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Fazendo caminho ao andar...

O interesse deste pequeno trabalho é intentar passar algo da experiência do


trabalho que chamei “oficinas de movimento”, feito em instituições psiquiátricas (anos
90 até 95), especificamente neste exemplo, no “hospital-dia” de um hospital público
Hospital P.Piñeiro de Bs. As. com pacientes graves do setor de psicopatologia, dentro
de uma equipe psicanalítica lacaniana, no âmbito de encontros chamados de “ateneus
clínicos” dentro da equipe.

“Oficinas de movimento” era parte das atividades do hospital-dia. Atividades pensadas


como espaços que permitam fazer suplências no tratamento de cada paciente e não
como meros espaços de entretenimento. Este espaço convidava a mover-se...claro que
nesse convite a mover-se está presente uma concepção de corpo.

Vamos lembrar que o sujeito para a psicanálise, em tanto ser falante, é sujeito
sujeitado à linguagem. Não há dependência para o humano que não seja dependência da
linguagem. Antes do nosso nascimento real, somos imersos, no banho das palavras. Não
adquirimos a linguagem, ela nos preexiste, e a padecemos. Chegamos a um mundo
simbólico, e vivemos em um mundo de substituições: tudo para nós está ocupando o
lugar de outra coisa, não nos enfrentamos à realidade de maneira imediata, senão
midiatizada pela linguagem. O sujeito no seu caminho desde o inicio se encontrará com
a linguagem e ficará forçado a pedir. A demanda é uma articulação significante onde
fica à mercê da leitura do Outro.

Esse banho simbólico constitui a primeira roupa que nos cobre e veste, e
precisamos de um outro semelhante para sobreviver e tornarmos humanos. Há uma
perda do natural, no sentido da pura necessidade biológica, não se trata de organismo no
sentido biológico, então é condição a passagem pela língua e pelo circuito da demanda e
o desejo.
Precisamos da função simbólica que por excelência é a linguagem, através da qual se
assimila a cultura e arma-se uma vida. Não se trata da teoria da comunicação, não
significa entender-se, senão da primazia do significante, do corpo significante. Não é a
relação do homem com a linguagem como fenômeno social, senão do ser humano como
efeito da estrutura da linguagem.
A língua produz efeitos sobre o corpo, o constrói o atravessa. O significante vai
deixando suas pegadas sobre o corpo, então linguagem e gozo se encontram. Lacan

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dizia na conferência de Genebra que É sempre com a ajuda das palavras que o homem
pensa. E é no encontro dessas palavras e seu corpo que algo se esboça. Aliás... se não
houvesse palavras, de que poderia testemunhar o homem? É aí que ele coloca o sentido.

Nasce-se biologicamente com determinada anatomia, mas o corpo é uma


construção. Não responde a uma determinação natural, senão à dimensão inconsciente.
Ter órgãos masculinos o femininos não garantirá ser homem o mulher, então a anatomia
é algo diferente da construção do corpo. Enlaça-se à imagem, à identificação com a
imagem. Mas o interessante para a psicanálise não é a imagem no sentido do
imaginário, senão seu estatuto de real. O poder real que uma imagem tem, ou seja, seu
poder eficaz bem imediato no real. No exemplo da etologia, o estudo dos pombos
mostrou isto de maneira bem clara para Lacan, e foi tomado para suas fundamentações
da constituição subjetiva. Para que o pombo possa evoluir sexualmente precisa a
percepção da imagem de outro pombo num momento dado do seu desenvolvimento. Se
a imagem de outro da sua espécie está presente, seus órgãos sexuais vão ser
desenvolvidos senão, não. Isto mostra o poder real que uma imagem tem neste caso no
nível bem concreto da reprodução da vida. Traz-nos algo para pensar os efeitos no real
do corpo.
Tomando o Estádio do Espelho temos no início um conjunto caótico de sensações
orgânicas, sem unidade. A unidade é dada pela imagem encontrada no espelho ou no
Outro, não vem das sensações orgânicas. Então por uma parte temos um corpo
fragmentado sem unidade, as sensações múltiplas, e do outro lado a imagem no espelho
que na verdade não lhe pertence, mas que cobre através da identificação dando uma
unidade que não tem.

Tem que haver um laço então entre a imagem do corpo e esse caos, se essa
relação não funciona bem há pessoas que não poderão, por exemplo, se reconhecer
frente ao espelho... Não funciona ai esse laço necessário. O laço se produz através da
linguagem, a imagem não se produz sem a linguagem, sem o Outro, mas o que permite
a relação entre a imagem e o corpo fragmentado são as zonas erógenas que vão permitir
o intercâmbio entre organismo e mundo exterior. As experiências de gozo, chamados
objetos a, vão articular esta relação. A linguagem permite localizar as experiências de
gozo dentro da imagem. E o olhar é ponto de encontro entre imagem e organismo.
Nessa construção do corpo com certeza a singularidade é um verdadeiro desafio na
capacidade de classificar o que há de subjetivo, o impacto de Lalíngua sobre o corpo.

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A incorporação de “oficinas de movimento” em Hospital-dia, quando pensado
como abordagem que faz suplência no tratamento de pacientes em crises graves,
permite uma estratégia que poderá ter consequências ou efeitos. É preciso compartilhar
com as outras atividades do hospital-dia alguns critérios como, por exemplo, “o
estabelecimento de algum tipo de laço social”.
Que significa nestes casos convidar a mover-se. Mover que?

Poder mover-se dentro de um âmbito social, requer em muitos desses pacientes


de um minucioso trabalho que desde o corporal, implica em primeiro lugar, tomar “o
que há” que muitas vezes é “o que ficou”. O que há é o que ficou depois do terremoto,
do arrasamento. Então é armar desde o que há funções básicas de movimento e
sensações que ficaram inibidas, perdidas no transcurso da história ou deterioradas por
falta de estimulação e muitas vezes pela magnitude do arrasamento. Não se trata então
de recuperar nada.

Pôr em marcha estruturas ósseas, articulações e massas musculares que parecem


detidas no tempo, significa também a posta em marcha de estruturas psíquicas, de certas
representações do corpo, ai onde o deterioro do esquema corporal, aquilo mais carnal,
traz também um efeito na imagem que cada paciente tem de si mesmo. Imagem que não
reflete, ou não permite registrar o que se está fazendo como algo próprio.
Um exemplo: ao tomar o movimento feito por algum paciente e pedir que os outros o
imitem, foi muito freqüente ver caras de surpresa e frases como: “Eu estava fazendo
isso? ou “Não lembro o que estava fazendo”. Podemos pensar aí, Cadê o piloto?
Isto que não se sabia quem o fazia passa a ser de alguém. Algo se nomeia e passa a ter
um lugar. Se verificará depois se essas intervenções vão fazendo alguma marca.

A oficina de movimento pode conformar um lugar, que convoca a mover-se e


delimita um espaço de trabalho que se vai criando para cada paciente de maneira
singular. Agora bem, todas essas singularidades estão ao mesmo tempo, no mesmo
espaço e em movimento.
Na caminhada inicial da atividade, percorrendo o espaço, evidencia-se em que anda
cada um deles; então esses estados ansiosos, a mudez, os tremores, as tonturas, as
alucinações e esses rostos que levam os traços marcantes da depressão, da abulia, essas
figuras que parecem mumificadas, que não aparentam refletir afetos... começam a
andar... e monstruosos seres começam a modelar-se no espaço.

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Que fazer ai? Bem em principio não empreender a retirada se há algum desejo posto em
jogo, alguma posição tomada. Que o que fazer? se transforme em um fazer. Como
definir esse estranho lugar de orelha analítica que convida a mover-se, que intervém que
opera, mas não interpreta nem analisa? Verificar-se-á que inscrição vai ter para cada
paciente este lugar que não convida a falar...

Para coordenar esta proposta de trabalho está claro que não existem estados
ideais a alcançar. Trata-se de uma aposta para habilitar o desenvolvimento das próprias
possibilidades trabalhando desde e com as limitações de cada um. Intentar despertar,
desamarrar o petrificado a traves de consignas que estimulem a exploração em forma
criativa.

O trabalho concreto e pontual de movimentos vai deixando uma marca que


permite muitas vezes desenhar um corpo no qual sustentar-se, certa possibilidade de
projetar-se no espaço, de literalmente, poder deslocar-se sem cair o tempo todo.
Fomentar a produção, delinear bordes no ar, que cada um possa dar forma a esse
inventar com o corpo, inclui muitas vezes propor consignas diferentes para cada um.
Sempre é singular a maneira em que cada um aborda a consigna que foi dada, mas
inclui também muitas vezes uma enunciação de consignas diferente para cada um.

Poderia enumerar algumas direções especificas da atividade: aproveitamento da


capacidade espontânea de movimento; favorecer a regulação da tonicidade e
flexibilidade muscular; desenvolver a capacidade lúdica, expressiva e de concentração;
corporizar através da música, do silencio e da palavra, noções fundamentais de peso,
tempo, espaço, energia, matizes e qualidades de movimentos; desenvolver a
sensibilidade auditiva, trabalhar com a voz e os sons do corpo, além do uso de objetos
variados e músicas.

Trata-se de encontrar a lógica que vai guiando as intervenções com cada


paciente. Esses traços no ar vão deixando uma escritura no espaço e suscitam em
simultâneo diferentes leituras:

Alguma coisa desconecta a “L”, de repente ela fica imóvel como suspensa no ar,
seu olhar perdido, então ai aproximar-lhe um objeto, propor que tome a idéia de outro,
pergunta-lhe como ela quer continuar, são algumas das formas em que ela retorna. Suas

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pernas e braços vivem colados ao seu corpo, desloca-se como sem descarregar o peso e
assim parece flutuar, sem apoiar-se no chão.

“F”, pelo contrário, parece tirar-se com todo seu peso, então trabalhar ai com os
apoios nessas caídas, com as formas em equilíbrio; marcar nele que o movimento possa
chegar até a cabeça e que não fique cortado no pescoço, diferenciar momentos, antes,
depois, que mover-se não remeta a fazer sempre o mesmo.

Em “C” trata-se de mostrar que cada um está no seu trabalho. Toda pequena
elaboração dele é interrompida só pela presença dos outros, invadido começa a imitar
aos outros, a conversar sem parar ou tratar que os outros copiem seus movimentos, tudo
se torna rapidamente grudento, emaranhado.

Em “M” é constante a preocupação de “como se faz?”. Tudo o que ele escuta se


introduz no que ele faz. Nomear o que ele está fazendo, que possa ficar com algo e
continuar, foi aparecendo como um marco de referência que permite retomar trabalhos
iniciados em outro momento, sem começar sempre desde zero, isto é sem arrasar tudo
cada vez. Em uma ocasião chegou com um olhar perdido e seu corpo tremia, porque
vozes que chegavam de outro setor do hospital se introduziam no corpo dele e dizia que
não sabia si ele estava lá onde as vozes estavam, o se ele estava aqui na sala; falava sem
parar com os olhos exorbitados, etc., nesse instante apoiar minhas mãos nos seus
ombros e dizer firmemente olhando a ele: M você está aqui, foi instantâneo, seus olhos
exorbitados voltaram a ser parte de seu olhar.

“R” passa rapidamente de um movimento a outro, não se detém em nada, não


finaliza o que começa tudo fica entrecortado. Lentamente começa a esboçar-se a
possibilidade de algum percurso pela atividade que não seja uma mera descarga e
mostrar que aí coisas acontecem quando ela não vem. Que há uma história que vai se
escrevendo para cada um.

“J” tem uma atitude de exploração e descobrimento, vai provando cada consigna
minuciosamente, o espaço que ele usa sempre fica recortado do resto.

Em “K” tudo é diminuto e quando se move parece que vai pedindo licença e
desculpas, tem pouca variedade de movimentos, poucos elementos e que se repetem.
Parece que a atividade só serve para ela se relaxar e entreter.

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Todos estão em um mesmo espaço, mas são um conjunto? Cada um faz seu
percurso pela atividade, da mesma forma em que em cada um deles habita uma história,
aninha um andar pelo mundo que é único, sem repetição.

O espaço de movimento pode ser um lugar onde alguns possam produzir alguma
expressão criativa. Talvez esses movimentos desenhados no ar, que só duram um
instante, que o tempo todo não cessam de desaparecer, que apostam a inventar algo, não
são mais que intentos de dizer, de expressar esse não-laço social que os marca.

Vou concluir com a frase de um paciente, escrita no caderno que eu colocava à


disposição e deixava aberto para eles escrever e expressar comentários acerca da
atividade: “Esta atividade me serve para ter mais corpo”.

Então, como diz o poeta caminhante não há caminho... se vai fazendo caminho
ao andar....

Sara Arkanian

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