Você está na página 1de 22

São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

“Desafios para a interpretação no Direito Tributário (a problemática da


remissão)”. Revista Fórum de Direito Tributário, Belo Horizonte, ano 17, n. 101,
p. 9-25, set./out. 2019.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira

DESAFIOS PARA A INTERPRETAÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO (a problemática da


remissão)

Estamos em tempos de grandes dificuldades para a realização de


interpretações seguras das normas jurídicas pertinentes ao direito tributário, sejam
elas normas legais ou infralegais.

Aqui não se objetiva desenvolver um estudo da interpretação, averiguando


seus vários mecanismos, como os métodos literal ou gramatical, histórico, teleológico,
racional, ou suas consequências reducionistas ou expansivas, nem divagar sobre o
construtivismo, o positivismo, o formalismo ou qualquer escola de pensamento.

O objetivo aqui é abordar um aspecto específico da feitura da legislação e as


respectivas repercussões quando da sua interpretação, partindo da noção de que
exegese revela a substância da norma jurídica, subjacente à forma como ela está
plena
exprimida no direito positivo.

E não se trata mais das mesmas dificuldades que sempre se apresentaram


nesse campo, decorrentes da complexidade da legislação tributária e das constantes
falhas no emprego das melhores técnicas para sua confecção, mesmo após as
determinações emanadas da Lei Complementar n. 95, de 26.2.1998, destinadas a dar
maior precisão ao nosso corpo de dispositivos legislativos.

1
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Essa lei superior, promulgada para cumprir a ordem do parágrafo único do


art. 59 da Constituição Federal, costuma ser seguida por nossos legisladores e pelos
órgãos do Poder Executivo quase sempre apenas nos seus aspectos formais ou menos
importantes, como colocar o “NR” após algum dispositivo que seja alterado.

Por isso mesmo, esse descaso já mereceu duro protesto do Poder Judiciário
através do voto da Ministra Cármen Lúcia no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 4876 – DF (26.3.2014), quando verberou:

“A Lei Complementar nº 95, que é tão pouco lida no Brasil, e que é a lei que
afirma e afirmou como se devem fazer as leis, para que a gente superasse
formas de elaboração legislativa que querem se fazer desentender, ao invés de
se fazer entender, fixa, no artigo 11, inciso II, alínea "a", que: ‘Art. 11 - As
disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica,
observadas, para esse propósito, as seguintes normas: ... ‘”.

Os novos problemas para interpretação são desafios derivados de uma


forma de legislar de uso constante, mas que se tornou mais complicada perante uma
nova ordem jurídica que importou práticas contábeis internacionais que em boa parte
não se coadunam como nosso sistema jurídico e que interferem fortemente na solução
de problemas tributários relacionados ao imposto de renda das pessoas jurídicas e à
contribuição social sobre o lucro, além de, em menor escala, os pertinentes à COFINS e
à contribuição ao PIS.

Após mais de dez anos da implantação dessas práticas, mesmo após a Lei n.
12973, promulgada em 13.5.2014, ter tentado compatibilizar as normas legais
tributárias com a nova contabilidade, ainda convivemos com dificuldades para
interpretar a legislação, e constantemente nos deparamos com aspectos que antes
haviam passado despercebidos e para os quais não se encontram soluções seguras.

Não é intento deste trabalho abordar qualquer assunto específico, mas


trazer à consideração alguns aspectos de cunho geral que sempre se apresentam, e se
constituem nos mencionados novos desafios para a interpretação.

Refiro-me às incontáveis remissões legislativas, mas não apenas quando se


trata de alguma norma envolvendo a contabilidade, pois nem sempre elas têm a ver
com esse objeto, no qual apenas passaram a acarretar maiores dificuldades.

2
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

De fato, são corriqueiras as remissões que ocorrem nas leis através de


menções a disposições de outras leis, e também nos atos infralegais a disposições legais
ou de outros atos infralegais, inclusive de pronunciamentos técnicos do Comitê de
Pronunciamentos Contábeis, encarregado de trazer as regras contábeis internacionais
para dentro do Brasil.

A enorme volatilidade das práticas contábeis e o fato de que são baixadas


sem preocupação com as suas repercussões fora da contabilidade no ambiente
econômico que ela registra, cujas repercussões se manifestam algumas delas no campo
do direito privado e outras no do direito público, tornam ainda mais problemática a
compreensão do alcance das remissões legislativas, pois, evidentemente, uma norma
jurídica pode ter sido produzida tendo em vista uma certa prática contábil, e não se
pode ter certeza se a mesma norma acompanha as mudanças naquela prática. 1

A consequência é haver indagações quanto ao princípio da legalidade, ou


quanto à vigência ou validade das remissões, ou também quanto ao próprio significado
delas.

Por conseguinte, trata-se de um bom momento para revermos um dos


aspectos das leis e da sua interpretação, em seu caráter geral e não apenas
especificamente em relação às normas legais que interagem com os procedimentos
contábeis.

Este aspecto é o das remissões legislativas.

Em torno das remissões, além de muitas vezes haver dificuldade para


compreender o seu alcance, outra grande questão, sempre presente, é sobre o caráter
estático ou dinâmico da interpretação, que também se vincula decisivamente ao
sentido que se deva dar às remissões.

Sem descer a detalhes ou a casos concretos, mas para exemplificar e tornar


mais perceptível a problemática referida nos parágrafos precedentes, suponhamos que
uma norma legal tributária faça alusão pura e simples a patrimônio líquido de uma
pessoa jurídica, mencionado em outra norma que não o conceitue, e suponhamos que a

1
Quem está mais familiarizado com os problemas que estão sendo mencionados em torno da nova contabilidade,
sabe que a própria ordem geral do art. 58 da Lei n. 12973 não soluciona muitos deles, e até cria outros.

3
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

contabilidade registre no patrimônio uma receita que, de acordo com a lei, ainda não
esteja ganha. Nesta situação, a alusão a patrimônio naquela norma tributária deve ser
entendida como o patrimônio contábil ou o patrimônio jurídico, dado que um e outro
podem apresentar componentes e valores diferentes entre si?

Portanto, até aqui temos um problema de interpretação da própria


remissão, isto é, do seu sentido e alcance.

Agora suponhamos que se conclua que essa norma legal aluda a patrimônio
líquido contábil, a cuja conclusão se chega mediante a aplicação correta dos métodos de
exegese jurídica aplicáveis. E suponhamos que, após a remissão, na contabilidade
ocorra alguma modificação de prática que acarrete resultado diferente no patrimônio,
em comparação com o que se teria segundo a prática contábil que vigorava na época da
promulgação da referida norma legal de remissão. Nesta situação, a alusão a
patrimônio nessa lei deve ser entendida como ao patrimônio que seria refletido na
contabilidade se não tivesse havido a alteração no procedimento contábil, ou ao que
passou a ser refletido após o novo procedimento contábil?

Destarte, depois de a remissão ter sido entendida, agora o problema que se


apresenta é saber se ela acompanha as alterações do conceito remitido.

Se na maioria das vezes não se tem uma resposta segura, ou seja, uma
resposta que não admita entendimento contrário, ou ao menos uma resposta que,
sopesados todos os elementos disponíveis, se possa esperar vir a ser aceita por todos
ou pela maioria dos intérpretes, certamente para todas elas, e não apenas para a
maioria das vezes, não existem regras legais determinativas de critérios que possam
ser aplicados para se obter respostas, quaisquer que sejam.

Significa isto que em cada situação o intérprete tem que desenvolver todo
um trabalho de compreensão do ordenamento como se nunca tivesse sido feito antes,
pois nos exemplos acima, quando referidos a situações concretas, é possível que o
patrimônio líquido seja o contábil num caso e o jurídico em outro, e pode ocorrer que a
mudança de prática contábil não tenha validade num caso mas tenha em outro.

No enfrentamento de cada hipótese de remissão, os únicos recursos com


que se pode contar são os pertinentes à teoria geral a hermenêutica jurídica, aplicando-

4
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

os com o devido cuidado em cada caso, e sempre sem qualquer pensamento


preconcebido.

É em torno desses recursos que algumas considerações podem ser


apresentadas aqui, na esperança de suscitar o desenvolvimento do tema e, quiçá,
contribuir para a obtenção de resultados práticos positivos.

A primeira consideração gira em torna da própria remissão, seu significado


e suas formas de apresentação ou utilização.

Primeiramente, quanto à palavra “remissão”, embora tenha outros sentidos,


para o tema ora abordado significa o ato de se remeter ou se referir a alguma pessoa, a
alguma situação ou a algum objeto. Assim, entre outras possibilidades, faz-se remissão
à doutrina de algum jurista ou à decisão de um tribunal, e também se faz remissão a
uma norma legal.

A remissão pode ser verbal ou escrita e estar em inúmeras situações,


inclusive ser feita na lei. Aqui, por evidente, nos interessa a remissão legislativa, ou
remissão legal, de modo que adiante, ao ser mencionada a remissão, deve-se entender
que a referência é a ela, e não a qualquer outra remissão.

A remissão legislativa, ou remissão legal, é a que ocorre num texto legal (ou
mesmo infralegal de legislação), e pode ser feita por duas formas diferentes: ou por
menção a um conceito já definido ou mencionado em outra norma, ou por referência a
uma específica norma constante de outro dispositivo da mesma lei ou de outra. Em
mais ampla forma, a remissão pode ser feita a toda uma lei, ou mesmo a todo um
regime jurídico.

O conceito objeto da remissão pode ser relativo a um objeto, uma situação


ou uma pessoa.

Exemplo da primeira é o dado acima, ou seja, a norma faz simples remissão


a patrimônio líquido sem mencionar algum dispositivo legal em que ele esteja definido,
e exemplo da segunda forma é o de uma norma faça remissão a um determinado artigo
que trate e conceitue patrimônio para determinado fim. Neste caso, ela diz, por
exemplo: “o patrimônio líquido a que se refere o art. xxx da Lei yyy”.

5
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Portanto, a remissão pode ser feita por referência a um conceito (situação,


objeto ou pessoa) que não é explicitado, mas simplesmente referido porque já consta
em outro dispositivo legal, e também pode ser feita mais diretamente a um
determinado dispositivo legal.

Por esta razão, costuma-se dizer que a segunda forma é de remissão direta,
e a primeira indireta, sendo que esta tende a ser mais imprecisa e indeterminada do
que a outra, valendo acrescentar que a norma que faz alusão a outra é conhecida como
“norma de remissão” ou “norma remissiva”, e a outra “norma remitida”.

Mas a remissão que se diz ser indireta pode ser duplamente indireta
(“remissão encadeada” ou “remissão de duplo grau”), pois, no exemplo dado,
patrimônio pode estar mencionado na outra norma remitida sem qualquer explicitação
do seu conceito, requerendo que este seja buscado em outro lugar. É evidente que esta
é a remissão mais fraca e perigosa.

Ante de prosseguir, é útil atentar para que as normas, mesmo as que não
empreguem a remissão legislativa, aludem a conceitos, pois usam palavras que
sinalizam algum objeto, alguma pessoa ou alguma situação sem o definir e mesmo sem
se referir a determinado dispositivo legal. Assim, por exemplo, quando um dispositivo
legal aluda a “casa”, o seu significado está fora da respectiva norma, e pode ocorrer de
não estar especificado em qualquer outra norma legal.

Mas aí não se trata de remissão, e, sim, de mero emprego da linguagem. Se aí


houvesse remissão, em toda e qualquer norma encontraríamos remissões, não apenas
uma, mas várias, tantas mais quantas fossem as palavras contidas no respectivo
dispositivo legal.

Portanto, deve-se entender corretamente que a remissão é sempre


relacionada a algo que conste de outro dispositivo legal (ou lei ou regime legal). É por
esta razão que a maior parte delas é de remissões diretas, como, o “o lucro da
exploração a que ser refere o art. xxx da Lei yyy”, cuja remissão, se fosse indireta,
aludiria apenas a “lucro da exploração”, sem dizer onde está definido, mas, ainda assim,
seria uma remissão legal porque lucro da exploração é um conceito da lei.

6
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

A Lei Complementar n. 95, que foi mencionada acima, nada dizia a propósito
de remissão, e seu silêncio pode ser interpretado como repulsa a este modo de legislar,
por ser contrário à precisão buscada por ela. Por evidente, o silêncio dessa lei não
significava vedação às remissões, mas um implícito reconhecimento das dificuldades
que podem acarretar para a clareza e a precisão das normas. Não obstante, em 2001 a
Lei Complementar n. 107 inseriu, no art. 11 daquela, uma alínea prevendo que, para
obtenção de precisão, a disposição normativa deve indicar expressamente o dispositivo
objeto de remissão, em vez de usar expressões tais como “anterior”, “seguinte” ou
equivalentes.

Todavia, é preciso consignar que seu regulamento trata da remissão, e exige


que seja feita por indicação expressa do artigo a que se refira (Decreto n. 9191, de
1.11.2017, art. 14, inciso II, n. 5, letra “f”). Antes dele, os Decretos n. 2954, de 29.1.1999,
e 4176, de 28.3.2002, davam preferência à referência ao conteúdo da norma remitida.
As alterações na regulamentação da Lei Complementar n. 95 revelam a fluidez e os
riscos das remissões.

Não é preciso dizer que, se a própria lei complementar não é cumprida pelos
legisladores, menos atenção ainda é dada ao seu regulamento, pois facilmente
encontramos remissões por um ou por outro modo.

Seja como for, é preciso reconhecer ser inevitável a existência de remissões,


e até mesmo serem elas necessárias em alguns casos, mas também temos que admitir
que, quando empregadas, deveriam sê-lo pela forma direta, prestigiando assim a sua
clareza e precisão, e colaborando para maior segurança jurídica. Por isto, se o decreto
regulamentar não vincula o Poder Legislativo, deveria ser observado pelos órgãos do
Poder Executivo.

Prossigamos.

A característica básica da remissão consiste em que ela sempre é uma


manifestação legislativa que não emite uma norma própria em sua totalidade, mas se
apropria de parte de norma existente em outra disposição legal.

7
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Quer dizer, ao invés de definir o seu objeto ou mandamento por completo,


em todos os seus elementos, a norma se remete a outra, adotando e absorvendo parte
do conteúdo desta. 2

É que, através da remissão, parte do conteúdo da norma remitida passa a


fazer parte da norma de remissão, algumas vezes incorporando a hipótese de
incidência (antecedente) da norma remitida, outras o seu consequente normativo.

Dá-se, portanto, através da remissão, a criação de uma nova norma cujo


conteúdo (parte dos seus elementos) precisa ser buscado parcialmente em outra, e é
por isso que a remissão pode gerar dúvidas e controvérsias que teriam menos
possibilidade de existir numa norma que, ao invés da remissão, fosse completa na
definição do seu antecedente e do seu consequente.

A despeito da absorção de parte do conteúdo de outra norma, são nítidas as


seguintes características existentes na remissão:

– a norma de remissão é sempre diferente da remitida, porque absorve


apenas parte da norma remitida; quer dizer, elas são diferentes
porque uma parte não foi absorvida;

– a norma de remissão tem fim próprio;

– a norma de remissão é uma norma completa, mesmo que tenha parte


retirada de outra norma; em outras palavras, o dispositivo legal que
contém a norma de remissão não descreve a totalidade do seu objeto,
pessoa ou situação, mas a norma por ele manifestada é completa;

– por isso tudo, a norma de remissão passa a existir de per si, e não
como tendo um cordão umbilical, permanente e indestrutível, com a
norma remitida;

– ainda por tudo isso, a norma de remissão tem vida autônoma.

Segundo Kildare Gonçalves Carvalho “há remissão quando um texto legislativo (a chamada norma de remissão)
2

refere-se a outra ou outras disposições de tal forma que o seu conteúdo deva considerar-se como parte da disposição
que inclui a norma de remissão. O conteúdo do objeto da remissão se integra à norma de remissão, incorpora-se a ela
por assim dizer”. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Técnica Legislativa. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, 4ª ed., p. 119.

8
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Veja-se que a norma não é o dispositivo legal, pois este é o veículo legislativo
pelo qual a norma passa a existir e pelo qual ela é exprimida. Igualmente lembre-se de
que a norma tem duas partes, seu antecedente (sua hipótese de incidência) e seu
consequente (sua determinação deôntica), no caso, o determinativo da existência de
uma obrigação tributária ou de algum dos seus elementos.

Pois a remissão pode ser tanto ao antecedente quanto ao consequente da


norma remitida, mas nunca à sua totalidade. Exemplo de remissão ao antecedente da
norma remitida: “a situação referida na norma X terá o seguinte tratamento: ...”.
Exemplo de remissão ao consequente da norma remitida: “o tratamento referido na
norma X também será aplicado à seguinte situação: ...”.

Acima foi dito que a remissão é sempre parcial, e nunca à totalidade da


norma remitida, o que torna as normas de remissão e remitida detentoras de um ou
alguns elementos comuns.

A despeito da igualdade de elementos e da possível “quase igualdade”


normativa entre as duas normas, há autonomia da norma de remissão em relação à
norma remitida (e vice-versa), e isto decorre de que alguma diferença sempre existe
entre elas, pois, se não houvesse diferença, mas absoluta identidade, não haveria
remissão, mas mera repetição inútil.

Na diferença é que reside a singularidade da norma de remissão, e a sua


consequente autonomia, assim como da norma a que ela se remeteu.

Por exemplo, se a norma remissiva determinar que ao negócio X deva ser


aplicada a norma remitida, certamente a norma remitida contém na sua hipótese de
incidência o negócio Y, ou outros negócios que não o negócio X. Porém, a remissão
acarreta, para o negócio X, a absorção da consequência prevista na norma remitida
para o negócio Y, e não a identificação de X com Y, nem a existência de uma só norma
absolutamente igual à norma remitida.

Neste exemplo, o que temos são duas normas com igual consequente, mas
duas normas distintas quanto ao objeto sobre o qual o consequente se aplica, de sorte
que as duas normas ainda são diferentes e necessariamente autônomas. Como também
seriam diferentes se o objeto fosse o mesmo mas o consequente fosse diferente.

9
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Em suma, a remissão incorpora parte de outra norma, mas não vincula


existencialmente a norma de remissão à remitida (ou vice-versa), como se as duas
fossem uma só.

É preciso ter isto bem claro na mente. O sentido da remissão, como vimos, é
incorporar parte do conteúdo de outra norma, mas a norma que assim foi editada (a
remissiva) é uma norma autônoma, tendo existência própria, tanto quanto teria se seu
legislador tivesse descrito por inteiro a sua hipótese de incidência e a sua determinação
normativa, com as mesmas palavras e os mesmos elementos de outra norma, e apenas
fizesse alguma mudança no objeto da norma.

Exemplo desta última hipótese é o de a nova norma dizer tudo o que a outra
norma já dizia, mas para se referir a um objeto distinto do referido pela outra norma.
Mais especificamente: se uma norma existente disser que “na compra e venda de
mercadoria produzida no Estado X a alíquota da mercadoria Y é 10%”, e a nova norma,
que poderia simplesmente fazer remissão a ela para a mercadoria Z, disser que “na
compra e venda de mercadoria produzida no Estado X a alíquota da mercadoria Z é
10%”.

Neste caso, em que não há remissão, teremos negócios jurídicos com objetos
distintos sendo tratados igualmente, mas cada um recebendo o tratamento em
decorrência da respectiva norma, ninguém podendo dizer que há uma única norma.
Uma única norma existiria se o legislador, ao invés de baixar nova norma, alterasse a
existente e incluísse a mercadoria Z juntamente com a Y, que já estava na norma, a qual
passaria a ser: “na compra e venda de mercadoria produzida no Estado X a alíquota das
mercadorias Y e Z é 10%”.

Nenhuma visão diferente pode ser atribuída à norma de remissão, ou seja, a


mesma conclusão se impõe para esta.

Realmente, ainda no mesmo exemplo, o legislador poderia adotar um de


dois modos para atribuir o mesmo tratamento às mercadorias Y e Z produzidas no
Estado X: ou pela via de uma norma de remissão à norma que tratava da mercadoria Y,
ou pela fórmula literal completa que não fizesse qualquer alusão à norma que tratava
da mercadoria Y, mas usando o mesmo texto dela para a mercadoria Z.

10
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Em suma, não existe igualdade entre a norma de remissão e a norma


remitida, ainda que tenham partes em comum, o que deriva da remissão. Mas são duas
normas separadas, distintas uma da outra, e com existências próprias.

Daí também haver completude normativa na norma de remissão (tanto


quanto há na remitida), ainda que o dispositivo legal que contém a remissão tenha
adotado esta técnica ao invés de descrever completamente o antecedente e o
consequente da norma.

Quando há remissão, a percepção da distinção e de autonomia entre as


normas pode ser mais forte em algumas situações, como, por exemplo, quando uma
norma tributária adote um instituto do direito privado, caso em que a diferença é mais
patente porque aquela visa os efeitos tributários desta, cujos efeitos não estão no
domínio do direito privado.

Mas também serão distintas duas normas de direito tributário, tanto a


remissiva quanto a remitida.

Não cabe ir muito além do que já foi dito para se avaliar se a remissão é ou
não uma boa técnica de legislação, ou a fim de criticar as razões para a sua adoção, mas
é possível admitir que seja adotada em determinado caso, e que seja desaconselhável
em outro, dependendo das circunstâncias.

Por exemplo, se o legislador quer se referir a patrimônio tal como definido


em determinado dispositivo legal e porque também considera relevante o trato que
esse dispositivo dê ao patrimônio por ele descrito, a remissão é perfeitamente cabível e
deve ser direta, ainda que possa (devesse) ser acompanhada, na norma que a promova,
de alguma explicitação que a complete para fixar o preciso objetivo do legislador.

Porém, ao menos na grande maioria das vezes as remissões não são


processadas nestas circunstâncias, sendo elas feitas simplesmente a um dispositivo
legal, à determinada pessoa ou situação ou a determinado objeto, independentemente
do consequente da norma remitida, ou ser feita ao consequente desta para uma pessoa,
situação ou objeto distinto do que consta da norma remitida.

11
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

São estes os casos geradores de futuras discussões quando muda, em lei


posterior, as características da pessoa, da situação ou do objeto referido na norma
remitida, ou quando a determinação normativa desta é alterada.

A grande indagação é se, nestes casos, também há modificação na norma de


remissão, isto é, no alcance da sua hipótese de incidência ou na disposição normativa
do seu consequente.

Perceba-se que a dificuldade existe quer um dos elementos da norma


remitida seja ampliado, quer seja reduzido, quer sofra total modificação.

Para enfrentar a dificuldade, e somente como guia condutor de raciocínio,


teoricamente distingue-se a interpretação dita “estática” da interpretação chamada
“dinâmica”.

As duas expressões revelam, por seus próprios termos, o sentido que


pretendem atribuir à interpretação das normas de remissão.

Com razão, a interpretação estática significa que a norma remitida deve ser
entendida como tendo sido absorvida pela norma de remissão tal como estava
exprimida na data em que foi promulgada a remissão, não se aplicando a esta as
posteriores alterações sofridas por aquela.

Ao contrário, a interpretação dinâmica significa que a norma de remissão


sofrerá todas as alterações que forem feitas na norma remitida, isto é,
independentemente de qualquer providência legislativa pertinente à norma promotora
da remissão, ela será automaticamente alterada juntamente com a norma remitida.

Disso decorre também se apelidar as remissões como “remissão estática” e


“remissão dinâmica”.

Não é possível afirmar que a interpretação estática ou a dinâmica se


imponha em todas as situações em que a norma referida na norma de remissão sofra
alteração.

12
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Idealmente, o legislador deveria cuidar da norma de remissão todas as vezes


que a norma remitida fosse alterada, determinando ou não a alteração daquela, ou as
modificações que deveria sofrer em virtude da alteração na norma a que se remeteu.

Infelizmente para a segurança jurídica, providências como estas em geral


não são tomadas, ficando largada no ordenamento jurídico uma norma (a de remissão)
sujeita a mais de uma interpretação, com a abertura de possível contencioso e a criação
de instabilidade jurídica, que é tudo o que a Lei Complementar n. 95 não deseja, e é
tudo o que qualquer ordenamento jurídico deve repelir, pois primordialmente todos
eles devem assegurar certeza e previsibilidade, isto é, segurança jurídica. 3

Tenho para mim, como diretriz condutora do meu pensamento, que se deve
partir sempre da interpretação estática, e passar para a dinâmica apenas
excepcionalmente, conforme as características de cada caso de remissão, seja quanto à
lei remitida, seja quanto à lei de remissão.

Explica-se esta atitude porque o legislador racional (isto é, o legislador


ideal 4), quando emprega a remissão, tem uma razão para isto, razão que, por sua vez,
integra a “ratio legis”, e, por óbvio, ao se referir a uma situação, uma pessoa ou um
objeto, ele vê esse elemento tal como ele é no dia da remissão, e não como ele poderá
ser outro dia qualquer no futuro, ou mesmo por uma forma totalmente imprevista para
ele.

De fato, em tese é bem possível que o legislador não fizesse a remissão se a


situação, pessoa ou objeto da remissão fosse diferente do que é no dia da remissão, não
importando, para esta consideração, que a diferença seja decorrente de alteração feita
na norma remitida.

O mesmo se diga se a remissão for a uma pessoa ou suas características, pois


estas podem ser alteradas em seus componentes essenciais ou secundários. Quando a
remissão é feita a uma determinada pessoa jurídica, mais possibilidades de confusão se

3
Neste sentido, leia-se ÁVILA, Humberto. Constituição, Liberdade e Interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
4 Sobre o que seja o legislador racional: FERRAZ JÚNIOR, Tercio Ferraz, “Introdução ao Estudo do Direito”, Editora
Atlas, São Paulo, 2ª ed., 1996, p. 279; GRECO, Marco Aurélio, in “Cofins na Lei 9.718/98 – Variações Cambiais e
Regime da Alíquota Acrescida”, Revista Dialética de Direito Tributário n. 50, Dialética, São Paulo, 1999, p. 110; idem
in “Cofins na Venda de Imóveis”, Revista Dialética de Direito Tributário n. 51, Dialética, São Paulo, 1999, p.
119’Supremo Tribunal Federal: Recursos Extraordinários n. 224861-CE e 118958-RJ, e Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 1158.

13
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

apresentam do que quanto a pessoas naturais, porque aquelas são passíveis de


modificações em seus elementos característicos, ou pode haver equiparação de uma
espécie de sociedade a outra, ou mesmo a criação de uma nova entidade como pessoa
jurídica, a qual tenha apenas parte das características de outra.

A interpretação estática deve ser preferencial com mais razão ainda quando
a alteração ocorra no consequente da norma remitida, pois o legislador da norma de
remissão provavelmente, pela mesma razão acima comentada, deve ter adotado a
norma a que se referiu tendo em vista a respectiva determinação normativa, e não teria
feito a remissão se outra fosse a determinação a que se remeteu, também não sendo
importante, para esta consideração, que a nova determinação passe a existir na norma
remitida ao ser posteriormente modificada.

Esta via, da prioridade da interpretação estática, é apenas metodológica,


mas não significa a exclusão da dinâmica, que pode prevalecer se as circunstâncias
indicarem ser apropriada à norma de remissão.

Por exemplo, se para alguma espécie de negócio jurídico for determinada a


aplicação da alíquota de certo tributo que esteja prevista em outra norma para outro
negócio jurídico, a mudança de alíquota, determinada em nova norma relativamente à
alíquota prevista na norma remitida, pode ser aplicada ao negócio a que alude a norma
de remissão se se tiver concluído que o essencial para a remissão neste caso não é a
alíquota, mas, sim, a equalização de tratamento tributário para os dois negócios.

Mas, embora para outras normas constitucionais a interpretação possa ser


dinâmica, a interpretação estática torna-se duplamente preferencial no caso de haver
remissão constitucional em situações como as de definições de competências
tributárias.

Por exemplo, ao atribuir competência aos municípios para cobrança do


imposto sobre a transmissão por atos “inter vivos” de bens imóveis, por natureza ou
acessão física, a Constituição Federal faz remissão a disposições do Código Civil vigente
em 1988. Neste caso, se houver mudança nesse código quanto à definição desses
imóveis, e se prevalecer a interpretação ou remissão dinâmica, ela pode acarretar
aumento ou redução da competência tributária dos municípios (em tese, até poderia
haver invasão de competência de outro ente público), sem ter havido alteração
constitucional, gerando diversas questões, a começar por sua validade. Daí ser mais

14
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

prudente e recomendável a interpretação estática, que busque a compreensão da


remissão constitucional com as consequências que ela acarretou na data da
promulgação da Constituição.

Retomando o aspecto de autonomia entre as duas normas – a de remissão e


a remitida –, este exemplo enfatiza a dualidade de normas, pois indubitavelmente a
remissão constitucional ao Código Civil não representa a existência de apenas uma
norma.

Estas considerações em torno da autonomia existencial entre as normas, a


despeito da remissão, são relevantes para completa compreensão dos efeitos das
remissões, mas têm especial importância prática quando se trata de interpretar alguma
alteração na norma remitida, isto é, os efeitos, sobre a norma remissiva, da alteração na
norma remitida.

A falta de uma diretriz mais precisa para a interpretação de uma norma de


remissão, quando a remitida seja alterada, é uma contingência inevitável que decorre
de o legislador ter adotado essa técnica para editar a norma de remissão. Significa que
a dificuldade de interpretar e concluir nem sempre é produto de deficiência do
intérprete ou do aplicador, pois sempre é inerente à incerteza que a própria norma
remissiva pode acarretar.

Novamente, o intérprete somente pode contar são os preceitos pertinentes à


teoria da hermenêutica jurídica. O recurso a esses preceitos é, como afirmado antes, o
melhor caminho para compreender as próprias remissões, quando editadas, e volta a
ser relevante quando a norma remitida sofra modificação.

Pode-se dizer com segurança que compreender os efeitos de mudança sobre


a norma de remissão depende de, antes, terem sido devidamente entendidos o alcance
e o sentido da remissão.

E, ao se interpretar uma norma de remissão, é relevante levar em conta


principalmente o fator histórico, a “occasio legis”, porque por ele pode-se descobrir a
motivação para a remissão e o sentido desta. 5

5
Sobre a “occasio legis”: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. São Paulo: Freitas Bastos, 3a.
ed., 1941, p. 161.

15
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

O método histórico deve ser aplicado sempre que possível na exegese de


qualquer norma legal, evidentemente sem excluir os demais métodos, mas deve ser
empregado porque ele pode trazer luz ao sentido que o legislador deu à determinada
palavra do texto legal, ou a este em sua integralidade.

O método histórico não se resume a, mas também consiste em, consultar os


trabalhos legislativos do parlamento, inclusive a exposição de motivos de um projeto.
Neste labor, procura-se detectar os debates ocorridos no órgão legislativo, as
alterações que o projeto original sofreu durante a sua tramitação e as razões que
fizeram com que prevalecessem sobre a proposta inicial, enfim tudo o que precede a
promulgação da norma a ser interpretada, pois eles podem ser instrumentos úteis para
se entender ao que a lei se refere em seu antecedente e qual é a prescrição contida em
seu consequente.

Mas estes são apenas instrumentos de compreensão da lei posta no


ordenamento positivo, e não a própria lei, de sorte que devem ser empregados com
parcimônia, inclusive com atenção a casos em que eles não trazem qualquer ajuda para
a interpretação, e a outros em que chegam a conter explicações incompatíveis com o
texto legal, sendo que estes últimos casos põem em evidência a possibilidade de haver
desconformidade entre a “intentio legislatoris” e a “intentio legis” ou “mens legis”.

Daí o cuidado necessário na consulta aos trabalhos legislativos, e também


ser recomendável procurar explicações em outras fontes externas que mereçam
crédito, e que talvez sejam mais efetivas.

Mas nada desmerece ou afasta o método histórico, inclusive porque ele


também faz o confronto da nova norma com o ordenamento anterior. Neste aspecto, ou
melhor, nesta sua nova faceta, o método histórico não busca o sentido da nova norma
pelo que o legislador quis dizer ou pelo que disse, ou porque o disse, mas procura
conhecer a alteração que o ordenamento sofreu em decorrência da introdução da
novidade, pois esta pode ser o preenchimento de um vazio legislativo ou a substituição
de uma regra pré-existente. E é importante ter em mente que o fenômeno da alteração
sempre ocorre, mesmo quando se trate de matéria nova, não legislada especificamente,
porque a nova norma provoca reações no ordenamento jurídico que antes inexistiam,

16
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

algumas vezes reduzindo ou excluindo uma outra norma, outras vezes impactando a
compreensão de outra norma. 6

No emprego do método histórico, qualquer que sejam os instrumentos ou a


faceta de que se valha o intérprete, é igualmente relevante retirar dele os motivos
sociais que levaram à produção da norma, porque assim se pode chegar à “ratio legis” e
aos verdadeiros conteúdo e sentido da norma produzida. Neste particular, há que se ter
em vista a “occasio legis”, isto é, o ambiente existente quando da propositura e da
feitura da norma, pois nele se encontram as motivações e os objetivos que conduziram
a ela em sua forma final adentrada no ordenamento, o que, à toda evidência, é
fundamental para interpretá-la.

Quando há remissão legislativa, o método histórico deve ser empregado


tanto relativamente à norma remissiva quanto em relação à norma remitida, pois ele
pode ajudar a entender porque a remissão foi feita, e em que extensão ou em que
sentido ela se manifestou, fatores estes que evidentemente vão contribuir para
solucionar questões surgidas para se interpretar a remissão, principalmente quando a
norma remitida for alterada.

A busca do conhecimento da “occasio legis” reforça as razões para a


preferência pela interpretação estática, acima manifestada como ponto de partida do
trabalho de exegese de alguma norma de remissão?

A resposta é afirmativa, pois a recuperação do ambiente no qual a remissão


foi realizada (em que a norma remissiva foi promulgada) impõe-se decididamente para
se compreender o porquê da remissão e o que se pretendeu com ela.

Portanto, nada melhor do que empregar este lado ou faceta do método


histórico para interpretar as duas normas que se uniram com algum mesmo conteúdo
normativo através da remissão feita por uma à outra.

6
A este respeito, são notáveis e imorredouras as palavras de Alfredo Augusto Becker ao tratar do seu “cânone da
totalidade do ordenamento jurídico”: “A regra jurídica contida na lei (fórmula literal legislativa) é a resultante lógica
de um complexo de ações e reações que se processam no sistema jurídico onde foi promulgada. A lei age sobre as demais
leis do sistema, estas, por sua vez, reagem; a resultante lógica é a verdadeira regra jurídica da lei que provocou o
impacto inicial. Estas ações e reações se processam tanto no plano vertical (interpretação histórica) quanto no plano
horizontal (interpretação sistemática)”. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo:
Saraiva, 2ª ed., 1972, p. 103.

17
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Por consequência, ele também será de extrema utilidade para se definir o


rumo da norma de remissão quando a norma remitida sofra alterações.

Mas outro desafio que se apresenta ocorre quando a norma remitida é


revogada.

Até aqui lidamos com possíveis problemas em torno de saber se a alteração


feita na norma remitida deve atingir a norma remissiva, causando igual e automática
modificação nesta. Foram aventadas as múltiplas consequências das alterações, isto é,
quando reduzem o âmbito (objeto, situação ou pessoa) de aplicação da norma remitida
ou quando, ao contrário, o alargam, ou ainda quando não modificam o âmbito de
aplicação, mas alteram a consequência normativa a ele atribuído pela norma remitida,
seja para aumentar sua consequência, seja para reduzi-la ou modificá-la inteiramente.

O ponto extremo é o do desaparecimento da norma de remissão através da


sua revogação. A derrogação pode ser colocada entre as alterações da norma, mas a
revogação é a própria extinção da norma, que não remanesce em uma mínima
existência.

Outra possibilidade é de a morte da norma remitida se dar porque ela tinha


vigência determinada e seu tempo chegou ao fim. Neste caso, a norma de remissão já
previa (ou deveria prever) que o conteúdo legislativo por ela adotado também teria
vida temporalmente predeterminada.

Por isso, o legislador da norma de remissão, ao promulgá-la, já deveria ter


sido explícito quanto à respectiva duração da norma de remissão ou ao quanto ao seu
futuro. Mas, no caso de ele simplesmente ter feito a remissão omitindo-se quanto ao
aspecto temporal, tem o dever de, no término da vigência da norma remitida,
promulgar nova norma substitutiva para a norma remissiva, se quiser que a regra até
então vigente através da remissão continue a existir como era, agora sem remissão, ou
deve fazer a alteração que desejar.

Se o legislador nada fizer neste sentido, isto é, se ele se omitiu ao tempo da


remissão, e omite-se quando a norma remitida se exaure, em princípio deve-se
entender que a norma de remissão também deixará de produzir efeito.

18
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Já a revogação é imprevista no ato da remissão, pegando desprevenido o


legislador da norma remissiva e deixando-a verdadeiramente órfã.

Mas, tanto quanto os órfãos não morrem porque seus progenitores


faleceram, a orfandade da norma de remissão não implica necessariamente no seu
perecimento.

Pelo contrário, recordemos que a remissão incorpora parte de outra norma,


mas não vincula existencialmente a norma de remissão à remitida, como se as duas
fossem uma só (até foi dito anteriormente que não há um cordão umbilical permanente
entre as duas normas). O efeito da remissão, como vimos, é incorporar parte do
conteúdo de outra norma, mas a norma que assim foi editada é uma norma autônoma e
completa, tendo existência própria. Neste sentido, vimos um exemplo que me parece
ser convincente.

Acrescente-se agora, ao tratar da revogação, que também por este aspecto


justifica-se a preferência metodológica de iniciar a interpretação adotando-se a
estática, o que, mais uma vez deve ser ressalvado, não se apresenta como regra
absoluta, mas como critério metodológico.

De qualquer modo, a autonomia da norma de remissão, com sua existência


autônoma em relação à norma remitida, leva à inevitável conclusão de que a revogação
desta não afeta a continuidade da norma remissiva, porque, mesmo tendo alguma parte
igual à da norma remitida, a norma de remissão é distinta desta e tem vida autônoma.

Mas esta última conclusão, relativa à sobrevida da norma de remissão


quando a norma remitida é revogada, não deve também ser dada à situação de norma
remitida que tenha vigência determinada? Por que para esta a conclusão acima foi de
que, em princípio, ela também perece com o fim do prazo de vigência da norma
remitida?

Estas indagações devem ser feitas e são apropriadas porque a norma que
faça remissão à norma que tem vigência determinada é tão norma autônoma quanto a
norma que faça remissão à norma com vigência indeterminada e que venha a ser
abruptamente revogada.

19
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

De fato, a mera apropriação de parte do conteúdo da norma remitida, pela


norma de remissão, corresponde à essência de qualquer remissão.

Por isso, aquelas indagações aguardam resposta, para a qual precisamos dar
um passo de cada vez.

No caso da revogação, não há dúvida de que, se a norma de remissão for


revogada, a remitida remanescerá em vigor, e, embora possa haver dúvida, a mesma
consequência se impõe para a norma de remissão se a revogação for da norma
remitida.

Isto é assim porque são normas independentes uma da outra.

Assim, a revogação da norma remitida não atinge automaticamente a norma


de remissão, que continua vigindo e a determinar para o negócio X a mesma
consequência que até então a outra norma também determinava para o negócio Y. Isto
é assim porque, além da autonomia das normas, a norma de remissão não foi revogada,
e somente não seria assim se o legislador, ao revogar a norma remitida, também
revogasse a de remissão.

Mas, se isto é assim com relação à norma de remissão que se remeta a outra
cuja vigência é indeterminada e seja revogada, o que justifica que a norma de remissão
não sobreviva ao tempo determinado de vigência da norma remitida, quando este for o
caso e quando a norma de remissão também não seja revogada?

A explicação para a diferente consequência não depender de que neste caso


a norma de remissão também tenha vida independente e autônoma, ou de que não
tenha sido revogada também ela, mas, sim, do fato de que a regra absorvida era regra
para tempo certo, e também este foi o objeto da absorção.

E por que o tempo determinado de vigência da norma remitida também é


absorvido?

Por mais de uma razão.

20
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Primeiramente porque, salvo expressa disposição em contrário, o tempo de


vigência da norma remitida fazia parte da sua existência normativa, motivo pelo qual
também foi absorvido pela norma de remissão, a qual, ademais, somente não
incorporou a parte da norma de remissão que é distinta da norma remitida.

É por isso que, se não fosse para a remissão também ter prazo, e sabendo
que ela se referia à norma de duração limitada, o legislador racional deveria ter tratado
da sua vigência, deixando de incorporar a da norma remitida.

Destarte, se o tratamento tributário a que se referiu a norma de remissão


tinha duração prevista no momento da remissão, esta simplesmente trouxe para a
remissão o mesmo que havia na regra remitida.

Por exemplo, se a norma de remissão determinar para o produto X a


aplicação da alíquota prevista na norma remitida para o produto Y, e a alíquota para
este for Z, esta somente existirá para o produto Y durante o tempo previsto para isso,
após o qual ao produto Y será aplicável a alíquota Z1, que inclusive pode ser zero.

Mas o exemplo suscita ainda outra indagação: neste caso, ao produto X


também não deve ser aplicada a alíquota Z1, ou seja, a remissão não significa que a
alteração do regime para o produto Y também deve ser aplicada ao produto X, ao invés
de simplesmente se concluir que terminou a remissão?

Quanto a esta última indagação, a resposta vai servir para confirmar as


anteriores, isto é, deve ser pelo término da remissão, porque não há mais a norma que
servia de base para ela, e a norma que fixa a alíquota Z1 é outra norma, e esta não foi
objeto da remissão.

Esta ponderação também deve afastar o argumento que sustente que a


remissão foi feita a determinado tratamento, e com ele se esgota a função da remissão,
de tal sorte que, embora ela não mais exista na letra com a qual foi manifestada
originalmente, o seu conteúdo deve continuar a existir implicitamente na norma de
remissão.

Tal raciocínio deve ser repelido porque o legislador optou pela fórmula
legislativa da remissão, e o que absorveu foi determinado tratamento que estava
previsto para existir apenas durante determinado lapso de tempo.

21
São Paulo / FEVEREIRO 2020

Artigos

Por outro lado, é isto que estabelece a distinção entre as duas possibilidades
– vigência temporária determinada, e vigência indeterminada seguida de revogação –
porque nesta última a remissão adotou uma regra sem prazo, ou seja, não havia na
norma remitida um prazo a ser absorvido, o que, aliado à autonomia das duas normas,
conduz à continuidade da vigência da norma de remissão. Mais uma vez verifica-se
como o legislador deve ser cuidadoso ao fazer remissões legislativas.

Por esta sucessão de indagações e considerações, pode-se perceber como os


problemas se apresentam de múltiplas maneiras, sendo todos eles decorrentes
exclusivamente do emprego da remissão pelo legislador, sem cuidados que deveria ter
quando a própria remissão seja necessária.

No embate das ideias, aqui apresentadas apenas em tese (inclusive os


exemplos são teóricos), já é possível verificar que muitas vezes mais de uma
interpretação é viável, e certamente outras cabeças poderão acrescentar novas razões
às acima desenvolvidas.

Também por isso, a despeito da preferência metodológica pela


interpretação estática, na prática cada caso deverá ser submetido à rigorosa exegese,
para a qual provavelmente mais de um método possa ser empregado, mas para a qual o
método histórico tenderá a ser o mais relevante, em suas diferentes facetas.

22

Você também pode gostar