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Educar em Tempos de Discurso Do Ódio
Educar em Tempos de Discurso Do Ódio
RESUMO
Novos fenômenos desafiam as práticas cotidianas docentes nas diversas instituições de ensino
independente do tipo de gestão, espaço geográfico e/ou concepção pedagógica adotada.
Professores apontam as múltiplas facetas da violência em meio escolar, das indisciplinas às
agressões físicas, como mote das dificuldades de se operacionalizarem os objetivos curriculares
predeterminados. Investigam-se estratégias para a mediação eficaz destes conflitos cujas causas
são consideradas multifatoriais (CANDAU, 1999). Nesse sentido, o presente trabalho tem como
objetivo apresentar uma pesquisa realizada em três Universidades cariocas visando compreender
o que se discursa acerca dos fenômenos violentos nas escolas cujas consequências os licenciados
enfrentam durante seus iniciais estágios supervisionados. Foram analisados seis currículos de
filosofia e sociologia, e entrevistados dezoito licenciandos matriculados nos seus últimos
períodos de graduação. A leitura proposta pela filósofa Hannah Arendt acerca do fenômeno da
violência constituiu-se como aporte teórico do trabalho. Algumas reflexões foram levantadas: (1)
as propostas de reflexões sobre o tema durante os cursos de formação docente são consideradas
pelos licenciados incipientes e não planejadas frente aos desafios que enfrentam durante seus
estágios, (2) a violência decorre da inexistência de espaço de fala/escuta do alunos e,
consequentemente, de negação de ação politica nas instituições educacionais, (3) a violência
pode decorrer da chamada “crise da autoridade” docente indistinta de um agir autoritário, (4) a
escassez de discussão sobre a violência escolar evidente nos cursos de formação docente fomenta
o descaso com o tema, ratifica uma certa “banalidade do mal”(Arendt, 2008) e pode, ainda,
constituir-se como um dos fatores propulsores da taxa de 75% de abandono nos cursos de
licenciatura (INEP, 2009).
Palavras-chave: violência escolar, prática de ensino, Hannah Arendt
1. Introdução
São muitos e novos os desafios hoje enfrentados pelos diversos agentes educacionais no
cotidiano das escolas. Dentre estes, professores ressaltam o tempo despendido diariamente
resolvendo conflitos relacionados aos episódios violentos em salas de aula. Pesquisa
mundialmente coordenada pela Organização pela Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) postulou que os professores no Brasil gastam 20% do seu tempo resolvendo questões de
indisciplina, conflitos e resolução de problemas não relacionados aos conteúdos curriculares
programados. O desempenho brasileiro é o pior entre os 32 países que participaram da pesquisa,
segundo a TALIS (2013).
Independente das práticas de mediação adotadas, observamos episódios de violência dentro
das instituições de ensino sendo veiculados periodicamente pelos meios de comunicação. A
midiatização exacerbada fomenta um intenso debate acerca do tema, muitas vezes, sem
fundamentação e dados reais consistentes. Alega-se tanto o aumento quantitativo dos fenômenos
quanto a emergência das suas múltiplas e novas formas de manifestação, promovidas, muitas
vezes, pelo narcotráfico e por gangues que em outras épocas não se inseriam tão fortemente na
escola. Acusa-se também a atual “cultura juvenil” de violenta e indisciplinada. Desta forma,
ratificam-se práticas repressivas nas escolas como a instalação de câmeras de vídeo, normas
disciplinares rígidas e a presença de policiais nas instituições de ensino.
Ante tal fato, nos questionamos se tanto episódios de indisciplina como agressões físicas
devem ser resolvidos da mesma forma. Todos os fenômenos que fogem ao controle do professor
e da escola, da dispersão às chacinas, são violências? Partimos do pressuposto que "definir" a
violência escolar é, antes, mostrar como ela é socialmente construída em sua própria designação;
como é discursada, representada socialmente, a ponto de ser problematizada por uma
comunidade epistêmica. Éric Debarbieux ressalta que “fatos sociais heterogêneos sejam reunidos
sob o termo genérico de "violência" pelos atores da escola é em si mesmo um fato social digno
de ser pensado” (DEBARBIEUX, 2001,p. 164).
Nesse sentido, a pesquisa aqui apresentada, fruto de um recorte de uma tese de doutorado
defendida num programa de pós-graduação em Educação, expõe uma análise acerca da
formação docente quanto à temática da violência escolar. Visamos compreender como
licenciandos/ professores em formação percebem e se posicionam ante os conflitos interpessoais
que, se não são bem direcionados, resultam em episódios mais ou menos violentos. Tais
reflexões levaram-me necessariamente a indagar sobre a formação docente. Passei a me
questionar como esses professores vêm sendo formados durante seus cursos para mediar
conflitos.
Para tal, realizei uma pesquisa qualitativa em três Universidades cariocas direcionando-me
aos cursos de filosofia e sociologia; escolha balizada por afinidade temática com o problema em
questão. Seis currículos foram analisados e três licenciandos de cada curso e cada universidade
foram entrevistados. Todas as dezoito entrevistas foram analisadas de acordo com os
pressupostos da “Analise de conteúdo” apresentada por Bardin (1977).
A temática específica da violência escolar tem sido estudada por renomados pesquisadores
internacionais (Bourdieu, Debarbieu ) como nacionais (Abramovay , Candau et all,). No entanto,
no recorte por ora apresentado, nos aportaremos teoricamente nos estudos arendtianos. A filosofa
Hannah Arendt nos ajudou a compreender a emergência do fenômeno da violência na sociedade,
em geral, e na escola, em específico, quando o interrelacionamos com a crise da autoridade de
certas instituições modernas no século XX e de uma emergente “banalidade do mal” (Arendt,
2005), fomentada por uma incapacidade humana de submeter fatos à inspeção do pensamento.
A temática da violência perpassa grande parte da vasta obra de Hannah Arendt e, na sua
maioria, relaciona-se à problemática do poder, da autoridade e da liberdade. A filósofa, no
entanto, dedicou uma obra inteira à reflexão do fenômeno intitulada Sobre a Violência,
publicada originalmente em 1969, e a qual tomaremos como principal referência para pensar
aqui passagens do discurso docente sobre o tema.
Após ressaltar que “ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode
permanecer alheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou nos negócios
humanos”(Arendt, 2001), a filósofa ressalta que pensar a violência é pensar no evidente
esfacelamento da tradição intelectual que demonstra não dar mais conta, categoricamente, do
ineditismo dos movimentos políticos e sociais emergentes no inicio do século XX. As antigas
formas utilizadas por todos para compreender os fenômenos e momentos históricos, até então,
tornaram-se incongruentes, “posto que os resultados das ações dos homens estão para além do
controle dos atores, a violência abriga em si mesma um elemento adicional de arbitrariedade”
(Arendt, 2001,p.14).
Buscando conceituar o fenômeno, Arendt significa a violência como instrumental e como
processo que difere do poder, do vigor, da força e da autoridade. Opondo-se a Mao Tse Tung,
Mills, Weber e muitos outros que pensam a violência como decorrente da manifestação do poder,
a filósofa a compreende como a ele incompatível. O poder, inerente a qualquer comunidade
política, é resultante da capacidade das pessoas agirem coletivamente, por consenso. Quando este
poder se desintegra, enseja a violência. Quando os comandos não são mais consensualmente
aceitos, os meios legitimadores do poder entram em crise e a violência pode se instalar. A
violência, portanto, para Arendt (2001), não afirma o poder, mas o destrói.
O vigor seria algo que se obtêm individualmente, no singular, e a força residiria na energia
liberada por movimentos físicos e/ou sociais. A autoridade se afirmaria, por sua vez, no
reconhecimento inquestionável que prescinde da coerção e/ou persuasão, sendo destrutível
apenas por desprezo. A violência, nesse caso, seria, portanto, divergente tanto da força como do
vigor. . Ela se afirma apenas instrumentalmente e, portanto, se diferente da autoridade e do poder
que, por sua vez, exigem instrumentos de coerção para fortalecer algo/e ou alguém.
A violência multiplica, com os instrumentos que a tecnologia fornece de maneira
cada vez mais exponencial, o vigor individual. Por isso a forma extrema de
violência é o um contra todos. O que surge do cano de uma arma não é poder, mas
sua negação. (LAFER, 1994, p. 9).
3.A formação nos cursos de licenciatura: a violência como desafio ou como instrumento
de reivindicação ?
Cabe ressaltar, preliminarmente que, todas as dezoito entrevistas realizadas nos seis cursos
pesquisados foram realizadas no período de greve dos professores do Estado e do Município do
Rio de Janeiro. O movimento foi anunciado pelo SEPE - Sindicado dos Profissionais de
Educação - em prol da caução da afirmação estatal acerca das reivindicações da categoria não
efetivadas pelos representantes do Estado, na época, e em defesa da anulação da outorgação do
Novo Plano de Carreira e Salários docentes pelo estado do Rio de Janeiro. Ficou claro, durante a
análise dos dados, que o contexto político no qual nossa pesquisa foi realizada e, sobretudo, a
concomitância com o movimento grevista muito influenciou a fala de alguns dos entrevistados.
Ao questionarmos os licenciandos sobre as causas da emergência de fenômenos violentos
nas escolas, ficou evidente a multiplicidade de referências e concepções apresentadas pelos
graduandos. Tal fato corrobora tanto o amplo espaço semântico abarcado pelo conceito, acusado
por Debarbieux (1992), como a multicausalidade e pluralidade do fenômeno, algo afirmado por
Candau, Nascimento e Lucinda (1999).
A existência de uma polícia ineficiente, o aumento da pobreza, a má distribuição de renda,
o desemprego e o aumento do narcotráfico na sociedade brasileira são fatores relevantes para
compreender a questão. Sozinhos, entretanto, ressalta Candau et all (1999), não explicam esta
rotinização. A percepção destas causas depende tanto de fatores estruturais como das mediações
materiais e culturais que envolvem hoje a violência na sociedade brasileira.
Seis graduandos direcionaram suas falas à vigência de uma violência simbólica inerente às
instituições de ensino. Tais entrevistados responderam que a própria escola é uma instituição
violenta. A forma homogeneizante de se ensinar/ aprender e a inexistência de um espaço de
escuta e promoção da voz dos alunos são fatores que incitam a violência, fato que corrobora os
pressupostos arendtianos. Segundo Arendt (2001a) a frustração com a impossibilidade de agir
politicamente fomenta o uso da força como meio de reivindicação da própria voz. A negação da
fala e da capacidade de agir em conjunto e, ainda, a inexistência de a quem exigi-la, faz com que
a violência seja o meio único disponível para obter tal legítima capacidade de ação por parte dos
alunos nas escolas; fato evidenciado pelos licenciandos já no início de sua carreira docente.
Três entrevistados acreditam que as condições como são geradas e gerenciadas as
instituições educacionais, especificamente públicas, fomentam atitudes violentas por parte dos
múltiplos atores que ali trabalham.
Os meninos comem a semana inteira arroz, feijão e ovo no almoço, Só! Não que isso
seja, tipo, que vá mudar a educação com uma comida melhor, mas pelas menores
coisas que a gente percebe, né, a violência já implícita ai. (...) os professores tendo
que se dividir em várias escolas de um lado para o outro com os salários terríveis e
pensar que essas questões geram a violência ou isso é uma violência..(...). O sistema
já é violento por ele mesmo, sem falar nas violências que acontecem dentro da
escola. (...) Esses questionamentos me perturbam muito assim, porque que, e ai o
professor do Estado o salário é horrível, são salários muito baixos, eles são muito
cobrados pela direção, que por sua vez é cobrada pela secretaria de educação que
tem que cumprir metas e tem que conseguir pontos nas provas, nas avaliações, o
professor tem que estar com o diários sempre em dia, então são muitas cobranças e
pouco retorno. (A19)
São ressaltadas, ainda, as muitas coerções que balizam as práticas pedagógicas e fica claro
a forma autoritária de a escola se autoafirmar, algo incompatível com a concepção arendtiana de
autoridade. Relembramos que a violência para Arendt (2005) é gerada pela incapacidade de um
poder instituído se afirmar como legítimo, e não o contrário. A violência não nasce do uso do
poder mas do seu esfacelamento, quando a autoridade vigente não é mais consensualmente aceita.
Tais reflexões nos ajudam a pensar a relação da escola com a crise que, segundo Arroyo (2001),
esta atravessa.
A concepção de escola como instituição responsável pela reprodução de saberes
tradicionais a serem transmitidos a todos, segundo Arroyo (2001a) não mais se sustenta. Tais
saberes oriundos da tradição, nos lembra Arendt (2005), é colocado à prova com o advento da
modernidade, abrindo espaço para um vazio que solapa instituições como a igreja e a escola, até
então hegemônicas. Os atores que por eles são sustentadas consequentemente tem sua autoridade
esfacelada, deixa de ser legitimada. As diversas formas de uso da força, mote da violência,
emergem do vazio por elas deixados.
Da mesma forma que fez certos poderes ditatoriais, estaria, a escola, utilizando-se da
violência e práticas coercitivas para reivindicar seu espaço privilegiado ante a sociedade? Certas
falas nos fez acreditar que sim.
Cara, você entra na escola é (...) tem grade. Aí toca o sino, as crianças saem
gritando, é igual o banho de sol ((risos)) Galera revoltada, revoltada. Aí tem o
inspetor, tem inspetor no corredor; tem as salas no corredor, tem as celas, né?! São
uns quadradinhos assim, os moleques ficam entocados lá dentro e quando põe o pé
pra fora, o inspetor “pá! Vai pra dentro!”. Caramba! Que porra é essa? Nossa!
Vontade de correr. ((risos)) Porra! Eu fico [...] A primeira vez [...]me deu vontade
de sair daqui. Aí você vai acostumando, daqui a pouco tu está achando normal de
novo... eles gritam, é assim mesmo... É bizarro, cara, é bizarro. Aí eles têm que
aprender uma parada que eles não querem, que eles não pediram para aprender,
que eles mesmos não acreditam. Isso que é triste... Tu vê que eles... muitos
reproduzem os discursos de que têm que aprender para ser alguém na vida. Eles
acham que não são ninguém ainda, que a escola que vai fazer deles alguém. E, cara,
não tem como não gerar violência, uma violência mais prática, assim, porque é
uma violência que vai gerar violência, vai gerar, não adianta.”(negrito meu) (A6)
A despeito das causas serem divergentes – alguns entrevistados alegam ser a prática
pedagógica e a cultura escolar violentas e, outros, o sistema público para com a escola pública
No que tange à violência da escola, questões levantadas por A4 nos fazem pensar sobre
uma possível violência resultante do próprio processo de ensino e aprendizagem quando não leva
em conta a necessária integração, podemos pensar conflito, do aluno com o saber. Teorias
sociogenéticas assim como as de vieses mais sociointeracionistas nos aportaram quanto à
imprescindibilidade da interação do aluno com seu objeto de conhecimento para que as
associações e acomodações inerentes à aprendizagem aconteçam. Impedir essas interrelações
pode ser considerado também uma violência? Uma escola tradicional é violenta, por natureza?
Se o aprendizado verdadeiramente se constrói apenas quando contextualizado, significado, aberto
“aos ventos do pensamento” ( Arendt, 2001b) podemos postular que impossibilitar o aluno deste
processo, de pensar, é em si uma violência? Esta é a visão apresentada pelo entrevistado que
corrobora, em parte, o que consideramos ser uma escola promotora de alunos submissos e nao
pensadores.
Referindo-nos ainda às causas da violência escolar, dois outros grupos de cinco
entrevistados cada, compreendiam ser: (1) fruto de condições sociais desfavorecidas e (2) um
reflexo da violência social inerente a nossa sociedade como um todo.
O primeiro grupo compartilha, em parte, com as exposições arendtianas quando se refere à
burocratização da vida pública desancorada de compromisso social. Para Arendt (2001a), a
burocratização social, a insegurança promovida pelos grandes sistemas e a monopolização do
Pra passar os conteúdos de filosofia sim, ela prepara. A faculdade de Filosofia ela é
excelente, tem excelentes professores. Mas talvez pra enfrentar, enfrentar algumas
situações dentro de sala de aula, (...) situações de intolerância dentro da sala de
aula, lidar com uma indisciplina muito grande de alunos, aí eu acho que não. Eles
não preparam a gente pra isso. (A9)
Não. Uma hora ou outra a gente toca em algum tema mais polêmico porque, na
verdade, na minha turma, eu sou a que tenho um contato direto com a educação.
Então, como eu tenho um pouco mais de experiência, e às vezes eu puxo tema,
algum relato de alguma coisa que aconteceu porque eu acho que seria interessante
discutir (A15).
Inferimos, destas respostas, que a questão era abordada ocasionalmente; não havia um
planejamento e/ou um organização acerca de uma possível proposta temática para as aulas – o
que nos remete às respostas explicitadas pelo segundo grupos de entrevistados. 21% dos
licenciandos alegaram haver um debate sobre a temática, mas realizado de forma muito
superficial e desligado de qualquer aporte teórico consistente. A discussão sobre a violência
escolar, quando surge, norteia-se pelo senso-comum e ditames não teoricamente fundamentados.
A incapacidade de submeter os fatos à reflexão, segundo Arendt (2005), mostra-se uma das
causas da atual “banalização do mal”, evidente em tempos modernos. Fato evidente na não
formação docente para a mediação e enfrentamento da violência?
Quando questionados se presenciaram alguma aula direcionada exclusivamente à
violência escolar, respondiam:
Não. A gente tava até discutindo isso (violência escolar) numa aula; foi até a aula
da Mariai. A gente tava discutindo os tipos de escola, os tipos de escola técnica,
clássica... os modelos pedagógicos e num debate desse a gente discutiu sobre as
questões da violência escolar e coisas sobre o estágio de campo lá, e a gente
tinha que ver no estagio de campo como estavam acontecendo as práticas e
relacionar com... era parte do relatório final. Isso a gente abordou, falou algumas
coisas nesta aula mas também não foi assim.... não era o tema central da
discussão. (aluna da sociologia)
Olha, eu acho que... algo que me marcasse profundamente para eu dizer a gente
fez.. um seminário, um debate que foi ótimo, não (aluno da filosofia)
É coisa de tipo assim, o professor começou a falar, alguém levanta a mão e fala.
Não é uma discussão, não tem nada planejado, não tem texto nenhum,
nada.(...).(aluna de sociologia)
Referências Bibliográficas :
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ITANI, A. A violência no imaginário dos agentes educativos In Caderno Cedes, n 47, ano 19,
São Paulo, 1998
Pâmela Esteves
Professora adjunta da UERJ-FFP
RESUMO
Essa proposta defende que o alto índice dos casos de bullying encontrados no Brasil está
diretamente relacionado à dificuldade dos estudantes em reconhecer suas próprias diferenças
culturais e identitárias que são construídas e reconstruídas no ambiente escolar.
A meu juízo mesmo que a relação entre o não reconhecimento da diferença e o
comportamento do bullying se confirme, ainda assim a questão da motivação para a ocorrência do
bullying continua sem explicações racionáveis, pois não aceitar que o outro seja diferente me parece
insuficiente como justificativa para práticas de agressão, desrespeitos e humilhações. Por isso,
acredito que o não reconhecimento da diferença vem acompanhado de uma maldade banalizada, um
sentimento semelhante ao que Arendt (2011) descobriu em seus estudos sobre a violência social.
Nessa perspectiva, pretendo investigar o bullying dentro do contexto da intolerância em
relação à diferença, mas também como um comportamento maliciosamente banal, que entre crianças
e adolescentes provavelmente nasce da incapacidade de pensar e refletir sobre o significado e as
conseqüências de suas ações. Tal incapacidade acredito ser resultante de um projeto moderno de
sociedade que construiu um modelo de escolarização que não valoriza uma proposta educacional
voltada para o pensamento e para reflexão.
O bullying se tornou uma problemática que desafia cotidianamente a escola. É importante
prevenir e combater essa violência escolar, mas acredito ser primordial compreender como esse
comportamento acontece e porque acontece.
Acredito que um dos motivos para a prática do bullying é a dificuldade que os estudantes
encontram em reconhecer as diferenças, por isso é importante compreender qual o papel que o
reconhecimento social possui no processo de construção de identidades individuais e culturais.
Em última instância, para o propósito desse texto o importante é investigar o que está por trás
desse tipo de violência escolar.
Contudo, para Taylor (2000) a descoberta de minha identidade não significa uma
produção de mim mesmo em um isolamento íntimo. Implica que há uma negociação dialógica,
entre eu e o outro, que acarreta que o ideal da identidade surgido na modernidade leva, em
primeiro plano, à importância do reconhecimento, ou seja, a minha própria identidade é
dependente de minhas relações dialógicas com os outros (Taylor, 2000, p. 248).
Na visão de Taylor (2000), a importância do reconhecimento é agora universalmente
reconhecida e vem à tona em debates atuais sobre o multiculturalismo, a luta das feministas e dos
movimentos anti-racistas e, também, na luta de países do Terceiro Mundo na busca de
desenvolvimento e reconhecimento de suas identidades e autonomia enquanto nações soberanas.
Dada a ligação intrínseca já ressaltada entre identidade (que como vimos, envolve um ideal
moral de autenticidade) e reconhecimento, passemos à análise da idéia de uma política do
reconhecimento na visão do filósofo canadense.
Para Taylor (2000), o discurso do reconhecimento tornou-se hoje lugar comum em dois
níveis. Primeiro, na esfera íntima que diz respeito à formação de nossa identidade (Self), que
como vimos mais acima, implica numa constituição dialógica com outros membros de minha
comunidade. Em segundo lugar o reconhecimento aparece na esfera pública na luta por direitos
iguais entre os povos, na luta dos grupos minoritários contra a discriminação e na militância das
feministas.
Taylor (2000) discute que a noção moderna de reconhecimento põe em relevo a estrutura
dialógica dos processos de constituição da identidade humana. Esta estrutura tem sido
negligenciada pela filosofia contemporânea, dado seu caráter fundamentalmente monológico.
Esta filosofia, que está centrada na noção de dignidade (diante do desgaste da ideia de honra que
pertencia às sociedades tradicionais) tem desenvolvido uma política do universalismo da
igualdade entre todas as pessoas.
A dignidade enquanto valor moral legítimo produziu no imaginário social a política do
universalismo, cujo significado é o respeito igual a todos os cidadãos e a equalização dos
direitos. O desfecho desse rol de transformações em que o princípio de cidadania adquiriu
aceitação universal implantou uma nova agenda de discussões sobre os direitos humanos.
Em contrapartida, o processo de formação da identidade moderna também conduziu a
uma política da diferença. O ideal de autenticidade que Taylor (2000) traduziu como o ser fiel a
mim mesmo atinge um sentido pragmático quando postula que todos devem ter reconhecida a sua
pecaminosa do homem e, sim, nas faculdades racionais que o fazem livre. Dessa forma, o mal
não possui dimensão ontológica, mas contingencial. Ele acontece a partir da interação e da
reação das faculdades espirituais humanas às suas circunstâncias. O mal no pensamento kantiano
é radical, pois trata-se de uma espécie de rejeição consciente ao bem e está atrelado, ainda, ao
uso dos seres humanos como meios, instrumentos, e não fim em si mesmo.
A questão do mal retorna às preocupações de Arendt (1999) quando ela aceita o convite
de uma revista americana para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann ocorrido em
Jerusalém, em 1962. Eichmann foi o principal responsável pelo envio dos judeus aos campos de
concentração. Em todos os relatos de Arendt (1999), verificamos uma profunda perplexidade
com a forma de Eichmann falar das suas atividades como carrasco nazista. Ele usava clichês,
palavras de ordens e a moral da obrigação do bom funcionário para justificar o seu
comportamento. Para ele, em nenhum momento, podia ser enquadrado como criminoso, pois
apenas cumpria a sua obrigação, o seu dever. Eichmann era um ser humano normal, um bom pai
de família, não possuía nenhum ódio ao povo judeu e não era motivado por uma vontade de
transgredir ou por qualquer outro tipo de maldade.
Ao conhecer o caso Eichmann, Arendt descobre um novo tipo de mal, um mal sem
relação com a maldade e por isso, banal. Trata-se do mal como causa do mal, pois não tem outro
fundamento. O praticante do mal banal não pensa sobre a culpa, ele age semelhante a uma
engrenagem maquinaria do mal, não há profundidade em seus argumentos, suas práticas apontam
para ações racionais, mas sem justificativas socialmente coerentes.
O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a
privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma lógica
externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age como mera
engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos acontecimentos ao seu redor.
O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos
humanos de mudar o curso das ações rotineiras através do
exercício da vontade própria. Repete heteronomamente o seu
comportamento. Não se reconhece dotado de vontade, capaz de
iniciar, fundar e começar. Ele também não exercita a habilidade,
peculiar aos homens, de falar e comunicar o que está vendo e
sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros.
Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em suma,
recusa-se a viver com os dons provenientes das suas faculdades
espirituais: pensar, querer e julgar(AGUIAR, 2010 p.16).
Ao relacionar o mal ao vazio do pensamento, Arendt (1999) aponta para uma possível
compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Por isso, a partir dos estudos de
Arendt podemos arriscar afirmar que nas sociedades atuais, o mal realiza-se na banalidade, na
injustiça e nas radicais práticas de violência contra aqueles que são diferentes: os apátridas,
imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, idosos, homossexuais, orientais.... Todos
aqueles que por suas diferenças são tratados com intolerância e discriminação.
A meu juízo o bullying acontece pela dificuldade que os estudantes encontram em
conviver com as diferenças que desafiam a escola, mas acredito que as agressões são
caracterizadas por um tipo de mal banal, um conjunto de ações maldosas decorrente da
intolerância com a diferença que permeia as relações sociais dentro do ambiente escolar. Um tipo
específico de violência escolar onde o emprego do mal banal corresponde à intolerância e à
discriminação diante da diferença, quando está incomoda simplesmente por existir. Os
estudantes autores de práticas de bullying enxergam suas vítimas de modo superficial e leviano e
consideram que por serem diferentes merecem ser tratadas de modo desrespeitoso. Contudo,
mais uma vez é importante destacar que os estudantes autores do bullying não podem ser
individualmente responsabilizados por praticarem o mal banal, pois esses estudantes estão
imersos em uma sociedade que naturalizou a violência, que tornou a discriminação uma prática
social e que encontra dificuldades em ensinar os jovens a valorizar o respeito e a tolerância em
suas relações sociais.
Dentro desse cenário o que é mais espantoso é que não conseguimos encontrar motivos
significantes que justifiquem o bullying. Todas as pesquisas analisadas na revisão de literatura
afirmam a falta de motivação como uma característica do bullying, fica então uma lacuna em
relação ao que leva crianças e adolescentes a se desrespeitarem cotidianamente. Buscando
compreender o que está por trás da prática do bullying, penso que talvez o mal presente nesse
tipo de comportamento pode estar relacionado à ausência de pensamento e de reflexão que por
parte daqueles estudantes que encontram dificuldades em reconhecer a diferença e que lidam
com essa dificuldade recorrendo a atitudes de violência, ofensa e discriminação. Assim como
Arendt (1999), acredito que o solitário ato de pensar realiza-se como um vento forte que
desarruma todas as nossas certezas e nos faz refletir antes de julgar.
Fica, então, a questão de como educar para o pensamento e para a reflexão? Qual seria o
primeiro passo pedagógico em direção a uma educação intercultural, promovedora do respeito às
diferenças, do combate ao bullying e da valorização dos direitos humanos?
O reconhecimento das diferenças é vital à identidade, como afirmam Taylor (2000) e
Honneth (2001), mas para que esse reconhecimento se efetive é preciso educar as crianças e os
adolescentes para a compreensão da tolerância como um valor ético e uma atitude social. Uma
educação que valoriza o pensamento e a reflexão defende a tolerância como uma perspectiva de
ação moral diante das intolerâncias, injustiças, discriminações e violências.
Educar para tolerância adultos que atiram uns nos outros por
motivos étnicos e religiosos é tempo perdido. Tarde demais. A
intolerância selvagem deve ser, portanto, combatida em suas
raízes, através de uma educação constante que tem início na mais
tenra infância, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que
se torne uma casca comportamental espessa e dura demais (Eco,
2001 p. 198).
Considerações finais
Nesse texto, procurei investigar as interseções entre o multiculturalismo e as práticas de bullying,
afirmei que este último é reflexo da incapacidade que os alunos apresentam em aceitar as
diferenças que se instauraram no ambiente escolar. Como possibilidades analíticas para o
entendimento dessa problemática apresentei a política do reconhecimento social de Charles
Taylor e o conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt. Concluo defendendo que o
comportamento bullying é intolerável no ambiente escolar e que sua emergência está relacionada
a dois fatores: 1- a dificuldade que os estudantes apresentam em conviver com a diferença e 2- o
mal banal, sem sentido e sem justificativas que caracterizam o bullying é resultado da inaptidão
dos estudantes em pensar e refletir suas próprias ações. A partir desses dois fatores aposto no
conceito de tolerância como um valor-atitude e um caminho para a construção de uma educação
intercultural compatível com a atual sociedade multicultural que estamos construindo.
REFERENCIAS BIBLIOGRÀFICAS
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Companhia das Letras, 1987.
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CANDAU, V. M. (Org.) Cultura (s) e educação: entre o crítico e o pós-crítico. Rio de Janeiro:
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HONNETH, A. Luta pelo Reconhecimento - para uma gramática moral dos conflitos
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MCLAREN, P. A vida nas escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos fundamentos da
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RESUMO
O trabalho apresenta uma reflexão sobre a presença do “discurso do ódio” (Glucksmann, 2007) e
do “elogio da intolerância” (Žižek, 2006) como desafios para os nossos dias. O ódio e a
intolerância não são analisados como simples emoções ou atitudes de sujeitos pouco hábeis para
o amor e a convivência. Em geral, a defesa do ódio e o elogio da intolerância se sustentam num
discurso articulado e intencional que culmina na eliminação da diferença. Assim, parte-se do
princípio que o alvo do ódio, da intolerância e da barbárie é, quase sempre, a diferença que
dignamente que constitui os sujeitos, mas que, contraditoriamente, não sabemos com ela
conviver. Se por lado, tais discursos não podem ser considerados irracionais, por outro lado,
devem ser enfrentados como imorais e antiéticos. Nesta perspectiva, a tarefa educativa se
encontra desafiada por tempos difíceis, nos quais propostas como “educar para a tolerância”
(Andrade, 2009) e “educar contra a barbárie” (Kramer, 2001) se apresentam como socialmente
urgentes, moralmente necessárias e pedagogicamente viáveis. As divergências identitárias –
gêneros, sexualidades, raças, religiões, capacidades, origens e gerações – atacam as identidades
que não estão amparadas pela moral dominante e são um problema do “multiculturalismo
despolitizado” (Žižek, 2006) ou do “multiculturalismo conservador de direita” (McLaren, 2000).
Nas considerações finais, o trabalho pontua que a atividade de educar para a tolerância e contra a
barbárie pode e deve estar situada numa reflexão sobre as relações entre educação, ética e
diversidade. Entre os valores e atitudes apontadas como metas desta educação, destacam-se: (i)
aprender a respeitar e valorizar as diferenças (McLaren, 2000) e (ii) articular as concepções de
“mínimos de justiça” e “máximos de felicidade” (Cortina, 2007).
PALAVRAS CHAVE
Educação; tolerância; “discurso de ódio”.
Para Glucksmann (2007), o ódio não é um fenômeno irracional, restrito ao campo das
emoções obscuras, mas sim um “discurso”, ou seja, mesmo que não resista a contra-argumentos
ou que não apresente razões suficientes para sua própria manutenção, o ódio é uma expressão
articulada, intencional e preparada por meio de uma linguagem verbal, tal como temos
presenciado no atual momento de acirradas disputas políticas no contexto brasileiro.
O discurso do ódio seria, segundo a compreensão aqui assumida, imoral (sem razões
éticas suficientes que o sustente), mas racional (com discurso e argumento fortemente
articulados). Assim, o ódio é um fenômeno que precisa ser admitido e desmontado em sua
fragilidade ético-moral. Em geral, ele é, do ponto de vista argumentativo, frágil, mas, ainda
assim, não se deve menosprezar sua capacidade de destruição das relações sociais. Assim, o
discurso do ódio – em especial, aquele que é potencializado pela grande mídia ou pelas redes
sociais online – deve se tornar uma pauta urgente e necessária, nas pesquisas e nas práticas
pedagógicas.
Examinando casos contemporâneos de discurso do ódio – misoginia, racismo, homofobia,
fundamentalismo e antisemitismo – Glucksmann (2007, p. 265-270) apresenta sete conclusões
sobre o ódio como discurso:
(i) o ódio existe, não é simples ausência do bem ou do amor;
(ii) o ódio se camufla, reveste-se de falsos álibis que o justifiquem;
(iii) o ódio é insaciável, desencadeia uma onda argumentativa sem trégua e não admite
o diálogo com os diferentes;
(iv) o ódio promete um paraíso maldito, apresenta-se como um mal necessário para a
obtenção de uma situação melhor do que a atual;
(v) o ódio deseja ser um deus criador, tem crescido no rastro de discursos religiosos
moralistas e no ceticismo da modernidade;
(vi) o ódio ama a morte, quer a eliminação daqueles que não partilham o princípio
assumido como o único código moral correto e aceitável;
(vii) o ódio se nutre de sua devoração, é um discurso ensimesmado, que repete sua
lógica interna à exaustão, sem diálogos ou empatias com aqueles que pensam
diferente.
Glucksmann (2007) e Žižek (2006) apontam para a intencionalidade de determinados
grupos sociais e políticos em fomentar o discurso do ódio através de diferentes meios de
comunicação, selecionados e escolhidos conforme seus objetivos políticos. Segundo Žižek
(2006), este é um fenômeno do “multiculturalismo despolitizado” que tem orientado uma nova
ideologia do capitalismo global e que tem reafirmado a importância de paixões políticas,
fundadas principalmente na discordância, na intolerância, num discurso de barbárie que só faz
sentido no acirramento das relações sociais. Žižek (2006) indica ainda para a contradição de que
certa dose de intolerância é necessária para que se possa elaborar uma crítica da atual ordem de
coisas num mundo marcado pela diversidade, tal como vamos explorar adiante.
A partir dessas considerações iniciais, entendemos que a luta contra o discurso do ódio é
um tema fronteiriço entre a liberdade de expressão, que não admitiria censura prévia, e o respeito
às identidades e opiniões das minorias, previsto nos princípios fundamentais da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Assim, encontramos um dilema ético entre o direito à liberdade
de expressão e o respeito às diferentes identidades que dignamente nos constitui como seres
humanos. A questão talvez seja sobre quando e como intervir para garantir um ou outro direito.
Sabemos que a liberdade de expressão não é um direito ilimitado e nem que o sentimento de
ofensa pode ser sempre objetivado.
Neste sentido, este trabalho visa, por um lado, articular uma análise sobre o “discurso de
ódio” (GLUCKSMANN, 2007) e sobre o “elogio da intolerância” (ŽIŽEK, 2006) e, por outro,
indicar uma proposta de educação para a tolerância (ANDRADE, 2009) e contra a barbárie
(KRAMER, 2001), a fim de construir respostas possíveis para as práticas pedagógicas em
tempos de violências, intolerâncias e ódios. Pode a educação responder a estes desafios? É o que
tentaremos responder adiante.
contraditoriamente, não sabemos com ela conviver, mesmo na escola e entre os mais novos. As
divergências sobre questões de gêneros, sexualidades, raças, religiões, capacidades, origens e
gerações na escola, atacando qualquer defesa das identidades que não estejam na moral
dominante tem sido um problema do “multiculturalismo despolitizado” (ŽIŽEK, 2006) ou do
“multiculturalismo conservador de direita” (MCLAREN, 2000).
No entanto, segundo Santos (2003, p. 56), “temos o direito a ser iguais quando a nossa
diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos
descaracteriza”. Mais do que nunca vivemos num contexto marcado pela efervescência das
questões trazidas pela diferença, que são fortemente potencializadas pelo discurso de ódio e pelo
elogia da intolerância. Diferenças – gênero, sexualidade, raça, religião, origens, pertencimentos,
geração e capacidades – que ficam ocultadas, disfarçadas, pela força do discurso da
padronização.
Em sociedades multiculturais e marcadas pelos preconceitos e pelas discriminações de
vários tipos, tais como: racismo, sexismo, xenofobia, homofobia, entre outros, a tolerância com o
diferente apresenta-se como uma agenda mínima, urgente e extremamente necessária. Segundo
Augras (1997, p. 78), “quando se fala de tolerância é, na verdade, da intolerância que se trata”.
O conceito de tolerância, então, coloca-se cada vez mais na pauta de discussão porque a
intolerância, o ódio, a barbárie contra a diferença tem sido recorrente na história da humanidade
e ainda hoje em nossas sociedades. Inegavelmente estamos caracterizados pela diferença e, no
entanto, parece que não sabemos trata-la.
A humanidade – marcada dolorosamente pela escravidão dos negros, pelo genocídio dos
povos ameríndios, pelo holocausto dos judeus, pela perseguição aos ciganos e homossexuais,
pela exploração das mulheres e das crianças – busca não mais permitir nenhuma manifestação de
intolerância com o diferente, pois o “a intolerância não é apenas questão de não tolerar as
opiniões divergentes; ela é agressiva e com freqüência assassina, no seu ódio à diversidade
alheia” (MENEZES, 1997, p. 46).
Menezes (1997, p. 41) afirma que o termo tolerância aparece pela primeira vez entre os
iluministas. O nascimento do conceito se deu no rescaldo das lutas religiosas, dos massacres
recíprocos entre protestantes e católicos. Os livres-pensadores, adeptos do Iluminismo, viam-se
discriminados e perseguidos por todos os fanatismos. E foram eles que mobilizaram a opinião
pública contra os horrores da intolerância, proclamando o sagrado direito de discordar.
Em suma, o justo é exigível e como tal se torna obrigação moral para qualquer cidadão. O bom é
aquilo que causa a felicidade, mas não pode ser exigido dos outros, pois se trata
fundamentalmente de uma realização subjetiva. Como sabemos, o que é bom para um pode não
ser bom para outro. O bom, neste sentido, está no campo das possibilidades (máximas de
felicidade) e nunca das exigências (mínimos de justiça).
A partir dessas duas habilidades, valeria se perguntar por que a tolerância como valor e
atitude de uma agenda mínima para o campo da educação em mídias sociais? A essa questão
respondemos: porque a intolerância e o discurso do ódio tornaram-se práticas comuns diante da
diferença, tal como mostramos na análise dos dados apresentados.
A tolerância surge como resposta contra a intolerância e contra o discurso do ódio à
diferença. Sendo assim, é fundamental que ao tratarmos de tolerância, pensemos na natureza, nas
causas e nas consequências da intolerância e do discurso do ódio. Menezes (1997, p. 45) afirma
que a “a intolerância não rejeita só as opiniões alheias, mas também sua existência, ou ao menos
o que faz o que valha a pena viver: a dignidade e a liberdade da pessoa”. A intolerância e o
discurso do ódio contra os diferentes têm imposto uma quantidade de desqualificações que
sustentam o estigma, um suposto sinal vergonhoso e socialmente rejeitado.
Eco (2001, p. 114), por sua vez, chama a atenção para a intolerância sem nenhuma razão
explícita ou doutrina que a sustente:
A intolerância coloca-se antes de qualquer doutrina. Nesse sentido, a intolerância tem
raízes ideológicas, manifesta-se entre os animais como territorialidade, baseia-se em
relações emotivas muitas vezes superficiais – não suportamos os que a são diferentes de
nós porque têm a pele de cor diferente, porque falam uma língua que não
compreendemos, porque comem rãs, cães, macacos, porcos, alho, ou porque se fazem
tatuar...
Para Eco (2001, p. 116), os estudiosos ocupam-se com frequência das doutrinas da
diferença, mas não o suficiente da intolerância e do discurso do ódio, pois estes fogem de
qualquer possibilidade de discussão e de críticas, pois não estão num nível racionável (das razões
moralmente suficientes), nem no nível racional (de argumentos bem articulados), mas no nível
visceral. A intolerância é, em geral, raivosa, descontrolada, inexplicável e impulsiva.
Enfim, educar para tolerância não é pouco, é sim o fundamental. E talvez seja ainda mais
necessária e produtiva do que se imagina, pois busca intervir em nossas ações, em nossas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Rio de Janeiro: DP&Alli, 2009
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ŽIŽEK, Slavoj. Elogio da intolerância, Lisboa: Relógio D´Água, 2006
i
Nome fictício, a fim de não identificar a professora citada.