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À BARBÁRIE
SEGUEM-SE
OS ESTENDAIS

À BARBÁRIE é uma edição &etc


produzida por Edições Culturais do Subterrâneo, Lda.
SEGUEM-SE Rua da Emenda, 30, sub. 3 – 1200‑170 Lisboa;
OS ESTENDAIS tel. 21 347 19 55
de Miguel Cardoso
Capa:
© do Autor Pedro Serpa

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Miguel Cardoso

2015
h

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Nós não somos deste mundo
Ruy Cinatti

à terra vai-se pela estrada em frente


Ruy Belo

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CINEMAS
VI NO AR
Manhã seguinte

As manhãs seguintes
vêem-se de cima: terra

plana, mansa e difícil


sertão por dentro vereda

e depois terra
de cima plana

e mansa, mas difícil

Nenhum incêndio na vista


uma leve luz uma leve luz

e o brusco regresso
de ruídos à vida do musgo

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Exterior relento e os ventos
volvem-me à História

onde vivi era uma vez

era uma vez


e os ventos volvem-me

uma leve luz

vereda por dentro sertão

onde não há hoje entrada para o poema

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De dentro do poema consigo ver

mover o cume aceso de ervas


alvas sob o céu extremo porém

de dentro do poema não consigo ver


as três mulheres ao vento na minha rua
puxando os cabelos da frente para trás

Puxando eternamente cabelos da frente para trás

Quero sair, descer

viver

em campo aberto
e aí ver-vos

mulheres ao vento

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então fim, corte

Ecrã a negro

Alarido então
Luz então
Clarão então

Corte então ruído então luz


Então alarido então clarão

Luz Ah

Não é a morte ainda

Então luz
Então Ah
Então ruído

Ah barbárie
A barbárie disto tudo

Nas traseiras as camisas


no inverno nos estendais

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as camisas nos estendais
a pedir albas
chuva, felicidade, isso

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então isto eu

inútil arado de terraço


a citar silêncios

já nas auroras

e uns miúdos debaixo da janela


trazem-me infernos ânimos

Isto é verídico

três crianças de infernos na boca


são os ânimos da minha rua inclinada

que agudos são os ânimos


que infernos são

os ânimos
e os dias
as épocas através

e então riem
e eu rio

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como a lâmpada estilhaça
ilumina de outra maneira

Calma calma aguaceiros

O tempo muda
Isto vai animar

Qual país perdido

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e as flautas das crianças não têm piedade de mim

e os deuses

devia ser isso

e sem cigarros
a citar silêncios
o que é duro sem cigarros

e acabaram-se as raivas

e sem raiva isto


é mais duro que sem cigarros

os meus ânimos
os meus infernos à mão

Saio à rua sim


para cravar versos

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Fume-se então até ao fim
filtro e tudo o verso

e o amor do fogo pela palha


e a órbita dos astros mortos

os trapos, desde ontem em lixívia

Entrar na repetição

e entre o verso e o seguinte

façam-se os saltos todos


que são belos
os membros que temos no ar

no meio das bibliotecas


são belas
as ginásticas antes de morrer

isso e depois regressa-se

é como ir ao fim
do mundo comprar
tabaco e voltar

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a casa
vê-la no seu período áureo

e ir já velhos

Tabaco e voltar
(entrar na repetição)

enquanto os bancos
nos levam as moradas

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e fomos

fios de palha a entornar da boca

os pneus a arder, pastorais no ar

a lembrar Marte
a gloriosa ideia de Marte,

astro desatado de nós


porém à nossa espera,

e fomos, pela simples razão

seguimos o trilho da fome


as rotinas de adeus dos deuses
que fazem as coisas para sempre

deixámos então a casa


às janelas mal vedadas

fomos ver
a terra mansa
e era áspera

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pois há muito não restituíamos
a parte da água que nos coubera

há muito lhe devíamos


a nossa parte de água

Li algures, pareceu-me certo


e por aí o país estava perdido

as infâncias internas
o reverso dos álbuns de retratos
o registo das nossas muitas dívidas de sangue

Os quintais entregues às sucessivas gerações

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A barba que crescia
permitia avançar pela fábula dentro

e avançar pela fábula


era não ser

aqui deste lado do muro o mesmo


que do lado de lá do mesmo muro

e anos depois voltar

depois de amores
atestados pelo esplendor da pólvora

e cantar:

Old cigarette papers


stuck to our pants
leaves in our hair

Leaves in our hair dizia-se


muito devagar
como na roleta russa que há na mente

e voltar

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a fazer contas às intempéries
a receber contas pelo correio

A terra é mansa, a terra é árida

As ventanias trazem coisas

Perdoo-lhes tudo

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É UM
TRAÇO
DE ALARME
Vimos o canavial
o arroz selvagem
o mel multiplicado

e na margem do Xiu shui


vimos um morteiro explodir
rente a uma nespereira

fez-se primavera e outono


de uma vez
caiu tudo

em nosso redor

vimos pontos de luz na lente da câmara


arranhões na película
fantasmas na máquina

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pinheiros a conversar com o vento

Vimos dar beijos de língua


em dentes postiços
de um lado ao outro da mesa da cozinha
ao som de vilas mineiras

Vimos vedações em torno


de um império de atum em lata

Vimos luzes nas fábricas vazias


nos arredores de almoços
a sul de cheiros e o sol

entrava na varanda e uma mulher


tinha o tacho ao lume
brando para a filha
ter comida para a semana
enquanto passava a roupa
ao frio na varanda
para não deixar o cheiro
do arroz chegar à roupa

e nós infrutíferos
e por aí fora

vimos reger grandes orquestras invisíveis


para levar gente mais depressa ao trabalho

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e fomos regidos por elas
e não se regressa, talvez se saia

para um Verão longo


como deuses cantantes
entre parêntesis

vimos nas trincheiras


o pescoço todo para trás

e éramos o que víamos

ou líamos os que viam


e víamos assim sem ver

a rir ao espelho
aragens ao redor

Vimo-nos extensos,
Americanos. Beatíficos.
E depois não

porque nos cortavam a vista


e fomos à volta e então

púnhamos vírgulas
onde não víamos

seria talvez isso

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e embalámos animais extintos
dores de rins, lâminas rombas
pedaços de vento, restos de peixe
e filhos e cerejas tudo em celofane
para mostrar aos colegas de escritório
coisas do nosso fim de semana

ensaiámos arrojadas evasões fiscais


imitando vastos mercados de rua

era uma manhã à solta

e mil anos de comércio emaranhados


entre adiamentos do juízo final

primeiras páginas por instrumentos de navegação


juncos em chamas por kilos de agasalhos
horas mortas por júlios vernes
e berlindes absolutos por iscas ao almoço

o que poderá ter um contexto

e as torneiras a levantar a voz dos lavatórios

e a demora na entrega de esconderijos


levava-nos à ciência de ver ervas a mover-se

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e vi um cardo

planta que não cabe nas fotografias

era um daqueles becos sem saída


para a pintura histórica

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Mas há os filmes

e fomos, a partir daí

corremos o fecho éclair


até abaixo
tirámos o cantil do bolso interior
demos um golo
voltámos a pôr o cantil no sítio

e dar uma volta ao edifício


para parecermos mais quando voltamos

e seguir pistas de som para a paisagem americana


até encontrar a música do que vinha antes

qual leve luz

e chorar

e não era das tílias


com que varremos a infância

nem do final menos feliz


dos brinquedos a corda

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Puxamos a corda
Corremos o fecho

Incluímos acessórios que possibilitam


e acessórios que não possibilitam

o que não está mal visto

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electrificámos
abrimos poços enxugámos os brejos
perguntámos porque tremiam as imagens

Transportámos a voz
Não a colocámos

Regressámos ao real

ombro a ombro
com desatados artífices
de sombras, revisores de diários desportivos
com vastidão de sintaxe
e dançarinos que eram egípcios

no meio do México a perder cabelo

íamos
sem saber como se trava nestes carris aéreos

ou para onde se vai


a ler ideogramas
do fundo do quintal
lembrando o Ohio da nossa juventude

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era sonoro

a cabeça cortada a meio


por lençóis húmidos

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Praticámos a escansão de varas
eram frias ocas como os dias
e fomos felizes por via única
de cheiro a alfarrobas

e enviámos cartas que demoraram


uma semana e mais e diziam “Anda”

era uma luz de presença

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Tivemos longas conversas sobre a erosão
e sobre Eliot indo e vindo

Lemos tragédias para saber


ir pela ribanceira abaixo

como ficar presos numa ilha


à espera que venha o vento

e o vento vinha

era medido pelo uso


mais ou menos custoso dos lápis de cor

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que venha
o vento, uma leve luz
e me leve

e quero já agora
uma terra de blusas e blues

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COM O
CINZEIRO
CHEIO,
AMANHECERAM
Sabes, Charles Olson
tens um nome
que atravessa estações

divides em dois
os dias na terra

Charles. Olson.

É como
Harpa. Tuba.

Charles. Olson.

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É como
Joalharia. Assombro.

É como
Flor e Erva

sob o céu nu de planícies

Ou Lágrima, Urro
Candeeiro, Verão

Chama-me Charles
mas leva-me Olson

a caçar
entre as pedras

dormir para lá das estações

mas chama-me
à noite para uma casa

o relento cansa

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Ah, Carl,

dizia Allen Ginsberg

não se pode
ir com um Charles
à Rockland da nossa mente

mas Ah,
Charles,

não sei
onde fica Rockland
nem mesmo na minha mente

mas irei para lá viver

Estou vivo vou


pisando as tábuas deste chão

Tive um Verão
sem incêndios na vista

e nem visitas tive


ao meu novo mundo

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Leva-me
Chama-me Charles

Chama-me e eu vou

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O relento cansa

e a guerra entra também na repetição

Chama-me e eu vou
Chama-me e eu vou

que um dia
não nos salva
não nos leva

O dia não nos salva


O dia não nos leva

quando muito traz um outro atrás

e será cedo
e será tarde quando
o canto começa

arrancando a voz
aos sons da rádio

que insiste em nos lembrar o calendário


e transcreve para sonatas as variações da bolsa

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e será cedo e será tarde, quando se parte

é Domingo
à tarde estamos nós
a jogar às cartas de aviso de despejo

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Tomei nota de promessas
de água e sabão
elevador criada de quarto
cacau pela manhã
surpresas em caixinhas
o regalo do iodofórmio

a Mitteleuropa ia já a mais de meio

e aqui estou entre estantes


a espantar frases, cortar unhas, e lembro-me

quando éramos inquilinos de um quarto alugado


por cima de uma leitaria
quando as leitarias davam visões 

e fomos

inquilinos em quartos
por cima de leitarias

e não tivemos visões

Celebrámos a evidente ausência de deuses


com shots de leite gordo de seguida

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passando assim à época seguinte

o conceito de época tinha então


começado a produzir efeitos

e fomos

bafo quente dentes frios 


que luz esta

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então o Novo Mundo

para lá dos metros


e métodos dos sulcos
dos ganchos que prendem
cabelos fazendo trilhos

de que falava Lévi-Strauss

o mundo depois
do mundo onde

o humano é estendido
à luz no estendal de tudo

onde a luz atira a matar


até por dentro

Planura oh para lá
de Charles e de Olson

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então atámos cordéis a ervas
para não tombarmos na sensatez

e os outonos eram

enquanto o ar solto esticava a respiração

até a perdermos

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Não sendo nós deuses deixámo-la ir

e agora estou aparentemente


sentado a comer lótus

abaulando o tronco para colher


as correntes mais quentes do ar

Voo baixo e tenho cócegas


à conta de meses a não cuidar do quintal

e vou oxalá

chegar à elegia
lançando alguma luz

sobre as barricadas
que dividiam Paris de Paris

que era matéria para pausas na respiração

e engasgo-me

como Bataille
que tentava escapar à cabeça
(andamos sempre nisto)

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e nos anos 30
andávamos nisto e Bataille
mais propriamente
de boca muito aberta
um inchaço no globo ocular
uma mosca que ia e voltava

o que dificultava o seu trabalhinho


lá na Bibliothèque

e colocava alguma pressão


nas vértebras cervicais
enquanto ele puxava os seus cinco kilos
e meio aproximadamente
para trás e para a frente

enquanto Helius passava


Helius passa

e ele tentava escapar


cheirando dedos grandes do pé
potes de mostarda
e oeufs pourris q.b.

enfim os veículos vários


do amor nos filmes de fuga de prisão

é o que é isto

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árvores para lá da cerca
dias a escavar túneis no ar

olha

a calma dos estendais

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e estendemos a vista
pelos campos ermos a sombra
sobre amigos nossos relógios de sol

bebemos para entrar pelo alento


para escrever cartas longas
o que é difícil

ao relento
e o vento

6 na escala de Beaufort
pelos prados levando o verão
levantando as pontas à carne
deixando a alma no osso

um pau torto
é um instrumento de ventos para lá
da medida da extensão de tudo

e o pau quatro, escala de Mohs

e as gramíneas enlouqueciam de vez

floríferas

e por aí fora

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casas escavadas
daninhas

erguiam-se para o rosto


eram arribas
a pedir mais erosão

Conhecemos rios
e os cantámos

lama na voz
não havia ouro

mexemos a colher no café


a intervalos
insistindo no flanco esquerdo

a dar corda ao peito

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e passámos sob abetos e vinhedos

chegámos demasiado tarde


claro
depois das uvas
depois das flores

já nem a tempo de balanço de perdas e ganhos

a tempo de ver halos nos cacos


de que estudámos a língua de vidro

Joseph ensinou-nos
a assar cavalas em folhas de palmeira
ilegíveis contra o sol

Deixámos de saber onde estávamos

Além disso a brisa

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a brisa passava ao largo dos pormenores

e dos homens
que os ventos levavam
com as casas

correr do tempo

e quanto a paisagens
e largura de olhos

quanto a balanças comerciais


e contagens de mortos

havia naquele tempo a companhia das lezírias

não sei se ainda lezírias

Não vejo lonjuras


que me passam as Helíades

pela retina, ó

Helíades
, não me levais?

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Que lezírias companheiros
não nos levam
nem ficam a fazer-nos
companhias de dança

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Imagino-me então

limitado lateralmente por tamarindos carcomidos


como em Fort-de-France outrora

onde se dizia
Bem. E tu?
Bem.

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TODAS AS
COUSAS ERMAS,
QUE IRRADIAM
A manhã
faz a tintagem química
dos meus humores a negro

e a janela as vezes
de um amor pelo mundo claro

às vezes
de cima para baixo
depois de degelos
sou tropical

Olho sempre
como do cimo de árvores

Isto sim é um cinema ideal

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O ângulo cego era o ângulo mais que certo

Ri-te pois

OK.OK, rio-me de trevas

Mas depois
De descascar laranjas
Depois do bolinho, do café,

Depois de tudo,
Aqui entre chávenas

A minha vida e umas colheres de café

Depois do degelo ser vivo

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e a manhã jingle
e a manhã jangle

bênção das peças soltas de canções

enquanto dou a volta aos meus domínios

fios e fichas
aparelhos de precisão desmontados

cordéis, bocados
de fita e cola

umas canções, Camões


já muito em pedaços

E cera, para as asas

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Caíste com estrondo no despertar

Já expliquei: Ah clarão

Afinal o café amaina

Depois de tudo
Depois de consultar os índices
Depois de abrir dunas com um canivete
Depois de gargarejar
e pôr pensos nas tristezas mais óbvias

Veste-se o casaco, finge-se o caminho

Ficaram todas as outras tristezas à vista

e todas as festas
amanhã serão poucas

o que daria também uma bela cantiga

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e frutos havia
vi-os
no Atlas por entre rostos
que eram más imitações de Zeppelins
por sua vez inventados
na Grécia muito antiga
que tenho na cabeça
(andamos nisto)

ou seria nas fotografias da FSA

dessas lembro-me
daquelas com mulheres em bares
à espera de boleia para canções
(andamos nisto)
bêbedas sobre dançar
bem no meio da guerra
agarrando mortos pela cintura
ou era estômago
passando o gume da barba pelo pescoço

e naturalmente o sol desaparecera

o sol desaparece também naturalmente na América

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no Harlem em Los Angeles Califórnia
os pés mexem-se
morre-se sem tempo para despir o fato
que há de ser precisamente a causa
da nossa morte em claro

e chão de flores
sob o linho de primaveras estrangeiras

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Não tardará a chuva

oxalá

serei gisandra nos telhados de Circe

onde não ascendo


senão talvez descendo

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era uma canção

la la la
bem devagar

É que eu não sei de caras e coisas concretas

Fora isso tenho


manhãs inteiras
a subir-me em contraluz

tudo por um fio de cuspo, dizia eu


e venha a viva voz, enfim, pode ser

Estou à esquerda de uns papéis


Estou na parte de cima da manhã

e nenhum incêndio na vista

a oeste nada
já se sabe
mas a leste a tal leve luz

e aos pés terra

terra partida, roda de fuso

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o relento cansa

e o arame onde o dia dança


segura-me mal, enjoo aragens

não chegarei hoje à alta voz

Mas que viva vista

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Não prendi os cantos
à língua e há vento
que entra vento que sai

Não se acostumam as pálpebras

Entra vento sai

Acho que isto é respirar

Sobrevivi

Estou à beira de um filho

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e também o ar
também o ar é terra

entra na boca

e que terra
que rias
que cais

tudo
em atmosferas tudo
terra então

à terra não se vai


em frente mas à volta

o ar será varanda

o raul brandão dos vindouros

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O ar é a minha casa alta
O ar é a minha morada ao redor
O ar é a minha terra levantada

O ar é a minha casa
O ar é a casa onde vou morrer

Hei de cuspir a minha casa e cair

e o dia em que cair


à terra
deitar-me-ei no ar

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Ao filho darei tudo
E não deixarei nada

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MAS DE
ABRANDAR O
TEMPO ESTOU
SEGURO
Enterro-me em ventos
até aos joelhos

Daqui vejo chegar o correio


sorvendo café agora frio

Em tempos pedi no talho


que batessem a carne até à luz
e bateram a carne até à luz

e abriram-se os dias em dois

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e hoje nem as vizinhas cantam para mim

Vou espiando os estendais


Vou cantando a estiagem sobre as hortas

Há a rumorosa tentação das vizinhas


Ah a rumorosa tentação das vizinhas

Cantam algures sem mim


E sem isso o que são os meus ouvidos

Venham
Venham aqui colher da minha cerejeira

Venham colher-me para fazer sons

Reaqueço chávenas e líquidos


Queimo a língua a prestações

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Um casaco para todos os tempos
todas as inclinações da luz

como as tábuas
deste chão (e os ossos) vai rangendo
a História em certas partes do meu século

E portas por onde fugir?

Como Brecht,
que por acaso foi poupado
e espalhou num diário fotografias esbatidas

escura oficina de tempos acesos

universo frio,
mesa redonda,
ascensão e declínio,
deslocação do ênfase

Ah clarão
Preciso de um café

Um casaco nas costas

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Um casaco nas costas de uma cadeira
Manda-me notícias do mundo

Um casaco nas costas de uma cadeira


Fala-nos da vida debruçada

Não faltam pregos nas paredes

e agora não há vizinhas


por causa de uma guerra que não vejo

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Devo ter sobrevivido a grandes guerras que não vi

Morreu gente
Morreu muita gente para lá

das cortinas da minha casa


e da força da minha lupa

Subo à secretária
Estou assim

sobre as tais ruínas

Ponho as mãos
no intervalo das tempestades,
que os há

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Tento chegar com o colarinho
aos pregos deixados nas paredes

Não faltam pregos nas paredes


e vou tendo este casaco

Músculos que ainda movem os joelhos


e um diário onde é tudo pardo

As nossas tarefas.
O mundo e as nossas tarefas.

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Há tempo
Haverá outros

Pois.
 
Vejo-os chegar daqui
Vejo-os em círculos

Não celebres então o dia


Não chegues ao seguinte
a ler lírica áspera
num cadeirão roxo acolchoado

Eles continuam a chegar


e tu, sinceramente, não vais fugir

Um homem veste o casaco,


põe-se a caminho

Era isso.

Mas a questão tem que ser posta


em linguagem mais natural

Eh-lá

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Eh-lá

Ezra Pound
Charles Olson

Eh
gramíneas
limbo
vias férreas
luz

e outras onomatopeias

engrenagens de ganhar tempo

ir e vir
(entrar na repetição)

r-r-r-r-r-r-r
êmbolo
bem conhecido dos antigos

era uma vez


era uma vez dizia eu

tinha o mundo todo dentro da voz

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a voz era agora
possível, depois do exílio,
depois de Camões me cantar
depois de usar avenidas novas
para caçar minhocas e sair de vista

Depois de laparoscopias de urgência


matemáticas côncavas
trânsitos, extermínios mínimos
e rotas até especiarias falsas

depois de Lisboa e de arrancar


as rosas dos ventos

Estou aqui feliz na tarde


Infeliz talvez no século

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POISA A LUPA,
CANSADO
Não me peçam que renove o canto
que tenho a voz
cheia de nervos de fim de século

Vou acompanhando o fraco progresso


nos processos de iluminação de montras
e a falta de revoluções no veludo

e aproveito para me ver ao espelho


com avenidas ao fundo
por mim abaixo

e tenho uma gravata estreita a direito


a tapar as correias da voz exposta

e diziam-me: Eia-hô!

Eh-lá

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fósforos
5 Euros
algibeira
versos

e outras onomatopeias
das nossas necessidades

É ranger de vez em quando


os dentes para não desiludir

Canções, nô mais, que já não sei que digo

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Aproveito este instante para o relatório da manhã:

Chegaram-me contas rubras


e um punhado de cartas que informavam:

Não serves para comandar o trânsito de odes.


Não dás para o comércio tão necessário de alegrias.

Não atinges os graves certos


Não sobes aos agudos da luz

Não acertas sequer


a roupa com o tempo

a chuva com o balde


as mãos com o fogo
o olho com o sexo
a língua com o doce
os pés com a música
o país com a gente

Como então chamar à praça os deuses necessários?

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Não serves para chamar
às praças os deuses necessários

isto estava escrito

Não tens voz para isso

Não cantas nem ruges


Não dormes nem sais à rua

Não és possível nem impossível

mas saberás
mergulhar a barba no lavatório
a um canto
terrivelmente frio da manhã

e imitá-los
a deuses
poetas de hoje
e mesmo povos inteiros

soprando para dentro do ralo


por uma palhinha

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Farei as primeiras partes de poetas
em orquestras de hélices
em hotéis à hora de jantar

tim tim tim tim


fazem os talheres
e alegram-me

como trocos a cair do bolso

como uma tira de céu a chamar o céu


uma tira de azul a chamar o azul

As nossas tarefas, os nossos gozos

Dai-me uma colher de plástico


tempo, um mundo amargo
e eu farei tilintar alto a língua
em cantos de cantinas de Lisboa

Eh-lá

Já estou no meio de odes

Entro em delírios
e music-halls

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Chegarei então pelo ruído repetido
mais perto do aperto dos dias

Saberei espumar um pouco


da boca depois da sesta
puxar os lençóis da cama e ir

ser deslumbrante sob candeeiros


e depois nada e depois
deslumbrante e depois nada

Ou ser extintor de imitações


de deuses, vocação honesta

mas na terra tudo arde

Dai-me então uma terra


e nela quem sabe viverei
ao alto ao lado de todos

e será deslumbrante
e será frio

deslumbrante e frio

agora sob o candeeiro


agora sob a sombra

e nada

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que o relento cansa

Isto sou eu a perder ilusões


e talvez a vencer na vida

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Não serei decerto deste tempo

Converso com deuses

Oxalá, digo-lhes eu

e outras onomatopeias

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POR ANTR’O
ESPESSO
ARVOREDO
e depois vieram as fábulas e nelas descia-se

devagar
no delta do céu cinza

e avistava-se
o solo mato asfalto retalhado
descampados

casas várias
e jardins em redor
de raras divindades

vidro aceso na tarde


iluminando os rostos
dos que levam sementes

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na boca para longe na hora
de medir insónias e crateras
arribas, valados e varandas

outros declínios

sebes desfeitas
gente, terra

que o vento solta


terra em terra

e dentro de portas
oficinas de pólen
e máquinas de vento

ou seria do tempo

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Passa o senhorio
que vê coisas
nas entranhas
da lei das rendas

e passa a rapariga
que treme e vira-se
como heroína muda
à espera de intertítulos amorosos

e tem a voz voltada


para quem a vê
primeiro de costas
logo ao subir da manhã

e o puto
que domina os la la las
dos discos em vynil dos pais

como um outono a ir em frente

passam e passam como um trailer


das memórias de Teixeira de Pascoaes
em fita gasta VHS

serão assim os instantes


depois da vida

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Tudo isto em pátios em torno
pátios de dia e soltos
ao vento às vezes
à dança cega com a tal
Nana em mês à rasca

nos pátios de fim do mês


e do princípio das histórias de fadas

e pátios para esperar


pelo regresso ao estado da economia

para entretanto ver


fios de água a perder a vida devagar
ouvindo as fulgurantes ambulâncias de perto

e estudar as pegadas de animais


velozes das 9 às 5

e esburacar até aos canos

e ajeitando a gola
dar um mau jeito no momento de piscar o olho

Pátios para dar largas à fita adesiva


fingindo que há remendo para as memórias

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pátios para aflorar assuntos
de flores pendentes
à luz de Londres lembrada

e a porra dos estendais


em tons de terra e halo

acesas costuras à vista

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que isto passa-se
afinal em Lisboa
como nos filmes
onde as cantigas
não batem certo
com os ossos fracos

ou com as bocas dadas à luz


dos campos de algodão à chegada
de vendedores de longe
ambulantes de virilha aberta

atravessaram invernos
debaixo de cabeleiras
dentro de sermões roucos

costas do lado do vento

e não sei
se cantam
as goteiras
ou as folhas de milho

mas queria saber

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como se canta
vivo de vez em quando

como se movem tão depressa


os cabelos da nuca

como nos filmes

e o resto é viver

no intervalo entre fotogramas

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SE FOR POSSÍVEL
VOAR SOBRE
TANTA ARIDEZ
Terrenos nem tanto vagos

onde há gente
movendo o hálito
cortando o espaço ao longo

sob arames por cima de arames


pelo meio
de arames e por dentro

e amigos para ver de lado


com o nosso melhor olho de vidro

e sons que são mapas


para ver através dos rostos

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então guardar lembranças do mato nas gavetas
como se viesse gente de visita à nossa vida

ouvir de longe
uma história em torno de orquídeas
que tinha que acabar mal

e ir, pelas ruas


a extrair brilhos inesperados da expiração

seguir até ao cais


mastigando musas importadas
de um minimercado agora fechado
na América

e ir, pelo aberto

ver gente
de pés pelas bermas
à espera
dos príncipes nos portos óbvios

nestes nossos mundos conhecidos

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e então alguns iam
dispensavam a perfeição do equilíbrio

e em voos iam

alguns que como nós


tomaram o gosto a cada bocado
veloz da respiração
e afeiçoaram-se a chocalhos
de infâncias esfoladas
que trazem presos aos calcanhares

e assim atravessaram a terra


esquecendo o estado do mundo

Experimentam um a um
todo o catálogo de solturas banais
como rasgar algibeiras com a rotação dos trocos
e perder horas cadernos e comboios

engenhos deixados ao tempo

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Antes de se despedir
os que vão
retomar o trilho da embriaguez
saltam, e voltam à terra

e caminham em frente
embora de costas
até às traseiras da luz

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E então investigar vestidos
depois de muito velhos
e viver no sorriso selvagem
de quem achou verbos em Tânger
para descrever o ar parado

e na Tânger que tenho na mente


cair sem romantismos

abocanhando potes à passagem


levando nos dentes as flores
como se fossem vidro estilhaçado

Hei de um dia quebrar caules


com a ciência ondulada dos mergulhadores

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e então cair com estrondo e bárbaros
e então ser a partir dos pés rudemente
desfabulados ferozes no solo acidentado

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vai-se a ver e somos deste mundo

embora não tenha havido manhã


em que o fosse do mundo de uma vez

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Olha como rodopiamos sobre os calcanhares
e damos jeitos aos pulsos
sabotando os usos da alegria

Como para além da corda ou arame


coisas úteis
para momentâneo alívio do chão
há a beleza dos trapos nos estendais

Penduro a vista ao lado dos trapos nos estendais

À barbárie seguem-se os estendais

Quando avistarem os estendais, é porque chegaram

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A isso chamamos os dias

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COMO ANIMAL
EM ESTAÇÃO
ADVERSA
Tenho reservas de júbilo
Viesse outro dia e verias

pelos Ahs
pelos ténues Ahs do início

a Carl, Charles, quem fosse

efeito secundário
de entrar na história
a meio, depois

dos efeitos secundários


de gastar auroras, seguir caminhos

ver a água subir da raiz à erva solta


e tomar o gosto aos atalhos
para amanhecer

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e chegar antes
e depois dos desastres

e então subir
a um verso inicial

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Bien après les jours et les saisons et les êtres et les pays

seria isso

e outrora experimentei dizer:

Depois vieram as manhãs bárbaras

e pus-me a ouvir as vizinhas


a conversar entre os estendais

E estava bem.

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Dizem que somos mortais

Locomovemo-nos

eis um desafio à topografia

e dizem que o Ártico anda quebradiço


e que os cometas cantam
lá onde

isso já sabíamos

mas há ainda
a necessidade de arpoar músculos

e ir

em erro
terra adentro

até ter um folga

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Os cometas cantam

inaudíveis
o que é um alívio

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MUITO DEPOIS
DOS DIAS
E DAS ESTAÇÕES
E DOS SERES
E DOS PAÍSES
Há maneiras de usar isto em nosso proveito
e acordar
em tons de verde, rijos de ossos
mas nus
velhos e fulvos

e gastar metade do fôlego


a lavar os dentes,
voltando ao início

e pensar: isto

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no tempo em que vai e vem
mais um destes outonos

isto vai

É certo que me sabia bem


um daqueles verdadeiros inícios

Mas chapinhar também é bom

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Seja como for, depois vêm as coisas que se seguem

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e virá talvez o dia
em que de uma frase a outra

uma coisa acaba outra começa

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bem vistas as coisas

como seres
respirámos

os espaços acima do norte e sul da Califórnia

e outros nortes
outros suis
outros céus
de outras manhãs

e os ventos
a volver-nos pelos ombros

Acumulava-se tudo o que não vivemos


avistava-se a linha de chegada

e começava a ser difícil imaginar-nos

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então andamos pelo chão
como em altos muros

à espera de cair

e florimos
precisamente como a flor
no inverno bravo

Rangemos como anjos de joelhos


na planície da luz demasiada

Aprendemos a contar por cardumes


no abrigo de uma paragem de autocarro

Usamos emaranhados de árvores


como sismógrafo e despertador
avôs como migração intercontinental

Passámos pelo fogo


Passámos pelos cabelos longos

Chegámos

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e a criança dizia
puta de vida esta

por outra palavras


sabendo já de mortes

e sofrendo já de amores
por tigres coxos na Índia

e levava as mãos
até planetas onde o tempo não chega

e assim sob uma tira azul de céu


e assim sobre uma tira verde de terra

no comércio incerto
de azul por azul, verde por verde

fomos em suma
um salmo de Celan

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Então corte,
ecrã a negro

esses regressos à História pela retaguarda

De manhãs estamos conversados

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e assim o princípio podia afinal ser

Quando acordou mais tarde num hospital da retaguar-


da, ensinaram-no a respirar de novo

e a partir daqui
da parte da tarde

talvez visitar a terra


a terra de rochas de recantos
que terei algures na mente

atrás dos trópicos tristes

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Depois vêm as coisas que se seguem

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POSFÁCIO

psssst

era isto,
ó deuses?

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por falar em deuses e assim, obrigado às leituras de alguns
amigos: ao Manuel A. Domingos, que fez 4165 kms para
ir a Pardilhó e voltar e lembrando-se de Assis Pacheco
lembrou-se um pouco de mim; à Mariana Pinto dos San-
tos, que me avisou de artifícios, me lembrou os lugares
possíveis e mandou agasalhos; à Margarida Vale de Gato,
pela pontaria dos seus pontos de interrogação; ao Miguel
Manso, que é uma das minhas casas longe e a quem ofereço
todo o meu melhor neorrealismo e Lisboas imaginadas; ao
Nuno Moura, que disse Ui, salvo erro, e me chamou e eu fui

O livro vai endereçado ao meu avô, com quem aprendi a


cantarolar pedaços de Camões e anúncios ao formidável
Formitrol entre a casa-de-banho e a mesa do pequeno-
-almoço. Fica sabendo que ainda cantarolo, e sintonizo-te
de manhã no meu rádio de cozinha.

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À BA R BÁ R I E SEGU EM - SE O S E ST EN DA I S

foi composto e paginado por Pedro Serpa


cabendo a montagem, impressão e acabamentos
à ____;
_______________

Janeiro de 2015

DEPÓSIO LEGA L N.º 383887/14


ISBN 978 -989 - 8150 -_ _-_

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