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Prod. Cowdta CAPITULO 4 ‘AHISTORIA DA AFRICA DE JOSEPH KI-ZERBO Quando se fala da “tradigao africana’, nunca se deve generalizar. Nao hd uma Africa, ‘nao ha uns homer africano, ndo hd uma tradigdo africana vilida para todas as regiSes ¢ todas as etnias. Claro, existem grandes constantes (a presenca do sagrado em todas as coisas, a relagaa entre os ruundos vistvel € invisive e entre os vis ¢ os mortos, 0 sentido ‘comunitério, 0 respeito religioso pela mae, etc), mas também hd numerosasdiferencas deuses,simbolos sagrados, protbigdesreligiosas ce costumes socaisdelas resultantes variam de uma regiéo a outra, de uma etnia a outra; és vezes, de aldeia para aldeia®. Se HAMPATEBR, Amadou Amoulleo Menino Fala So Paulo: Palas Athens, 2003,p.18 on Prot. Cow la CTT ‘HISTORIA DA AFRICA DE JOSEPH KE-ZERBO Quando se fala da “tradi¢do africana’, nunca se deve generalizar. Nao hd uma Africa, nao hd um homem africano, ndo hd uma tradicdo africana vlida para todas as regiGes ¢ todas as etnias. Claro, existem grandes constantes (a presenga do sagrado em todas isas, a relagdo entre os mundos visivel e 05 vivos e 0s mortos. 0 sentido ra, o respeitoreligiaso pela mae, s também hd. numerosas diferenas: ddeuses, simbolos sagrados, proibigées religiosas © costumes socials delas resultantes variam cde uma regido a outra, de uma etnia a outra; ds vezes, de aldeia para aldeia®. St 50 HAMPATE BA, Amadou. Amloullelo Menino Fula, io Paulo: Palas Athena 2003.9. 1, on e D= ‘hd algum tempo, existe um movimento africano que se movi- tmenta na esperanga de que os pafses nao africanos compreendam que os destinos da Africa somente aos afticanos devem importar: ‘A Africa nao quer ser sala Parece que de um tempo para i oprimido pelo sentiment de culpa te Médio,o Ocidente ver ica para ali buscar sua redencio. 3, celebridades como Bob Geldof [misicoeativistl «politicos como Tony Bir [e-primeiro-ministro riinico] se atribuiram ‘como misso leva a luz a contnente negro. ‘Chegam de avo para passar um periodo na Atica ou participa de ‘uma miss de investiga ou, ands, para adotar uma eng ~ Um poco como meus amigos ¢eu, em Nova York, tomamos 0 met para ir adotar sbandonado no cai 1 -m intenciondas, essas campanhas propagam o estereétipo que seria um buraco negro de doenga e morte. preconceits abertamente racstas, mas eses artigos Iembram 0 tempos do colonialism europea, quando se enviavam misionrios 8 Aftica para nos ear educagio, Jesus 3 : Tao aficanoinelundo ex mesmo, nto pode deixar dese alegrar com 2 ajuda que o mundo nas di, mas iss0 io nos impede de prguntar se incera ou se a € dada com aideia de frmar sia Hollywood produz.um filme sobre Aftica cujo herd ¢ ocidental, eu fag “ado” com a cabera ~ porque os africanos, apesar de sermas pessoas muito reais, ndo fazemos mais que servit de validagio da imagem imagindria que o Ocidente tem de si préprio. no apenas essas descrigbes tendem a ignorar o papel as vezes, Em juno [de 2007] 0 grupo do reuniu-sena Alemanha com vias celeb temas, como salvar a fica. Espero que antes da préxima cip ‘mundo tenha finalmentecompreendido que a Africa nao quer ser sal ‘A Africa quer que o mundo teconheca que, por meio de parcerias ewi capaz de aleangar um erescimentoinustad por Uzodinma. Buraco Negro. In: Fatha de S Paulo, 92007) ‘Neste capitulo vamos investigar as razdes que levam esse intelectual africano a solicitar que os europeus e norte-americanos se afastem da Africa. ara entendermos seu apelo, precisamos voltar alguns anos, mais precisamente ao tempo da descolonizagio africana. Elejo um autor- -historiador em especial para nos guiar nesse caminho: Joseph Ki-Zerbo. ‘Seu prestigio internacional nos anos 1960 era enorme. Natural do Alto ‘Volta, diplomou-se em Paris pelo Institut dtudes Politiques em 1954 ‘econseguiu na Sorbonne o grau de agrégé em Historia, Entre os muitos ‘cargos que desempenhou, posso citar Diretor-geral da Educagio Ne- ional do Alto Volta, membro do conselho de administracao do UNI- ‘TAR (Instituto das Nagdes Unidas para a Investigacio e a Formacao), membro do conselho de administracao do Instituto Internacional para « Planificagao da Educagio da UNESCO. No preficio que Ihe escreveu Fernand Braudel est dito: Conheci, vat para vite a altura em que ele prestava com Histia, 1 Estamos perante muito mais do que uma obra de histra feta de pacitnciae de lealdade conscienciosa. (.] Compraz-me pensar que a hhstria recompensardo historiador, que ele ter levado de um s6 lance, ras de identdade que thes permitirio viver melhot Porque, para ter esperanca, para prosseguir na caminhads, é necessirio também saber donde se ver. Ahistéria 60 homer, sempre o homem, € 0s seus admirives esforgos A histria do continenteaficano se for sincera eautetica, no pode deixar de nos levar a todos 0s homens no seu conjunto, todos 0s povos no set 93 Conjunto, a0 mundo intero. Admiro que oa nha ultrapassado, com ‘oragem e obstinacao, a historia das narratives 0 ser de imensa utlidade, Para os estuda lico. Para o mundo tio cutioso.e Farel ndo mais que trés comentéris pérfidos. Primeiro, que este Segundo o texto, realizado por um professor de Histériaformado na das narrativas tradicionais’ No preambulo, afirma o autor: ddecidiu, com grande pesar, tir de momento 0 estudo da parte norte da Afric, cujo passado Ihe era ainda menos onhecido, a fim de tornar possivel a publicagdo do volume dentro de um. azo razodvel. Mas trata-se apenas de um adiamento, e, numa edigio esta obra seri uma histéria eral da Africa, englobando o setor ‘mediterrinico, uma unidade consagrada por tantos lacos milenares (or vezes sangrentos, é verdade, mas as mais das vezes mutuamente enriquecedores) agos que sio sublinhados na presente obra e que fazem 10 edo outro do Saara, os dois batentes de uma mesma Porta, as duas faces de uma mesma medalha, os dois reflex de uma mesma pedra preciosa®. Fago notar a importancia de um estudo que contemple toda a Africa, ndo somente a Negra. Contra que se coloca Ki-Zerbo? “ns Contra os historiadores que negam a Africa uma hist6ria autonoma, desvinculada do racismo colonial. Por exemplo? ZERBO, Joseph. Histéria da Africa Negra. Lisboa: Publicagies Europa-América, 2. 5. 52 Idem, p.7. on ‘A posigdo mais radial a est respeito & aque consisteem dizer quea (Negra) nio existe. No seu Curso sabre a Flosofa da ava Hegel" African ‘mundo. Nio tem movimentos,progressos a mo ticos proprios dela. Que isto dizer que a sua parte stent ‘0 mundo europeu ou asitico, Aquilo que entendemos prec Arica € 0 espirtoa-histricoo esis To, a historia é uma invengio europeia do Estado-nacio, o que implica dizer que é a histéria do progresso e do desenvolvimento do mundo europeu em seu “destino” de levar esse “progresso” para o resto da humanidade, Para Hegel, um de seus formuladores, todo 0 mundo alheio a li- rnhagem greco-romana estava ausente do movimento histdrico e estava, Portanto, estagnado, Continua Ki-Zerbo: Coupland, no seu manual LFistorie de UAfrique Oriental, escrevia (em 1928, € verdade) “AtéD. Livingstone pode-se dizer que a Africa Propriamente dita nio tiverahistiria. A maior pate dos seus habitantes ‘unham permanecido, durante tempos imemariis, merglhado a bari ‘ie Tal fora, ao que parece, o designio da natures, Ees permaneciam no stagnamento, em avangar ou recuar’, Outra étagiocaracterstica: “AS aca afrcanaspropriamentedtas —& exceyio do Egitoe de uma parte da fica Menor ~ no participa na histeia, tal como a entendem os historiadores.NGo me recuso a aceitar ‘que tenhamos nas vias algumas gotas de um sangue afrcano (de africana de pele provavelmente amare), mas devemos confessar que aquilo que elas pode subsistir € muito dificil de encontst.Portanto, apenas duas ‘ota na histria universal: em primeieo lugar ede manera conserve, ‘os egipcio; depois, os povos do Norte da Afri” Em1957 foi P. Gaxotte que escreve sem pestaneas, na Revue de Pars “Estes povos nada deram 3 humanidade, E deve te havido qualquer coi Wem, pio 95, A ‘eles que os impediu. Nada produziram, Nem Euclides, nem Arstteles, ‘nem Galil, nem Lavoisier, nem Pasteut As suas epopelas no foram ‘eantadas por nenhum Homero™. Note como essa historia é a hist6ria europeia, eurocéntrica, in- ventada pelos historiadores franceses, alemies ¢ ingleses, marcada elo progresso e pela evolucio. O autor assume o discurso ideol6gico dda civilizagao levado & Africa pelas disputas imperalistas europeias de finais do século XIX eo incorpora historia africana, dando-Ihe priori- dade. E veja que. objecio do autor segue a mesma armadilha, buscando ‘equivaléncias e similaridades: Na reaidade, Bala Fasekt 0 grit (rats, na Senegimbi paises vii "hos, S80 muito mais do que simples eticeros ou quimbandas. Historia doves epoetas cultivar a misicaeguardam as trades. esempenham, europeu. Um grande historiador como Charles-André Julien chega 20, pontodeinttlar“LAfrigue, pay sans Historie” um padgrfo da sua obra [Histoire de tfrigue. Esereve al: °A Africa Negra, a verdadeira Aca E aqui a constatagio daquilo que nio deveria servir a ofensa, pois 0 Estado, essa invencéo europeia, ¢ o principio da hierarquia e da de- gradagao humana: Iimbuidos de um preco neste campo a par daqueles que tim uma idea acanhada ds provas que sio necessiras para ‘azerahistria. Aproximam-se, de rsto,e bastante curiosamente, de certos historiadores marxistas que trazem consigo, eles também, a sua rigidez. 96 (O grande historiador e homem de Estado hingaro E. Si belece cetos excelents prinipios de método, escreve:‘A grande maioria dos povosafricanos, como nio tém classes, ndo co sentido estrito da palavra. Mais exatamente, o Estado e as lasses socials apenas existiam na fase embriondria.E por isso que, no que respetaa estes povos, nio se pode falar da sua histéra, no sentido cientfico do termo, mas antes do aparecimento dos usurpadores europeus ym Estados no Mas exister também aqueles historiadores que reportam a histéria da Africa como uma “filha” da historia europea (© negro, matéria-prima mal achada no decorrer dos tempos pelas influgncia exteriors, vinda dos Fenicios, os Gregos, os Romanos, dos Judeus, dos Arabes, dos Persas, dos Hindus, dos Chineses, dos Indonésios ‘dos Europeus al €a tela de fundo que serve de ponto de partia para trisdoresafricanos e para a maior parte dos “Com efit a histra da Aca a sl do Saara em grande parte, histeia dasua penetra no decore as idades pela civilizaciocartica™ (D. Paul. ‘mediterranea (Gauthier) Nesse sentido, todo avango das civilizacBes africana (omesticagao actesania.com ferro, ete.) era devido da natureza, modelagio co! a influéncias externas en rho campo das invengoes, dos apetites politicos de plantio, ja que os 56 Wer, Bide, 57 Ider, p10. 7 documentos eram tio arbitrérios quanto eram arbitrérias as formas de se lidar com eles: eles podiam dizer praticamente qualquer coisa, © que Ki-Zerbo nao entendeu é que realmente os diversos povos africanos ndo compartilham mesmo as categorias historicas propostas pelos europeus para 0s povos do mundo nao europeu..c isto deveria ser motivo de orgulho e uma grande vantagem. Mas nao 0 é. Vejamos Sua postura de historiador basicamente europeu. Primeiro ele vai enfrentar a acusagao de que a falta de historia da Africa corresponde & falta de documentacio. Osdocumentosesritos, de que se deplora a aridadesio de ato muito ‘menos numerosos de que nos outros continentes. Mas esto sobretudo mal Aistebuids por periods por reps ates escritas podem ser clasificadas nas grandes categorias a seguir indicadas. - Fontes antigas ‘uropeias ou soviticas(nareativasou de arquivos) ones africana ecen- tes" (merits, etiopes em lingua ou em escrita rabe em escritaaficana moderna, em lingua europeia: fonts asics ou amercanas, A fontes drabes contam-se entre as mais importants por vias razoest Sao documentos de uma cepa recente, posteriores & chegada dos europeus na Africa, ou sio tio antigos que nao se sabe exatamente 0 que esti grafado, herméticos signos perdidos num passado que nio se a a ver, que nao se deixa penetrar. Fruto de um estranhamento nio somente textual, mas estranhamé tural, cuja inspecdo encontra sempre 0 vacuo ou a intengio do inspetor, como um espelho. Com esse calhamaco de documentos, acreditava Ki-Zerbo que era preciso empreender um movimento coordenado de historias que no 6 se moldavam numa histéria pan-africana, mas demonstrava que 0 fulcro, o aparecimento da primeira civilizagao coincidia com a préptia génese humana, a Africa. 38 Mem, pis 98 Para tanto, 0 autor aponta uma fonte tradicional: io é de resto, a tradigio oral cronoligicae logicamente anterior a0 aparecimento da escrita? No principio era verbo. E depois a tradigao ‘oferece por vezes pont de referencia comprovados. claro, as genealogias ea duragio média dos reinados e das geragdes so difcis de estabelecer. “Masa tradi¢éo possuiresguardos que Ihe asseguram por vezes do interior a autenticidade e a pureza.E 0 caso de ces ‘Achantia, Daomé, Ruands) que oferecem boas garantis pelo seu carster seco rigido pelo fatodeestarem confadasa determin cobertos de honras, mas responsiveis, sob pena de morte, pea integridade desses documentos desde i séculos rectados regularment, por vezes todas as manhis,no decorrer de uma ceriménia especial” Se, de um lado, aponta as dficuldades de se estabelecer um critério confidvel de legitimidade para essas fontes, por outro sugere o estabeleci ‘mento de sociedades imutaveis por séculos,repetindo os mesmo rtuais. Enfim, para que essa Africa aparega, Ki-Zerbo deve propor sua forma organizativa: O que eu disse destas coletividades polticase da integraglo seria ional ou nacional ue as caracterizava permite conclur que nio se pode ‘escrever a histria da Aftica numa base puramente tribal Os Zulus nio ‘ram apenas Zulus.O seu proprio nome, que significa “as gentes do éu’, ‘io € uma referéncia étnica, mas quase um programa. Quanto a0 Gana, também por uma cazio politica atual, na medida em que se néo queia fundar nagoes africanas, ou uma nova nagio africana, cujos membros tenham uma visio cacofinica ou antaghnica do seu pastado € necessirio, fricanos, deixando-hes, quando necessicio, a alimentar uses quanto a contetdo dessa de mais nada, ‘qutncia preponderantes os fatores econdmicos,pscoldgeos ou cult Kem, p20. 99 Desteponto de vista, os quadros da Conferéncia de Beli, se convém desde a sua colonizagio, no poderiam consttuie as estruturas tlsbais para a histéria da Africa independnte, porque os esparos pol

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