CAPITULO 22
O regime do precedente judicial
no novo CPC
José Rogério Cruz e Tucci?
SUMARIO: 1. PREMISSAS; 2, FDE 1988 EA CRESCENTE RELEVANCI 05 TRIBUNAS SUPERIORES 3.
ELEVANCI,ESTABIUDADE ESUPERACAO OS PRECEDENTES JUDIIS; 4. TECNCAS DE UNIFCAGAO
DA JURISPRUDENCE DE OBSERVANCIADO PRECEDENTE; 5.0 PROBLEMA DA EFICACA RETROATIVA DO,
PREEDENTE; 60 PREEDENTE JUDICIAL NO NOVO CPC; 7. GUSA DE CONCLSAO: E00 DE UMA
TEORA ERAL D0 PRECEDENTE JUDICIAL; 8 REFERENCIAS BIBLIOGRARIS.
“0 juiz ndo pode ser um escravo do passado-e um déspota do fu-
turo” (Arthur Goodhart, Precedent in English and Continental Law
and Case Law: a Short Replication, Law Quaterly Review, 50, 1934).
1, PREMISSAS
0 presente: artigo parte de-duas premissas basicas, extraidas da atual
experiéncia juridica. brasileira: a).0 ‘reconhecido: protagonismo. dos tribunais
superiores; e b) a auséncia de uma dogmatica consolidada sobre precedente
judicial.
2. CF DE 1988 E A CRESCENTE RELEVANCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Com a promulgacdo da Constituicao Federal de 1988 € dos intimeros textos
legais que lhe seguiram (v. g: Cédigo de Defesa do Consumidor, reforma da Lei
de Acdo Civil Piblica etc.), infundiu-se em cada brasileiro Um verdadeiro “espi-
rito de cidadania”. 0s cidadaos passaram a ser senhores de seus respectivos
direitos, com a expectativa de verem cumpridas.as-garantias que Ihes foram
entao asseguradas.
Observe-se ainda que também foram incrementados, a partir do inicio
dos anos 90, mecanismos processuais adequados a recorrer aos tribunais com
1. Advogado. Ex Presidente da AASP. Professor Titular e Dretor da Faculdade de Direto da USP. Coordenador
do Conselho da Presidéncia do CN) para a Disseminacdo Nacional da Jurisprudéncla Uniformizada.
445‘GRANDES TEMAS DO NCPC, v.3« PRECEDENTES
PARTE I~ PRECEDENTES NO NOVO CPC
maior efetividade, como, por exemplo, a ampliacao do rol dos legitimados 25
vos a manejar as acdes diretas de inconstitucionalidade, a ajuizar agdes (Ole,
vas em prol dos interesses difusos, a consagracao da autonomia e independe,
cia do Ministério Publico e a opcdo determinada por um modelo de assisteng,
judiciaria e de promocao de acesso a justica.
Na visdo insuspeita do socidlogo e jurista Boaventura de Sousa Santo
a redemocratizagdo € 0 novo marco constitucional, no Brasil, geraram maig
credibilidade a utilizagao da vertente judicial como alternativa valida para con,
quistar direitos. De forma natural, os instrumentos juridicos que jé existiam y)
Periodo autoritario, como a acao popular e a aco civil ptiblica, passarama sy
amplamente colocados em evidéncia no foro brasileiro.
Diante desse importante fenémeno, houve, como era notério, um verig.
Noso crescimento da demanda perante o Poder Judicidrio. Os numeros alarman.
tes sdo de conhecimento geral. E isso tudo agravado pela circunstancia de qu:
@ constitucionalizagao de um conjunto tao ousado de garantias, sem a conse.
Gao consistente de politicas pblicas e sociais correlatas, tem propiciado, sen
dtvida, maior judicializacao, dos conflitos.
‘Tem-se outrossim clara percep¢ao’ da ineficiéncia das agéncias regulado-
ras de servicos que também contribuem para a intervencio judicial. 0 recurso
aos tribunais para garantir 0 acesso a medicamentos e tratamentos médias
é constante. Nao é crivel que nos dias hoje muitos brasileiros tenham de iri
justiga para obter indenizacao por atraso de voo e extravio de bagagem, ot,
ainda, para forcar adequada prestacao de servico em varias atividades. 0 Po-
der Judicidrio esta se tornando um verdadeiro SAC - Servico de Atendimento ao
Consumidor.
0 sistema judicial passa, assim, a suplantar o sistema da administracio
piblica, a quem, por dbvio, compete sancionar as referidas falhas.
Chega-se mesmo a0 que poderiamos denominar- de “banalizacao de de-
mandas”, sem esquecer 0 papel de exator dos tribunais, na funcao substitutia
de ser o principal palco da cobranga.de tributos, diante dos milhares de exew-
tivos fiscais que abarrotam os escaninhos dos cartérios forenses.
Ressalte-se, a propésito, que, nestes diltimos anos, os nossos tribunals st
Periores passaram a desempenhar papel relevantissimo, por duas diferentes
razdes, Em primeiro lugar, pela necessidade de uniformizar a jurisprudence,
diante das incertezas e divergéncias de julgados, que. conspiram contra a se:
guranca juridica. S40 mais de 50 tribunais de. segundo grau, espalhados ns
diversos Estados brasileiros.
2. Para uma revolugdo democrética da justica, Coimbra, Almedina, 2024, p.23 ss.
446Cap. 21 +0 REGIME DO PRECEDENTE JUDICIAL NO NOVO CPC
Jost Rogério Guze Tucci
Em segundo lugar, pela “nova” tarefa, que passa também a ser carreada
a0 Judiciatio e que 0 coloca em destaque nos noticidrios, referente aos julga-
Mentos sobre crimes de viés politico, no combate a corrupcao de agentes esta-
tais e de grandes empresarios.
Ha alguns anos, a populacdo de um modo geral nao conhecia o nome de
nenhum ministro do Supremo Tribunal Federal. Atualmente, sdo conhecidissimos.
Ha de fato um controle social externo muito saliente da atividade jurisdicional.
Nao é possivel analisar, nos dias de hoje, o papel dos tribunais sem con-
siderar as interacdes entre eles e os meios de comunicacdo. Assevera, a res-
peito, Sousa Santos? que o “novo protagonismo judiciério decorrente de uma
judicializacao dos conflitos politicos nao pode deixar de traduzir-se na politiza-
40 dos conflitos judiciérios. Mas é dbvio que nenhuma destas transformacOes
sociais teriam retirado os tribunais da obscuridade e do siléncio a que desde
sempre estiveram remetidos se, entretanto, nao tivessem ocorrido mudancas
profundas, tanto técnicas, como politicas, no dominio das tecnologias, de in-
formacao € de comunicacao. Foi no bojo da expansdo desta indistria que os
tribunais se transformaram, quase de repente, num contetido apetecivel. A
placida obscuridade dos processos judiciais deu lugar a trepidante ribalta dos
dramas judiciais”.
Nota-se, pois, enorme influencia dos tribunais superiores - inclusive do ST)
e do TSE - nos outros poderes, seja na administracao, seja no legislativo.
3. RELEVANCIA, ESTABILIDADE E SUPERACAO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS
Nos horizontes do direito brasileiro, nao ha diivida de que, ao longo da
historia, a atividade judicial sempre desempenhou importantissimo mister, tan-
to no exercicio da pratica forense, quanto no proprio aperfeicoamento dogma-
tico de institutos juridicos.
Nenhum operador do direito, de época contemporanea, pode negara uti-
lidade-e eficiéncia dos precedentes judiciais acerca das varias teses que deve
sustentar na defesa de.um caso ou para fundamentar uma deciséo; qualquer
académico sabe da importancia do conhecimento da jurisprudéncia como um
dos mais poderosos instrumentos de persuasao.
£ simplesmente indispensavel, para 0 exercicio profissional, a consulta em
Tepertérios de julgados e em coletaneas de jurisprudéncia selecionadas por
matérias t6picas e/ou anotadas; estas, alids, com sucessivas ediges atualizadas.
3. Pora uma revolugtio democratica da justi, cht, p. 2
47>. “yy
“GRANDES TEMAS DO NCP . 3 PRECEDENTES
PaRTEI -PRECEDENTES NO NOVO CPC
0s préprios tribunais de um modo geral, Zelosos em difundir 05 seus
pectivos precedentes, disseminam-nos pela rede mundial de computadores,
até mesmo interagem e “dialogam’”, on line, com 0s usuarios, chegando a "ty
ponder consultas” pontuais sobre determinada questdo.
Diante da desmedida pletora de recursos que pendem de julgamento en
‘ossas cortes de justica, a experiéncia tem demonstrado que os acériins, a
de regra, séo fundamentados na jurisprudéncia, em particular, dos tribunai
superiores, fator esse que aumenta em muito a previsibilidade do resutagy
do processo.
Na verdade, a exigéncia de interpretacdo e aplicacao, tanto quanto posy.
vel, homogénea do ius positum tem efetivamente ocupado a atencao do legs,
lador patrio, inclusive, por certo, como meio de minimizar 0 afluxo exageragy
de demandas.
Ocorre que, com o passar do tempo, a mudanca dos paradigmas sori,
implica saudével evolucao das teses juridicas e, consequentemente, do posicig
namento dos tribunais. Isso significa que os precedentes judicias do passady,
sobre indmeras questGes, vao sendo superados por novas orientacies que
decorrem da dinamica do direito.
seja como for, é certo que tais alteragdes normalmente ndo s4o abrup
tas, até porque a uniformidade da jurisprudéncia garante a certeza ea pre. |
visibilidade do direito. Os cidadaos de um modo geral, informados por seus
advogados, baseiam as suas opgbes nao apenas Nos textos legais vigentes,
mas, também, na tendéncia dos precedentes dos tribunals, que proporcionan
Aqueles, na medida do possivel, 0 conhecimento de seus respectivos direitos,
Na verdade, a harmonia pretoriana integra o célculo de natureza econdnica,
sendo a previsibilidade que daquela decorre pressuposto inafastavel para 9
seguro desenvolvimento do trafico juridico-comercial: uma mudanca abrupta e
‘no suficientemente justificada da posi¢do dos tribunais solapa a estabilidade
dos negécios.
‘Ademais, a jurisprudéncia consolidada garante a igualdade dos cidadéos
perante a distribuicdo da justica, porque situagGes andlogas devem ser ju:
gadas do mesmo modo, sobretudo no Brasil, em que ha grande nimero de
tribunais, 0 tratamento desigual é forte indicio de injusti¢a em pelo menos um
dos casos.
Em suma, ao preservar a estabilidade, orientando-se pelo precedente ju-
dial em situagdes sucessivas assemelhadas, os tribunais contribuem, a um sb
tempo, para a certeza do direito e para a protecao da confianca na escolha do
caminho trilhado pela decisao judicial.
Em nosso pafs, na érbita da tutela jurisdicional, avulta, a respeito desst
Felevante temética, a importancia do Superior Tribunal de Justica, como core
48‘Cap. 21 +0 REGIME DO PRECEDENTE JUDICIAL NO NOVO CPC
José Rogerio Cruze Tuc
federal, cuja vocacao precipua é a de uniformizar a interpretacao e aplicacdo
do direito nacional infraconstitucional,
E tal inequivoca funcdo nomofilacica foi reiterada, em tom de exortacao,
pelo Ministro Humberto Gomes de Barros, em conhecido voto proferido no
agravo Regimental no Recurso Especial n. 228.432-RS, julgado pela Corte Espe-
cial: “0 Superior Tribunal de Justica foi concebido para um escopo especial:
orientar a aplicacao da lei federal e unificar-the a interpretacdo, em todo o Bra-
sil, Se assim ocorre, & necessdrio que sua jurisprudéncia seja observada, para
se manter firme € coerente. Assim sempre ocorreu em relacao ao Supremo Tri-
bunal Federal, de quem 0 Superior Tribunal de justica € sucessor, nesse mister.
£m verdade, 0 Poder Judicidrio mantém sagrado compromisso com a justica €
a seguranca. Se deixarmos que nossa jurisprudéncia varie ao sabor das con-
vicgbes pessoais, estaremos prestando um desservico a nossas instituicdes. Se
‘nds - os integrantes da Corte - nao observarmos as decisdes que ajudamos a
formar, estaremos dando sinal, para que os demais Orgdos judiciérios facam o
mesmo. Estou certo. de.que, em acontecendo isso, perde sentido a existéncia
de nossa Corte, Melhor sera extingui-la”.
Todavia, a despeito dessa premissa notéria, o exercicio profissional revela
que acerca de indmeras questdes importantes ha flagrante e indesejada insta-
bilidade nos precedentes dos tribunais superiores. E isso ocorre - 0 que é pior
num mesmo momento temporal e sem qualquer justificacao plausivel!
E indiscutivel. que 0 juiz no pode ser escravo do precedente judicial,
porque certamente haveria ai uma abdicacdo da independéncia da livre
persuasdo racional, assegurada pelo art. 131 do Cédigo de Processo Civil.
Contudo, se 0 tribunal resolver desprezar o precedente judicial cabe-lhe
« Gnus do argumento contrario. Gino Gorla’, em um de seus iltimos ensaios,
pondera, acerca desse verdadeiro dever, que seria até temerario permitr, sem
uma argumentacdo consistente, que um posicionamento jurisprudencial sedi-
mentado deixasse de ser aplicado em hipdtese similar.
Atutela do cidadao, que confiou no judicidrio, nfo pode jamais ser relega-
daa pretexto do poder discriciondrio da magistratural
4, TECNICAS DE UNIFICACAO DA JURISPRUDENCIA E DE OBSERVANCIA DO
PRECEDENTE
0 expressivo nimero de tribunais e a auséncia de uma dogmatica consis-
tente sobre precedente judicial acarreta evidente inseguranca juridica, diante
da divergéncia jurisprudencial acerca de indmeras teses importantes.
4 recedent gudicale, Enciclopedia giuridica tran v.23, 190, P2132,
49oo”
(GRANDES TEMAS DO NCPC, v.3 + PRECEDENTES
PARTE N-PRECEDENTES NO NOVO CPC
Atento a este significativo problema, de todo indesejado, o legislador pg.
trio estabeleceu - e continua legislando acerca da questao - intimeras técnica,
tendentes a uniformizacao da jurisprudéncia, visando sobretudo a assegurar;
harmonia de julgamentos.
Os arts. 476 a 479 do Cédigo de Processo Civil regram 0 instituto da unify.
mizagao da jurisprudéncia, cuja instauracao nao constitui faculdade, mas, sin,
dever do juiz.
0 escopo desse incidente processual, suscitavel, em. segundo grau, por
qualquer juiz da turma julgadora ou por um dos litigantes, € 0 de provocarg
prévio pronunciamento do tribunal acerca da interpretagao de determinadg
tese ou norma juridica, quando a seu respeito ocorre divergéncia.
Visando 4 mesma finalidade, destacam-se os embargos de divergénca,
que constituem um meio de impugnar acérdao proferido, no mbito de recursy
extraordinario ou especial, por uma das turmas, respectivamente, do Suprema
Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justica (art. 496, Vill, do CPC: “Sig
cabiveis os seguintes recursos: ... Vill - embargos de divergéncia em recurso
especial e em recurso extraordinario”).
Enfatiza, de forma precisa, 0 Ministro Humberto Gomes de Barros, a0 re-
latar os Embargos de Divergéncia no Recurso Especial n. 222.524-MA, que: “0s
embargos de divergéncia foram concebidos no escopo de preservar - mais que
0 interesse tépico de cada um dos litigantes - a necessidade de que 0 Tribunal
TMantenha coeréncia entre seus julgados”.
Se os érgios fraciondrios dos aludidos tribunais superiores dissentiren
sobre quest6es de direito federal, a missao constitucional que thes foi confiada
nao estard sendo cumprida. Assim, exatamente para reforcar a previsibilidade
¢ harmonia dos julgamentos e, até mesmo, a seguranca jurfdica, € que os em
bargos de divergéncia se tornam um importante instrumento para resolver as
inexoraveis divergéncias intra muros, ou seja, nos quadrantes das respectivas
cortes de justiga,
Como bem escreve José Carlos Barbosa Moreira’, “os embargos de diver
géncia visam afastar interpretacao divergente do sentido das normas positivas,
€m tese, nos drgaos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de
Justica. Essa é a razdo maior da sua existéncia em nosso sistema processval’.
Acrescente-se que, no Superior Tribunal de Justica, em consonancia coma
Tegra do art. 546, |, do Cédigo de Processo Civil, somente é admissivel a inter
Dosicéo de embargos de divergéncia quando um acérdao, proferido por uma
5 Comentirio ao Cédig de Process Cv v.5, 15 ed, Rio de Janeiro, Forense, 209, p. 642
450we ebeeresttererttrt cece, |
¢ap.21+OREGEDO PRECEDENT UDCA. Noneypce
José Rogerio Cruze Tuc
ges turmas, “em recurso especial, divergit do julgamento de outraturma, da