Mito n° 4
“As pessoas sem instrucdo falam tudo errado”
O preconceito lingitistico se baseia na crenga de que sé existe,
como vimos no Mito n° 1, wma tinica lingua portuguesa digna deste
nome e que seria a lingua ensinada nas escolas, explicada nas
gramiticas e catalogada nos dicionarios, Qualquer manifestagao
lingiifstica que escape desse tridngulo escola-gramitica-dicionario 6
considerada, sob a dtica do preconceito lingiiistico, “errada, feia,
estropiada, rudimentar, deficiente”, e nao é raro a gente ouvir que
“isso ndo é portugués”.
Um exemplo. Na visdo preconceituosa dos fendémenos da
lingua, a transformagao de I em R nos encontros consonantais como
em Créudia, chicrete, praca, broco, pranta 6 tremendamente
estigmatizada e As vezes é considerada até como um sinal do
“atraso mental” das pessoas que falam assim. Ora, estudando
cientificamente a questo, é facil descobrir que nao estamos diante
de um trago de “atraso mental” dos falantes “ignorantes” do
portugués, mas simplesmente de um fendmeno fonético que
contribuiu para a formagdo da propria lingua portuguesa padrao.
Basta olharmos para o seguinte quadro: [pg. 40]
PORTUGUES PADRAO ETIMOLOGIA ORIGEM
branco > blank germénico
brando > blandu latim
cravo. > clavu latimdobro > duplu latim
escravo > sclavu latim
fraco > flaccu latim
frouxo > fluxu latim
grude > gluten latim
obrigar > obligare latim
praga > plaga latim
prata > plata provengal
prega > plica latim
Como é facil notar, todas as palavras do portugués--padréo
listadas acima tinham, na sua origem, um 1 bem nitido que se
transformou em R. E agora? Se fossemos pensar que as pessoas que
dizem Crdudia, chicrete e pranta tém algum “defeito” ou “atraso
mental’, seriamos forgados a admitir que toda a populagao da
provincia romana da Lusitania também tinha esse mesmo problema
na época em que a lingua portuguesa estava se formando. E que 0
grande Luis de Camées também sofria desse mesmo mal, ja que ele
escreveu ingrés, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra que é
considerada até hoje 0 maior monumento literdrio do portugués
classico, 0 poema Os Lusiadas. E isso, é “craro”, seria no minimo
absurdo.
Existem, evidentemente, falantes da norma culta urbana,
pessoas escolarizadas, que tém problemas para [pg. 41] pronunciar
os encontros consonantais com L. Nesses casos, sim, trata-se
realmente de uma dificuldade fisica que pode ser resolvida com uma
terapia fonoaudiolégica, Nao é dessas pessoas que estamos tratando
aqui, mas dos brasileiros falantes das variedades nao-padrao, em
cujo sistema fonético simplesmente nao existe encontro consonantalcom 1, independentemente de terem ou néo dificuldades
articulatérias. Quando, na escola, se depararem com os encontros
consonantais com L, é preciso que o professor tenha consciéncia de
que se trata de um aspecto fonético “estrangeiro” para eles, do
mesmo tipo dos que encontramos, por exemplo, nos cursos de inglés,
quando nos esforgamos para pronunciar bem o TH de throw ou oI de
live. E preciso separar bem os dois aspectos do fendmeno.
Se dizer Créudia, praca, pranta é considerado “errado”, e, por
outro lado, dizer frouxo, escravo, branco, praga é considerado
“certo”, isso se deve simplesmente a uma questdo que nfo é
lingiiistica, mas social e politica — as' pessoas que dizem Crdudia,
praca, pranta pertencem a uma classe social desprestigiada,
marginalizada, que nao tem acesso educagdo formal e aos bens
culturais da elite, e por isso a lingua que elas falam sofre 0 mesmo
preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua lingua &
considerada “feia’,"pobre”,”carente”, quando na verdade 6 apenas
diferente da lingua ensinada na escola.
Ora, do ponto de vista exclusivamente lingiifstico, o fendbmeno
que existe no portugués no-padrio 6 0 mesmo que aconteceu na
histéria do portugués-padrao, e [pg. 42] tem até um nome técnico:
rotacismo. O rotacismo participou da formagao da lingua
portuguesa padrao, como j4 vimos em branco, escravo, praga, fraco
etc., mas ele continua vivo e atuante no portugués nao-padrao, como
em broco, chicrete, pranta, Crdudia, porque essa variedade nao-
padrao deixa que as tendéncias normais e inerentes a lingua se
manifestem livremente. Assim, 0 problema nao esta naquilo que se
fala, mas em quem fala 0 qué. Neste caso, o preconceito lingiifstico 6
decorréncia de um preconceito social. Este tipo especifico de
preconceito é 0 que abordei em meu livro A lingua de Eulélia.Minha heroina literdria predileta, a boneca Emilia, de
Monteiro Lobato, nfo quis saber desse tipo de preconceito, Ao
visitar, no Pais da Gramética, a priséo onde Dona Sintaxe
mantinha enjaulados os “vicios de linguagem’, revoltou-se ao ver
atras das grades 0 “Provincianismo”, isto é, os “vicios” da fala rural,
do “caipira” (p. 120):
Emilia ndo achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto. Alegou
que ele também estava trabalhando na evoluedo da lingua e soltou-o.
— Va passear, seu Jeca, Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser
lei um dia. Foi vocé quem inventou 0 voct em vez de TU, € 86 isso quanto néo
vale? Estamos livres da complicagao antiga do Tuturututu.
Como se vé, do mesmo modo como existe o preconceito contra a
fala de determinadas classes sociai
, também existe o preconceito
contra a fala caracteristica de certas regides. KE um verdadeiro
acinte aos direitos humanos, por exemplo, 0 modo como a fala
nordestina é retratada [pg. 43] nas novelas de televisdo,
principalmente da Rede Globo. Todo personagem de origem
nordestina é, sem excegdo, um tipo grotesco, riistico, atrasado,
criado para provocar 0 riso, 0 escdrnio e o deboche dos demais
personagens e do espectador. No plano lingiiistico, atores nao-
nordestinos expressam-se num arremedo de lingua que nfo é falada
em lugar nenhum do Brasil, muito menos no Nordeste. Costumo
dizer que aquela deve ser a lingua do Nordeste de Marte! Mas nés
sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de
marginalizagao e exclusao.
Para mostrar que a fala nordestina nada tem de “engragad:
ou “ridfoula’, vamos fazer uma pequena comparagao. Na pronincia
normal do Sudeste, a consoante que escrevemos 'Té pronunciada [t8](como em tcheco) toda vez que é seguida de um [i]. Esse fenémeno
fonético se chama palatalizagdo. Por causa dele, nés, sudestinos,
pronunciamos [téitsia] a palavra escrita TITIA. E todo mundo acha
isso perfeitamente normal, ninguém tem vontade de rir quando um
carioca, minciro ou capixaba fala assim.
Quando, porém, um falante do Sudeste ouve um falante da
zona rural nordestina pronunciar a palavra escrita OITO como
[oytéul, ele acha isso “muito engragado”, “ridiculo” ou “errado”. Ora,
do ponto de vista meramente lingiiistico, o fendmeno é 0 mesmo —
palatalizagdo —, s6 que 0 elemento provocador dessa palatalizagao,
0 [y], esta antes do [t] e nao depois dele.
Entio, se o fenémeno 6 0 mesmo, por que na boca de um ele 6
“normal” e na boca de outro ele 6 “engracado”, [pg. 44] “feio” ou
“errado”? Porque 0 que esté em jogo aqui nao 6 a lingua, mas a
pessoa que fala essa lingua e a regido geogrdfica onde essa pessoa
vive. Se o Nordeste é “atrasado”, “pobre”, “subdesenvolvido” ou (na
melhor das hipéteses) “pitoresco”, entao, “naturalmente”, as pessoas
que 14 nasceram e a lingua que elas falam também devem ser
consideradas assim...
Ora, faga-me o favor, Rede Globo! [pg. 45]