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O GIRO Criminal law system. Philosophy of
language. Meaningful action concept. LINGUÍSTICO E O DIREITO PENAL TURNING OF LANGUAGES AND Introdução CRIMINAL LAW A história mostra que desde que o direito em Paulo César Busato* geral e o Direito penal em Professor da UFPr especial buscaram a sua afirmação como ciência, que Resumo cada sistema de imputação O presente artigo apresenta uma encontrou ancoragem em visão geral sobre a teoria do delito a uma racionalidade específica1. partir do paradigma da filosofia da A evolução das sucessivas linguagem, apontando, de modo teorias do delito sempre geral, para os ganhos criminológicos, político criminais e correspondeu, de algum dogmáticos da adoção da referida modo, a uma sucessão de perspectiva. paradigmas associados a Palavras-chave novas formas de pensar que Teoria do delito. Filosofia da linguagem. Concepção significativa pretenderam, com sua de ação. abordagem, oferecer soluções cientificamente mais Abstract adequadas, ou seja, capazes This article provides an overview about de oferecer respostas mais the criminal law system from the paradigm of the philosophy of language, corretas ao problema central pointing the criminological, political and de como imputar. dogmatical advantages that can be No plano provided by the adoption of that epistemológico, porém, a perspective. Keywords 1 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, * O autor é professor de Direito Carlos. A concepção significativa de ação penal da UFPR e da FAE-Centro de T.S. Vives e sua correspondência Universitário, Doutor em direito sistemática com as concepções teleológico- penal e Procurador de Justiça do funcionais do delito. Trad. de Paulo Ministério Público do Estado do César Busato, Rio de Janeiro: Paraná. Lumen Juris, 2007, pp. 1-2. 126 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
evolução das racionalidades matéria jurídico penal, que é
conduziu ao giro lingüístico traduzida pelo modelo que, com raízes filosóficas, significativo de teoria do delito espraiou-se por todos os e propor uma breve análise a distintos âmbitos do respeito das implicações que conhecimento humano. a adoção desta perspectiva Sua chegada ao possui em termos sistema de imputação próprio criminológicos, político do Direito penal, porém, foi criminais e dogmáticos. tardia, somente se Naturalmente, sem a produzindo no último quartel pretensão de esgotamento de do Século XX. tais perspectivas, senão como Não obstante a mera introdução a campos tardança, a influência da que podem e devem ser filosofia da linguagem em explorados mais matéria de imputação vai verticalmente em outros muito além da mera estudos. superação de um paradigma científico por outro. O que se 1. O que é o propõe é muito mais do que modelo significativo de isso. À raiz da epistemologia teoria do delito. lingüística a mudança proposta é de quebra da Conquanto não a própria pretensão científica tenha denominado assim, a do sistema de imputação, partir de bases assentadas na rompendo não com o filosofia da linguagem, Tomás paradigma científico, mas Salvador Vives Antón com a própria racionalidade ofereceu, em meados dos científica, aproximando o anos 90 do Século XX, uma Direito penal da praxis e proposta de estruturação de dotando a fórmula de teoria do delito que pode ser imputação de objetivos muito chamada de teoria significativa mais pragmáticos. do delito. Este artigo se A razão para propõe a oferecer um esboço assim denominá-la é que a da proposição lingüística em sua estruturação Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 127
metodológica parte de uma
concepção de ação que o “Dolus in re ipsa”, in [Carbonell próprio autor denomina Mateu, Juan Carlos - González significativa, à vista de que esta Cussac, José Luis y otros directores y Cuerda Arnau, María Luisa – traduz uma expressão de coordinadora], Constitución, derechos sentido, com bases assentadas fundamentales y sistema penal. na filosofia da linguagem. Semblanzas y estudios con motivo del A partir da setenta aniversario del profesor Tomás iniciativa de Vives, muitos Salvador Vives Antón, Valencia: outros penalistas passaram a Tirant lo Blanch, 2009; ORTS BERENGUER, Enrique. estrutrurar trabalhos a partir “Consideraciones sobre los das bases por ele oferecidas2. elementos subjetivos de algunos tipos de acción”, in [Carbonell Mateu, Juan Carlos - González 2 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Cussac, José Luis y otros directores Carlos. Derecho penal económico y de la y Cuerda Arnau, María Luisa – empresa. 4a ed., Valencia: Tirant lo Blanch, 2014; BORJA JIMÉNEZ, coordinadora], Constitución, derechos Emiliano. “Algunas reflexiones fundamentales y sistema penal. sobre el objeto, el sistema y la Semblanzas y estudios con motivo del función ideológica del Derecho setenta aniversario del profesor Tomás penal”, in Nuevo Foro Penal no 62, Salvador Vives Antón, Valencia: Antioquia: Centro de Estudios Tirant lo Blanch, 2009; CUERDA Penales de la Universidad de ARNAU. “Limites constitucionales Antioquia, 1999 (também existe de la comisión por omisión”, in versão brasileira publicada em [Carbonell Mateu, Juan Carlos - Justiça e Sistema Criminal no 10, González Cussac, José Luis y otros Curitiba, 2014; ORTS directores y Cuerda Arnau, María BERENGUER, Enrique e Luisa – coordinadora], Constitución, GONZÁLEZ CUSSAC, Jose Luiz. derechos fundamentales y sistema penal. Compendio de Derecho penal. Parte Semblanzas y estudios con motivo del General. Valencia: Tirant lo Blanch, setenta aniversario del profesor Tomás 2004 (2a ed., 2010, 3a ed., 2011); Salvador Vives Antón, Valencia: GORRIZ ROYO, Elena. El concepto Tirant lo Blanch, 2009 (existe de autor en Derecho penal. Valencia: versão brasileira na Revista Justiça e Tirant lo Blanch, 2008; RAMOS Sistema Criminal, no 10, Curitiba, VÁZQUEZ, José Antonio. 2014; FLETCHER, George. Concepción significativa de la acción y Conceptos básicos de Derecho penal. teoría jurídica del delito. Valencia: Trad. de Francisco Muñoz Conde, Tirant lo Blanch, 2008; Valencia: Tirant lo Blanch, 1997; GONZÁLEZ CUSSAC, José Luis. RUIZ ANTÓN, Luis Felipe. “La 128 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
Esta As razões para
estruturação, que consistiu no tanto são duas: o seu caráter último giro copernicano a eminentemente prático, sua respeito da teoria do delito é, capacidade de rendimento a sem dúvida, a mais recente respeito da resolução de contribuição sobre os problemas concretos e a fundamentos dos sistema de possibilidade que abre de imputação e é apontada como conexão entre os sistemas do uma proposição “destinada a civil law e do common law. lograr uma ampla aceitação No que refere ao na doutrina e na primeiro aspecto, o jurisprudência”3. rendimento prático de um modelo associado à linguagem já tinha sido acción como elemento de la teoría del delito y la teoría de los actos de detectado antes por habla: cometer delitos con Hassemer. Segundo este palabras” in El nuevo Código penal: autos, a aproximação presupuesto y fundamentos. Libro progressiva entre o Direito e homenaje al doctor Don Ángel Torío a linguagem deriva López. Granada: Comares, 1999; ALCÁCER GUIRAO, “Cómo justamente da necessidade cometer delitos con el silencio. daquele de produzir respostas Notas para un análisis del lenguaje a problemas práticos, em de la responsabilidad” in Estudios especial em sua dimensão penales en recuerdo del Profesor Ruiz pragmática4. Antón. [Emilio Octavio de Toledo y Ubieto, Manuel Guardiel Sierra e Emilio Cortés Bechiarelli – Coord.], 4 Nesse sentido, refere o autor que Valencia: Tirant lo Blanch, 2004 e “A classificação da semiótica – BUSATO, Paulo César. Derecho teoria da linguagem e de seu uso – é penal y acción significativa. Valencia: muito útil, se se quer conhecer os Tirant lo Blanch, 2007 (Há também limites aos quais a lei pode vincular edição argentina, publicada por em si o juiz. Na “sintaxe” ou Didot, em 2013). No Brasil, veja-se, sintática trata-se das relações dos BUSATO, Paulo César. Direito signos lingüísticos entre si, de penal. Parte Geral. São Paulo: Atlas, gramática, de lógica, de formas e de 2013 (2a ed., 2015). estructuras. Na semântica trata-se das 3 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, relações dos signos lingüísticos com Carlos. Derecho penal económico y de la a realidade, de significado, de empresa...cit., p. 35. experiência, de realidade. Na Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 129
Quanto ao trabalho bastante mais
segundo, bastaria referir que pragmática – e por isso, mais as mesmas bases filosóficas simples – que o monumental voltadas à linguagem foram livro de fundamentos do apontadas por George Patrick Prof. Vives, Fletcher oferece Fletcher5 para a composição un conceito intersubjetivo de de uma concepção intersubjetiva ação que, por um lado, de ação ou concepção humanista, pretende superar o modelo que serve de base para a ontológico que orientou composição do seu sistema sempre os estudos jurídico- de imputação, que, na opinião penais estadounidenses e, por do próprio autor, tem uma outro, estabelece uma base grande semelhança com a estrutural para o próprio concepção de Vives. sistema de imputación, Ainda que conjugando-se com as 6 vinculado a uma forma de exigências normativas . O fato de que dois autores de formação pragmática trata-se da relação dos absolutamente distinta, estu- signos lingüísticos com a realidade, de significado, de experiência, de diosos de sistemas jurídicos realidade. Na pragmática trata-se da completamente díspares, che- relação dos signos lingüísticos con guem às mesmas conclusões a seu uso em situações concretas, de respeito dos fundamentos do ação, de comunicação, de retórica, sistema de imputação é de narração”. HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho revelador de que a evolução penal. Trad. de Francisco Muñoz Conde y Luís Arroyo Zapatero, Barcelona: Bosch, 1984, p. 221. 6 Comentan la coincidencia 5 Veja-se FLETCHER, George metodológica entre las Patrick. Rethinking Criminal Law. proposiciones de Vives y Fletcher New York: Oxford University MUÑOZ CONDE, Francisco e Press, 2000; FLETCHER, George CHIESA, Luís Ernesto. “A Patrick. Basic Concepts In Criminal exigência de ação como conceito Law. New York: Oxford University básico de direito penal”, in Justiça e Press, 1998 e FLETCHER, George Sistema Criminal nº 1. Trad. de Patrick. The Grammar Of Criminal Rodrigo Jacob Cavagnari e Paulo Law. Vol. 1. Foundations. New York: César Busato, Curitiba:FAE, jul.- Oxford University Press, 2007. dez. 2009, p. 13. 130 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
natural do pensamento “giro pragmático” da filosofia
humano passa por estas bases com base na ação e na e conduziria, inexoravelmen- racionalidade prática e, por te, a uma evolução do sistema outro, no que se refere à de imputação nesta direção. metodologia de apresentação Vives baseia sua do sistema na teoria da ação estruturação de teoria do comunicativa e na teoria do delito especificamente na discurso de Habermas. contribuição filosófica mais Na realidade é o marcante do Século XX, que próprio pensamento humano é a filosofia da linguagem e, a que se organiza ao redor partir, especificamente, de um destes fundamentos e o que de seus autores mais faz Vives é agrupar a importantes: Ludwig racionalidade penal a partir Wittgenstein. Mais precisa- dos jogos de linguagem expressos mente, a partir do chamado na ação e as formas de vida que segundo Wittgenstein, que é dão racionalidade prática às identificado com a postura de regras. Por outro lado, na seu trabalho fundamental, metodologia de apresentação Investigações Filosóficas, com o dos temas de parte geral qual o próprio autor refuta, afirma as realidades a partir em certa medida as da compreensão da conclusões de sua obra linguagem como acordo anterior, o Tractatus Logico- comunicativo que legitima as Philosophicus. normas segundo pretensões A proposta de de validade. Vives se assenta, por um Toda a filosofia lado, na filosofia da lingüística tem por base as linguagem do segundo contribuições do segundo Wittgenstein7, que produziu o Wittgenstein, a respeito do jogo de linguagem ou jogo 7 O Wittgenstein de Investigaciones linguístico. Wittgenstein parte Filosóficas, que assume o caráter de negar uma idéia central do dinâmico da linguagem com base seu Tractatus lógico-philosoficus nos jogos de linguagem que põem em conexão distintos quadros ou que expressa a busca da formas de mundo. linguagem logicamente Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 131
perfeita, substituindo esta pelo contexto onde ela se
idéia pela de que a essência da desenvolve e não com base linguagem está nos “jogos de em vinculações prévias. linguagem” (Sprachspiele)8, Pode-se dizer que uma com o que se verifica que o expressão é “apropriada, mas sentido do linguagem é dado só para este domínio estritamente circunscrito, não para a totalidade do que 8 Wittgenstein abre seu Investigações pretendemos representar”9. filosóficas citando uma interessante passagem de Confissões de Santo Coerentemente Agostinho: “Quando eles (os con sua teoria - de substituir a adultos) nomeavam alguma coisa e descrição por compreensión, conseqüentemente com essa por significação - , apelação se moviam até algo, o via e Wittgenstein opta por não dar compreendia que com os sons que pronunciavam chamavam eles um conceito de “jogo de aquela coisa quando pretendiam linguagem”, limitando-se a apontá-la. Pois o que eles oferecer exemplos, como dar pretendian se percebia de seu ordens e obedecê-las, movimento corporal: qual descrever a aparência de um linguagem natural de todos os povos que com mímica e jogos de objeto ou dar suas medidas, olhos, com o movimento do resto expor um caso concreto, dos membros e com o som da voz formular e testar hipóteses. fazem indicação das afeições da Estas situações evidenciam alma ao apetecer, ter, rechaçar ou que se deve ter presente no evitar coisas. Assim ouvindo repetidamente as palabras colocadas jogo de linguagem a em seus lugares apropriados em existência de uma descrição e diferentes orações, se dava conta uma compreensão, ou seja, paulatinamente de que coisas eram que os participantes deste signos e, uma vez adestrada a língua jogo compartilhem nesses signos, expressava com eles meus desejos”. Daí conclui determinadas impressões a Wittgenstein que esta passagem respeito da linguagem, ilustra “a essência da linguagem determinadas regras, humana”. WITTGENSTEIN, determinados pontos de Ludwig. Investigaciones Filosóficas. 2ª ed., trad. de Alfonso García Suárez y Ulises Moulines, Barcelona: 9 WITTGENSTEIN, Ludwig. Editorial Crítica, 2002, p. 17. Investigaciones Filosóficas...cit., p. 21. 132 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
partida, para que estes jogos supõe a existência de uma
façam sentido. Por isso se única regra a respeito da qual associa a linguagem a ações, e se possa convir, pelo que se o todo formado por estas chega ao paradoxo descrito relações é o chamado jogo de por Wittgenstein: “uma regra linguagem. não podia determinar Com isto logra nenhum curso de ação comprovar, desde logo, que porque todo curso de ação não é possível a pretensão de pode fazer-se concordar com uma linguagem unívoca de a regra”12. paradigma descritivo. Mas, há uma Mas os jogos de intensa relação entre regra e linguagem, como qualquer erro, já que só é possível falar outro jogo, são regidos por de erro onde uma regra não é regras10. As regras devem ser cumprida, ou seja, a violação compartilhadas entre os de um padrão determinado participantes do mesmo jogo entre correto e incorreto. A de linguagem. Para que uma reação de um participante do regra exista, é necessário que jogo de linguagem ao erro é algumas pessoas as obedeçam um importante marco da em algumas ocasiões. própria existência da regra e é Deriva disso que o único que se pode não é possível falar de regra considerar efetivamente uma quando é seguida uma única regra fundamental, ou seja: vez ou por uma só pessoa. A seguir ou não a regra regra supõe convir a respeito proposta. Wittgenstein13 o de sua existência11. Mas não expresa ao afirmar que “a resposta era: se tudo pode ser feito de modo a concordar 10 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaciones Filosóficas...cit., p. 359. com a regra, então também 11 “«Quando significamos algo, não pode ser feito de modo a é como ter uma figura morta (do tipo que seja), mas é como se nos dirigíssemos a alguém». Nos 12 WITTGENSTEIN, Ludwig. dirigimos àquilo que significamos”. Investigaciones Filosóficas...cit., p. 203. WITTGENSTEIN, Ludwig. 13 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaciones Filosóficas...cit., p. 319. Investigaciones Filosóficas...cit., p. 203. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 133
discordar”, pelo que como certos ou errados16.
“mostramos que há uma Tão somente é possível captação de uma regra que impor um “quadro de não é uma interpretação, mas mundo” através da persuasão que se manifesta, de caso a e não através de justificativas, caso de aplicação, no que se pois elas são relativas à chama «seguir a regra» e no própria “forma de vida”. que se chama «contrariá-la». Disso deriva um Com isto, é profundo interesse para o possível concluir que as discurso racional prático e regras são práticas14 logo, para o discurso jurídico, compartilhadas da vida diária pois o uso descritivo da que subjazem a certos jogos linguagem não é o único e de linguagem e que foram por isso, não é essencial ou moldadas por certas fundamental. Assim, não há convicções e regras razões para a redução da fundamentais. linguagem normativa ao Essas regras modelo descritivo e ademais, fundamentais constituem um a lógica dos “jogos de sistema que é um “quadro de linguagem” - inclusive no mundo”. Assim, justamente discurso jurídico - somente porque este “quadro de pode ser compreendida a mundo” é a configuração de partir da consideração de regras básicas que compõem outros fatores além de sua as “formas de vida” 15, eles não necessitam justificar-se e 16 Wittgenstein afirma que “a não podem ser valorados linguagem é um instrumento. Seus conceitos são instrumentos. Cremos então que não se pode ter muita importancia quais conceitos 14 WITTGENSTEIN, Ludwig. empreguemos. Como, Investigaciones Filosóficas...cit., p. 203. definitivamente, podemos tornar 15 “A noção de jogo de linguagem nas físicas com pés e polegadas do Investigações é correlativa à forma de mesmo modo que com metros e vida”. BUSTOS, Eduardo. Filosofía centímetros; trata-se somente de Contemporánea del Lenguaje I uma diferença na comodidade”. (Semántica filosófica). 1ª reimp., WITTGENSTEIN, Ludwig. Madrid: UNED, 1994, p. 18. Investigaciones Filosóficas...cit., p. 359. 134 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
expressão verbal, inclusive as Parte-se, pois, de
circunstâncias em que tem tratar de verificar como lugar. Com isto, para o atuam os processos sociais. estabelecimento do Habermas considera que o argumento jurídico, não são mundo social não é algo dado desprezíveis as circunstâncias previamente, mas algo dotado do caso concreto, nem de sentido, que depende, tampouco sua situaçao sempre, de interpretação e de histórica, social, cultural e validade. Por isso, as relações política. sociais são expressas segundo Por outro lado, pretensões de validade. Nesse as raízes da idéia de «ação sentido, observa Jiménez comunicativa» de Habermas se Redondo: encontram situadas principalmente na Filosofia “sempre que da linguagem proposta por tratamos de nos entender com Wittgenstein17. Já de entrada alguém sobre algo (ser seres esclarece Habermas18 que seu dotados de linguagem intento não coincide com “o implica, pois, habitar três interesse metodológico por mundos, o subjetivo, o uma fundamentação das objetivo e o mundo social do ciências sociais em uma teoria sentido), sempre que da linguagem”, como seria o pronunciamos ainda que só caso do estabelecimento de seja uma frase para coordenar um “conceito de ação” mas com o próximo nossos sim o oferecimento de uma planos de ação, […] não “teoria da sociedade”. temos alternativa além de pretender inteligibilidade para nossos meios de expressão, 17 En ese sentido, VIVES ANTÓN, verdade para aquilo que Tomás Salvador. Fundamentos del dizemos sobre o mundo ou Sistema Penal. Valencia: Tirant lo para aquilo que implicamos Blanch, 1996, p. 195. sobre o mundo objetivo, 18 HABERMAS, Jurgen. Teoría de la correção para nossa própria acción comunicativa. Vol. I, trad. de Manuel Jiménez Redondo, Madrid: ação de falar ou para o que Taurus, 1987, p. 9. fazemos falando e veracidade Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 135
para o que dizemos enquanto teleológicas dos participantes
expressão do nosso para que se possa constituir pensamento”19. uma interação”. Este caráter O propósito de compartilhado do entender-se, levado a cabo entendimento lingüístico por um processo de distingue os atos de fala das comunicação através da comunicações não verbais, linguagem é o sentido não apenas por sua expressão primário da linguagem e por reflexiva e autoexplicativa, isso, deve estar presente em mas também pelo objetivo todas as formas de emprego que persegue de buscar da linguagem, ou seja, em sentido. Por isso, os atos de todos os processos de fala ultrapassam a condição socialização. Assim, todo o de entidades ontológicas e processo de socialização não podem, ser entendindos depende de uma “ação simplesmente desde um coordenada mediante um ponto de vista causal22. emprego da linguagem com Mas Habermas23 as características se adianta em afirmar que “o 20 assinaladas” . modelo comunicativo de ação Habermas21 não equipara ação e propõe que “o entendimento comunicação. A linguagem é lingüístico é só um um meio de comunicação que mecanismo de coordenação serve ao entendimento, da ação, que ajusta os planos enquanto que os atores, ao de ação e as atividades entenderem-se entre si, para coordenar suas ações, perseguem, cada um, 19 JIMÉNEZ REDONDO, Manuel.Estudio Preliminar a la obra determinadas metas”. Fundamentos de Derecho penal, de Tomás S. Vives Antón. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996, p. 72. 22 En ese sentido VIVES ANTÓN, 20 JIMÉNEZ REDONDO, Tomás Salvador. Fundamentos...cit., Manuel.Estudio Preliminar...cit., p. 72. p. 192. 21 HABERMAS, Jurgen. Teoría de la 23 HABERMAS, Jurgen. Teoría de la
acción comunicativa...cit., p. 138. acción comunicativa...cit., pp. 145-146.
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Definitivamente, “a ação Assim, aparece a
comunicativa designa um tipo idéia de que “do conceito de de interações que vêm seguir uma regra deriva um coordenadas mediante atos conceito de capacidade de ação, de fala, mas que não conforme o qual um sujeito coincidem com eles”. Para a) sabe que segue uma regra Habermas24 “o entendimento b) (se) nas circunstâncias lingüístico é somente o apropriadas está em mecanismo de coordenação condições de dizer que regra da ação, que ajusta os planos está seguindo, ou seja, de da ação e das actividades indicar o conteúdo teleológicas dos participantes proposicional da «consciência para que possam constituir de regra»”26. uma interação”. Resta assim, O que sim, deriva desenhado o conceito de ação destas conclusões, é que comunicativa de Habermas, Habermas25 pode, a partir que vai mais além da simples disso, estabelecer a diferença idéia de um movimento final, entre ação e o mero e a converte em uma movimento corporal, o qual, expressão de sentido. A ainda que faça parte da ação, diferença se situa no campo não pode ser confundido metodológico, pois a análise com ela. “As ações são da ação nas perspectivas realizadas de certo modo reducionistas, ao confundí-la mediante movimentos do com o mero comportamento, corpo. Mas isto debe ser reduzem seu campo a uma entendido no sentido de que idéia meramente empírico- o ator co-realiza esses descritiva do objeto, movimentos quando segue enquanto que uma uma regra de ação, técnica ou perspectiva da ação como a social”. aqui proposta, converte a tarefa em uma descrição das 24 HABERMAS, Jurgen. Teoría de la acción comunicativa...cit., p. 138. 26 VIVES ANTÓN, Tomás 25 HABERMAS, Jurgen. Teoría de la Salvador. Fundamentos...cit., pp. 193- acción comunicativa...cit., p. 141. 149. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 137
objetivações dotadas de portanto também ao da luta
sentido, exigindo a análise entre interpretações”29. Daí deste mesmo sentido deriva que a construção conforme as regras segundo jurídica “tem sempre também as quais se produziu27. o sentido de uma atribuição A ação de significado, ou seja, não se comunicativa é um fenômeno trata nunca de uma descrição dotado de sentido, por isso, de algo acabado que, com pode-se dizer que é um efeito, simplemente caiba produto de “um processo de passar a descrever ou definir, interpretação conforme mas sim sempre o trabalho regras”28. teórico tem um sentido Aparece aqui a prático, interpretativo e importância da teoria da ação aplicativo30”. para o direito. Habermas31 Não é possível reconhece que através do negar que o direito é um movimento corporal o agente processo social que se muda algo no mundo, mas expressa sob uma forma de entende que é possível linguagem que tem que estar “distinguir os movimentos conectada com os cânones com que um sujeito intervém gerais da expressão lingüística no mundo (atua primária, pelo que, “pertence instrumentalmente) dos ao âmbito da ação e por movimentos com que um consiguinte também ao do sujeito encarna um sentido e da interpretação e significado (expressa-se comunicativamente)”. Evidentemente é distinto o 27 “«os movimentos e as ações movimento físico em si de exigem conceitos básicos categorialmente diversos»: os estender a mão para o alto e primeiros estão sujeitos a nexos causais, enquanto que as ações são 29 JIMÉNEZ REDONDO, produzidas conforme regras”. Manuel.Estudio Preliminar...cit., p. 57. VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. 30 JIMÉNEZ REDONDO, Fundamentos...cit., p. 195. Manuel.Estudio Preliminar...cit., p. 57. 28 VIVES ANTÓN, Tomás 31 HABERMAS, Jurgen. Teoría de la
Salvador. Fundamentos...cit., p. 195. acción… cit., pp. 139-140.
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este mesmo movimento substrato, mas como sentido; e,
realizado pelo guarda de consequentemente, a trânsito ordenando que o determinação de estar ou não fluxo de tráfego se detenha. A diante de uma ação – e a do ação só pode ter sentido tipo de ação ante o qual se jurídico desde que está – já não se efetua com interpretada em conjunto parâmetros psico-físicos, com seu entorno. Logo, as mediante o recurso à valorações jurídicas só podem experiência externa e interna, ser consideradas como ações, mas tem lugar em termos de dentro do marco de seu regras, isto é, em termos significado. normativos. É a obediência a A consideração regras (e não um inapreensível da ação como expressão de acontecimento mental) o que sentido afeta o próprio permite falar de ações, em modelo cartesiano sobre o lugar do que as constitui qual se estrutura a teoria do como tais (o significado) e ao delito e logo, todas as contrário dos simples fatos”33. doutrinas aí contidas cuja Como se vê, não ancoragem se encontra nele. apenas a natureza da ação é Em especial, como aponta afetada, mas inclusive o tipo Vives32, a dotrina da ação e a de ação a que se refere. Logo, doutrina do dolo. saber se uma ação é omissiva ou comissiva, dolosa ou “A ação era imprudente, passa a depender concebida ontologicamente, da análise de regras de como algo que existe no validade segundo as quais tal mundo, e ocorre, no ação expressa seu significado. pensamento de autores muito E de conseqüência, saber, por significativos, a entender-se, exemplo, se houve uma não como o que os homens tentativa de delito, não pode fazem, nas como o significado reduzir-se a uma mera análise do que fazem, não como ontológica ou psicológica da
32 VIVES ANTÓN, Tomás 33 VIVES ANTÓN, Tomás
Salvador. Fundamentos...cit., p. 197. Salvador. Fundamentos...cit., p. 197. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 139
conduta do autor, mas se estrutura a validade do
dependerá, isso sim, de uma sistema normativo34. verificação do sentido A fundamentação expresso na ação, também normativa do Direito no através de uma análise de modelo discursivo se regras de validade. estrutura em um conceito Em termos espe- procedimental de cificamente jurídico-penais, racionalidade, segundo o qual esta fórmula, ademais de somente podem ser legítimas superar o modelo finalista as normas que mereçam tal vinculado especificamente à reconhecimento por parte filosofia da consciência, dos seus destinatários, através igualmente se afasta, por de um processo de superação, das idéias comunicação que garanta a funcionalistas, no sentido de expressão de vontade 35 propor as soluções para as racional . questões penais em termos de Adotada a ação e não em termos de perspectiva de entender que a sistema. criação da norma se dá não Além disso, a só no processo de proposta metodológica do criminalização primária, mas discurso habermasiano principalmente no processo contempla uma concepção de de criminalização secundária, comunicação completamente é de reconhecer que o diferente do sentido deste modelo discursivo resulta em termo no âmbito da teoria ampliação de garantias, uma dos sistemas, que serve de paradigma para o funcio- nalismo luhmaniano. A 34 De forma similar a análise de MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, comunicação aqui não é Carlos. Derecho penal económico y de la apenas instrumental, funcio- empresa...cit., p. 38. nando como veículo de 35 Veja-se HABERMAS, Jürgen.
efetivação das expectativas Direito e Democracia. Entre faticidade e
contrafáticas, senão que é a validade I. Trad. de Fábio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: verdadeira base sobre a qual Tempo Brasileiro, 2003, pp. 154 e ss. 140 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
vez que recruta a validade realização desta conjugação,
tópica, reclamando uma que é a concepção a respeito circunstância de reconhe- da liberdade de ação. cimento pela dialética do processo36. 1.1. A concepção A fórmula de significativa da ação. estruturação proposta por Vives se assenta em dois Vives parte da pilares fundamentais: uma concepção fundamental de teoria da ação e uma teoria da que a ação não pode ser um norma, conjugadas de tal fato específico e nem sorte que a norma pretende tampouco ser definida como ser válida para o o substrato da imputação reconhecimento de um delito jurídico-penal, mas sim expresso em uma ação. representa “um processo Acrescenta-se, porém, o eixo simbólico regido por de equilíbrio entre ambas na normas”37 que traduz “o significado social da conduta”38. Assim, para Vives 36 Importa destacar, nesse sentido, o equívoco de uma preconceituosa o conceito de ações é o e equivocada crítica usualmente seguinte: “interpretações que, endereçada ao método discursivo, segundo os distintos grupos sustentando-se que ela parte de de regras sociais, possíveis de uma suposta e inexistente igualdade dar-se ao comportamento de oportunidade entre partes para a formulação da validade. O humano”39 e, portanto, elas equívoco desta visão é mais do que deverão representar, em evidente, porque a postura aqui termos de estrutura do delito, adotada não presume um prius já não o substrato de um existente de igualdade, porque considera que nada precede a linguagem, que é a matriz da realidade. O que se afirma, muito ao contrário, é que a falta de 37 VIVES ANTÓN, Tomás realização do processo de inclusão Salvador. Fundamentos...cit., p. 205. do seu destinatário em igualdade de 38 VIVES ANTÓN, Tomás oportunidade discursiva impede a Salvador. Fundamentos...cit., p. 205. pretensão de validade da norma 39 VIVES ANTÓN, Tomás contra ele. Salvador. Fundamentos...cit., p. 205. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 141
sentido mas o sentido de um A expressão de sentido,
substrato40. porém, não deriva das Com isso, logra intenções que os sujeitos que diferenciar entre ações – que atuam pretendam expressar, são dotadas de sentidos ou mas sim do “significado que significados41 e comportam socialmente se atribua ao que interpretações – e fatos - que façam”43. Assim, não é o fim não têm sentido e mas o significado que comportam, tão somente – determina a classe das ações, descrições -. logo, não é algo em termos Por outro lado, o ontológicos, mas normativos. sentido de tais ações é ditado Vives o deixa claro com um por regras que as regem42. exemplo: Tais regras, porém, são reconhecidas como tais “[...] minha enquanto tenham seu uso compreensão de uma partida estabelecido, pois, somente de futebol depende de que assim podem determinar o conheça as regras do jogo e sentido de uma conduta. Ou de que, por conseguinte, seja, o reconhecimento da possa efetuar uma correta ação deriva da expressão de atribuição de intenções aos sentido que uma ação possui. movimentos dos jogadores: se desconheço as regras, não sou capaz de inferi-las e 40 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos...cit., p. 205. ninguém me explica, não 41 Com a palavra “sentido”, ou entenderei o jogo e não “significado”, Vives pretende saberei, em realidade, o que referir a teoria do significado como está ocorrendo ali (nem uso de expressões, que arranca do sequer poderei prever o que pensamento do primeiro Wittgenstein, do Tractatus, e tenta fazer um jogador que combina com a teoria dos jogos de esteja de posse da bola). Mas, linguagem, para cuja descrição mais uma vez as conheço e posso detida remeto a VIVES ANTÓN, fazer por conseguinte, as Tomás Salvador. Fundamentos...cit., pp. 208-211. 42 VIVES ANTÓN, Tomás 43 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos...cit., p. 213. Salvador. Fundamentos...cit., p. 214. 142 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
atribuições de intenção concreta intenção que o
corretas, nem sempre sujeito queira levar a cabo, qualificarei as jogadas (as mas sim do código social ações dos jogadores) com conforme o qual se interpreta base nas intenções que lhes o que faz”45. atribuo: v.g., se um defensor As práticas tem a intenção de afastar a sociais são pois, contingentes bola de sua área, mas acaba da ação e da intenção46. Fala- enviando-a ao seu próprio se de intenções já expressas gol, não direi que aliviou a nas ações e não defesa, mas sim que marcou determinantes delas. Por isso, um gol contra. As atribuições “os movimentos corporais de intenção encontram-se, não são interpretados como segundo o referido, ações por causa da presença encravadas no seguir de prévia o concomitante de regras e são construtivas do intenções”47, na realidade, é a significado, em termos gerais, existência de uma obediência mas não na forma de uma a regras que permite relação um a um: as regras, identificar o sentido que jaz que se materizalizam em na ação e inferir a realização atribuições de intenção, de uma intenção48. Logo, “há operam, com freqüência, uma intencionalidade externa, prescindindo do propósito de objetiva, uma prática social quem as segue ou infringe”44. constituinte do significado”49. Mas é também O fim fica certo que nem toda ação é claramente desvinculado da determinação da ação. A ação é identificada pelo sentido 45 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos...cit., p. 216. que lhe dão as regras segundo 46 VIVES ANTÓN, Tomás as quais se lhe interpreta. Por Salvador. Fundamentos...cit., p. 218. isso, “a determinação da ação 47 VIVES ANTÓN, Tomás que se realiza não depende da Salvador. Fundamentos...cit., p. 218. 48 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos...cit., p. 218. 44 VIVES ANTÓN, Tomás 49 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos...cit., p. 215 Salvador. Fundamentos...cit., p. 219. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 143
intencional50, o que, outra quanto dolosos, sendo que o
vez, comprova que o núcleo que identifica estes últimos – da ação não está na por certo – normativamente, intencionalidade, o que é a expressão de sentido que explica claramente o fracasso se traduz no compromisso do modelo finalista proposto com a produção do resultado por Welzel em explicar o típico, que não ocorre na delito imprudente. Ao imprudência. contrário, a propuesta de Os estudos de Vives, ao seguir o modelo George P. Fletcher, partindo filosófico de Wittgenstein, se de uma interpretação dos afasta de tudo isso para trabalhos de Welzel, apontam identificar a ação segundo o coincidentemente para um significado, as regras e a conceito intersubjetivo de obediência das regras, o que ação que tem exatamente o se, por um lado, reconhece mesmo perfil. que há uma relação interna Fletcher começa entre ação e intenção, de por sustentar que há uma modo algum determina que questão de fundo no Direito toda a ação, enquanto penal que é a decisão de expressão de sentido, deva como interpretar as pessoas consistir, necessariamente, na acusadas de delitos. Se os expressão de uma intenção51. tratamos como sujeitos ou Resulta, pois, que como objetos. Observa ainda em termos normativos, há que “os sistemas jurídicos tanto casos imprudentes variam segundo a atitude que mostrem a respeito dos acusados e condenados por 50 VIVES ANTÓN, Tomás um delito.”52 Salvador. Fundamentos...cit., pp. 215- 216. Fletcher 51 VIVES ANTÓN, Tomás desenvolve seu raciocínio Salvador. Fundamentos...cit., p. 223. fazendo uma breve análise Sobre a crítica ao modelo sobre as idéias dominantes a welzelizano veja-se VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos...cit., p. 222, 52 FLETCHER, George Patrick. especialmente nota 54. Conceptos básicos...cit., p. 77. 144 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
respeito do conceito de ação que substitua a idéia de
para concluir pela «explicação» do conceito. necessidade de percepção do Assim, conclui que o conceito significado53. Diz que a ação de ação demanda a foi primeiramente compreensão humanista de identificada com o seu significado movimento corporal para, contextualizado, cujas bases logo depois, agregar-se-lhe o já foram ofertadas pelo componente da próprio Welzel. voluntariedade. Porém, desde Para Fletcher55, aí começam os problemas, aos sucessores de Welzel pois cumpre identificar quando exatamente está presente a vontade. Para isso, diferenciação provém da filosofia alemã de princípios do século XX e se costuma admitir que essa especificamente o filósofo alemão vontade só é perceptível Dilthey, que distinguiu entre quando o sujeito verstehen (compreensão) e erklären efetivamente atua, o que (explicação). A idéia é que o conduz a um círculo vicioso. comportamento humano - em oposição a fenômenos naturais - só A proposta pode ser compreendido e não consiste na composição do explicado em termos científicos”. conceito de ação humana se FLETCHER, George Patrick. faça a conjugação de dois Conceptos básicos...cit., p. 90. 55 “Talvez o mais proveitoso da fatores: um alto grau de teoria de Welzel é pensar nisso mais contextualização na como uma teoria da relação entre a percepção da conduta e uma ação e a finalidade do que como «compreensão humanista»54 uma teoria da ação em si. A proposição de que um ato não pode ser compreendido 53 FLETCHER, George Patrick. independentemente da sua Conceptos básicos...cit., pp. 78-90. finalidade implica que o ato não 54 “Um humanista da compreensão pode ser separado da intenção do de ação exige que abandonar a idéia ator. ... Finalidade e ato estão de uma explicação científica que unidos; as duas dimensões do conceber a ação como produto de mesmo fenômeno não devem ser forças causais, mas a compreensão dissociadas e tratadas de como os seres humanos agem separadamente na análise da quando eles realmente fazem. Esta responsabilidade penal.” Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 145
preocupou mais intensamente O que é relevante
as conseqüências de sua não é só o elemento subjetivo teoria em outros âmbitos, final presente na ação delitiva, ainda que o próprio jurista senão melhor ainda o alemão insistia que seu conjunto de fatores que principal interesse consistiu produzem uma percepção e no estabelecimento de uma compreensão dos propósitos nova concepção de ação. Isto do sujeito. Os elementos é, mais que negar subjetivos que reconhecemos simplesmente a ação na ação têm origem em uma mecanicista, consistente em multiplicidade de atos mero «movimento corporal seqüenciais produzidos sob voluntário» adicionando o um determinado contexto. «domínio da vontade final», Na verdade, é da percepção e Welzel abriu uma nova compreensão do global das fronteira à percepção e circunstâncias relativas ao compreensão do propósito fato de onde se deduz sua do agente. Welzel percebeu qualidade final. que o homem atuava com Assim, o uma finalidade, mas o essencial não é explicar o que essencial deste argumento é o se entende por ação, senão fato de que se pode perceber apreender “a linguagem do a intenção e não o fato de propósito”57 o ainda melhor que dita ação contenha um “aprender quando as propósito. Em realidade, circunstancias nos permitem segundo Fletcher56 neste dizer que alguém quis golpear ponto é onde os trabalhos de a outro e não simplesmente Welzel “coincidem com dizer que o golpe foi outras tendências da moderna acidental ou foi dado Filosofia” como os distraidamente”.58 O postulados de Wittgenstein. importante da aportação
FLETCHER, George Patrick. 57 FLETCHER, George Patrick.
Conceptos básicos...cit., pp. 92-93. Conceptos básicos...cit., p. 93. 56 FLETCHER, George Patrick. 58 FLETCHER, George Patrick.
Conceptos básicos...cit., p. 92. Conceptos básicos...cit., p. 93.
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welzeliana foi impelir à Fletcher valora a
percepção das circunstâncias ação com os elementos que juridicamente são circundantes, na busca de sua traduzidas nos elementos do compreensão humanista, é delito. dizer, na busca do significado Tanto é que na que tal ação comunica. Com medida em que alteramos as isso, sustenta seu conceito tão circunstâncias, uma mesma longe da idea ontológica de ação tem distinta ação quando da idéia de interpretação. Se imaginar- fundo normativo. Situa sua mos um indivíduo que aborda ação na compreensão, na outro na rua, apontando-lhe transmissão de sentido que com um facão, perguntando ao seu interlocutor - “o que você quer?” - , certamente paralisados, mas é um pensaremos que se trata de compromisso que assumiram um assalto ou uma briga. Sem anteriormente, de assim embargo, a mesma situação permanecer. Existem inúmeros ocorrendo no supermercado, dados que sugerem que eles estão firmes em uma posição de atenção onde o indivíduo com o facão (seus uniformes, seu grupo de está atrás do balcão de frios, formação, a sua localização em vestido com um avental frente ao castelo, o horário, a branco e seu interlocutor do regularidade de sua conduta). outro lado, na fila para Todos esses dados sugerem que façamos uma seleção do mundo comprar carne, perde circundante, do contexto. Vejamos completamente qualquer agora o mesmo guarda, vestido relevância penal. O mesmo com traje de rua e colocado demonstra Fletcher com seu sozinho no meio de uma floresta. conhecido exemplo do Ninguém que passar por lá vai saber se ele é um paralítico, um guarda do Palácio de hipnotizado ou um robô que move Buckingham.59 os olhos. ... Observe que o mundo circundante e o contexto não são meios para explicar o 59“Com efeito, enquanto eles estão comportamento, mas para percebê- em serviço, os guardas do Palácio lo e compreendê-lo”. FLETCHER, referido parece que não se movem, George Patrick. Conceptos básicos...cit., mas não é porque eles estão pp. 90-91. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 147
produz a interrelação entre são decisões de poder e
sujeito e objeto. também determinações da razão. 1.2. A norma Esta perspectiva como expressão de uma demanda, naturalmente, uma pretensão geral de justiça. pretensão geral, algo para o qual vai dirigida a afirmação Do ponto de de validade normativa, com a vista da responsabilidade qual se pretende realizar um penal, a fórmula de processo argumentativo imputação consiste realmente racional. Esta pretensão geral, em um ato de contemplar a durante muito tempo, esteve conduta a partir da norma, mal proposta, focada em uma visando reconhecer a validade pretensão científica de de determinada norma para a afirmação de uma verdade. A afirmação de que a conduta é correspondência do fato à criminosa. Por isso, no que ordenação normativa refere à organização do pretendia afirmar a verdade sistema normativo, Vives do crime. propõe a substituição da É preciso discussão entre o ser e o rebaixar este nível de dever ser, entre o ontolo- pretensão. Não se afirma a gicismo e o deontologicismo, verdade com direito. O entre norma de valoração e máximo a que se pode aspirar de determinação, por um como pretensão geral da sistema que substitua a razão norma é à promoção de um técnico-instrumental pela resultado o mais justo razão prática60. ainda segundo possível. A pretensão de Vives61 as normas jurídicas justiça é, portanto, o valor possuem uma dupla essência: fundamental que guia todo o ordenamento jurídico. Isto 60Nesse sentido o reconhecimento porque, obviamente, o delito de MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, não é um objeto real, Carlos. Derecho penal económico e de a portanto, sua estrutura não empresa...cit., p. 52. 61 VIVES ANTÓN, Tomás S.. tem porque basear-se em uma Fundamentos...cit., p. 341. pretensão de verdade. 148 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
Obviamente, a utilidade, etc.”64, segundo
razão fundamental pela qual pretensões de legitimidade e existe o sistema jurídico é validade que só se pode responder a exigências de concretizar através de uma justiça62. O que pretende a justificação procedimental65, norma jurídica é ser em sentido habermasiano. essencialmente válida, cuja Tal justificação se pretensão obviamente não procede com o fim de atribuir fica satisfeita com a responsabilidade penal presunção de legitimidade mediante a comprovação formal. Também é certo que procedimental, primeiramen- não pode aspirar converter-se te da execução de uma ação em norma moral, pois ainda lesiva ameaçada de pena, uma que pretenda afirmar-se por si pretensão de relevância mesma e não em relação a expressa pela realização de um fim, porque não aspira ao um tipo de ação, logo a aperfeiçoamento humano, verificação de se a intenção mas simplesmente a gerir a que regia a ação estava ou ordem de coexistência não de acordo com as humana. Trata-se, definitiva- exigências do ordenamento mente, da assunção de uma jurídico, correspondendo a racionalidade prática em uma pretensão de ilicitude, substituição a uma em seguida, se aquele que 63 racionalidade teórica . atuou sabia que não poderia Mas, obviamente fazê-lo e poderia atuar de a pretensão de justiça se outro modo o que permite expressa segundo distintas identificar uma pretensão de exigências, “como segurança reprovabilidade e, finalmente, jurídica, liberdade, eficácia, comprovando se o castigo efetivamente era necessário,
62 COBO del ROSAL, Manuel e
VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. 64 VIVES ANTÓN, Tomás Derecho Penal. 5ª edição, Tirant lo Salvador. Fundamentos...cit., p. 482. Blanch: Valencia, 1999, p. 267. 65 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, 63 VIVES ANTÓN, Tomás S.. Carlos. Derecho penal económico y de la Fundamentos...cit., p. 481. empresa...cit., p. 49. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 149
revelando uma pretensão de que, ao mesmo tempo insere
punibilidade66. a dimensão de preservação do O resultado final componente humano – ainda é uma evidente conexão entre que seja normativamente direito e política derivada de estruturado – é a idéia de uma racionalidade procedi- liberdade de ação, que é mental que conecta a idéia justamente o ponto de união geral de Estado social e entre sua teoria da ação e sua democrático de Direito67. teoria da norma (os dois pilares básicos de seu sistema 1.3. A liberdade de imputação). Assim refere de ação como eixo Vives Antón: estrutural do sistema normativo. “A liberdade de ação constitui —como É necessário, implicitamente se mostrou até finalmente, deixar posto que agora— o ponto de união o elemento fundamental que entre a doutrina da ação e a orienta o esquema de Vives e doutrina da norma: pois só se os movimentos corporais não 66 VIVES ANTÓN, Tomás se acham inteiramente Salvador. Fundamentos...cit., pp. 482- regidos por leis causais, só se 483,Também MARTÍNEZ- há uma margem de BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho indeterminação que permita penal económico y de la empresa...cit., pp. 52-53. falar das ações como distintas 67 Veja-se evidências sobre isso em dos fatos naturais, é possível HABERMAS, Jürgen. Direito e pretender, por sua vez, que Democracia. Entre faticidade e validade estas sejam regidas por I....cit., pp. 170 e ss. Sobre a normas. a análise das normas utilidade da fórmula procedimental para a composição da teoria do como algo distinto da delito, veja-se VOGEL, investigação das leis da “Legislación penal y ciencia del natureza só tem sentido derecho penal (reflexiones sobre desde a pressuposição da una doctrina teórico-discursiva de liberdade de ação, que se la legislación penal”, in Revista de Derecho penal y Criminología, n. 11. converte, assim, no Madrid: Uned, 2003. pressuposto sobre o qual — 150 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
necessariamente—, deve girar uma oposição desta natureza
a sistemática” 68. tem que partir da admissibildade de uma É importante premissa não só abolicionista deixar sentado que a idéia de mas diretamente anarquista. a liberdade de ação de Vives no idéia de liberdade de ação despreza as condicionantes aqui proposta, se refere à humanas. Isto é importante, ação enquanto expressão de porque a partir das críticas um sentido comunicativo, ou deterministas de corte seja, enquanto forma de criminológico crítico, é linguagem, enquanto forma possível chegar à descabida de transmissão de um crítica de que a liberdade de significado, onde a própria ação como tal, não existe. validade das regras utilizadas Mas, a liberdade de ação à em sua interpretação qual refere é simplesmente determinam o contexto de aquela que permite identificar liberdade69. a ação como obra pessoal e A análise de não do acaso. Ou seja, uma normas se processa de modo possível proposta crítica de distinto da simples verificação corte determinista, para de fatos da natureza e afastar a idéia de liberdade de somente tem sentido a partir ação de Vives deveria partir de uma idéia de liberdade de de um absoluto determinismo ação. É que não se comprova na totalidade das atuações a liberdade de ação em bases humanas, com o que o empíricas, mas se trata de desprezível já não seria o conceber o mundo desde a mero conceito, mas a própria liberdade de ação expressa existência de um sistema de nela própria, que é o que imputação de permite o juízo de responsabilidade jurídico- penal ou inclusive um sistema 69 Com argumentos adicionais a jurídico enquanto tal. Assim, estes na defesa do conceito de liberdade de ação em Vives, RAMOS VÁZQUEZ, José 68 VIVES ANTÓN, Tomás Antonio. Concepcción significativa de la Salvador. Fundamentos...cit., p. 334. acción...cit., pp. 469 e ss. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 151
aplicabilidade de alguma Estado sobre o indivíduo não
norma. Ao contrário, ao tropeçariam com o limite reconhecer a ausência de tal representado pela dignidade liberdade, não é possível humana, que se baseia na pretender a aplicação de idéia de que o indivíduo é um nenhuma classe de ser capaz de escolha, regulamentação jurídica. ‘legislador no reino dos fins’ Nesse sentido, referem Vives para empregar a expressão Antón e Cobo del Rosal: kantiana. As garantias próprias do Estado de direito “Certamente, pareceriam desprovidas de pode produzir rechace a idéia sentido, e inclusive a própria de que se castiga sobre a base idéia de Estado de direito de uma indesmostrável seria absurda, pois em uma pressuposição de liberdade de sociedade governada segundo vontade. Mas, castigar não é a hipótese determinista não uma opção teórica, mas uma teria sequer porque existir opção prática. Ou se Direito” 70. presupõe que o homem é livre, e se lhe castiga pelas Afinal, o espaço infrações das normas que de normativização é livremente comete, ou se representado tão somente por prosupõe que não o é, e aquelas situações nas quais se então é necessário recorrer a pode ou não atuar. O que se esquemas causais (não realizaria de qualquer normativos) para dirigir sua maneira, a despeito de que conduta. Por insatisfatório haja ou não previsão que pareça castigar sobre a normativa e o que não ocorre base de uma pressuposição, de modo nenhum, a despeito mais insatisfatório resultaria de que haja normativização, governar a sociedade humana são âmbitos absolutamente como se se tratasse de um irrelevantes normativamente. mecanismo. O homem poderia então ser tratado 70COBO del ROSAL, Manuel e como um puro fenômeno VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. natural. Os poderes do Derecho Penal...cit., pp. 542-543. 152 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
Só é possível se estabelecer nem é uma questão a ser
uma norma a respeito de algo discutida no aporético âmbito que se possa ou não fazer. de competição entre livre Ou seja, o espaço normativo arbítrio e determinismo, mas é o espaço em que a liberdade sim uma questão relacionada de ação é um pressuposto. à própria existência de ação. Portanto, a Isto deriva de que a liberdade liberdade de ação é um não pode ser concebida de pressuposto necessário sobre mordo empírico, mas deve, o qual gira a sistemática de isso sim, ser reconhecida imputação71. como uma forma de ver o Resulta que para mundo72. Vives, a idéia de liberdade de ação que, situada na 2. As derivações em culpabilidade provocou um perspectiva. intenso e aporético debate entre o determinismo e o No tópico que livre arbítrio, a nada conduz. segue, aponta-se para as Assim, propõe algo vantagens que supõe a completamente distinto: que adoção do paradigma da a liberdade de ação não linguagem na formulação da fundamenta a culpabilidade, estrutura do sistema de mas a ação. A liberdade de imputação, destacando tanto ação há de ser o pressuposto aspectos criminológicos e da imagem de mundo que dá político criminais, quanto sentido à própria ação. elementos dogmáticos. Assim, o problema da liberdade não se 2.1. Perspectivas refere à esfera da criminológicas. culpabilidade como tradicionalmente se discute,
BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho penal económico y de la empresa...cit., p. penal económico y de la empresa...cit., p. 62. 63. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 153
A partir de que a que o Direito penal é, e passando
criminologia – em sua a ocupar-se de para que o vertente crítica – apontou Direito penal serve. seus holofotes para o próprio Entretanto, tal sistema punitivo, resposta foi ainda tímida, identificando-o como fonte porquanto preservou, na do crime, tornou-se essência, a fórmula discursiva insustentável que se das concepções pseudo- preservasse um sistema de científicas construídas na imputação anódino, baseado virada do Século XIX para o em uma pretensão de Século XX. verdade, em A proposta de condicionamentos pré- um modelo significativo, jurídicos como os conceitos ancorado na filosofia da de ação causal e finalista e linguagem, tem o mérito de evidenciou que a postura de dar um passo adiante na um esteta não serve para o direção de uma aproximação jurista. com a criminologia, ao adotar A atividade o discurso prático, ao trocar a jurídica move-se no campo da base kantiana da razão pura política, da decisão de caráter pela razão prática. axiológico, que não pode nem A perspectiva de deve sacrificar-se em prol de identificação da fórmula de qualquer coerência siste- imputação a partir da praxis, mática interna, menos ainda vale dizer, a partir da idéia ao amparo de uma pretensão central de fazer derivar o de afirmação científica. reconhecimento dos A reação a tal elementos do conceito do situação, porém, foi uma crime a partir das práticas guinada axiológica, havida sociais que os identificam, pela mão do chamado aproxima os resultados funcionalismo teleológico de daquilo que socialmente é Roxin, que tem o evidente efetivamente identificado mérito de mudar a pergunta a como crime. Ou seja, o respeito do Direito penal, estudo empírico do deixando de tentar explicar o fenômeno criminal realiza 154 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
uma alimentação direta do imputação resulta insusten-
sistema de imputação, sem tável, carente de funda- passagem pelo filtro mentação. científico. Portanto, para Assim, se para a que o juiz, diante do caso identificação das ações e concreto, possa fundamentar omissões, do dolo e da culpa, a imposição de uma pena, das justificações e torna-se necessário o recurso exculpações, o procedimento a uma linguagem que logre parte do processo de estabelecer um a comunicação do sentido com- comunicação com o destina- partilhado socialmente a tário do resultado do respeito de tais conceitos, há processo de criminalização uma clara aproximação dos secundário. Isso só se faz destinatários da pretensão de mediante a sintonia discursiva validade normativa com o seu entre o transmissor e o conteúdo. receptor da comunicação. Isto obriga, inclu- Resumidamente, sive, a uma mudança de a prestação jurisdicional passa linguagem. Se a compreensão a fazer sentido e sair do da validade da norma como esconderijo proveniente da pretensão de justiça para o desconexão discursiva que caso concreto se dá pela emana do linguajar técnico- compreensão do significado jurídico, pretensamente cien- de uma ação, as tífico. fundamentações judiciais A linguagem passam a exigir a prática não é isolante; ao demonstração disso. Tal contrário, propõe a inclusão demonstração demanda um do outro. exercício de expressão jurídica que só é possível pela 2.2. Perspectivas político- fórmula linguística de criminais. compartilhamento de quadros de mundo, sem o que, a No plano político comunicação simplesmente criminal o ganho é evidente. não se estabelece e a Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 155
Se as perspectivas capaz de uma auto-
funcionalistas lograram sustentação realizada pela comprovar a falácia do troca com o meio, através de cientificismo ontológico que inputs e outputs, segundo amparou as construções padrões de funcionalidade. clássicas até o finalismo, por Este ponto extre- outro lado, abriu passo à mo a que chegaram as normativização de caráter fórmulas normativistas só foi extremo. possível pela abertura de uma O alheamento a perspectiva que desequilibrou condicionamentos ônticos a relação entre norma e ação, promoveu uma abertura aos desta feita, em favor da juízos de valor que, pouco a primeira. pouco, deram passo à Como resultado, colocação da norma no colheu-se uma proposição centro do sistema. que traslada o eixo do sistema De fato, as de imputação do ser humano construções funcionalistas para a norma em si mesma. sistêmicas, alinhadas à pro- A perda é clara. posta de Jakobs, conquanto Não se pode assumam a idéia central de transigir com perspectivas de que imputar é algo que sistema de imputação que não provém de uma decisão e não sejam antropocêntricos. de uma constatação, chegam Menos ainda com sistemas a defender que o sistema que convertam pessoas normativo se auto-justifica. humanas em subsistemas psico- Ou seja, que o sistema de físicos74. imputação jurídico penal é A proposta do autopoiético73, portanto, modelo significativo, nesse sentido, representa o resgate 73 Veja-se, a respeito, JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte General. Fundamentos y teoría de la imputación. 74 JAKOBS, Günther. Sociedade, 2a ed., trad. de Joaquín Cuello norma e pessoa: teoria de um direito penal Contreras y Jose Luís Serrano funcional. Trad. de Maurício Antonio González de Murillo, Marcial Pons: Ribeiro Lopes. Barueri, São Paulo: Madrid, 1997, pp. 44 e ss. Manole, 2003, p. 10. 156 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
do humano através do geral de justiça, resultam
sentido. equilibradas ação e norma A linguagem é a mediante sua conjugação e característica central da ativi- não como superposição de dade humana e determina a uma sobre a outra como realidade das coisas. aconteceu sucessivamente A estruturação de com as perspectivas clássicas um sistema de imputação (que privilegiaram a ação sobre a base do significado só sobre a norma) e as afasta do plano ontológico, perspectivas funcionalistas sua pretensão de verdade (que privilegiaram a norma empírica, preservando a sobre a ação). importância da ação como expressão do que as pessoas fazem. 2.3. Do outro lado, a Perspectivas dogmáticas. base normativa de pretensão Há também, de validade segundo um como não, evidentes ganhos critério axiológico de justiça técnicos para o próprio incorpora a política, a idéia de sistema dogmático. decisão em contraposição à A dogmática se descrição, trazendo para a estrutura segundo sua discussão as razões e verdadeira funcionalidade que fundamentos. Porém, já não outra não é que a de permitir como meros argumentos o ajuste de uma norma a uma lógicos de coerência interna conduta segundo critérios de vinculados ao conhecimento, validade reconhecidos, cuja mas sim de argumentos análise bem pode ser concretos de racionalidade conduzida pela mão do prática, vinculados ao precursor da aplicação da reconhecimento. filosofia da linguagem em Finalmente, ao matéria penal, o Prof. Vives estruturar-se o sistema de Antón. imputação concomitantemente entre os pilares da ação como sentido e da norma como pretensão Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 157
Vives75 clássica que se identifica
estabelece que o ponto de como a possibilidade de partida da estruturação do agir de modo diverso, sistema é a relação entre a ancorada no livre arbítrio. norma e a ação que se Em realidade, Vives77 resume, segundo seu subtrai esta discussão do ponto de vista no âmbito da culpabilidade e reconhecimento do que diz que a liberdade é ele chama de “liberdade de pressuposto da própria ação”. ação e como tal, não pode ser afirmada ou negada, Se a ação é um mas tão só percebida. significado, um sentido, obviamente não está Desta forma, a regida unicamente por proposta é a reordenação normas causais. Liberta das categorias do delito dos grilhões da causalidade segundo uma perspectiva a ação é livre. Justamente que arranca da relação por constituir um descrita entre norma e significado de livre eleição, ação. Ao reconhecer uma a ação justifica o seu pretensão de validez controle por normas. Ele genérica da norma, Vives78 propõe então, que a propõe que as distintas liberdade da ação seja o pretensões que compõem eixo central da esta pretensão de validez organização do sistema representem as categorias penal76. do delito. Esta mudança de perspectiva tem efeitos 2.3.1. A pretensão de diretos na desconstituição relevância: o tipo de do perfil de culpabilidade
75Veja-se VIVES ANTÓN, Tomás 77 FLETCHER, George Patrick.
Salvador. Fundamentos...cit., p. 313. Conceptos básicos...cit., p. 313. 76 FLETCHER, George Patrick. 78 VIVES ANTÓN, Tomás Conceptos básicos...cit., p. 334. Salvador. Fundamentos...cit., p. 483. 158 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
ação e a antijuridicidade ou perigo ao bem jurídico,
material. o equivalente ao conceito clássico de antijuridicidade Como cate- material80. goria central do sistema de imputação, ponto de Os elementos partida da análise do do tipo de ação são delito, aparece não já a configurados ação típica, senão o tipo normativamente e não de ação, identificado como ontologicamente. É que se uma realização de algo que o tipo de ação é o interessa ao direito penal79. reconhecimento de um Deste modo, o tipo de significado, é certo que sua ação corresponde a uma configuração somente pretensão de relevância. pode ser normativa. Assim, a identificação de O conteúdo cada um dos elementos do tipo de ação se resume componentes do tipo a uma pretensão concei- consiste precisamente na tual de relevância, e uma valoração das circuns- pretensão de ofensividade. tâncias dentro das quais A primeira eles podem ou não ser equivale à adequada reconhecidos. compreensão lingüística da O problema definição típica pela lei da ação ou omissão torna- (tipicidade formal) e sua se então meramente conseqüente limitação aparente, na medida em pelo princípio de que se trata de identificar, legalidade em todas as suas circunstancialmente a vertentes. existência de ação ou A pretensão omissão tipicamente rele- de ofensividade corres- vante. ponde ao caráter de dano
79 VIVES ANTÓN, Tomás 80 VIVES ANTÓN, Tomás
Salvador. Fundamentos...cit., p. 484. Salvador. Fundamentos...cit., p. 484. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 159
Assim tam- vidade, que incorpora
bém a relação de causa- definitivamente a questão lidade, pois a identificação do bem jurídico à teoria do sentido de causa só é do delito, internalizando possível a partir de ao sistema o princípio de práticas, interpretações e intervenção mínima, de novas práticas81. modo que, ainda que uma conduta contemple com- A aferição dos pletamente o significado elementos subjetivos dos elementos da preten- especiais do tipo de ação são conceitual de não responde ao questio- relevância, ela só será namento a respeito dos criminosa se presente um processos psicológicos por ataque grave a um bem que passa o agente, mas jurídico importante para o sim à observação de suas desenvolvimento social da manifestações exter-nas, vítima. que não compõem o tipo desde um ponto de vista As vantagens conceitual, mas sim dogmáticas desta propo- substantivo. sição são várias. Não aparece Em primeiro no tipo de ação a intenção, lugar, a etapa inicial de já que se reconhece que as valoração, qual seja, a condutas podem ser verificação de se a conduta realizadas estando ou não sob análise é uma das que presente a intenção82. resultam relevantes para o Direito penal se faz por A pretensão um processo de valoração de relevância se completa que contrapõe o fato ao pela pretensão de ofensi- tipo tal como ele é. O tipo é um 81 Veja-se VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos...cit., pp. 283 e conceito, nada mais. Seus ss. elementos são aspectos 82 VIVES ANTÓN, Tomás que devem estar presentes Salvador. Fundamentos...cit., p. 252. 160 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
na conduta analisada reconhecer-se na conduta
dentro de um quadro de A, a produção do binário de sim e não, à luz resultado morte de B, já é de uma correspondência possível antever a conceitual. relevância de tal conduta em termos jurídico-penais, A estruturação antes mesmo de valorar se é muito mais lógica do que tal conduta foi produzida aquela que exige que se orientada por consciência identifique dados para e vontade ou por uma além do próprio conceito, simples má escolha de inferidos, pressupostos e, meios pelos quais agir. pior ainda, inacessíveis. É bastante Afinal, se o óbvia a evidência de que a dolo consiste em análise normativa de consciência e vontade, circunstâncias do caso nenhum dos conceitos para atribuir um móvel típicos contempla tais subjetivo pertence a um expressões. Do mesmo momento analítico poste- modo, não se define especificamente – até por rior à mera identificação da relevância da conduta. impossibilidade lógica – as circunstâncias de eventual Além de violação de dever de aproximar-se mais da cuidado. realidade do processo de formulação da imputação Portanto, na prática judicante, esta supera-se a ficção que opção contempla a consiste na pretensão de vantagem de aliviar a que seja possível aferir categoria da tipicidade de dolo e imprudência a sua evidente sobrecarga. partir da simples verificação da correspon- Finalmente, dência do fato à previsão deve-se observar que com legal. Não é difícil concluir a introdução da antijuri- que, por exemplo, que ao dicidade material no plano Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 161
da pretensão de ofensi- do ordenamento jurídico
vidade, incorpora-se defi- que seja traduzível por um nitivamente o resultado no compromisso para com a tipo de ação, afastando os produção do resultado. problemas que o finalismo A pretensão trouxe na questão do de ilicitude se desdobra na desvalor do ilícito tentado. intenção regente já não do tipo de ação, mas da existência ou não de um 2.3.2. A pretensão de compromisso com a ilicitude: elementos violação de um bem subjetivos do injusto e jurídico, que corresponde justificação. ao tipo subjetivo – assim A segunda entendido o dolo e a pretensão específica a imprudência – e, de outro compor a pretensão lado, a consideração a genérica de validade na respeito da exclusão da norma é a pretensão de ilicitude pela presença de ilicitude, que corresponde permissividades do a antijuridicidade formal sistema, que podem ser acrescida dos aspectos permissões fortes (causas de subjetivos do injusto. justificação) ou permissões Neste ponto, fracas (escusas ou causas de de um lado propõe Vives83 exclusão de que se faça a identificação responsabilidade pelo da intenção de violação da fato)84. norma, de realização de Os elementos uma ação ofensiva de um subjetivos referidos por bem jurídico não Vives compõem uma suportável pelas exigências “intenção subjetiva” que não define a ação, mas sim 83 Amplamente em VIVES permite ou não a ANTÓN, Tomás S. “Reexame do Dolo”, in Dolo e Direito penal. 2a ed., trad. de Paulo César Busato, São 84 VIVES ANTÓN, Tomás Paulo: Atlas, 2014, pp. 85 e ss. Salvador. Fundamentos...cit., p. 485. 162 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
persecução da conduta afastar a ilicitude com uma
realizada pelo sujeito. O permissão forte ou fraca. que se verifica aqui é a As permissões intenção a que alude o fortes – consistentes nas sentido da ação, vale dizer, tradicionalmente denomi- se a ação realizada nadas causas legais de manifesta o compromisso justificação – consistem de atuar por parte do em aprovações jurídicas da autor, caso em que haverá conduta, capazes de dolo, ou se há uma dupla afastar responsabilidade de ausência de compromisso: autor e partícipe e devem com o resultado típico e ser analisadas sistemati- com possibilidade de camente afastando a evitá-lo, caso em que está ilicitude por razões gerais e presente a falta de dever em todos os casos. de cuidado que caracteriza a imprudência, isso sim, Por seu turno, analisada aqui desde um as permissões fracas ponto de vista eminen- congregam de um lado as temente subjetivo, já que a tradicionalmente análise de violação do denominadas causas legais dever objetivo já figura na de exculpação e por outro pretensão de relevância. as causas supra-legais de exculpação ou justificação, No que tange congregando um ponto à antijuridicidade formal, aberto do sistema, que Vives85 propõe a realização permita integração analó- de uma dupla verificação: gica para fins de exclusão da presença de causas de da pretensão de ilicitude. justificação e de exclu- Outrossim, trata-se de dentes de responsa- uma exclusão tópica, bilidade, por entender que porque deve ser analisada o mesmo fundamento caso a caso, afastando a conduz o legislador a responsabilidade penal, porém preservando 85 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos...cit., p. 485. eventual responsabilidade Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 163
extra-penal e excluindo a pretensão de ilicitude, por
responsabilidade do autor, ser igualmente uma mas preservando a de prospecção negativa eventuais partícipes. permite a exclusão de tal pretensão por razões O maior objetivas – presença dos ganho com esta elementos objetivos de perspectiva de situar o uma permissão – ou dolo e a imprudência na subjetivas – ausência de pretensão de ilicitude é a contribuição subjetiva para evitação da bipartição das a prática do ilícito –. considerações subjetivas acerca do injusto. Também há um ganho na antecipação Se a análise da discussão das causas valorativa do dolo é legais de exculpação, concomitante à confor- consistente precisamente mação da ilicitude por na possibilidade de exclusão de uma permis- afastamento de conse- são, acaba a necessidade quências jurídico-penais ao de nominar um elemento subjetivo específico para inimputável em situação de inexigibilidade de as causas de justificação, conduta diversa. como pretendia a vertente finalista e ficam resolvidos 2.3.3. A pretensão de a priori as questões reprovação: o juízo de relativas às situações culpabilidade. objetivas de exclusão da Ademais das pretensão de ilicitude pretensões de relevância e como é o caso do disparo de ilicitude que se referem que acidentalmente evidentemente à ação, provoca a contenção de aparece a pretensão de uma agressão não reprovação, que se dirige percebida que sofreria o ao sujeito e se traduz em agente. Isto porque, a concomitante análise objetiva e subjetiva da 164 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
um juízo de consciência da ilicitude de
culpabilidade86. sua ação, que cuida em concreto da análise das Em hipóteses de erro de conformidade com o proibição. Aqui a análise postulado central da se reduz a se o sujeito construção de Vives, qual possui capacidade de seja, o da liberdade de reprovação (imputabili- ação, se reprova juridica- dade) e consciência da mente ao autor uma a ilicitude de sua ação. realização de um ato ilícito, em situação em que As lhe era exigível que se considerações específicas a comportasse de acordo respeito da inexigibilidade com o direito, porém, não de conduta diversa passam aqui no sentido do livre para a pretensão de arbítrio, senão no sentido ilicitude, sob a forma de de que a ação é permissões fracas. fundamentalmente a Isto permite expressão de um atuar importantes ganhos incondicionado pelo meio, dogmáticos, que não se pois do contrário, não restringe à já mencionada transmite este sentido, evitação de aplicação de senão o mero sentido de medida de segurança ao um acontecimento. inimputável em situação Esta pretensão de inexigibilidade de de reprovação se apóia em conduta diversa. duas condições: a O ganho mais imputabilidade, consis- importante aqui é de tente na verificação de se o ordem lógica e sujeito possui a capacidade principiológica. Se a de ser reprovado e a culpabilidade é um juízo de reprovação pessoal87, 86Veja-se VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos...cit., pp. 486- 87Veja-se, a respeito da reprovação 487. pessoal da culpabilidade, BUSATO, Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 165
não pode contemplar uma pergunta pessoal, de
juízos de valor voltados aferição individual. não às condições do Ao lado desta sujeito, mas de um modelo. capacidade geral de É fácil compreensão, situa-se a verificar a diferença lógica pergunta sobre a potencial entre as duas sub-catego- consciência da ilicitude, rias remanescentes na que individualiza os dados pretensão de reprovação ainda mais, buscando em face da lógica da saber a respeito das inexigibilidade de conduta condições sociais, políti- diversa, atendendo às cas, históricas, culturais e perguntas que se impõem educacionais do agente, para suas aferições. visando identificar se nas circunstâncias dadas A pergunta a concretas, era possível a respeito da imputabilidade ele saber que praticava um visa saber se, no momento ilícito. do fato, o seu autor era capaz de entender o Novamente, caráter ilícito do fato ou trata-se de uma pergunta determinar-se, pessoal, sobre condições genericamente, de acordo eminentemente com tal compreensão. individuais. Trata-se, A pergunta obviamente, de uma sobre a inexigibilidade da pergunta sobre o autor, conduta diversa é exatamente o oposto disso: o que se quer saber Paulo César. Introdução a um Direito é se na situação de fato, penal democrático. 4a ed., São Paulo: qualquer pessoa no lugar Atlas, 2013, pp. 181 e ss. Sobre a do agente faria o que ele fórmula de estruturação da culpabilidade como pretensão de fez. reprovação, veja-se BUSATO, Perceba-se Paulo César. Direito penal. Parte Geral. 2a ed....cit., pp. 521 e ss. que a pergunta aqui não é 166 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
sobre o agente, mas sobre de necessidade de pena88,
um modelo que é que deve fazer parte da representado por qualquer pretensão de validez pessoa. Aliás, se quer saber normativa, que pode algo a respeito de qualquer eventualmente ser pessoa menos o autor! O comparada com o que único padrão desprezado é alguns autores classificam o dado concreto. Ou seja, de punibilidade, porém, só não se quer saber do com conteúdo diverso. autor! Não se trata Portanto, da punibilidade em si, mas trata-se de uma pergunta de uma pretensão de sobre o fato: se naquela punibilidade. Ora, se o situação específica dos Direito penal produz pena, fatos, qualquer pessoa se uma ação penal agiria como o réu agiu. somente tem por objetivo a aplicação de pena, onde Se é uma esta não se aplicará, resulta pergunta sobre o fato, o completamente seu lugar lógico é exatamente no plano da desnecessário afirmar que o fato que se apura no ilicitude, que é fática e processo penal é crime. genérica e não da reprovação, que é pessoal Aqui já não se e individual. trata tão só da análise da presença ou ausência de condições objetivas de 2.3.4. A pretensão de punibilidade ou de causas necessidade de pena: pessoais de exclusão da punibilidade pena, senão que se Além dos inserem também as causas demais requisitos do pessoais de anulação ou delito, há uma pretensão afastamento da pena ao
88 VIVES ANTÓN, Tomás
Salvador. Fundamentos...cit., p. 487 Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 167
caso concreto, quer antes ocorrido foi um
derivadas ou não da lei. crime. A afirmação do crime procede somente da Trata-se, em sentença e é um verdade, de levar a qualificativo derivado dela extremo a aplicabilidade que se acrescenta ao fato. do princípio de proporcionalidade, que Sendo assim, claro, desempenha função não há crime sem sentença de marco abstrato nas condenatória. demais pretensões de Por isso, a validade e aqui se consagra exclusão da pretensão de concretamente. punibilidade afasta Esse é o completamente o crime e principal ganho. Se atrai não só a pena. definitivamente – em Há também conexão com o um ganho linguístico- funcionalismo teleológico comunicativo de caráter – a teoria da pena para prático, pois se há algo dentro da teoria do delito. que não faz o menor Com efeito, sentido para a coletividade não há o menor sentido em geral é que se afirme a em afirmar a existência de existência de um crime um crime onde não se para, em seguida, afirmar- pretende aplicar pena. se que não se lhe vai aplicar nenhuma pena em Bem visto, o função da presença de processo não é a apuração uma causa extintiva. Isto de um crime, mas a gera uma inafastável apuração de um fato. Isto impressão coletiva é assim em função do discursiva de impunidade. princípio de não culpabilidade. Apura-se, A prospecção enfim, o fato, visando a negativa aqui proposta – confirmação, pela restrita às hipóteses que sentença, de que o fato precedem a sentença, 168 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
portanto, incluindo a antropocêntrico89 que se
prescrição da pretensão havia perdido em alguns punitiva, mas não a modelos recentes de executória – se dá visando normativização exacerbada. a verificação da eventual Produz, ainda, a existência de situação que aproximação com a realidade exclua a necessidade de sociológica cotidiana, pena. correspondendo melhor à identificação criminológica do Com isso, a fenômeno delitivo. afirmação será a de que Político- sobreveio uma situação criminalmente, representa o que impediu afirmar que o resgate do pilar fato que vinha sendo antropocêntrico perdido pelo apurado pelo processo excessivo normativismo, e a fosse reconhecido como aproximação a uma razão criminoso. Desta forma, prática. perde sentido pensar em Finalmente, a impunidade. estrutura dogmática decorrente desta perspectiva 3. A modo de conclusão. assume bons resultados derivados de algumas Como foi construções normativistas possível notar, a proposição como a aproximação para da ancoragem estrutural com as teorias do bem sobre a filosofia da linguagem jurídico e as teorias sobre os oferece para a teoria do delito fundamentos da pena e ajusta uma concepção melhor a disposição das genuinamente democrática, na categorias do delito, com um medida em que preserva os interesses de todos e, ao 89No mesmo sentido a observação mesmo tempo, humanista, pois de Martínez-Buján Pérez, para resgata o eixo de construção quem “tal concepção situa o ser para um modelo humano no centro do sistema”. In MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho penal económico y de la empresa...cit., p. 36. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai.-ago. 2015. | 169
evidente ganho de lógica Centro de Estudios Penales de la
interna. Universidad de Antioquia, 1999. O presente BUSATO, Paulo César. Derecho trabalho apresenta tão penal y acción significativa. Valencia: somente um esboço do Tirant lo Blanch, 2007. potencial enorme de BUSATO, Paulo César. Direito possibilidades escondidas nas penal. Parte Geral. 2a ed. São Paulo: Atlas, 2015. dobras do modelo de estruturação jurídico-penal BUSATO, Paulo César. Introdução a derivado da filosofia da um Direito penal democrático. 4a ed., São Paulo: Atlas, 2013. linguagem. É uma mera incitação a que novos estudos BUSTOS, Eduardo. Filosofía críticos ou alinhados possam Contemporánea del Lenguaje I (Semántica filosófica). 1ª reimp., realizar a sintonia fina que, no Madrid: UNED, 1994. estreito espaço destas linhas COBO del ROSAL, Manuel e não foi possível tratar. VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Derecho Penal. 5ª edição, Tirant lo Blanch: Valencia, 1999. REFERÊNCIAS CUERDA ARNAU. “Limites BIBLIOGRÁFICAS constitucionales de la comisión por omisión”, in [Carbonell Mateu, UTILIZADAS: Juan Carlos - González Cussac, José Luis y otros directores y Cuerda Arnau, María Luisa – ALCÁCER GUIRAO, “Cómo coordinadora], Constitución, derechos cometer delitos con el silencio. fundamentales y sistema penal. Notas para un análisis del lenguaje Semblanzas y estudios con motivo del de la responsabilidad” in Estudios setenta aniversario del profesor Tomás penales en recuerdo del Profesor Ruiz Antón. [Emilio Octavio de Toledo y Salvador Vives Antón, Valencia: Ubieto, Manuel Guardiel Sierra e Tirant lo Blanch, 2009. Emilio Cortés Bechiarelli – Coord.], FLETCHER, George Patrick. Basic Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. Concepts In Criminal Law. New York: BORJA JIMÉNEZ, Emiliano. Oxford University Press, 1998. “Algunas reflexiones sobre el FLETCHER, George Patrick. objeto, el sistema y la función Rethinking Criminal Law. New York: ideológica del Derecho penal”, in Oxford University Press, 2000. Nuevo Foro Penal no 62, Antioquia: 170 | Revista Duc In Altum - Cadernos de Direito, vol. 7, nº12, mai-ago. 2015.
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