMONIALISMO NA ORDEM BUROCRÁTICA BRASILEIRA

Maria Isabel Gonçalves Bezerra

O breve ensaio a seguir consiste em refletir a relação entre burocracia e


patrimonialismo presente na ordem burocrática brasileira. O prisma marxista que fundamenta
teórica e metodologicamente essa reflexão entende a ordem administrativa burocrática
enquanto componente da superestrutura da sociedade, correspondente ao desenvolvimento do
capitalismo.
Souza Filho e Gurgel (2016) apontam que a administração representa uma forma
de dominação da burguesia na sociedade de tipo capitalista. Nessa sociedade a administração
fundamenta-se da “racionalidade” formal/legal para gerir recursos e tempo com vistas a maior
exploração da força de trabalho. Conforme o autor:

a administração da sociedade capitalista deve possuir como finalidade, do


ponto de vista da produção social, viabilizar a dinâmica de exploração da
classe trabalhadora, por intermédio da produção da mais-valia, e possibilitar
a apropriação privada da riqueza produzida socialmente. Do ponto de vista
da reprodução social, a finalidade do sistema capitalista deve estar orientada
para garantir uma ordem social, política, jurídica e cultural fundada na
dominação de classe que possibilita a manutenção da dinâmica de
exploração no campo da produção. (p. 38).

A finalidade da administração, portanto, está na manutenção das condições de


produção e reprodução do ordenamento capitalista, seja no âmbito material do trabalho e da
riqueza produzida socialmente, seja no âmbito da dimensão ideológica para a qual a
racionalidade cumpre também o papel de convencimento das classes dominadas à submissão
com ideias justificadoras da desigualdade e do capitalismo em si.
A superestrutura jurídica e política que organiza e administra o ordenamento
social capitalista só pode ser compreendida em sua base material, na estrutura econômica da
qual se erige e para a qual opera sua manutenção. É o Estado o instrumento da ordem
burguesa que por trás de sua aparente universalidade, consiste em expressão das relações
sociais de produção, ou seja, é o reflexo das dinâmicas da estrutura econômica da sociedade.
Neste sentido, o Estado é essa superestrutura que realiza a manutenção e reprodução das
relações sociais no capitalismo. Para tanto, utiliza-se da administração para operar essa
manutenção.
A administração enquanto forma de dominação pode ser entendida sob diferentes
prismas teóricos. Souza e Gurgel (2016) trazem as formulações de Weber, que possuem
grande importância para pensar a burocracia. Weber a partir de sua forma metodológica de
“tipo ideal”, estabelece três tipos de dominação para os quais correspondem formas
administrativas distintas: carismática, tradicional e legal. Na primeira têm-se uma dominação
baseada no caráter, pessoal, afetivo, sobre-humano ou extracotidiano do senhor, cuja virtude
imprime um caráter emocional à relação entre dominados e dominador. Seu quadro/forma
administrativa é destituída de profissionalismo e as nomeações se dão pelas virtudes e
qualidades carismáticas entre os sujeitos. A segunda forma, tradicional, se baseia em
elementos culturais, ideológicos e de tradição de determinada sociedade, as relações são do
tipo mando-obediência às normas impostas pelo senhorio na submissão ideológica e crença de
que “sempre foi assim”. Os interesses públicos e privados do senhorio se misturam e disso
consiste o caráter patrimonialista da forma de administração conforme a dominação
tradicional, cujo aspecto pessoal do senhorio está presente no quadro administrativo e militar
e estabelece relações antiprofissionais.
A terceira forma de dominação e respectivamente, de administração é a
dominação legal. Conforme seu tipo ideal pensado por Weber, diz respeito à legitimidade via
regras e normas racionais, as quais os superiores exercem suas funções visando a manutenção
de um ordenamento legal e normativo, e os que obedecem o fazem enquanto membros
associativos que obedecem ao ordenamento, e não ao senhor diretamente. A impessoalidade
caracteriza este tipo de dominação. A forma administrativa relacionada à dominação legal é a
burocracia, que no pensamento weberiano “é uma ordem administrativa que materializa a
dominação (relação mando-obediência) fundada em estruturas formal-legais elaboradas e
aplicadas racionalmente.” (SOUZA e GURGEL, 2016, p. 50).
A teoria marxista pensa de forma diferente as questões da dominação,
racionalidade e da burocracia. Um primeiro ponto está no fato de que no marxismo a
dominação é entendida enquanto dominação de classe, e não se restringe à possível aparência
de mando-obediência. A dimensão de classe dá materialidade e historicidade à dominação,
ultrapassando uma forma de pensar apenas sob concepções e tipos ideais.
Quanto à racionalidade, Souza e Gurgel (2016) indicam duas dimensões da
racionalidade: uma relativa aos meios: instrumental, e outra relativa aos fins: finalística ou
ético-política. Aqui temos uma importante diferenciação, visto que o pensamento weberiano
se limita à dimensão instrumental da racionalidade. Weber não se detém na racionalidade e
legitimidade dos fins para evitar juízo de valor na ciência, em virtude de seu postulado de
neutralidade axiológica, por isso se limita ao exame da racionalidade relativa aos meios e com
isso identifica razão e técnica.
Do ponto de vista marxista, a razão também está presente na definição dos fins
pois estes influenciam diretamente a escolha dos meios para alcançá-los. Ao não considerar a
questão da racionalidade da finalidade, Weber também perde de vista o caráter da finalidade
da burocracia e sua funcionalidade na sociedade capitalista. A burocracia não diz respeito
apenas à um modelo administrativo correspondente a uma forma de dominação legal, que
dispõe de meios formais e racionais para atingir determinados fins. Antes, consiste num
aparato de administração necessário e funcional ao ordenamento capitalista da sociedade que,
como colocamos no início do presente texto, requer a melhor utilização dos meios e recursos
no menor tempo possível visando a maior exploração da força de trabalho. É importante
ressaltar também a dialética presente na burocracia, em virtude de sua dimensão racional que
torna possível aberturas e concessões às classes dominantes visando a legitimação do Estado
na dinâmica de aprofundamento da luta de classes.
Visando uma breve reflexão acerca do caráter da administração pública no Brasil
traçaremos em curtos termos em razão dos limites deste trabalho, alguns apontamentos acerca
da formação social brasileira relacionados à administração e à formação de Estado no país. É
importante reforçar que de acordo o prisma teórico aqui adotado a administração no
capitalismo representa uma forma de dominação de classe, com finalidade e funcionalidade
voltadas à manutenção do ordenamento social baseado na crescente exploração da força de
trabalho. Nesse sentido, conceitos como administração, racionalidade e burocracia não são
entendidos de maneira puramente instrumental ou técnica, abdica-se de qualquer aparente
pretensão à neutralidade e assume-se um posicionamento e uma postura metodológica
finalística ou ético-política que busca o desvelamento das determinações da sociedade de
classe e sua transformação.
É nessa direção que Souza e Gurgel (2016) indicam a vinculação da ordem
administrativa enquanto configuração superestrutural da dominação, à base material e
econômica das relações sociais. Assim, à determinada relação de produção correspondem um
elemento superestrutural de dominação de classe e uma ordem administrativa,
respectivamente. As relações pré-capitalistas ou coloniais de produção contém como elemento
a tradição e sua ordem administrativa consistem em patriarcal/patrimonial, enquanto que as
relações de tipo capitalistas adotam elementos de racionalidade formal/legal numa ordem
administrativa burocrática. Já neste entendimento dá-se a dimensão com que é tratada a
administração, fora do escopo tecnicista mas articulando-a ao tempo e espaço em que se
desenvolve.
Para pensar a administração brasileira portanto é imprescindível compreender
como o capitalismo e o Estado, o instrumento superestrutural de ordenamento burguês, se
constituem aqui. Entendendo a colonização não como descoberta e sim como apreensão dos
territórios americanos em função da acumulação primitiva de capital, o Brasil é inserido na
dinâmica da divisão internacional do trabalho produzindo matérias primas, alimentos e bens
de consumo não duráveis. O capitalismo tardio é a marca do processo de modernização
nacional, assim como a associação com o capital internacional, a transferência de valor da
periferia para os países centrais e a necessidade da superexploração da força de trabalho para
compensar a perda de valor. Esta última se constitui enquanto particularidade da acumulação
nas formações sociais de capitalismo dependente, que também apresentam uma burguesia
frágil e débil economicamente e politicamente, sem arcabouço científico e ideológico e adepta
à um liberalismo utilitário e restrito aos interesses das classes dominantes, averso à qualquer
perspectiva democrática até mesmo à democracia liberal dos países centrais (MAZZEO,
1998).
Por este aspecto de suas relações de produção de origem colonial e capitalismo
dependente, a forma da revolução burguesa no país será a forma não-clássica, conciliando
interesses da nascente burguesia industrial e urbana com as oligarquias rurais dominantes na
estrutura econômica de base agroexportadora. Disso resulta um Estado dependente e que
precisa corresponder às demandas postas pelo ritmo e natureza do capitalismo brasileiro, e
cujo aparato administrativo também é consoante com as necessidades da acumulação com
vistas a operação da expansão capitalista. Na perspectiva de totalidade aqui adotada as
mudanças realizadas ao longo do tempo, desde o Estado português implantado na colônia,
passando pelo império após a independência, a República Velha, a Revolução de 30, a
ditadura e a fase de inserção monopólica a partir da década de 1960, até os anos 1990 e os
postulados neoliberais na administração pública, todas essas transformações foram gestadas
pelo movimento global do capitalismo e os interesses das classes dominantes nesse território.
Não são consideradas, portanto como um avanço ou modernização da racionalidade
burocrática, mas sim enquanto resposta à dinâmica da sociedade burguesa, para a qual
constitui instrumento de sua dominação de classe.
A espinha dorsal que dá forma ao aparato Estatal consiste numa imbricação
dialética entre patrimonialismo e burocracia (SOUZA e GURGEL, 2016). A relação entre
essas duas formas administrativas é distinta na perspectiva de Bresser-Pereira (1998) e
Nogueira (1998).
O primeiro autor considera a administração patrimonialista em seu aspecto de
confusão do patrimônio público e privado e que a administração burocrática clássica surge da
sociedade civil distinta que controla o Estado, sendo que para o capitalismo é essencial a
separação entre Estado e mercado. Para ele o pressuposto de eficiência da burocracia falha
devido às transformações no caráter do Estado, que passa do modelo liberal para o qual
funcionaria muito bem, e se amplia no grande Estado social e econômico. Sua ineficiência
está, nessa perspectiva, no fato de que agora são necessárias ações para atender às demandas
de cidadania, que são melhor respondidas numa administração pública gerencial. Em outro
escrito Souza e Gurgel (2013) indicam que a forma gerencial representou a reposição do
patrimonialismo na administração pública brasileira através de mecanismos de
descentralização política e administrativa; que se materializaram em um reforço aos
dispositivos de poder e mando privados e à lógica dos coronéis locais adequada às
regionalidades atuais, em desresponsabilização do Estado e privatização de ações que
deveriam ser estatais.
Em Nogueira (1998) o argumento é de que há um componente ineliminável do
Estado brasileiro: a macrocefálica bifrontalidade, que consiste na coexistência nele de duas
cabeças – uma racional/legal e outra patrimonialista. Este caráter ineliminável está segundo o
autor na forma passiva da revolução burguesa brasileira, que conciliou e compensou os
interesses dos grupos dominantes conforme a conveniência com as fases econômicas que se
fazia necessário cumprir. Faz-se assim um Estado que articula uma modernização
conservadora: hipertrofiado e multifacetado, com complicadas relações na administração
pública, sistema público instrumentalizado pelos grupos econômicos dominantes,
agigantamento do aparato estatal, mecanismos de trocas políticas para legitimação do Estado.
Esses elementos dificultam a convivência com padrões “superiores” de racionalidade,
eficiência e organicidade e torna a administração pública cada vez mais instrumental às
classes dominantes.
Nos dois autores, a relação entre patrimonialismo e burocracia está na superação
do primeiro pelo segundo entendendo o patrimonialismo como o elemento velho/arcaico e a
burocracia enquanto moderno/superior sem compreender que em essência ambos representam
diferentes elementos da superestrutura de dominação – tradicional e racional/legal, que não
necessariamente se excluem dentro da lógica do capitalismo. Antes, ambos atendem a
diferentes momentos históricos e são funcionais ao ordenamento social das classes
dominantes. Trazendo para a realidade brasileira, estes elementos não são excludentes na
formação social. O que ocorre ao contrário é uma articulação de componentes de dominação
pré-capitalistas com os de tipo capitalistas, conforme o tempo histórico e as demandas da base
material de produção econômica (SOUZA e GURGEL, 2016). Não há, portanto contradição
ou dicotomia entre o velho e o novo. Patrimonialismo e burocracia se combinam numa
espinha dorsal funcional que objetiva a dominação dos grupos tradicionais com a burguesia
industrial. O patrimonialismo deve ser entendido não como atraso numa suposta linha
evolutiva da forma administrativa anterior à burocracia, e sim enquanto particularidade da
administração pública brasileira relacionada ao modo de sua estrutura de poder no quadro da
expansão do capitalismo dependente. Ambos se imbricam dialeticamente e são determinantes
da complexidade de pensar administração no Brasil.

REFERÊNCIAS:

BRESSER-PEREIRA, L.C. (1998) – “Da administração pública burocrática à gerencial". In:


BRESSER PEREIRA, L.C. e SPINK, P. (org.) (1998) – Reforma do Estado e administração
pública gerencial. Rio de Janeiro, Editora FGV.

MAZZEO, Antônio Carlos. (1989). Estado e Burguesia no Brasil, origens da autocracia


burguesa. Belo Horizonte, Oficina de Livros.

NOGUEIRA, M. A. (1998). As Possibilidades da Política, São Paulo, Paz e Terra.

SOUZA FILHO, R. & GURGEL, C. (2016). Gestão Democrática e Serviço Social. São Paulo,
Cortez.

SOUZA FILHO, R. Gestão pública e democracia: a burocracia em questão. (2013) Rio de


Janeiro, Lumen Juris.

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