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Miguel Cardoso - À Barbárie Seguem-Se Os Estendais
Miguel Cardoso - À Barbárie Seguem-Se Os Estendais
2015
h
As manhãs seguintes
vêem-se de cima: terra
e depois terra
de cima plana
e o brusco regresso
de ruídos à vida do musgo
viver
em campo aberto
e aí ver-vos
mulheres ao vento
Ecrã a negro
Alarido então
Luz então
Clarão então
Luz Ah
Então luz
Então Ah
Então ruído
Ah barbárie
A barbárie disto tudo
já nas auroras
Isto é verídico
os ânimos
e os dias
as épocas através
e então riem
e eu rio
O tempo muda
Isto vai animar
e os deuses
e sem cigarros
a citar silêncios
o que é duro sem cigarros
e acabaram-se as raivas
os meus ânimos
os meus infernos à mão
Entrar na repetição
é como ir ao fim
do mundo comprar
tabaco e voltar
e ir já velhos
Tabaco e voltar
(entrar na repetição)
enquanto os bancos
nos levam as moradas
a lembrar Marte
a gloriosa ideia de Marte,
fomos ver
a terra mansa
e era áspera
as infâncias internas
o reverso dos álbuns de retratos
o registo das nossas muitas dívidas de sangue
depois de amores
atestados pelo esplendor da pólvora
e cantar:
e voltar
Perdoo-lhes tudo
em nosso redor
e nós infrutíferos
e por aí fora
a rir ao espelho
aragens ao redor
Vimo-nos extensos,
Americanos. Beatíficos.
E depois não
púnhamos vírgulas
onde não víamos
e chorar
Transportámos a voz
Não a colocámos
Regressámos ao real
ombro a ombro
com desatados artífices
de sombras, revisores de diários desportivos
com vastidão de sintaxe
e dançarinos que eram egípcios
íamos
sem saber como se trava nestes carris aéreos
e o vento vinha
e quero já agora
uma terra de blusas e blues
divides em dois
os dias na terra
Charles. Olson.
É como
Harpa. Tuba.
Charles. Olson.
É como
Flor e Erva
Ou Lágrima, Urro
Candeeiro, Verão
Chama-me Charles
mas leva-me Olson
a caçar
entre as pedras
mas chama-me
à noite para uma casa
o relento cansa
não se pode
ir com um Charles
à Rockland da nossa mente
mas Ah,
Charles,
não sei
onde fica Rockland
nem mesmo na minha mente
Tive um Verão
sem incêndios na vista
Chama-me e eu vou
Chama-me e eu vou
Chama-me e eu vou
que um dia
não nos salva
não nos leva
e será cedo
e será tarde quando
o canto começa
arrancando a voz
aos sons da rádio
é Domingo
à tarde estamos nós
a jogar às cartas de aviso de despejo
e fomos
inquilinos em quartos
por cima de leitarias
e fomos
o mundo depois
do mundo onde
o humano é estendido
à luz no estendal de tudo
Planura oh para lá
de Charles e de Olson
e os outonos eram
até a perdermos
e vou oxalá
chegar à elegia
lançando alguma luz
sobre as barricadas
que dividiam Paris de Paris
e engasgo-me
como Bataille
que tentava escapar à cabeça
(andamos sempre nisto)
é o que é isto
olha
ao relento
e o vento
6 na escala de Beaufort
pelos prados levando o verão
levantando as pontas à carne
deixando a alma no osso
um pau torto
é um instrumento de ventos para lá
da medida da extensão de tudo
floríferas
e por aí fora
Conhecemos rios
e os cantámos
lama na voz
não havia ouro
Joseph ensinou-nos
a assar cavalas em folhas de palmeira
ilegíveis contra o sol
e dos homens
que os ventos levavam
com as casas
correr do tempo
e quanto a paisagens
e largura de olhos
pela retina, ó
Helíades
, não me levais?
onde se dizia
Bem. E tu?
Bem.
e a janela as vezes
de um amor pelo mundo claro
às vezes
de cima para baixo
depois de degelos
sou tropical
Olho sempre
como do cimo de árvores
Ri-te pois
Mas depois
De descascar laranjas
Depois do bolinho, do café,
Depois de tudo,
Aqui entre chávenas
fios e fichas
aparelhos de precisão desmontados
cordéis, bocados
de fita e cola
Já expliquei: Ah clarão
Depois de tudo
Depois de consultar os índices
Depois de abrir dunas com um canivete
Depois de gargarejar
e pôr pensos nas tristezas mais óbvias
e todas as festas
amanhã serão poucas
dessas lembro-me
daquelas com mulheres em bares
à espera de boleia para canções
(andamos nisto)
bêbedas sobre dançar
bem no meio da guerra
agarrando mortos pela cintura
ou era estômago
passando o gume da barba pelo pescoço
e chão de flores
sob o linho de primaveras estrangeiras
oxalá
la la la
bem devagar
a oeste nada
já se sabe
mas a leste a tal leve luz
Sobrevivi
entra na boca
e que terra
que rias
que cais
tudo
em atmosferas tudo
terra então
o ar será varanda
O ar é a minha casa
O ar é a casa onde vou morrer
Venham
Venham aqui colher da minha cerejeira
como as tábuas
deste chão (e os ossos) vai rangendo
a História em certas partes do meu século
Como Brecht,
que por acaso foi poupado
e espalhou num diário fotografias esbatidas
universo frio,
mesa redonda,
ascensão e declínio,
deslocação do ênfase
Ah clarão
Preciso de um café
Morreu gente
Morreu muita gente para lá
Subo à secretária
Estou assim
Ponho as mãos
no intervalo das tempestades,
que os há
As nossas tarefas.
O mundo e as nossas tarefas.
Pois.
Vejo-os chegar daqui
Vejo-os em círculos
Era isso.
Eh-lá
Ezra Pound
Charles Olson
Eh
gramíneas
limbo
vias férreas
luz
e outras onomatopeias
ir e vir
(entrar na repetição)
r-r-r-r-r-r-r
êmbolo
bem conhecido dos antigos
e diziam-me: Eia-hô!
Eh-lá
e outras onomatopeias
das nossas necessidades
mas saberás
mergulhar a barba no lavatório
a um canto
terrivelmente frio da manhã
e imitá-los
a deuses
poetas de hoje
e mesmo povos inteiros
Eh-lá
Entro em delírios
e music-halls
e será deslumbrante
e será frio
deslumbrante e frio
e nada
Oxalá, digo-lhes eu
e outras onomatopeias
devagar
no delta do céu cinza
e avistava-se
o solo mato asfalto retalhado
descampados
casas várias
e jardins em redor
de raras divindades
outros declínios
sebes desfeitas
gente, terra
e dentro de portas
oficinas de pólen
e máquinas de vento
ou seria do tempo
e passa a rapariga
que treme e vira-se
como heroína muda
à espera de intertítulos amorosos
e o puto
que domina os la la las
dos discos em vynil dos pais
e ajeitando a gola
dar um mau jeito no momento de piscar o olho
atravessaram invernos
debaixo de cabeleiras
dentro de sermões roucos
e não sei
se cantam
as goteiras
ou as folhas de milho
e o resto é viver
onde há gente
movendo o hálito
cortando o espaço ao longo
ouvir de longe
uma história em torno de orquídeas
que tinha que acabar mal
ver gente
de pés pelas bermas
à espera
dos príncipes nos portos óbvios
e em voos iam
Experimentam um a um
todo o catálogo de solturas banais
como rasgar algibeiras com a rotação dos trocos
e perder horas cadernos e comboios
e caminham em frente
embora de costas
até às traseiras da luz
pelos Ahs
pelos ténues Ahs do início
efeito secundário
de entrar na história
a meio, depois
e então subir
a um verso inicial
seria isso
E estava bem.
Locomovemo-nos
isso já sabíamos
mas há ainda
a necessidade de arpoar músculos
e ir
em erro
terra adentro
inaudíveis
o que é um alívio
e pensar: isto
isto vai
como seres
respirámos
e outros nortes
outros suis
outros céus
de outras manhãs
e os ventos
a volver-nos pelos ombros
à espera de cair
e florimos
precisamente como a flor
no inverno bravo
Chegámos
e sofrendo já de amores
por tigres coxos na Índia
e levava as mãos
até planetas onde o tempo não chega
no comércio incerto
de azul por azul, verde por verde
fomos em suma
um salmo de Celan
e a partir daqui
da parte da tarde
psssst
era isto,
ó deuses?
Janeiro de 2015