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Portugal Social de A a Z: Comentário

Temas em aberto João Lobo Antunes

V
com a Universidade de Toronto para comercialização da insulina, recém-
-descoberta. Esta colaboração público-privada na investigação, no desen-
volvimento tecnológico, em projetos de «incubação» e desenvolvimento
de novas empresas é hoje um rumo irreversível. A afirmação, citada no
texto, de que as universidades não devem ser os motores da inovação,
deve ser interpretada com reserva. Na área das Ciências da Vida, por
exemplo, a inovação emerge naturalmente da aliança da ciência básica
com a aplicada, e nem sempre é possível destrinçá-las.
As universidades estão cada vez mais implantadas no mercado da
educação de um modo que certamente chocaria os nossos antepassados
académicos. Refiro-me, nomeadamente, aos designados «massive open
online courses» («MOOCs»), que pretendem atingir, sobretudo na área
das humanidades, uma população vastíssima, alienando, em grande me-
dida, o contato pessoal, a troca direta de conhecimentos e ideias que está
na essência de qualquer modo de ensinar. Para os mais críticos, as
MOOCs não pretendem democratizar ou desenvolver a educação, mas Valores O estudo dos valores humanos baseia-
se no pressuposto de que os valores
sim poupar dinheiro, fazer dinheiro e manter uma ligação corrupta entre Cícero Roberto Pereira constituem um conjunto de princípios
a aérea dos negócios e a academia. Se é verdade que as novas tecnologias e Alice Ramos estruturantes da vida das pessoas e da
de informação já marcaram incisivamente métodos e programas educati- organização da sociedade. Mas o que
vos, será que trarão consigo uma mutação irreversível dos princípios fun- são valores? Quais são as suas fontes? E em que medida os valores repre-
dadores que garantiram a sobrevivência da mais duradoura criação da sentam diferenças entre culturas? Neste capítulo procuraremos respon-
inteligência humana? der a estas questões a partir da investigação que os cientistas sociais têm
A resposta a esta questão tem de ser um rotundo não, mas obriga- vindo a realizar, procurando dar saliência ao estudo dos valores no con-
nos a refletir sobre o que importa preservar e como fazê-lo. Martha C. texto português.
Nussbaum, filósofa distintíssima, trata precisamente esse tema num livro
recente, «Not for profit, Why Democracy needs the Humanities». Vale a O que são valores?
pena citar na íntegra a sua conclusão: «Democracies have great rational A literatura tem mostrado um importante esforço na delimitação
and imaginative powers. They also are prone to some serious flaws in do conceito de valor de modo a que seja o mais claro e objetivo possível,
reasoning, to parochialism, haste, sloppiness, selfishness, narrowness of apesar de ainda existir algum dissenso sobre o que realmente são os valo-
the spirit. Education based mainly on profitability in the global market res. O antropólogo Clyde Kluckhohn (1951) propôs que um valor seria
magnifies these deficiencies, producing a greedy obtuseness and a techni- uma conceção explícita ou implícita sobre o que é desejável. O sociólogo
cally trained docility that threaten the very life of democracy itself». Talcott Parsons (1952), por sua vez, preferiu descrever o conceito a partir
Mais do que nunca, é pois necessário pensar a universidade como das suas características funcionais: os valores seriam critérios ou padrões
uma célula viva, revestida por uma membrana permeável que permita de julgamento a que as pessoas recorrem para tomar decisões perante
trocas constantes com uma sociedade de metabolismo cada vez mais ati- situações sociais em que são confrontadas com diferentes alternativas
va. Mas é no núcleo dessa célula que deve ser preservado o código de possíveis. Contudo, faltava saber o que caracterizaria esses critérios ou
princípios que define e sustenta uma democracia moderna. padrões de julgamento. Foi o psicólogo social Milton Rokeach (1973)
quem os caracterizou como crenças individuais. A ideia de valor enquanto

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crença viabilizou a realização das principais investigações empíricas Inicialmente, Shalom Schwartz e seus colaboradores desenvolve- A

sobre este tema nos últimos 40 anos. Para Rokeach um valor seria, na ram um método de estudo das motivações subjacentes aos valores huma- B
verdade, um tipo particular de crença: uma crença duradoura sobre com- nos que consistia em pedir às pessoas que indicassem a importância de
portamentos (e.g., obedecer as leis) ou princípios-fim (e.g., a liberdade) 57 valores enquanto princípios-guia nas suas vidas. Este método ficou co- C

que uma pessoa acredita que a sociedade prefere que sejam realizados. nhecido como o Schwartz Value Survey (SVS). A partir da análise do pa- D
Um sistema de valores seria um conjunto de crenças sobre a hierarquia drão de respostas, Schwartz identificou 10 tipos de motivações básicas
de importância dos comportamentos e princípios-fim que as pessoas ima- que seriam a razão pela qual as pessoas aderem a alguns valores e não a E

ginam que a sociedade prefere que sejam prioritários. outros. Essas motivações seriam responsáveis pela agregação dos valores F
Algum tempo depois, Shalom Schwartz e colaboradores (e.g., nos seguintes domínios ou tipos motivacionais: universalismo; benevolên-
Schwartz et. al. 2012) propuseram uma teoria sobre a natureza e orga- cia; tradição; conformidade; segurança; poder; realização; hedonismo; G

nização dos valores humanos integrando as principais características estimulação e autodireção. A Tabela 1 descreve as motivações subjacentes H
dos valores identificadas por Rokeach (1973) − um valor como uma a cada tipo de valor e as necessidades humanas que representam.
I
crença sobre comportamentos e princípios-fim − e por Kluckhohn Teoricamente, os 10 tipos de valores seriam universais justamente por-
(1951) − um valor como uma conceção sobre o que é desejável − o que, que representariam motivações psicológicas básicas. Para analisar essa hipó- J
paradoxalmente, pode ter contribuído para a ambiguidade do conceito tese, Schwartz realizou estudos em vários países onde não só observou a
K
de valor. A ambiguidade reside no facto de os valores poderem ser con- presença dos 10 tipos motivacionais, como constatou a existência de relações
ceções ou crenças. A definição proposta por Schwartz realça outras ca- de compatibilidade e conflito entre valores. Dois valores são compatíveis na L
racterísticas típicas dos valores, como o facto de transcenderem medida em que expressam motivações psicológicas similares. Por exemplo,
M
situações específicas e serem funcionais na medida em que têm força os valores autonomia e criatividade são compatíveis porque representam a
motivacional suficiente para guiar as atitudes e comportamentos dos motivação das pessoas para promoverem a livre expressão de pensamento e N
indivíduos, como, aliás, Parsons (1952) já havia destacado no contexto a busca de novas experiências. Um conflito de valores ocorre quando estes
O
da sua teoria geral da ação. representam duas motivações psicologicamente antagónicas. Esse conflito
está presente, entre outros, na oposição entre os valores que traduzem a mo- P
A fonte dos valores tivação para a abertura à mudança (representando a compatibilidade entre
Q
A teorização sobre os valores também tem proposto um conjunto autodeterminação, estimulação e hedonismo) e os valores que traduzem a
de hipóteses sobre a fonte dos valores. Essas hipóteses tentam especificar motivação para a conservação (representando a compatibilidade entre valo- R
os princípios psicológicos básicos que motivam as pessoas a adotar um rizar a segurança, a tradição e a conformidade). O princípio que organizaria
S
conjunto de valores e evitar aderir a outros. Por exemplo, segundo a teo- esta oposição seria um conflito entre a motivação das pessoas para expressa-
ria proposta por Schwartz e colegas, a origem dos valores pode ser encon- rem o seu pensamento de maneira independente, agindo com o objetivo de T
trada em três necessidades que considera universais: necessidades promover a mudança social, e a motivação para agirem de forma submissa
U
biológicas; necessidade de relações sociais estáveis e necessidade de bem- perante a autoridade, promovendo a estabilidade na sua vida pessoal e social,
-estar e de sobrevivência dos grupos. Neste sentido, a adesão das pessoas isto é, nos costumes e tradições. Um exemplo típico desse conflito estaria na V
aos valores é motivada pelo seu desejo de satisfazer essas necessidades. oposição entre a valorização da autonomia e da tradição na medida em que o
W
Um dos principais desafios no estudo dos valores seria, portanto, identifi- primeiro representa a motivação das pessoas para agirem no sentido de pro-
car as motivações básicas que determinam a adesão das pessoas a um moverem a livre expressão de pensamento e ação independentemente do X
conjunto de valores. Trata-se de um esforço que muitos investigadores que os outros pensam ou fazem, enquanto o segundo representa uma moti-
Y
têm feito para aferir em que medida uma pessoa adota um valor e o hie- vação oposta, caracterizada pelo desejo de manutenção e preservação de tra-
rarquiza no seu sistema de valores. dições culturais, familiares e religiosas. Z

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Outro conflito motivacional contrapõe os valores de autotrans- Tabela 1 | Fonte, tipos e subtipos de valores e motivações (inspirado em Schwartz e colegas 2012) A

cendência (representando a compatibilidade entre universalismo e bene- FONTE TIPO DE VALOR SUBTIPO MOTIVAÇÃO B
volência) aos valores da autopromoção (representando a compatibilidade (Necessidades) DE VALOR
Promover a liberdade para exprimir C
entre poder e realização). O princípio que organiza esta dimensão seria o Pensamento
as próprias ideias e habilidades
Organismo
conflito entre a motivação das pessoas para aceitarem os outros como Autodeterminação D
e interação Promover a liberdade para determinar
iguais, transcendendo os interesses pessoais em favor do bem-comum e a Ação
as próprias ações
motivação para atingir o sucesso pessoal e alcançar meios para exercer o E
Organismo Estimulação Procurar excitação, novidade e mudança
domínio sobre os outros. Um exemplo desse conflito seria a idêntica valo- F
rização da igualdade e do poder, uma vez que o valor da igualdade repre- Organismo Hedonismo Buscar o prazer e a gratificação sensual
senta a motivação das pessoas para promoverem a equidade social, G
Busca do sucesso de acordo
Interação grupal Realização
com os padrões sociais
enquanto o valor do poder representa a motivação para promoverem o H
domínio sobre as outras pessoas e grupos sociais através do controlo de Exercer o poder por meio do controle
Dominação
sobre outras pessoas I
recursos materiais e sociais. Interação grupal Poder
Exercer o poder por meio do controle
Atualmente, a teoria dos tipos motivacionais é a mais utilizada em Recursos
dos recursos materiais e sociais. J
todos os domínios das ciências sociais. De facto, trata-se de uma teoria for-
Obter segurança e poder por meio K
malmente bem estruturada e com evidência empírica que assegura a vali- Interação grupal Aparências da manutenção da imagem pública
dade da maioria das conjeturas que postula. No entanto, a investigação e evitar humilhação pública
L
conduzida por Schwartz e seus colaboradores durante mais de 20 anos per- Pessoal
Promover a segurança do ambiente
Organismo imediato M
mitiu verificar que alguns tipos de valores representam mais do que uma e interação Segurança
motivação psicológica básica. Para analisar em detalhe cada motivação, de- grupal
Societal
Promover a segurança e estabilidade N
da sociedade como um todo
senvolveram uma nova versão do questionário de medida dos valores, o
O
Portrait Values Questionnaire (PVQ) constituído por 57 perguntas que des- Manter e preservar as tradições
Grupal Tradição
crevem uma pessoa hipotética a expressar cada um dos valores que se pre- culturais, familiares e religiosas
P
tende avaliar. Por exemplo, para avaliar o valor da igualdade, o PVQ sugere Promover a conformidade às regras,
Regras Q
aos participantes que imaginem «uma pessoa que acha importante que leis e obrigações formais
Interação grupal Conformidade Promover a conformidade com outras
todas as pessoas no mundo sejam tratadas igualmente. Acredita que todos R
Interpessoal pessoas para evitar perturbá-las
devem ter as mesmas oportunidades na vida». A tarefa dos participantes é ou prejudicá-las.
S
indicar em que medida consideram a pessoa descrita parecida consigo. Grupal Humildade Reconhecer as próprias limitações
As motivações básicas acima descritas foram observadas em Portu- T
Organismo Lealdade Ser fiel e confiável ao endogrupo
gal nos estudos realizados por Alice Ramos (2011), a partir de dados do e interação grupal
Benevolência
Cuidado Buscar o bem-estar do endogrupo U
European Social Survey, que inclui uma escala reduzida do PVQ adaptada
por Schwartz para o efeito. A autora identificou a hierarquia dos princí- Promover a igualdade, a justiça V
Justiça
e a proteção para todas as pessoas
pios motivacionais subjacentes aos valores dos portugueses e comparou-a
W
com a hierarquia dos valores de cidadãos de outros países europeus. Promover a proteção da natureza
Interação grupal Prot. Natureza
Universalismo e dos recursos ambientais
Os estudos realizados permitiram constatar que tanto em Portugal como e organismo X
nos restantes países analisados as pessoas dão prioridade aos valores da Promover a aceitação e a compreensão
Tolerância em relação às pessoas percebidas como Y
autotranscendência e da conservação, dando menos importância aos va-
diferentes
lores da abertura à mudança e da autopromoção. Analisando os dados Z

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das seis vagas do ESS (ver a Figura 1), podemos verificar que a hierarquia «construção de finalismos fechados no interior do circuito artificial de A

dos valores dos portugueses se mantém estável ao longo dos últimos 10 necessidades, funções, atores e comportamentos» (p. 103). Uma visão B
anos, ainda que alguma aproximação entre os valores da autopromoção e menos funcionalista e individualizante sobre a fonte dos valores tem
da abertura à mudança seja notável, sobretudo devida a uma ligeira dimi- sido proposta por Cícero Pereira e outros investigadores (2005). De C

nuição na importância atribuída aos últimos. acordo com esta perspetiva, os valores serão princípios básicos social- D
mente partilhados sobre o modo como a sociedade deve ser organizada.
Figura 1. | Hierarquia dos Valores em Portugal Mais do que representar motivações e necessidades básicas, os valores E

6 expressam os conflitos ideológicos, orientam os comportamentos e F


estão ancorados nas identidades sociais e nos posicionamentos ideológi-
cos derivados dessas identidades. G

5 H

Figura 2. | Estrutura Motivacional dos Valores I


(inspirado em Schwartz e colegas 2012)
4
J

K
3
L

M
2
N

O
1
2002 2004 2006 2008 2010 2012 P
Autotranscedência Abertura a Mudança
Q
Conservação Autopromoção

Fonte: Bases de dados do ESS R

S
Recentemente, a teoria foi revista por Schwartz e colegas (2012),
resultando um modelo que distingue 19 tipos motivacionais em vez dos T

10 do modelo inicial (Figura 2). Apesar da sua ampla utilização, o mode- U


lo de Schwartz tem vindo a receber algumas críticas. Ao ancorar a fonte
dos valores nas necessidades e motivações individuais, a teoria dos tipos V

motivacionais parece distanciar os valores do seu aspeto mais central –


W
a sua natureza social –, aproximando-os de obscuros pressupostos fun-
cionalistas que as ciências sociais herdaram da biologia. Como salienta X
o sociólogo João Ferreira de Almeida (2013), a relação dos valores com
Y
as necessidades humanas, embora possível, deve ser realizada com
alguma precaução sem a qual o estudo dos valores estaria restrito à Z

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Valores e diferenças culturais país onde se valoriza mais os elementos típicos de sociedades coletivistas A

Para além da investigação sobre os valores estar assente no pres- do que os aspetos que definem as culturas mais individualistas. B
suposto de que estes representam princípios fundamentais que orien- Apesar de o contínuo individualismo-coletivismo ser um importante
tam os vários aspetos da vida das pessoas e, assim, permitir o estudo das princípio organizador das diferenças culturais, outras dimensões valorati- C

diferenças individuais, outro pressuposto que orienta a investigação vas têm sido propostas para a compreensão das características culturais D
neste domínio é a ideia de que a importância que uma sociedade em das sociedades contemporâneas. Por exemplo, na sua obra A Revolução
Silenciosa, Ronald Inglehart (1977) propôs que as diferenças culturais refle- E
geral confere aos valores também reflete os princípios fundamentais
que orientam essa sociedade, o que permite o estudo dos valores parti- tem uma interação complexa entre o desenvolvimento sócio-económico e a F
lhados em diferentes países e culturas. Isto é, para além de os valores prioridade que, em cada sociedade, se atribui a dois conjuntos de valores
sócio-políticos, designados por valores materialistas e pós-materialistas. G
serem crenças duradouras que guiam a vida das pessoas, são também
princípios-guia de uma sociedade. Estes são o que autores como Geert Esta proposta baseou-se numa interpretação que Inglehart fez das teses de H
Hofstede e Ronald Inglehart designaram por valores culturais. Por Max Weber sobre a relação entre os valores e o desenvolvimento do capita-
I
exemplo, ao analisar as diferenças entre 50 países em vários domínios lismo. Para Inglehart (1977) os valores materialistas representam uma mu-
da vida cultural, Geert Hofstede (1980) identificou um princípio valora- dança ocorrida nas sociedades industriais modernas. Esta mudança J
tivo básico responsável pela maioria das diferenças entre práticas e caracterizou-se pela diminuição da importância dos valores religiosos como
K
orientações culturais dos países estudados. Trata-se de um princípio or- princípios-guia dessas sociedades e pela emergência de um Estado laico
ganizador dos valores que distingue a orientação para o individualismo orientado para a satisfação das necessidades básicas da sua população. As L
(i.e., a importância que uma sociedade confere às ações motivadas pelo prioridades seriam, então, o crescimento económico e a promoção de um
M
autointeresse e pela realização pessoal) e a orientação para o coletivis- ambiente de segurança e ordem, quer em termos individuais (relações in-
mo (i.e., a importância que uma sociedade atribui às ações orientadas terpessoais e familiares), quer em termos sociais (segurança nacional, por N
para a satisfação do interesse comum). De acordo com Hofstede (1980), exemplo). Neste sentido, a passagem do sistema de produção típico das so-
O
cada sociedade poderia ser descrita a partir da sua posição no contínuo ciedades feudais para o sistema de produção capitalista, característico das
individualismo-coletivismo. Sociedades individualistas seriam aquelas sociedades modernas teria sido acompanhada por sucessivas mudanças nos P
que valorizam as ações que promovem a independência dos indivíduos valores culturais: os valores religiosos davam lugar aos valores materialis-
Q
em detrimento das orientações normativas de seus grupos de referência tas. O principal postulado de Inglehart (1977) é o de que o desenvolvimento
(e.g., o grupo familiar; as instituições às quais pertencem), enquanto económico gera mudanças no sistema de valores culturais que, por sua vez, R
sociedades coletivistas seriam aquelas que valorizam mais as ações produzem um efeito de feedback, alterando os sistemas económicos e polí-
S
orientadas para a manutenção do status quo, em que os interesses indi- ticos das sociedades. Alcançada a estabilidade económica e a segurança da
viduais são postos ao serviço do «bem-comum». população este processo daria origem a uma revolução silenciosa dos valo- T
Isto significa que nas sociedades individualistas valorizam-se mais res culturais tornando mais abstratas as necessidades e aspirações das suas
U
a promoção da autonomia dos cidadãos e a sua independência afetiva em populações, agora dirigidas para a autorealização, a liberdade de expressão
relação aos outros membros da sociedade porque o objetivo das normas e estética e política, e a proteção do ambiente. Os valores pós-materialistas V
práticas culturais é a satisfação das necessidades e interesses do indiví- representariam esta fase no processo de mudança cultural.
W
duo. Contrariamente, nas sociedades coletivistas valorizam-se mais as Com base nos dados do European Value Study de 1981, 1990 e 1999,
práticas tradicionais e incentiva-se a interdependência afetiva do indiví- a propósito da saliência de valores materialistas e pós-materialistas no X
duo em relação aos seus grupos de referência, dado que o objetivo da cenário europeu, Jorge Vala (2003) verificou a prevalência generalizada
Y
ação individual é manter a harmonia da coletividade. Os resultados da dos primeiros. Contudo, de 1981 para 1990 registou-se uma mudança na
investigação conduzida por Hofstede caracterizaram Portugal como um direção do pós-materialismo na maioria dos países, tendência contrariada Z

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Figura 3 | Posição de Portugal e de outros países europeus na dimensão materialismo-pós-materialismo posição materialista, ainda que se observe uma ligeira tendência de mu- A

dança de valores em direção ao pós-materialismo ao longo do tempo. B


2,0 O bloco de países nórdicos (Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia),
apresenta uma suave mudança nos valores em direção ao pós-materialis- C
1,5
mo, sendo em 2008 aqueles que mais importância atribuem a estes valo- D
1,0
res como metas a serem atingidas nas respetivas sociedades.
E
0,5

Pós-Materialismo
Considerações finais F
0,0
Os valores têm sido estudados como sinónimos de crenças individu-
G
-0,5 ais relativamente estáveis sobre os comportamentos e princípios-fins con-
siderados prioritários, ou seja, os valores individuais que guiam os vários H
-1,0
aspetos da vida das pessoas. Numa perspetiva distinta, os valores têm sido
I
-1,5 estudados como princípios-guia de uma sociedade, isto é, os valores cul-

Materialismo
turais que se refletem nas disposições normativas que regem as socieda- J
-2,0
1990 1999 2008 des e que permitem o estudo das diferenças culturais.
K
Muito tem sido feito e o campo de estudo dos valores continua a
Países Nórdicos UE Pré-Alargamento Pós-Alargamento Portugal

Fonte: Bases de dados do EVS


ser um terreno muito fértil, quer do ponto de vista do seu impacto nas L

orientações de vida das pessoas, na compreensão dos processos de mu-


M
dança social, como ainda na identificação dos processos individuais e dos
de 1990 para 1999 período durante o qual se assistiu a um decréscimo ou
contextos sociais que estão na origem das diferentes configurações nor- N
estabilização da importância do pós-materialismo. Dados da mais recente
mativas adotadas pelos indivíduos ao longo da vida. O
vaga do EVS (2008) confirmam esta tendência. A Figura 3 apresenta a
posição de Portugal e de três grupos de países na dimensão materialismo/ P
pós-materialismo. Os indicadores de materialismo presentes no inquérito
Referências Bibliográficas Q
são «manter a ordem no país» e «combater o aumento dos preços»,
enquanto os indicadores de pós-materialismo são «dar aos cidadãos maior Almeida, J. F., 2013. Desigualdades e perspetivas dos cidadãos: Portugal e a Europa. Lisboa: Mundos R
capacidade de participação nas decisões importantes do Governo» e «de- Sociais.
Hofstede, G., 1980. Culture»s consequences: International differences in work-related values. Beverly S
fender a liberdade de expressão». Como podemos verificar, nenhum bloco Hills: Sage.
de países apresenta uma orientação inequivocamente pós-materialista. Inglehart, R., 1977. The silent revolucion. Princeton: Princeton University Press. T
Kluckhohn, C., 1951. «Values and value-orientations in the theory of action: An exploration in defini-
A posição de Portugal é claramente materialista, posição que se manteve
tion and classification», in T. Parsons e E. Shils (eds.), Toward a general theory of action. Cam- U
estável de 1990 a 1999, acentuando-se esta tendência em 2008. O bloco bridge: Harvard University Press, 388-433.
dos outros países da União Europeia pré-alargamento (Bélgica, França, Parsons, T., 1952. The Social System. London: Tavistock Publications.
V
Pereira, C.; Camino, L., e Costa, J. B., 2005. «Um estudo sobre a integração dos níveis de análise dos
Alemanha, Grécia, Holanda, Espanha e Reino Unido), que apresentava sistemas de valores», Psicologia: Reflexão e Crítica, 18: 16-25.
W
uma tendência para o pós-materialismo em 1990, registou uma pequena Ramos, A., 2011. Human values and opposition to immigration in Europe. Tese de doutoramento.
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
mudança, passando em 1999 a mostrar uma orientação mais materialista, Rokeach, M.. 1973. The nature of human values. New York: Free Press. X
tendência que se manteve em 2008. O bloco de países do alargamento Schwartz, S. H. et. al., 2012. «Refining the theory of basic individual values». Journal of Personality
and Social Psychology, 103: 663-688. Y
(Bulgária, Croácia, Chipre, República Checa, Estónia, Hungria, Lituânia, Vala, J., 2003. «Introdução», in J. Vala; M. V. Cabral e A. Ramos (orgs.), Valores sociais: Mudanças e
Polónia, Roménia, Eslováquia e Eslovénia), também apresenta uma contrastes em Portugal e na Europa. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 27-44. Z

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