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XVIII ENDIPE

Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira


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EDUCAR EM TEMPOS DE “DISCURSO DE ÓDIO”, VIOLÊNCIA E BULLYING:


NOVOS DESAFIOS À DOCÊNCIA

Os múltiplos fenômenos característicos das violências em meio escolar, sobretudo, os recorrentes


episódios de bullying, têm desafiado agentes escolares, instigado pesquisadores e desestabilizado
teorias pedagógicas. Professores têm sido instados a repensarem suas práticas cotidianas quando,
o “discurso de ódio” (Glucksmann, 2007) ao diferente que reverberam em confrontos físicos e/ou
psíquicos, os impossibilitam de operacionalizarem os conteúdos curriculares predeterminados.
Visando contribuir com tais desafios, o painel aqui proposto apresenta três pesquisas
direcionadas à temática da violência escolar e ao “discurso de ódio” que a produz
expressivamente no cotidiano das escolas. Na primeira delas, recorte de uma tese de doutorado,
são expostas concepções e experiências de violência vivenciadas durante estágios
supervisionados por licenciandos em três Universidades cariocas. A segunda pesquisa discute a
interrelação entre o alto índice de casos de bullying nas escolas brasileiras e o não
reconhecimento das diferenças culturais e identitárias construídas e reconstruídas no ambiente
escolar. Defende ainda que o não reconhecimento da diferença vem acompanhada de uma
maldade banalizada, algo semelhante ao que a filósofa Hannah Arendt (2011) descobriu em seus
estudos sobre a violência social. O terceiro texto direciona-se especificamente a presença do
“discurso de ódio”, segundo Glucksmann (2007), e do “elogio da intolerância” apresentado por
Zizek (2006), como desafios para nossos dias se desejamos uma escola e, sobretudo, uma
sociedade mais justa e tolerante. O texto advoga ainda que a tarefa educativa hoje se encontra
desafiada por tempos difíceis nos quais educar para a tolerância e contra a barbárie se
apresentam como socialmente urgentes. O painel compreende, portanto, ser a articulação da
temática da violência nos cursos de formação docente, do bullying especificamente, e o
“discurso de ódio” que o aporta como uma importante contribuição aos desafios hoje enfrentados
pela formação docente.

Palavras-chave: Violência Escolar, Bullying, "Discurso de Odio"

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UMA LEITURA ARENDTIANA DO DISCURSO DOCENTE ACERCA DA VIOLENCIA


EM MEIO ESCOLAR
Monique Marques Longo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

RESUMO
Novos fenômenos desafiam as práticas cotidianas docentes nas diversas instituições de ensino
independente do tipo de gestão, espaço geográfico e/ou concepção pedagógica adotada.
Professores apontam as múltiplas facetas da violência em meio escolar, das indisciplinas às
agressões físicas, como mote das dificuldades de se operacionalizarem os objetivos curriculares
predeterminados. Investigam-se estratégias para a mediação eficaz destes conflitos cujas causas
são consideradas multifatoriais (CANDAU, 1999). Nesse sentido, o presente trabalho tem como
objetivo apresentar uma pesquisa realizada em três Universidades cariocas visando compreender
o que se discursa acerca dos fenômenos violentos nas escolas cujas consequências os licenciados
enfrentam durante seus iniciais estágios supervisionados. Foram analisados seis currículos de
filosofia e sociologia, e entrevistados dezoito licenciandos matriculados nos seus últimos
períodos de graduação. A leitura proposta pela filósofa Hannah Arendt acerca do fenômeno da
violência constituiu-se como aporte teórico do trabalho. Algumas reflexões foram levantadas: (1)
as propostas de reflexões sobre o tema durante os cursos de formação docente são consideradas
pelos licenciados incipientes e não planejadas frente aos desafios que enfrentam durante seus
estágios, (2) a violência decorre da inexistência de espaço de fala/escuta do alunos e,
consequentemente, de negação de ação politica nas instituições educacionais, (3) a violência
pode decorrer da chamada “crise da autoridade” docente indistinta de um agir autoritário, (4) a
escassez de discussão sobre a violência escolar evidente nos cursos de formação docente fomenta
o descaso com o tema, ratifica uma certa “banalidade do mal”(Arendt, 2008) e pode, ainda,
constituir-se como um dos fatores propulsores da taxa de 75% de abandono nos cursos de
licenciatura (INEP, 2009).
Palavras-chave: violência escolar, prática de ensino, Hannah Arendt

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UMA LEITURA ARENDTIANA DO DISCURSO DOCENTE ACERCA DA VIOLENCIA


EM MEIO ESCOLAR

1. Introdução

São muitos e novos os desafios hoje enfrentados pelos diversos agentes educacionais no
cotidiano das escolas. Dentre estes, professores ressaltam o tempo despendido diariamente
resolvendo conflitos relacionados aos episódios violentos em salas de aula. Pesquisa
mundialmente coordenada pela Organização pela Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) postulou que os professores no Brasil gastam 20% do seu tempo resolvendo questões de
indisciplina, conflitos e resolução de problemas não relacionados aos conteúdos curriculares
programados. O desempenho brasileiro é o pior entre os 32 países que participaram da pesquisa,
segundo a TALIS (2013).
Independente das práticas de mediação adotadas, observamos episódios de violência dentro
das instituições de ensino sendo veiculados periodicamente pelos meios de comunicação. A
midiatização exacerbada fomenta um intenso debate acerca do tema, muitas vezes, sem
fundamentação e dados reais consistentes. Alega-se tanto o aumento quantitativo dos fenômenos
quanto a emergência das suas múltiplas e novas formas de manifestação, promovidas, muitas
vezes, pelo narcotráfico e por gangues que em outras épocas não se inseriam tão fortemente na
escola. Acusa-se também a atual “cultura juvenil” de violenta e indisciplinada. Desta forma,
ratificam-se práticas repressivas nas escolas como a instalação de câmeras de vídeo, normas
disciplinares rígidas e a presença de policiais nas instituições de ensino.
Ante tal fato, nos questionamos se tanto episódios de indisciplina como agressões físicas
devem ser resolvidos da mesma forma. Todos os fenômenos que fogem ao controle do professor
e da escola, da dispersão às chacinas, são violências? Partimos do pressuposto que "definir" a
violência escolar é, antes, mostrar como ela é socialmente construída em sua própria designação;
como é discursada, representada socialmente, a ponto de ser problematizada por uma
comunidade epistêmica. Éric Debarbieux ressalta que “fatos sociais heterogêneos sejam reunidos
sob o termo genérico de "violência" pelos atores da escola é em si mesmo um fato social digno
de ser pensado” (DEBARBIEUX, 2001,p. 164).

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Nesse sentido, a pesquisa aqui apresentada, fruto de um recorte de uma tese de doutorado
defendida num programa de pós-graduação em Educação, expõe uma análise acerca da
formação docente quanto à temática da violência escolar. Visamos compreender como
licenciandos/ professores em formação percebem e se posicionam ante os conflitos interpessoais
que, se não são bem direcionados, resultam em episódios mais ou menos violentos. Tais
reflexões levaram-me necessariamente a indagar sobre a formação docente. Passei a me
questionar como esses professores vêm sendo formados durante seus cursos para mediar
conflitos.
Para tal, realizei uma pesquisa qualitativa em três Universidades cariocas direcionando-me
aos cursos de filosofia e sociologia; escolha balizada por afinidade temática com o problema em
questão. Seis currículos foram analisados e três licenciandos de cada curso e cada universidade
foram entrevistados. Todas as dezoito entrevistas foram analisadas de acordo com os
pressupostos da “Analise de conteúdo” apresentada por Bardin (1977).
A temática específica da violência escolar tem sido estudada por renomados pesquisadores
internacionais (Bourdieu, Debarbieu ) como nacionais (Abramovay , Candau et all,). No entanto,
no recorte por ora apresentado, nos aportaremos teoricamente nos estudos arendtianos. A filosofa
Hannah Arendt nos ajudou a compreender a emergência do fenômeno da violência na sociedade,
em geral, e na escola, em específico, quando o interrelacionamos com a crise da autoridade de
certas instituições modernas no século XX e de uma emergente “banalidade do mal” (Arendt,
2005), fomentada por uma incapacidade humana de submeter fatos à inspeção do pensamento.

2.Violência, autoridade e poder: uma leitura arendtiana

A temática da violência perpassa grande parte da vasta obra de Hannah Arendt e, na sua
maioria, relaciona-se à problemática do poder, da autoridade e da liberdade. A filósofa, no
entanto, dedicou uma obra inteira à reflexão do fenômeno intitulada Sobre a Violência,
publicada originalmente em 1969, e a qual tomaremos como principal referência para pensar
aqui passagens do discurso docente sobre o tema.
Após ressaltar que “ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode
permanecer alheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou nos negócios
humanos”(Arendt, 2001), a filósofa ressalta que pensar a violência é pensar no evidente

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esfacelamento da tradição intelectual que demonstra não dar mais conta, categoricamente, do
ineditismo dos movimentos políticos e sociais emergentes no inicio do século XX. As antigas
formas utilizadas por todos para compreender os fenômenos e momentos históricos, até então,
tornaram-se incongruentes, “posto que os resultados das ações dos homens estão para além do
controle dos atores, a violência abriga em si mesma um elemento adicional de arbitrariedade”
(Arendt, 2001,p.14).
Buscando conceituar o fenômeno, Arendt significa a violência como instrumental e como
processo que difere do poder, do vigor, da força e da autoridade. Opondo-se a Mao Tse Tung,
Mills, Weber e muitos outros que pensam a violência como decorrente da manifestação do poder,
a filósofa a compreende como a ele incompatível. O poder, inerente a qualquer comunidade
política, é resultante da capacidade das pessoas agirem coletivamente, por consenso. Quando este
poder se desintegra, enseja a violência. Quando os comandos não são mais consensualmente
aceitos, os meios legitimadores do poder entram em crise e a violência pode se instalar. A
violência, portanto, para Arendt (2001), não afirma o poder, mas o destrói.
O vigor seria algo que se obtêm individualmente, no singular, e a força residiria na energia
liberada por movimentos físicos e/ou sociais. A autoridade se afirmaria, por sua vez, no
reconhecimento inquestionável que prescinde da coerção e/ou persuasão, sendo destrutível
apenas por desprezo. A violência, nesse caso, seria, portanto, divergente tanto da força como do
vigor. . Ela se afirma apenas instrumentalmente e, portanto, se diferente da autoridade e do poder
que, por sua vez, exigem instrumentos de coerção para fortalecer algo/e ou alguém.
A violência multiplica, com os instrumentos que a tecnologia fornece de maneira
cada vez mais exponencial, o vigor individual. Por isso a forma extrema de
violência é o um contra todos. O que surge do cano de uma arma não é poder, mas
sua negação. (LAFER, 1994, p. 9).

As causas da agressividade humana residiriam, por sua vez, na burocratização da vida


pública, na insegurança promovida pelos grandes sistemas e na monopolização do poder. Tais
fatores promovem um aniquilamento da faculdade de ação do ser humano no mundo
contemporâneo, e consequentemente, do potencial de suas fontes criativas. Para Arendt (1994,
p.58), “quanto maior é a burocratização da vida pública, maior será a atração pela violência”, já
que em um sistema burocrático bem desenvolvido não há a quem possamos apresentar queixar.

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A burocracia apresenta-se como a forma de governo na qual as pessoas estão privadas de


liberdade política. A frustração com a impossibilidade de exercer politicamente a ação fomenta o
uso da força como meio de reivindicação da própria voz. O ato de agir é a resposta humana a sua
condição de natalidade; e, segundo a filósofa, é a faculdade humana que nos afirma como seres
políticos. É a ação que nos capacita a juntar-nos com nossos pares, buscarmos o consenso nos
diversos assuntos, almejar objetivos conjuntos, o de nos aventurar em algo novo. Somente por
meio da ação podemos dar início a novos recomeços, à mudanças. A negação da voz e da
capacidade de agir em conjunto e, ainda, a inexistência de a quem reclamá-la, faz com que a
violência seja o meio único disponível para obter novamente tal legítima capacidade de ação.
O perigo advém da possibilidade da violência reivindicatória desestabilizar o poder vigente
cujo objetivo é manter a possibilidade de que todos tenham sua voz escutada e os interesses
consensualmente atendidos. A diluição do poder, incitada pela decadência da capacidade de agir
em conjunto, fomenta, por sua vez, mais violência. Os detentores do poder, quando em crise,
dificilmente resistem à tentação de reivindicá-lo utilizando-se de movimentos violentos.
Almejando impor uma vontade individual, portanto, promovem-se movimentos e regimes
totalitários, como os vigentes no momento histórico quando escreve a filósofa.
São muitas as reflexões apresentadas pela autora acerca dos movimentos e fenômenos
violentos, tão evidentes, naquele momento de pós-guerra. A leitura postulada pela filósofa nos
ajuda a refletir a emergência destes fenômenos nas escolas brasileiras, cujas consequências
transcendem os muros das instituições de ensino e desafiam a formação dos futuros professores.

3.A formação nos cursos de licenciatura: a violência como desafio ou como instrumento
de reivindicação ?

Cabe ressaltar, preliminarmente que, todas as dezoito entrevistas realizadas nos seis cursos
pesquisados foram realizadas no período de greve dos professores do Estado e do Município do
Rio de Janeiro. O movimento foi anunciado pelo SEPE - Sindicado dos Profissionais de
Educação - em prol da caução da afirmação estatal acerca das reivindicações da categoria não
efetivadas pelos representantes do Estado, na época, e em defesa da anulação da outorgação do
Novo Plano de Carreira e Salários docentes pelo estado do Rio de Janeiro. Ficou claro, durante a

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análise dos dados, que o contexto político no qual nossa pesquisa foi realizada e, sobretudo, a
concomitância com o movimento grevista muito influenciou a fala de alguns dos entrevistados.
Ao questionarmos os licenciandos sobre as causas da emergência de fenômenos violentos
nas escolas, ficou evidente a multiplicidade de referências e concepções apresentadas pelos
graduandos. Tal fato corrobora tanto o amplo espaço semântico abarcado pelo conceito, acusado
por Debarbieux (1992), como a multicausalidade e pluralidade do fenômeno, algo afirmado por
Candau, Nascimento e Lucinda (1999).
A existência de uma polícia ineficiente, o aumento da pobreza, a má distribuição de renda,
o desemprego e o aumento do narcotráfico na sociedade brasileira são fatores relevantes para
compreender a questão. Sozinhos, entretanto, ressalta Candau et all (1999), não explicam esta
rotinização. A percepção destas causas depende tanto de fatores estruturais como das mediações
materiais e culturais que envolvem hoje a violência na sociedade brasileira.
Seis graduandos direcionaram suas falas à vigência de uma violência simbólica inerente às
instituições de ensino. Tais entrevistados responderam que a própria escola é uma instituição
violenta. A forma homogeneizante de se ensinar/ aprender e a inexistência de um espaço de
escuta e promoção da voz dos alunos são fatores que incitam a violência, fato que corrobora os
pressupostos arendtianos. Segundo Arendt (2001a) a frustração com a impossibilidade de agir
politicamente fomenta o uso da força como meio de reivindicação da própria voz. A negação da
fala e da capacidade de agir em conjunto e, ainda, a inexistência de a quem exigi-la, faz com que
a violência seja o meio único disponível para obter tal legítima capacidade de ação por parte dos
alunos nas escolas; fato evidenciado pelos licenciandos já no início de sua carreira docente.
Três entrevistados acreditam que as condições como são geradas e gerenciadas as
instituições educacionais, especificamente públicas, fomentam atitudes violentas por parte dos
múltiplos atores que ali trabalham.
Os meninos comem a semana inteira arroz, feijão e ovo no almoço, Só! Não que isso
seja, tipo, que vá mudar a educação com uma comida melhor, mas pelas menores
coisas que a gente percebe, né, a violência já implícita ai. (...) os professores tendo
que se dividir em várias escolas de um lado para o outro com os salários terríveis e
pensar que essas questões geram a violência ou isso é uma violência..(...). O sistema
já é violento por ele mesmo, sem falar nas violências que acontecem dentro da
escola. (...) Esses questionamentos me perturbam muito assim, porque que, e ai o
professor do Estado o salário é horrível, são salários muito baixos, eles são muito
cobrados pela direção, que por sua vez é cobrada pela secretaria de educação que
tem que cumprir metas e tem que conseguir pontos nas provas, nas avaliações, o

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professor tem que estar com o diários sempre em dia, então são muitas cobranças e
pouco retorno. (A19)

São ressaltadas, ainda, as muitas coerções que balizam as práticas pedagógicas e fica claro
a forma autoritária de a escola se autoafirmar, algo incompatível com a concepção arendtiana de
autoridade. Relembramos que a violência para Arendt (2005) é gerada pela incapacidade de um
poder instituído se afirmar como legítimo, e não o contrário. A violência não nasce do uso do
poder mas do seu esfacelamento, quando a autoridade vigente não é mais consensualmente aceita.
Tais reflexões nos ajudam a pensar a relação da escola com a crise que, segundo Arroyo (2001),
esta atravessa.
A concepção de escola como instituição responsável pela reprodução de saberes
tradicionais a serem transmitidos a todos, segundo Arroyo (2001a) não mais se sustenta. Tais
saberes oriundos da tradição, nos lembra Arendt (2005), é colocado à prova com o advento da
modernidade, abrindo espaço para um vazio que solapa instituições como a igreja e a escola, até
então hegemônicas. Os atores que por eles são sustentadas consequentemente tem sua autoridade
esfacelada, deixa de ser legitimada. As diversas formas de uso da força, mote da violência,
emergem do vazio por elas deixados.
Da mesma forma que fez certos poderes ditatoriais, estaria, a escola, utilizando-se da
violência e práticas coercitivas para reivindicar seu espaço privilegiado ante a sociedade? Certas
falas nos fez acreditar que sim.
Cara, você entra na escola é (...) tem grade. Aí toca o sino, as crianças saem
gritando, é igual o banho de sol ((risos)) Galera revoltada, revoltada. Aí tem o
inspetor, tem inspetor no corredor; tem as salas no corredor, tem as celas, né?! São
uns quadradinhos assim, os moleques ficam entocados lá dentro e quando põe o pé
pra fora, o inspetor “pá! Vai pra dentro!”. Caramba! Que porra é essa? Nossa!
Vontade de correr. ((risos)) Porra! Eu fico [...] A primeira vez [...]me deu vontade
de sair daqui. Aí você vai acostumando, daqui a pouco tu está achando normal de
novo... eles gritam, é assim mesmo... É bizarro, cara, é bizarro. Aí eles têm que
aprender uma parada que eles não querem, que eles não pediram para aprender,
que eles mesmos não acreditam. Isso que é triste... Tu vê que eles... muitos
reproduzem os discursos de que têm que aprender para ser alguém na vida. Eles
acham que não são ninguém ainda, que a escola que vai fazer deles alguém. E, cara,
não tem como não gerar violência, uma violência mais prática, assim, porque é
uma violência que vai gerar violência, vai gerar, não adianta.”(negrito meu) (A6)

A despeito das causas serem divergentes – alguns entrevistados alegam ser a prática
pedagógica e a cultura escolar violentas e, outros, o sistema público para com a escola pública

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violento – os licenciandos levantaram questões que caracterizam uma possível violência da


escola, como assim classifica Charlot (2001). Para o pesquisador, para além da violência da
escola – aquela promovida simbolicamente pela própria instituição - há ainda a violência na
escola – gerada no seu interior por agentes externos à escola – e violência à escola – caracterizada
por depredações do espaço escolar ou dos agentes que a ele pertence como professores ou
coordenadores pedagógicos.
Eu acredito que a violência também vem um pouco da questão da repressão que os
alunos sofrem (...)Não poder se manifestar muito, porque cada aula exige muita
atenção, exige muita concentração, enquanto os alunos devem receber informação
passivamente, e não participar do processo de construção do conhecimento que a
gente discute nas universidades, e que é no caso a parte teórica né, que a gente
aprende, mas na parte prática acaba ocorrendo um distanciamento e as escolas
ficam muito presas a conteúdos também, e isso tudo interfere, acredito neste
processo de ganhar indivíduos violentos, né porque muitas vezes ele não se sente em
parte deste processo de aprendizagem, se sente apenas um objeto assim, pra, talvez
um número [...] não é um ambiente agradável para os alunos. (A4)

No que tange à violência da escola, questões levantadas por A4 nos fazem pensar sobre
uma possível violência resultante do próprio processo de ensino e aprendizagem quando não leva
em conta a necessária integração, podemos pensar conflito, do aluno com o saber. Teorias
sociogenéticas assim como as de vieses mais sociointeracionistas nos aportaram quanto à
imprescindibilidade da interação do aluno com seu objeto de conhecimento para que as
associações e acomodações inerentes à aprendizagem aconteçam. Impedir essas interrelações
pode ser considerado também uma violência? Uma escola tradicional é violenta, por natureza?
Se o aprendizado verdadeiramente se constrói apenas quando contextualizado, significado, aberto
“aos ventos do pensamento” ( Arendt, 2001b) podemos postular que impossibilitar o aluno deste
processo, de pensar, é em si uma violência? Esta é a visão apresentada pelo entrevistado que
corrobora, em parte, o que consideramos ser uma escola promotora de alunos submissos e nao
pensadores.
Referindo-nos ainda às causas da violência escolar, dois outros grupos de cinco
entrevistados cada, compreendiam ser: (1) fruto de condições sociais desfavorecidas e (2) um
reflexo da violência social inerente a nossa sociedade como um todo.
O primeiro grupo compartilha, em parte, com as exposições arendtianas quando se refere à
burocratização da vida pública desancorada de compromisso social. Para Arendt (2001a), a
burocratização social, a insegurança promovida pelos grandes sistemas e a monopolização do

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poder promovem um aniquilamento da faculdade de ação do ser humano no mundo


contemporâneo, e consequentemente, do potencial de suas fontes criativas. Para Arendt (1994,
p.58), “quanto maior é a burocratização da vida pública, maior será a atração pela violência”, já
que em um sistema burocrático bem desenvolvido não há a quem possamos apresentar queixar.
As desiguais relações de poder existentes nas escolas e de qualidade de condições entre as
escolas não são reclamáveis. Não há instituições a quem dialogicamente conclamar por justiça. A
violência parece tornar-se, segundo Arendt e as falas dos licenciandos, instrumentos de ação por
justiça.
A violência é oriunda da sociedade em que a gente vive. Eu creio que se existe
violência, é porque a gente vive num país que tem um uma desigualdade social muito
grande. Porque esse é um fator, não é o principal fator, mas é um fator
determinante. A desigualdade social gera a questão de um aluno ter, outro não ter,
um aluno poder outro não poder, um aluno esta fora dos padrões, o outro nos
padrões. Essas diferenças ..ééé’, eu não sei bem responder o porquê, mas acredito
que elas sejam sim as causas da violência. (A2)

Quando perguntados se teriam tido alguma disciplina ou formação durante suas


graduações que os fundamentassem a mediar conflitos interpessoais, 31,5% dos 18 licenciandos
de sociologia e filosofia responderam que durante algumas disciplinas aconteceram vários
debates sobre violência, mas se limitava a violência social, em termos gerais. Inferimos que,
direcionados às especificidades da problemática nas escolas não houve abordagem de conteúdos.
31,5% da maioria ressaltou haver mas apenas quando os alunos apresentavam situações
vivenciadas no estágio.

Pra passar os conteúdos de filosofia sim, ela prepara. A faculdade de Filosofia ela é
excelente, tem excelentes professores. Mas talvez pra enfrentar, enfrentar algumas
situações dentro de sala de aula, (...) situações de intolerância dentro da sala de
aula, lidar com uma indisciplina muito grande de alunos, aí eu acho que não. Eles
não preparam a gente pra isso. (A9)

Não. Uma hora ou outra a gente toca em algum tema mais polêmico porque, na
verdade, na minha turma, eu sou a que tenho um contato direto com a educação.
Então, como eu tenho um pouco mais de experiência, e às vezes eu puxo tema,
algum relato de alguma coisa que aconteceu porque eu acho que seria interessante
discutir (A15).

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Inferimos, destas respostas, que a questão era abordada ocasionalmente; não havia um
planejamento e/ou um organização acerca de uma possível proposta temática para as aulas – o
que nos remete às respostas explicitadas pelo segundo grupos de entrevistados. 21% dos
licenciandos alegaram haver um debate sobre a temática, mas realizado de forma muito
superficial e desligado de qualquer aporte teórico consistente. A discussão sobre a violência
escolar, quando surge, norteia-se pelo senso-comum e ditames não teoricamente fundamentados.
A incapacidade de submeter os fatos à reflexão, segundo Arendt (2005), mostra-se uma das
causas da atual “banalização do mal”, evidente em tempos modernos. Fato evidente na não
formação docente para a mediação e enfrentamento da violência?
Quando questionados se presenciaram alguma aula direcionada exclusivamente à
violência escolar, respondiam:
Não. A gente tava até discutindo isso (violência escolar) numa aula; foi até a aula
da Mariai. A gente tava discutindo os tipos de escola, os tipos de escola técnica,
clássica... os modelos pedagógicos e num debate desse a gente discutiu sobre as
questões da violência escolar e coisas sobre o estágio de campo lá, e a gente
tinha que ver no estagio de campo como estavam acontecendo as práticas e
relacionar com... era parte do relatório final. Isso a gente abordou, falou algumas
coisas nesta aula mas também não foi assim.... não era o tema central da
discussão. (aluna da sociologia)

Olha, eu acho que... algo que me marcasse profundamente para eu dizer a gente
fez.. um seminário, um debate que foi ótimo, não (aluno da filosofia)

É coisa de tipo assim, o professor começou a falar, alguém levanta a mão e fala.
Não é uma discussão, não tem nada planejado, não tem texto nenhum,
nada.(...).(aluna de sociologia)

4. Algumas reflexões finais

A proposta de apresentação oral aqui submetida direciona-se a apresentar tanto uma


discussão teórica acerca da visão arendtiana do fenômeno da violência em tempos de crise de
certas instituições modernas, dentre elas, a escola, quanto analisar dados de uma pesquisa
empírica realizada em seis cursos de licenciatura localizados na cidade do Rio de Janeiro.
Quanto ao primeiro objetivo, tornaram-se claros os desafios enfrentados quando
buscamos distinguir o termo violência de outros que são utilizados como dele sinônimos. Itani
(1997) nos bem fundamentou quanto às especificidades da existência de uma violência inerente e

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invisível aos sistemas educacionais quando hierarquizam, classificam, reprimem e estipulam


alunos-padrões a seres seguidos por todos, excluindo suas diferenças. Arroyo (2007)
complementou a análise ao apresentar as vicissitudes de uma escola construída sob os moldes
modernos e que atende hoje um público oriundo de classes sociais desfavorecidas, de múltiplas
raças, orientações sexuais, credos e saberes prévios não contemplados por uma certa concepção
de escola pública e de criança como algo universalmente reconhecível. Debarbieux (2001) e
Charlot (2002) nos aportaram quanto às distinções existentes entre os termos violência escolar e
agressividade, transgressões, incivilidades e agressões, assim como entre as violências das
escolas, violências à escola, e violência na escola. Ante eles, ficou claro que o uso indistinto e
não rigoroso dos termos tanto fomenta seu uso como categoria segregadora dos alunos que não
sustentam o padrão estipulado e dificulta compreendermos o papel da escola no fomento a certas
facetas da violência. Desta forma ainda, nos fica impossibilitado estipular estratégias ao
enfrentamento da questão que vem, cada vez mais, inviabilizando os processos de ensino e
aprendizagem.
Nossa pesquisa empírica ratificou a insuficiente abordagem da temática nos atuais cursos
de licenciatura, cuja taxa de abandono chega a 75% (INEP). Nos seis cursos de licenciatura
analisados há apenas uma disciplina exclusivamente direcionada à discussão do fenômeno
presente no cotidiano dos próprios licenciandos quando iniciam seus estágios supervisionados.
A despeito de todos os alunos entrevistados ressaltarem experiências de indisciplina e até
violências durante suas iniciais práticas pedagógicas e afirmar sentirem-se inseguros para lidar
com tais questões, apenas uma disciplina eletiva, com pouco número de vagas, é ofertada aos
alunos de uma das IES analisadas.
Os alunos que cursaram Práticas minimizadoras da indisciplina e da violência escolar na
UERJ corroboraram a importância e o impacto que tais discussões tiveram na sua formação,
sobretudo, pela disciplina nortear-se por questões práticas levantadas a partir do próprio
questionamento discente. Um aporte teórico consistente, balizado por referenciais da psicologia
da aprendizagem e do desenvolvimento assim como de sociólogos que debatem o fenômeno de
forma multicausal e multiestrutural mostrou-se ainda de grande relevância às necessidades
práticas apresentadas pelos licenciandos.
Findamos nossa proposta de apresentação almejamos contribuir com a discussão desta
problemática que muito tem desafiado tanto pesquisadores como professores inseridos nos

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diversos espaços educativos. A despeito da inexistência de um consenso ao significarmos as


violências em meio escolar, fica claro os impasses que se descortinam ao utilizarmos o termo de
forma não rigorosa, sobretudo, quando evidenciamos uma certa “histeria da mídia” em veicular
episódios de indisciplina e homicídios indistintamente, apenas visando o apelo do público que
deles consome. Acreditamos, por fim, que o caminho rumo ao seu enfrentamento é longo,
porém, enfrentar o desafio semântico que o termo apresenta, sobretudo, desde a formação inicial
docente, mostra-se um primeiro passo.

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BULLYING: A BANALIZAÇÃO DA MALDADE

Pâmela Esteves
Professora adjunta da UERJ-FFP
RESUMO
Essa proposta defende que o alto índice dos casos de bullying encontrados no Brasil está
diretamente relacionado à dificuldade dos estudantes em reconhecer suas próprias diferenças
culturais e identitárias que são construídas e reconstruídas no ambiente escolar.
A meu juízo mesmo que a relação entre o não reconhecimento da diferença e o
comportamento do bullying se confirme, ainda assim a questão da motivação para a ocorrência do
bullying continua sem explicações racionáveis, pois não aceitar que o outro seja diferente me parece
insuficiente como justificativa para práticas de agressão, desrespeitos e humilhações. Por isso,
acredito que o não reconhecimento da diferença vem acompanhado de uma maldade banalizada, um
sentimento semelhante ao que Arendt (2011) descobriu em seus estudos sobre a violência social.
Nessa perspectiva, pretendo investigar o bullying dentro do contexto da intolerância em
relação à diferença, mas também como um comportamento maliciosamente banal, que entre crianças
e adolescentes provavelmente nasce da incapacidade de pensar e refletir sobre o significado e as
conseqüências de suas ações. Tal incapacidade acredito ser resultante de um projeto moderno de
sociedade que construiu um modelo de escolarização que não valoriza uma proposta educacional
voltada para o pensamento e para reflexão.
O bullying se tornou uma problemática que desafia cotidianamente a escola. É importante
prevenir e combater essa violência escolar, mas acredito ser primordial compreender como esse
comportamento acontece e porque acontece.

Palavras-chave: Bullying, (não) reconhecimento da diferença e banalidade do mal

A dificuldade em reconhecer as diferenças é estrutural e não se circunscreve apenas ao


espaço escolar. Na verdade, essa dificuldade refere-se a uma mudança de paradigma: fomos
ensinados pelo projeto moderno do iluminismo que somos iguais e devemos ser tratados
igualitariamente. Mas, esse projeto tornou-se insuficiente diante das reivindicações de uma
sociedade multicultural que luta para tornar a diferença um direito a ser reivindicado e
positivamente reconhecido. É verdade que temos uma humanidade em comum, afinal todos

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compartilhamos a dignidade humana, mas nossas diferenças ganharam legitimidade e precisam


ser reconhecidas. Diante desta nova configuração, contraditoriamente, o bullying parece ter
ganhado força.
A escola é uma das instituições onde o reflexo dessa mudança de paradigma é expressiva.
Como isso se configura na escola? Como os estudantes vivem em meio a uma pluralidade de
culturas, etnias e identidades? Qual o papel da escola diante das diferenças que a desafiam
cotidianamente?
Esse texto busca refletir sobre esses questionamentos iniciais. Para tanto, buscarei investigar
o que está por trás dos atos de bullying, ou seja, o que leva crianças e adolescentes recorrerem a
práticas agressivas, violentas e desrespeitosas em suas relações escolares. Parto do pressuposto que
o comportamento do bullying está relacionado a dificuldade que os estudantes encontram em
conviver com as diferenças que nos constituem enquanto seres humanos. Acredito também que o
não reconhecimento da diferença vem acompanhado de uma maldade banal, um sentimento
semelhante ao que Arendt (2011) descobriu em Eichmann, um oficial nazista responsável por enviar
judeus aos campos de concentração.
Segundo Arendt (2011), a maldade empregada por Eichmann é banal porque não havia um
motivo, uma razão justificável. A todo o momento ele sabia que aquelas pessoas sobre a sua
responsabilidade seriam brutalmente assassinadas e esse conhecimento não o fez impedir a Solução
Final. Porque ele não impediu? Por que ele não tentou outra saída para as ordens que recebia? Para
Arendt (2010), incapacidade de pensar oferece um ambiente privilegiado para o fracasso moral, pois
o ato solitário de pensar volta-se para os acontecimentos e busca dar sentido e significado a estes.
Eichmann não realizava esse ato, era um oficial com respostas prontas e automáticas, em seus
depoimentos suas palavras eram encaixadas em contínuos discursos de clichês sempre superficiais e
sem justificativas. A banalidade do mal presente nas ações de Eichmann não significa sua
inocência, mas sim sua incapacidade de refletir sobre a brutalidade que estava sobre sua
responsabilidade, essa incapacidade é visível em uma massa de cidadãos inaptos e incapazes de dar
significado aos acontecimentos e aos seus próprios atos. Ouso pensar que o bullying pode ser
motivado por um mal deste tipo, um mal sem sentido, sem profundidade, sem razões ou
justificativas, realizado por estudantes superficiais incapazes de pensar nos seus próprios atos e
praticados contra estudantes vistos como diferentes e inferiores.

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O Bullying como uma violência escolar singular

O bullying, enquanto um tipo específico de violência escolar começou a ser estudado na


década de 1970 na Suécia. A partir de 1990, na Noruega, o professor Dan Olweus, pesquisador
da Universidade de Bergen, começou a investigar o assunto a partir de vários casos de suicídios
ocorridos com adolescentes, todos praticados por aqueles que sofriam agressões na escola.
Olweus (1994) elaborou os primeiros critérios para detectar quando os casos são
realmente bullying e diferenciou de interpretações errôneas como gozações isoladas, incidentes,
brincadeiras agressivas próprias do processo de amadurecimento de crianças e adolescentes. Os
seis critérios estabelecidos por Olweus (1994, p.236) são os seguintes: 1) Ações repetitivas
contra a mesma vítima; 2) Período prolongado de tempo. 3) Desequilíbrio de poder entre o
agressor e a vítima; 4) Dificuldade da vítima em se defender; 5) Ausência de motivos que
justifiquem os ataques. 6) Os atos de violência ocorrem entre pares;
As pesquisas de Olweus (1994) repercutiram e a problemática do bullying logo se
transformou em uma agenda de pesquisa para intelectuais das ciências humanas e das ciências da
saúde. No entanto, os primeiros estudos sobre bullying escolar realizados no Brasil, além de
restritos à esfera municipal, apenas refletiam os trabalhos europeus existentes até o momento.
A princípio irei trabalhar com o conceito de bullying elaborado por Olweus (1994), pois
não encontrei na revisão de literatura nenhum estudo com uma conceituação que abarque a
diversidade de casos de bullying já pesquisados. Creio que o pioneiro estudo de Olweus (1994,
p.64) permanece ainda a principal e mais completa referencia para a investigação do bullying.

O bullying compreende todas as atitudes agressivas, intencionais e


repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um
ou mais estudante contra outro(s), causando dor e angústia, sendo
executadas dentro de uma relação desigual de poder.

Acredito que um dos motivos para a prática do bullying é a dificuldade que os estudantes
encontram em reconhecer as diferenças, por isso é importante compreender qual o papel que o
reconhecimento social possui no processo de construção de identidades individuais e culturais.
Em última instância, para o propósito desse texto o importante é investigar o que está por trás
desse tipo de violência escolar.

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Os caminhos Charles Taylor: em busca do reconhecimento social das diferenças


O reconhecimento é vital para a identidade, pois permite o fortalecimento das escolhas e
decisões que caracterizam as relações intersubjetivas. Negar o reconhecimento da identidade ou
atribuir um reconhecimento negativo porque esta apresenta-se como diferente do padrão dominante
significa contribuir para a destruição desta identidade. Um exemplo histórico da noção de
inferioridade produzida pelo não-reconhecimento consiste no caso dos negros: por gerações a
sociedade projetou uma imagem depreciativa sobre negros, mulheres e homossexuais que, diante da
força da imagem depreciativa tiveram grandes dificuldades de resistência. Nesse sentido, a auto-
depreciação desses grupos vem sendo um dos mais fortes instrumentos de sua opressão. Nessa
perspectiva de análise, o reconhecimento errôneo não significa meramente faltar com respeito,
podendo ainda infligir uma ferida, criando em suas vítimas um ódio por si mesmas, e o sentimento
de inadaptabilidade a esse mundo. O devido reconhecimento não deve ser entendido como benefício
às pessoas, trata-se de uma necessidade humana vital.
Recorrendo a história, Taylor (1997) buscou compreender o processo de
desenvolvimento da identidade moderna a fim de identificar em que momento ocorreu a
mudança de paradigma que tornou a diferença um direito humano que exige reconhecimento
social. Em sua análise hermenêutica sobre os elementos de constituição da identidade moderna
realizada em As fontes do self, Taylor (1997) argumenta que várias de nossas “intuições morais”
(que estão ligadas à noção de avaliações fortes) estão enraizadas em nossa maneira de definirmos
nossa própria identidade, como, por exemplo, o “respeito à vida, à integridade, ao bem-estar e
também à prosperidade dos outros” que estão unidos quase sempre a uma perspectiva que leva
em conta uma dada ontologia do ser humano.
Isto explicaria porque um objeto é digno ou não de nossa aceitação moral, como objetos
adequados de nosso respeito e estima. Taylor (1997, p. 35,36) explica, segundo sua teoria das
avaliações fortes, que parte de nossos desejos e aspirações estão associados a uma determinada
“configuração moral” que funciona como paradigma de avaliação de nossos desejos e das ações
deles decorrentes. Estas “configurações” permitem discriminar uma hierarquia de bens e até
formular uma idéia de “hiperbens”, aqueles que temos maior apreço e que não abrimos mão em
nossas decisões. Estes hiperbens não dependem do indivíduo em si mesmo, mas já estão postos
pelas formas avaliativas na cultura de determinada comunidade:

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As avaliações fortes são imprescindíveis para a constituição de nossa narrativa pessoal,


ou seja, são responsáveis pela maneira como nos autocompreendemos e compreendemos os outros.
Mas como recebemos as configurações morais pelas quais orientamos nossas vidas e que utilizamos
como elementos essenciais para definir nossa identidade? Só podemos nos auto-compreender e
compreender os outros pela dimensão inerentemente expressivista, do agir humano. E para Taylor, o
homem é um ser que se expressa pela linguagem. É através dela que os indivíduos se relacionam uns
com os outros em sociedade. Mas, a própria linguagem só se adquire pelo intercâmbio do homem
com outros em sociedade.
Com base na argumentação da característica essencial da linguagem dos seres humanos,
que lhes constitui como seres de diálogo, Taylor (2000) argumenta que a noção contemporânea
da individualidade, que esconde por trás de si um ideal moral de autenticidade (isto é, o sujeito
tendo que ser fiel a si mesmo na busca de sua auto-realização e auto-definição), só poderá ser
plenamente realizada se houver um vínculo com o estabelecimento e realização da categoria do
reconhecimento no plano social e político. Isto porque, segundo Taylor (2000), o indivíduo só
chega a definir sua identidade por meio do diálogo com outros membros da sua sociedade, com
aquilo que essas outras pessoas de sua comunidade esperam dele e, às vezes, até em luta contra
as expectativas do outros sobre ele.
É importante indagar os processos históricos que permitiram a construção da noção
contemporânea de individualidade, pois, é o ideal moral de autenticidade que está por trás da
noção de individualidade que propiciou a ideia de reconhecimento da diferença. Ao estudar o
processo de formação da identidade moderna, Taylor (2000) argumenta que após a queda da
sociedade tradicional e hierárquica, denominada pelos historiadores de Antigo Regime, o
movimento iluminista e a Revolução Francesa construíram uma nova compreensão da identidade
individual que Taylor conceituou como um novo ideal de “autenticidade”. Trata-se de uma
identidade particular a mim, que sempre esteve presente em minhas ações, mas que foi impedida
de se concretizar devido a estrutura rígida e estamental que caracterizou as sociedades do Antigo
Regime. Quando essa estrutura começou a enfraquecer, novos valores foram construídos e no
lugar da exclusão implantou-se a igualdade, e assim o ideal de dignidade humana nasceu. Essa
nova sociedade trouxe para identidade um sentimento de individualidade que cada ser humano
pode descobrir em si mesmo, que diz respeito a uma maneira particular de ser.

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Contudo, para Taylor (2000) a descoberta de minha identidade não significa uma
produção de mim mesmo em um isolamento íntimo. Implica que há uma negociação dialógica,
entre eu e o outro, que acarreta que o ideal da identidade surgido na modernidade leva, em
primeiro plano, à importância do reconhecimento, ou seja, a minha própria identidade é
dependente de minhas relações dialógicas com os outros (Taylor, 2000, p. 248).
Na visão de Taylor (2000), a importância do reconhecimento é agora universalmente
reconhecida e vem à tona em debates atuais sobre o multiculturalismo, a luta das feministas e dos
movimentos anti-racistas e, também, na luta de países do Terceiro Mundo na busca de
desenvolvimento e reconhecimento de suas identidades e autonomia enquanto nações soberanas.
Dada a ligação intrínseca já ressaltada entre identidade (que como vimos, envolve um ideal
moral de autenticidade) e reconhecimento, passemos à análise da idéia de uma política do
reconhecimento na visão do filósofo canadense.
Para Taylor (2000), o discurso do reconhecimento tornou-se hoje lugar comum em dois
níveis. Primeiro, na esfera íntima que diz respeito à formação de nossa identidade (Self), que
como vimos mais acima, implica numa constituição dialógica com outros membros de minha
comunidade. Em segundo lugar o reconhecimento aparece na esfera pública na luta por direitos
iguais entre os povos, na luta dos grupos minoritários contra a discriminação e na militância das
feministas.
Taylor (2000) discute que a noção moderna de reconhecimento põe em relevo a estrutura
dialógica dos processos de constituição da identidade humana. Esta estrutura tem sido
negligenciada pela filosofia contemporânea, dado seu caráter fundamentalmente monológico.
Esta filosofia, que está centrada na noção de dignidade (diante do desgaste da ideia de honra que
pertencia às sociedades tradicionais) tem desenvolvido uma política do universalismo da
igualdade entre todas as pessoas.
A dignidade enquanto valor moral legítimo produziu no imaginário social a política do
universalismo, cujo significado é o respeito igual a todos os cidadãos e a equalização dos
direitos. O desfecho desse rol de transformações em que o princípio de cidadania adquiriu
aceitação universal implantou uma nova agenda de discussões sobre os direitos humanos.
Em contrapartida, o processo de formação da identidade moderna também conduziu a
uma política da diferença. O ideal de autenticidade que Taylor (2000) traduziu como o ser fiel a
mim mesmo atinge um sentido pragmático quando postula que todos devem ter reconhecida a sua

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identidade peculiar. A política da diferença está fundada na necessidade de reconhecermos as


particularidades de um indivíduo ou grupo e os valores e as escolhas que os distinguem dos
outros. Trata-se de garantir que todas as identidades possam se desenvolver sem serem
assimiladas ou incorporadas a uma identidade dominante.
A política da diferença, diante da discriminação histórica de grupos minoritários ou
marginalizados, prega que não é possível um ideal de igualdade universal dado as discrepâncias
sociais e econômicas nas quais nos encontramos, o que implica que os grupos desfavorecidos
historicamente lutam com desvantagens frente aos grupos dominantes. Entre aqueles que
defendem a política da diferença estão os que apregoam políticas de discriminação reversa
oferecendo às pessoas de grupos marginalizados oportunidades mais favoráveis ao ingresso em
Universidades ou em vagas para emprego tal como preconizado nas políticas de cota.
Na opinião de Taylor (2000), as duas políticas acima mencionadas se forem defendidas
de forma unilateral, não resolvem os problemas que permeiam nossa sociedade contemporânea.
Tal unilateralidade das duas posturas políticas não consegue articular os elementos constitutivos
de valor que subjaz cada uma delas.
É diante desse impasse que Taylor (2000) propõe uma política do reconhecimento, com o
objetivo de atender as demandas que dizem respeito ao ideal de igualdade das democracias
modernas e ao reconhecimento das idiossincrasias e especificidades das várias tradições culturais
e das múltiplas formas de identidades constituídas historicamente. A política do reconhecimento
evitaria o perigo de cairmos num universalismo da dignidade fundado apenas no direito, que
pode mascarar diferenças e explorações que subjazem nossas sociedades. A política do
reconhecimento se traduz no compromisso de lutar por uma igualdade interessada nas diferenças
que nos constituem como seres humanos.
Portanto, podemos afirmar sem receios que o ideal de autenticidade justifica o
reconhecimento da diferença. Em outras palavras, os atributos que o indivíduo descobre em si
mesmo e que o diferencia dos outros ao seu redor são sentidos por esse indivíduo como dignos
de serem reconhecidos e validados em suas relações intersubjetivas. A negação desse tipo de
reconhecimento constitui um pecado capital a autenticidade e, a auto-realização dessa identidade
e por vezes, pode acarretar muito sofrimento a sua existência.
Quando o bullying se torna um comportamento recorrente na escola, a identidade
singular daqueles que são alvos das agressões recebe um reconhecimento negativo, a auto-

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realização desses estudantes é abalada inviabilizando que a autenticidade se desenvolva. O


bullying não é inadmissível somente pela violência com que é praticado, mas principalmente
porque esse tipo de comportamento destrói a possibilidade do individuo descobrir e ter
valorizada sua própria identidade. Em última instância o bullying pode contribuir para o fracasso
das relações intersubjetivas e para aqueles que são os autores das agressões o risco é ainda mais
complexo, pois estes podem construir uma identidade fundamentada no desrespeito, na ofensa e
em práticas discriminatórias.
Dessa forma, podemos afirmar que o bullying é um comportamento intolerável capaz de
aniquilar o reconhecimento social das diferenças que nos constituem. A partir desta constatação a
proposta multiculturalista de Charles Taylor (1997), de uma política do reconhecimento das
diferenças nos parece um caminho viável para pensarmos uma intervenção no bullying. Ao
insistir na importância do reconhecimento social para as nossas relações dialógicas a teoria de
Taylor nos ajuda a compreender quais são as consequências que o bullying acarreta para a
identidade e para as relações intersubjetivas que se configuram no espaço escolar.
Ouso afirmar que o bullying nasce da ausência do reconhecimento da diferença, porém
acredito que a atitude de não aceitar a diferença é racionalmente insuficiente para justificar
práticas de violência tão cruéis como o bullying, por isso a fim de compreender melhor os fatores
que estão por trás desse tipo de comportamento aposto nas contribuições de Arendt (1999) com o
estudo sobre a banalidade do mal.
Os caminhos de Hannah Arendt: o bullying como um mal banal
O tema do mal em Arendt (1999), não tem como pano de fundo a malignidade, a
perversão ou o pecado humano. A novidade da sua reflexão reside justamente em evidenciar que
os seres humanos podem realizar ações inimagináveis, do ponto de vista da destruição e da
morte, sem qualquer tipo de motivação maligna. O mal investigado por Arendt (1999) não é
oriundo de nenhum tipo de sentimento de vingança, ódio, retaliação ou represália, o pano de
fundo da argumentação proposta pela autora é o processo de naturalização da sociedade e de
artificialização da natureza ocorrido com a massificação, a industrialização e a tecnificação das
decisões e das organizações humanas na contemporaneidade. O mal é abordado, desse modo, em
uma perspectiva ético-política.
Em Origens do Totalitarismo, o tema do mal aparece dentro da reflexão kantiana sobre o
mal radical. Kant percebeu que o mal pode ter origem não nos instintos ou na natureza

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pecaminosa do homem e, sim, nas faculdades racionais que o fazem livre. Dessa forma, o mal
não possui dimensão ontológica, mas contingencial. Ele acontece a partir da interação e da
reação das faculdades espirituais humanas às suas circunstâncias. O mal no pensamento kantiano
é radical, pois trata-se de uma espécie de rejeição consciente ao bem e está atrelado, ainda, ao
uso dos seres humanos como meios, instrumentos, e não fim em si mesmo.
A questão do mal retorna às preocupações de Arendt (1999) quando ela aceita o convite
de uma revista americana para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann ocorrido em
Jerusalém, em 1962. Eichmann foi o principal responsável pelo envio dos judeus aos campos de
concentração. Em todos os relatos de Arendt (1999), verificamos uma profunda perplexidade
com a forma de Eichmann falar das suas atividades como carrasco nazista. Ele usava clichês,
palavras de ordens e a moral da obrigação do bom funcionário para justificar o seu
comportamento. Para ele, em nenhum momento, podia ser enquadrado como criminoso, pois
apenas cumpria a sua obrigação, o seu dever. Eichmann era um ser humano normal, um bom pai
de família, não possuía nenhum ódio ao povo judeu e não era motivado por uma vontade de
transgredir ou por qualquer outro tipo de maldade.
Ao conhecer o caso Eichmann, Arendt descobre um novo tipo de mal, um mal sem
relação com a maldade e por isso, banal. Trata-se do mal como causa do mal, pois não tem outro
fundamento. O praticante do mal banal não pensa sobre a culpa, ele age semelhante a uma
engrenagem maquinaria do mal, não há profundidade em seus argumentos, suas práticas apontam
para ações racionais, mas sem justificativas socialmente coerentes.
O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a
privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma lógica
externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age como mera
engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos acontecimentos ao seu redor.
O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos
humanos de mudar o curso das ações rotineiras através do
exercício da vontade própria. Repete heteronomamente o seu
comportamento. Não se reconhece dotado de vontade, capaz de
iniciar, fundar e começar. Ele também não exercita a habilidade,
peculiar aos homens, de falar e comunicar o que está vendo e
sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros.
Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em suma,
recusa-se a viver com os dons provenientes das suas faculdades
espirituais: pensar, querer e julgar(AGUIAR, 2010 p.16).

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Ao relacionar o mal ao vazio do pensamento, Arendt (1999) aponta para uma possível
compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Por isso, a partir dos estudos de
Arendt podemos arriscar afirmar que nas sociedades atuais, o mal realiza-se na banalidade, na
injustiça e nas radicais práticas de violência contra aqueles que são diferentes: os apátridas,
imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, idosos, homossexuais, orientais.... Todos
aqueles que por suas diferenças são tratados com intolerância e discriminação.
A meu juízo o bullying acontece pela dificuldade que os estudantes encontram em
conviver com as diferenças que desafiam a escola, mas acredito que as agressões são
caracterizadas por um tipo de mal banal, um conjunto de ações maldosas decorrente da
intolerância com a diferença que permeia as relações sociais dentro do ambiente escolar. Um tipo
específico de violência escolar onde o emprego do mal banal corresponde à intolerância e à
discriminação diante da diferença, quando está incomoda simplesmente por existir. Os
estudantes autores de práticas de bullying enxergam suas vítimas de modo superficial e leviano e
consideram que por serem diferentes merecem ser tratadas de modo desrespeitoso. Contudo,
mais uma vez é importante destacar que os estudantes autores do bullying não podem ser
individualmente responsabilizados por praticarem o mal banal, pois esses estudantes estão
imersos em uma sociedade que naturalizou a violência, que tornou a discriminação uma prática
social e que encontra dificuldades em ensinar os jovens a valorizar o respeito e a tolerância em
suas relações sociais.
Dentro desse cenário o que é mais espantoso é que não conseguimos encontrar motivos
significantes que justifiquem o bullying. Todas as pesquisas analisadas na revisão de literatura
afirmam a falta de motivação como uma característica do bullying, fica então uma lacuna em
relação ao que leva crianças e adolescentes a se desrespeitarem cotidianamente. Buscando
compreender o que está por trás da prática do bullying, penso que talvez o mal presente nesse
tipo de comportamento pode estar relacionado à ausência de pensamento e de reflexão que por
parte daqueles estudantes que encontram dificuldades em reconhecer a diferença e que lidam
com essa dificuldade recorrendo a atitudes de violência, ofensa e discriminação. Assim como
Arendt (1999), acredito que o solitário ato de pensar realiza-se como um vento forte que
desarruma todas as nossas certezas e nos faz refletir antes de julgar.

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Fica, então, a questão de como educar para o pensamento e para a reflexão? Qual seria o
primeiro passo pedagógico em direção a uma educação intercultural, promovedora do respeito às
diferenças, do combate ao bullying e da valorização dos direitos humanos?
O reconhecimento das diferenças é vital à identidade, como afirmam Taylor (2000) e
Honneth (2001), mas para que esse reconhecimento se efetive é preciso educar as crianças e os
adolescentes para a compreensão da tolerância como um valor ético e uma atitude social. Uma
educação que valoriza o pensamento e a reflexão defende a tolerância como uma perspectiva de
ação moral diante das intolerâncias, injustiças, discriminações e violências.
Educar para tolerância adultos que atiram uns nos outros por
motivos étnicos e religiosos é tempo perdido. Tarde demais. A
intolerância selvagem deve ser, portanto, combatida em suas
raízes, através de uma educação constante que tem início na mais
tenra infância, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que
se torne uma casca comportamental espessa e dura demais (Eco,
2001 p. 198).
Considerações finais
Nesse texto, procurei investigar as interseções entre o multiculturalismo e as práticas de bullying,
afirmei que este último é reflexo da incapacidade que os alunos apresentam em aceitar as
diferenças que se instauraram no ambiente escolar. Como possibilidades analíticas para o
entendimento dessa problemática apresentei a política do reconhecimento social de Charles
Taylor e o conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt. Concluo defendendo que o
comportamento bullying é intolerável no ambiente escolar e que sua emergência está relacionada
a dois fatores: 1- a dificuldade que os estudantes apresentam em conviver com a diferença e 2- o
mal banal, sem sentido e sem justificativas que caracterizam o bullying é resultado da inaptidão
dos estudantes em pensar e refletir suas próprias ações. A partir desses dois fatores aposto no
conceito de tolerância como um valor-atitude e um caminho para a construção de uma educação
intercultural compatível com a atual sociedade multicultural que estamos construindo.

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A EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE “DISCURSO DE ÓDIO”: EDUCAR PARA


TOLERÂNCIA E CONTRA A BARBÁRIE

Luís Fernando Marques Dorvillé (UERJ)


Marcelo Andrade (PUC-Rio)

RESUMO
O trabalho apresenta uma reflexão sobre a presença do “discurso do ódio” (Glucksmann, 2007) e
do “elogio da intolerância” (Žižek, 2006) como desafios para os nossos dias. O ódio e a
intolerância não são analisados como simples emoções ou atitudes de sujeitos pouco hábeis para
o amor e a convivência. Em geral, a defesa do ódio e o elogio da intolerância se sustentam num
discurso articulado e intencional que culmina na eliminação da diferença. Assim, parte-se do
princípio que o alvo do ódio, da intolerância e da barbárie é, quase sempre, a diferença que
dignamente que constitui os sujeitos, mas que, contraditoriamente, não sabemos com ela
conviver. Se por lado, tais discursos não podem ser considerados irracionais, por outro lado,
devem ser enfrentados como imorais e antiéticos. Nesta perspectiva, a tarefa educativa se
encontra desafiada por tempos difíceis, nos quais propostas como “educar para a tolerância”
(Andrade, 2009) e “educar contra a barbárie” (Kramer, 2001) se apresentam como socialmente
urgentes, moralmente necessárias e pedagogicamente viáveis. As divergências identitárias –
gêneros, sexualidades, raças, religiões, capacidades, origens e gerações – atacam as identidades
que não estão amparadas pela moral dominante e são um problema do “multiculturalismo
despolitizado” (Žižek, 2006) ou do “multiculturalismo conservador de direita” (McLaren, 2000).
Nas considerações finais, o trabalho pontua que a atividade de educar para a tolerância e contra a
barbárie pode e deve estar situada numa reflexão sobre as relações entre educação, ética e
diversidade. Entre os valores e atitudes apontadas como metas desta educação, destacam-se: (i)
aprender a respeitar e valorizar as diferenças (McLaren, 2000) e (ii) articular as concepções de
“mínimos de justiça” e “máximos de felicidade” (Cortina, 2007).

PALAVRAS CHAVE
Educação; tolerância; “discurso de ódio”.

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1 – “DISCURSO DO ÓDIO”: UM DESAFIO ATUAL


Como identificar um discurso de ódio? Conceituar o ódio não é tarefa fácil. Por um lado,
ele aparece como um sentimento de raiva ou como expressão da violência. Por outro lado, é
entendido simplesmente como algo contrário ao amor ou como uma incapacidade de apreciar os
demais. Nesta perspectiva, seria apenas uma ausência, ou seja, o ódio como a falta de bons
sentimentos. O ódio seria, então, gerado por falta de oportunidades de experimentar o bem ou de
ser educado num ambiente amoroso.
Segundo o Dicionário da Academia Brasileira de Letras, o ódio é definido como “um
sentimento de raiva ou rancor contra alguém ou alguma coisa”. Também é descrito como
“aversão, repugnância e antipatia”. No entanto, não se trata apenas de uma emoção passageira ou
momentânea. Não deveria ser confundido como uma irritação qualquer. Assim, o ódio seria “um
sentimento intenso, profundo e duradouro”.
Para além da identificação do ódio como um sentimento, Glucksmann (2007, p. 11)
defende que “o ódio existe”, que é uma experiência concreta e que “todos nós já nos deparamos
com ele, tanto na escala microscópia dos indivíduos como no cerne de coletividades
gigantescas”. Neste sentido, o ódio é mais que um sentimento, ainda que intenso, profundo e
duradouro. Ele se mantém e se perpetua como discurso, o que Gluscksmann (2007, p.12) chama
de “discurso do ódio”:
Com seus ornamentos tradicionais – raiva, cólera, bestialidade, ferocidade – dos quais ele
exibe um arsenal completo, o ódio acusa sem saber. O ódio julga sem ouvir. O ódio
condena a seu bel-prazer. Nada respeita e acredita encontrar-se diante de algum complô
universal. Esgotado, recoberto de ressentimento, dilacera tudo com seu golpe arbitrário e
poderoso. Odeio, logo existo.

Para Glucksmann (2007), o ódio não é um fenômeno irracional, restrito ao campo das
emoções obscuras, mas sim um “discurso”, ou seja, mesmo que não resista a contra-argumentos
ou que não apresente razões suficientes para sua própria manutenção, o ódio é uma expressão
articulada, intencional e preparada por meio de uma linguagem verbal, tal como temos
presenciado no atual momento de acirradas disputas políticas no contexto brasileiro.
O discurso do ódio seria, segundo a compreensão aqui assumida, imoral (sem razões
éticas suficientes que o sustente), mas racional (com discurso e argumento fortemente
articulados). Assim, o ódio é um fenômeno que precisa ser admitido e desmontado em sua

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fragilidade ético-moral. Em geral, ele é, do ponto de vista argumentativo, frágil, mas, ainda
assim, não se deve menosprezar sua capacidade de destruição das relações sociais. Assim, o
discurso do ódio – em especial, aquele que é potencializado pela grande mídia ou pelas redes
sociais online – deve se tornar uma pauta urgente e necessária, nas pesquisas e nas práticas
pedagógicas.
Examinando casos contemporâneos de discurso do ódio – misoginia, racismo, homofobia,
fundamentalismo e antisemitismo – Glucksmann (2007, p. 265-270) apresenta sete conclusões
sobre o ódio como discurso:
(i) o ódio existe, não é simples ausência do bem ou do amor;
(ii) o ódio se camufla, reveste-se de falsos álibis que o justifiquem;
(iii) o ódio é insaciável, desencadeia uma onda argumentativa sem trégua e não admite
o diálogo com os diferentes;
(iv) o ódio promete um paraíso maldito, apresenta-se como um mal necessário para a
obtenção de uma situação melhor do que a atual;
(v) o ódio deseja ser um deus criador, tem crescido no rastro de discursos religiosos
moralistas e no ceticismo da modernidade;
(vi) o ódio ama a morte, quer a eliminação daqueles que não partilham o princípio
assumido como o único código moral correto e aceitável;
(vii) o ódio se nutre de sua devoração, é um discurso ensimesmado, que repete sua
lógica interna à exaustão, sem diálogos ou empatias com aqueles que pensam
diferente.
Glucksmann (2007) e Žižek (2006) apontam para a intencionalidade de determinados
grupos sociais e políticos em fomentar o discurso do ódio através de diferentes meios de
comunicação, selecionados e escolhidos conforme seus objetivos políticos. Segundo Žižek
(2006), este é um fenômeno do “multiculturalismo despolitizado” que tem orientado uma nova
ideologia do capitalismo global e que tem reafirmado a importância de paixões políticas,
fundadas principalmente na discordância, na intolerância, num discurso de barbárie que só faz
sentido no acirramento das relações sociais. Žižek (2006) indica ainda para a contradição de que
certa dose de intolerância é necessária para que se possa elaborar uma crítica da atual ordem de
coisas num mundo marcado pela diversidade, tal como vamos explorar adiante.

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A partir dessas considerações iniciais, entendemos que a luta contra o discurso do ódio é
um tema fronteiriço entre a liberdade de expressão, que não admitiria censura prévia, e o respeito
às identidades e opiniões das minorias, previsto nos princípios fundamentais da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Assim, encontramos um dilema ético entre o direito à liberdade
de expressão e o respeito às diferentes identidades que dignamente nos constitui como seres
humanos. A questão talvez seja sobre quando e como intervir para garantir um ou outro direito.
Sabemos que a liberdade de expressão não é um direito ilimitado e nem que o sentimento de
ofensa pode ser sempre objetivado.
Neste sentido, este trabalho visa, por um lado, articular uma análise sobre o “discurso de
ódio” (GLUCKSMANN, 2007) e sobre o “elogio da intolerância” (ŽIŽEK, 2006) e, por outro,
indicar uma proposta de educação para a tolerância (ANDRADE, 2009) e contra a barbárie
(KRAMER, 2001), a fim de construir respostas possíveis para as práticas pedagógicas em
tempos de violências, intolerâncias e ódios. Pode a educação responder a estes desafios? É o que
tentaremos responder adiante.

2 – INTOLERÂNCIA E BARBÁRIE: O ÓDIO É CONTRA A DIFERENÇA


Na perspectiva de Glusksmann (2007, p. 266), a explicitação do discurso do ódio não é
algo neutro ou sem direção, muito pelo contrário, “ele escolhe cuidadosamente tudo aquilo que
adora e que abomina, a fim de detestar ainda mais e encontrar meios de odiar sem trégua e sem
fim”. Este alvo pode ser a mulher, o negro, o homossexual, o judeu, o estrangeiro, ou seja, aquele
que, numa lógica padronizadora, é visto como diferente ou desviante. Tal realidade se torna mais
desafiadora se pensarmos na tarefa educativa e no mundo que queremos construir e deixar para
as futuras gerações.
Se, agora, dirigimos nosso olhar ao mundo que é dado às crianças, o que vemos? Falta de
entendimento, ausência de escuta do outro, violência, destruição, morte. Observando o
cotidiano no trabalho, na política, nas relações familiares, vemos falta de diálogo e de
escuta do outro. Com freqüência falo desta minha perplexidade e assombro diante da
exclusão, da discriminação e da eliminação. Pois, apesar do avanço e aparente progresso
tecnológico, a humanidade não conseguiu superar o problema que está na origem dos
grandes crimes cometidos contra a vida – sejam eles de ordem política, étnica, religiosa,
social, sexual – na origem dos genocídios: a dificuldade de aceitar que somos feitos de
pluralidade, que somos constituídos na diferença (KRAMER, 2001, p. 6)

Corroborando a perspectiva de Kramer (2001), percebemos que o alvo do ódio, da


intolerância, da barbárie é, quase sempre, a diferença dignamente que nos constitui, mas que,

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contraditoriamente, não sabemos com ela conviver, mesmo na escola e entre os mais novos. As
divergências sobre questões de gêneros, sexualidades, raças, religiões, capacidades, origens e
gerações na escola, atacando qualquer defesa das identidades que não estejam na moral
dominante tem sido um problema do “multiculturalismo despolitizado” (ŽIŽEK, 2006) ou do
“multiculturalismo conservador de direita” (MCLAREN, 2000).
No entanto, segundo Santos (2003, p. 56), “temos o direito a ser iguais quando a nossa
diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos
descaracteriza”. Mais do que nunca vivemos num contexto marcado pela efervescência das
questões trazidas pela diferença, que são fortemente potencializadas pelo discurso de ódio e pelo
elogia da intolerância. Diferenças – gênero, sexualidade, raça, religião, origens, pertencimentos,
geração e capacidades – que ficam ocultadas, disfarçadas, pela força do discurso da
padronização.
Em sociedades multiculturais e marcadas pelos preconceitos e pelas discriminações de
vários tipos, tais como: racismo, sexismo, xenofobia, homofobia, entre outros, a tolerância com o
diferente apresenta-se como uma agenda mínima, urgente e extremamente necessária. Segundo
Augras (1997, p. 78), “quando se fala de tolerância é, na verdade, da intolerância que se trata”.
O conceito de tolerância, então, coloca-se cada vez mais na pauta de discussão porque a
intolerância, o ódio, a barbárie contra a diferença tem sido recorrente na história da humanidade
e ainda hoje em nossas sociedades. Inegavelmente estamos caracterizados pela diferença e, no
entanto, parece que não sabemos trata-la.
A humanidade – marcada dolorosamente pela escravidão dos negros, pelo genocídio dos
povos ameríndios, pelo holocausto dos judeus, pela perseguição aos ciganos e homossexuais,
pela exploração das mulheres e das crianças – busca não mais permitir nenhuma manifestação de
intolerância com o diferente, pois o “a intolerância não é apenas questão de não tolerar as
opiniões divergentes; ela é agressiva e com freqüência assassina, no seu ódio à diversidade
alheia” (MENEZES, 1997, p. 46).
Menezes (1997, p. 41) afirma que o termo tolerância aparece pela primeira vez entre os
iluministas. O nascimento do conceito se deu no rescaldo das lutas religiosas, dos massacres
recíprocos entre protestantes e católicos. Os livres-pensadores, adeptos do Iluminismo, viam-se
discriminados e perseguidos por todos os fanatismos. E foram eles que mobilizaram a opinião
pública contra os horrores da intolerância, proclamando o sagrado direito de discordar.

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O conceito de intolerância tem de ser colocado em sua perspectiva histórica para


ganhar o seu relevo próprio. Na verdade a tolerância surgiu historicamente como uma
luta contra a intolerância, e, como as lutas contra as discriminações que vieram
depois – o movimento negro, o movimento feminista etc. – tem uma atitude clara de
militância, não é uma atitude primeira. É, antes, uma reação contra uma situação
dada; contra a intolerância; é a defesa de um direito humano dos mais sagrados; o
direito à diferença. Equivale a declarar que o intolerável mesmo é a intolerância. É
uma reafirmação, uma reposição do sujeito diante da intolerância que quer negá-lo;
ao afirmar-se contra sua negação, afirma-se como um direito de ser o que ele é; e
nega ao intolerante o direito de nega-lo. (MENEZES, 1997, p. 42).

O conceito de tolerância surge como resposta contra a intolerância à diferença. Sendo


assim, é fundamental que ao tratarmos de tolerância, pensemos na natureza, nas causas e nas
conseqüências da intolerância.
Žižek (2006), por sua vez, destaca diferentes níveis do “elogia da intolerância”, tais
como: (i) o genocídio, a eliminação física do outro, a guerra declarada contra um grupo
diferente; (i) o etnocídio, considerado como a submissão cultural do diferente, ou seja, a
diferença é suprimida ou demonizada na cultura dominante e (iii) o apartheid, considerado pelo
não só como uma prática discriminatória, mas como um sistema de pensamento, o que revela
uma certa “epistemologia” da intolerância, além de sua concretização em legislações
segregacionistas.
Cumpre destacar também o que Menezes (1997, p. 47) apresenta como um ódio cego pela
diferença, a ponto do intolerante “não ver no discriminado um ser humano concreto, mas algo
abstrato, ou seja, o „estigma‟, ou a diferença hipostasiada. Assim, é comum referir-se a ele
unicamente por sua diferença: um negro, um índio, um velho, uma mulher”.
A fim de sintetizar esta breve reflexão sobre a necessidade de educar para a tolerância e
contra a barbárie, gostaríamos, ainda que de maneira preliminar, discutir algumas questões que
se apresentam a nós, educadores e educadoras. Na verdade, o intuito do tópico a seguir é, mais
do que traçar considerações finais, levantar pistas que sirvam de guias para futuras e reflexões.

3 – EDUCAR PARA A TOLERÂNCIA


A fim de apontar algumas saídas possíveis contra o ódio, a intolerância e a barbárie,
defendemos uma educação ético-moral, que se situe, principalmente, a partir de duas habilidades.
Em primeiro lugar, consideramos que aprender a respeitar e a valorizar as diferenças é
uma habilidade fundamental contra o discurso do ódio. Partimos do pressuposto de que a

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diferença é como um valor legítimo para as sociedades multiculturais, tanto a diferença de


opinião quanto as diferentes identidades que dignamente nos constituem como seres humanos. A
articulação de educação para tolerância (ANDRADE, 2009) e contra a barbárie (KRAMER,
2001) parte do pressuposto que o discurso do ódio baseia-se na negação do outro, na eliminação
da diferença, na tentativa de homogeneização de códigos de condutas, como se só existisse uma
moral aceitável. A saída apontada seria a tensão entre o valor da diferença e o princípio da
igualdade. Mais do que nunca vivemos num contexto marcado pela efervescência das questões
trazidas pela diferença, que são fortemente potencializadas no campo educacional. Diferenças –
gênero, sexualidade, raça, religião, origens, pertencimentos, geração e capacidades – que ficam
ocultadas, disfarçadas, pela força do discurso da padronização.
Em segundo lugar, apontamos que articular justiça como mínimo e a felicidade como um
máximo é também uma habilidade a ser desenvolvida. Neste sentido, no entendimento da
educação para a tolerância (ANDRADE, 2009), será preciso distinguir entre o que é justo e o que
é bom.
As éticas de justiça ou éticas de mínimos ocupam-se unicamente da dimensão
universalizável do fenômeno moral, isto é, daqueles deveres de justiça exigíveis de
qualquer ser racional, e que, efetivamente, só são constituídos de exigências
mínimas. Ao contrário, as éticas de felicidade pretendem oferecer ideais de uma vida
digna e boa, ideais que se apresentam hierarquizadamente e englobam o conjunto de
bens que os homens usufruem como fonte de maior felicidade possível. São, pois,
éticas de máximas, que aconselham a seguir o modelo e convidam-nos a tomá-los
como norma de conduta, mas não podem exigir ser seguidos, visto que a felicidade é
tema de aconselhamento e convite, e não de exigência. (CORTINA, 1997, p. 62)

A igualdade seria, nesta abordagem, um ideal de “mínimo de justiça” a ser compartilhado


por todos os concidadãos; e as diferenças identitárias, por sua vez, ideais de “máximos de
felicidade”, que atendem a cada um ou a cada grupo em particular. A saudável tensão entre
mínimos e máximos ocorre quando os sujeitos que dialogam não se fecham em concepções
particulares, mas fixam, de algum modo, uma fronteira entre o que consideram bom para si
próprios (máximos de felicidade) e o que consideram justo para todos os concidadãos (mínimos
de justiça).
Cortina (2007, p. 149) defende esta habilidade de “fixar um mínimo de valores
partilhados, a fim de que as decisões sejam respeitosas da pluralidade” como tarefa de educação
para o século XXI, pois, mais do que nunca, estamos chamados a construir uma cidadania plural.

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Em suma, o justo é exigível e como tal se torna obrigação moral para qualquer cidadão. O bom é
aquilo que causa a felicidade, mas não pode ser exigido dos outros, pois se trata
fundamentalmente de uma realização subjetiva. Como sabemos, o que é bom para um pode não
ser bom para outro. O bom, neste sentido, está no campo das possibilidades (máximas de
felicidade) e nunca das exigências (mínimos de justiça).
A partir dessas duas habilidades, valeria se perguntar por que a tolerância como valor e
atitude de uma agenda mínima para o campo da educação em mídias sociais? A essa questão
respondemos: porque a intolerância e o discurso do ódio tornaram-se práticas comuns diante da
diferença, tal como mostramos na análise dos dados apresentados.
A tolerância surge como resposta contra a intolerância e contra o discurso do ódio à
diferença. Sendo assim, é fundamental que ao tratarmos de tolerância, pensemos na natureza, nas
causas e nas consequências da intolerância e do discurso do ódio. Menezes (1997, p. 45) afirma
que a “a intolerância não rejeita só as opiniões alheias, mas também sua existência, ou ao menos
o que faz o que valha a pena viver: a dignidade e a liberdade da pessoa”. A intolerância e o
discurso do ódio contra os diferentes têm imposto uma quantidade de desqualificações que
sustentam o estigma, um suposto sinal vergonhoso e socialmente rejeitado.
Eco (2001, p. 114), por sua vez, chama a atenção para a intolerância sem nenhuma razão
explícita ou doutrina que a sustente:
A intolerância coloca-se antes de qualquer doutrina. Nesse sentido, a intolerância tem
raízes ideológicas, manifesta-se entre os animais como territorialidade, baseia-se em
relações emotivas muitas vezes superficiais – não suportamos os que a são diferentes de
nós porque têm a pele de cor diferente, porque falam uma língua que não
compreendemos, porque comem rãs, cães, macacos, porcos, alho, ou porque se fazem
tatuar...

Para Eco (2001, p. 116), os estudiosos ocupam-se com frequência das doutrinas da
diferença, mas não o suficiente da intolerância e do discurso do ódio, pois estes fogem de
qualquer possibilidade de discussão e de críticas, pois não estão num nível racionável (das razões
moralmente suficientes), nem no nível racional (de argumentos bem articulados), mas no nível
visceral. A intolerância é, em geral, raivosa, descontrolada, inexplicável e impulsiva.
Enfim, educar para tolerância não é pouco, é sim o fundamental. E talvez seja ainda mais
necessária e produtiva do que se imagina, pois busca intervir em nossas ações, em nossas

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atitudes (como ética de justiça, moralmente exigível) e também em nossos sentimentos e


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