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Art 04-2020
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Por isso mesmo, esse descaso já mereceu duro protesto do Poder Judiciário
através do voto da Ministra Cármen Lúcia no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 4876 – DF (26.3.2014), quando verberou:
“A Lei Complementar nº 95, que é tão pouco lida no Brasil, e que é a lei que
afirma e afirmou como se devem fazer as leis, para que a gente superasse
formas de elaboração legislativa que querem se fazer desentender, ao invés de
se fazer entender, fixa, no artigo 11, inciso II, alínea "a", que: ‘Art. 11 - As
disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica,
observadas, para esse propósito, as seguintes normas: ... ‘”.
Após mais de dez anos da implantação dessas práticas, mesmo após a Lei n.
12973, promulgada em 13.5.2014, ter tentado compatibilizar as normas legais
tributárias com a nova contabilidade, ainda convivemos com dificuldades para
interpretar a legislação, e constantemente nos deparamos com aspectos que antes
haviam passado despercebidos e para os quais não se encontram soluções seguras.
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Quem está mais familiarizado com os problemas que estão sendo mencionados em torno da nova contabilidade,
sabe que a própria ordem geral do art. 58 da Lei n. 12973 não soluciona muitos deles, e até cria outros.
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contabilidade registre no patrimônio uma receita que, de acordo com a lei, ainda não
esteja ganha. Nesta situação, a alusão a patrimônio naquela norma tributária deve ser
entendida como o patrimônio contábil ou o patrimônio jurídico, dado que um e outro
podem apresentar componentes e valores diferentes entre si?
Agora suponhamos que se conclua que essa norma legal aluda a patrimônio
líquido contábil, a cuja conclusão se chega mediante a aplicação correta dos métodos de
exegese jurídica aplicáveis. E suponhamos que, após a remissão, na contabilidade
ocorra alguma modificação de prática que acarrete resultado diferente no patrimônio,
em comparação com o que se teria segundo a prática contábil que vigorava na época da
promulgação da referida norma legal de remissão. Nesta situação, a alusão a
patrimônio nessa lei deve ser entendida como ao patrimônio que seria refletido na
contabilidade se não tivesse havido a alteração no procedimento contábil, ou ao que
passou a ser refletido após o novo procedimento contábil?
Se na maioria das vezes não se tem uma resposta segura, ou seja, uma
resposta que não admita entendimento contrário, ou ao menos uma resposta que,
sopesados todos os elementos disponíveis, se possa esperar vir a ser aceita por todos
ou pela maioria dos intérpretes, certamente para todas elas, e não apenas para a
maioria das vezes, não existem regras legais determinativas de critérios que possam
ser aplicados para se obter respostas, quaisquer que sejam.
Significa isto que em cada situação o intérprete tem que desenvolver todo
um trabalho de compreensão do ordenamento como se nunca tivesse sido feito antes,
pois nos exemplos acima, quando referidos a situações concretas, é possível que o
patrimônio líquido seja o contábil num caso e o jurídico em outro, e pode ocorrer que a
mudança de prática contábil não tenha validade num caso mas tenha em outro.
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A remissão legislativa, ou remissão legal, é a que ocorre num texto legal (ou
mesmo infralegal de legislação), e pode ser feita por duas formas diferentes: ou por
menção a um conceito já definido ou mencionado em outra norma, ou por referência a
uma específica norma constante de outro dispositivo da mesma lei ou de outra. Em
mais ampla forma, a remissão pode ser feita a toda uma lei, ou mesmo a todo um
regime jurídico.
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Por esta razão, costuma-se dizer que a segunda forma é de remissão direta,
e a primeira indireta, sendo que esta tende a ser mais imprecisa e indeterminada do
que a outra, valendo acrescentar que a norma que faz alusão a outra é conhecida como
“norma de remissão” ou “norma remissiva”, e a outra “norma remitida”.
Mas a remissão que se diz ser indireta pode ser duplamente indireta
(“remissão encadeada” ou “remissão de duplo grau”), pois, no exemplo dado,
patrimônio pode estar mencionado na outra norma remitida sem qualquer explicitação
do seu conceito, requerendo que este seja buscado em outro lugar. É evidente que esta
é a remissão mais fraca e perigosa.
Ante de prosseguir, é útil atentar para que as normas, mesmo as que não
empreguem a remissão legislativa, aludem a conceitos, pois usam palavras que
sinalizam algum objeto, alguma pessoa ou alguma situação sem o definir e mesmo sem
se referir a determinado dispositivo legal. Assim, por exemplo, quando um dispositivo
legal aluda a “casa”, o seu significado está fora da respectiva norma, e pode ocorrer de
não estar especificado em qualquer outra norma legal.
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A Lei Complementar n. 95, que foi mencionada acima, nada dizia a propósito
de remissão, e seu silêncio pode ser interpretado como repulsa a este modo de legislar,
por ser contrário à precisão buscada por ela. Por evidente, o silêncio dessa lei não
significava vedação às remissões, mas um implícito reconhecimento das dificuldades
que podem acarretar para a clareza e a precisão das normas. Não obstante, em 2001 a
Lei Complementar n. 107 inseriu, no art. 11 daquela, uma alínea prevendo que, para
obtenção de precisão, a disposição normativa deve indicar expressamente o dispositivo
objeto de remissão, em vez de usar expressões tais como “anterior”, “seguinte” ou
equivalentes.
Não é preciso dizer que, se a própria lei complementar não é cumprida pelos
legisladores, menos atenção ainda é dada ao seu regulamento, pois facilmente
encontramos remissões por um ou por outro modo.
Prossigamos.
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– por isso tudo, a norma de remissão passa a existir de per si, e não
como tendo um cordão umbilical, permanente e indestrutível, com a
norma remitida;
Segundo Kildare Gonçalves Carvalho “há remissão quando um texto legislativo (a chamada norma de remissão)
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refere-se a outra ou outras disposições de tal forma que o seu conteúdo deva considerar-se como parte da disposição
que inclui a norma de remissão. O conteúdo do objeto da remissão se integra à norma de remissão, incorpora-se a ela
por assim dizer”. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Técnica Legislativa. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, 4ª ed., p. 119.
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Veja-se que a norma não é o dispositivo legal, pois este é o veículo legislativo
pelo qual a norma passa a existir e pelo qual ela é exprimida. Igualmente lembre-se de
que a norma tem duas partes, seu antecedente (sua hipótese de incidência) e seu
consequente (sua determinação deôntica), no caso, o determinativo da existência de
uma obrigação tributária ou de algum dos seus elementos.
Neste exemplo, o que temos são duas normas com igual consequente, mas
duas normas distintas quanto ao objeto sobre o qual o consequente se aplica, de sorte
que as duas normas ainda são diferentes e necessariamente autônomas. Como também
seriam diferentes se o objeto fosse o mesmo mas o consequente fosse diferente.
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É preciso ter isto bem claro na mente. O sentido da remissão, como vimos, é
incorporar parte do conteúdo de outra norma, mas a norma que assim foi editada (a
remissiva) é uma norma autônoma, tendo existência própria, tanto quanto teria se seu
legislador tivesse descrito por inteiro a sua hipótese de incidência e a sua determinação
normativa, com as mesmas palavras e os mesmos elementos de outra norma, e apenas
fizesse alguma mudança no objeto da norma.
Exemplo desta última hipótese é o de a nova norma dizer tudo o que a outra
norma já dizia, mas para se referir a um objeto distinto do referido pela outra norma.
Mais especificamente: se uma norma existente disser que “na compra e venda de
mercadoria produzida no Estado X a alíquota da mercadoria Y é 10%”, e a nova norma,
que poderia simplesmente fazer remissão a ela para a mercadoria Z, disser que “na
compra e venda de mercadoria produzida no Estado X a alíquota da mercadoria Z é
10%”.
Neste caso, em que não há remissão, teremos negócios jurídicos com objetos
distintos sendo tratados igualmente, mas cada um recebendo o tratamento em
decorrência da respectiva norma, ninguém podendo dizer que há uma única norma.
Uma única norma existiria se o legislador, ao invés de baixar nova norma, alterasse a
existente e incluísse a mercadoria Z juntamente com a Y, que já estava na norma, a qual
passaria a ser: “na compra e venda de mercadoria produzida no Estado X a alíquota das
mercadorias Y e Z é 10%”.
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Não cabe ir muito além do que já foi dito para se avaliar se a remissão é ou
não uma boa técnica de legislação, ou a fim de criticar as razões para a sua adoção, mas
é possível admitir que seja adotada em determinado caso, e que seja desaconselhável
em outro, dependendo das circunstâncias.
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Com razão, a interpretação estática significa que a norma remitida deve ser
entendida como tendo sido absorvida pela norma de remissão tal como estava
exprimida na data em que foi promulgada a remissão, não se aplicando a esta as
posteriores alterações sofridas por aquela.
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Tenho para mim, como diretriz condutora do meu pensamento, que se deve
partir sempre da interpretação estática, e passar para a dinâmica apenas
excepcionalmente, conforme as características de cada caso de remissão, seja quanto à
lei remitida, seja quanto à lei de remissão.
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Neste sentido, leia-se ÁVILA, Humberto. Constituição, Liberdade e Interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019.
4 Sobre o que seja o legislador racional: FERRAZ JÚNIOR, Tercio Ferraz, “Introdução ao Estudo do Direito”, Editora
Atlas, São Paulo, 2ª ed., 1996, p. 279; GRECO, Marco Aurélio, in “Cofins na Lei 9.718/98 – Variações Cambiais e
Regime da Alíquota Acrescida”, Revista Dialética de Direito Tributário n. 50, Dialética, São Paulo, 1999, p. 110; idem
in “Cofins na Venda de Imóveis”, Revista Dialética de Direito Tributário n. 51, Dialética, São Paulo, 1999, p.
119’Supremo Tribunal Federal: Recursos Extraordinários n. 224861-CE e 118958-RJ, e Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 1158.
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A interpretação estática deve ser preferencial com mais razão ainda quando
a alteração ocorra no consequente da norma remitida, pois o legislador da norma de
remissão provavelmente, pela mesma razão acima comentada, deve ter adotado a
norma a que se referiu tendo em vista a respectiva determinação normativa, e não teria
feito a remissão se outra fosse a determinação a que se remeteu, também não sendo
importante, para esta consideração, que a nova determinação passe a existir na norma
remitida ao ser posteriormente modificada.
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Sobre a “occasio legis”: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. São Paulo: Freitas Bastos, 3a.
ed., 1941, p. 161.
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algumas vezes reduzindo ou excluindo uma outra norma, outras vezes impactando a
compreensão de outra norma. 6
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A este respeito, são notáveis e imorredouras as palavras de Alfredo Augusto Becker ao tratar do seu “cânone da
totalidade do ordenamento jurídico”: “A regra jurídica contida na lei (fórmula literal legislativa) é a resultante lógica
de um complexo de ações e reações que se processam no sistema jurídico onde foi promulgada. A lei age sobre as demais
leis do sistema, estas, por sua vez, reagem; a resultante lógica é a verdadeira regra jurídica da lei que provocou o
impacto inicial. Estas ações e reações se processam tanto no plano vertical (interpretação histórica) quanto no plano
horizontal (interpretação sistemática)”. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo:
Saraiva, 2ª ed., 1972, p. 103.
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Estas indagações devem ser feitas e são apropriadas porque a norma que
faça remissão à norma que tem vigência determinada é tão norma autônoma quanto a
norma que faça remissão à norma com vigência indeterminada e que venha a ser
abruptamente revogada.
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Por isso, aquelas indagações aguardam resposta, para a qual precisamos dar
um passo de cada vez.
Mas, se isto é assim com relação à norma de remissão que se remeta a outra
cuja vigência é indeterminada e seja revogada, o que justifica que a norma de remissão
não sobreviva ao tempo determinado de vigência da norma remitida, quando este for o
caso e quando a norma de remissão também não seja revogada?
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É por isso que, se não fosse para a remissão também ter prazo, e sabendo
que ela se referia à norma de duração limitada, o legislador racional deveria ter tratado
da sua vigência, deixando de incorporar a da norma remitida.
Tal raciocínio deve ser repelido porque o legislador optou pela fórmula
legislativa da remissão, e o que absorveu foi determinado tratamento que estava
previsto para existir apenas durante determinado lapso de tempo.
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Por outro lado, é isto que estabelece a distinção entre as duas possibilidades
– vigência temporária determinada, e vigência indeterminada seguida de revogação –
porque nesta última a remissão adotou uma regra sem prazo, ou seja, não havia na
norma remitida um prazo a ser absorvido, o que, aliado à autonomia das duas normas,
conduz à continuidade da vigência da norma de remissão. Mais uma vez verifica-se
como o legislador deve ser cuidadoso ao fazer remissões legislativas.
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