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Em defesa da arte da performance’ Guitermo Gomez-PENA? —Com licenca, poderia definir a arte da performance? “Um monte de gente ‘estranha’ que gosta de andar pelada e gritar lemas esquerdistas sobre o palco.” (Yuppie gringo em um bar) “Os artistas de performance sto... maus atores.” (Um “bom” ator) “Voc8 esté se referindo a esses liberais decadentes ¢ elitistas que se escondem atrés da ‘arte’ para pedir dinheiro ao governo?" (Politico republicano) “E uma coisa muito... muito bacana. Te faz... pensar e se cagar de tanto rir.” (Meu sobrinko) “A Performance 6 tanto a ‘antitese como o antidoto para a alta cultura.” (Artista de perfor- mance) "Eu te respondo com uma piada: 0 que se obtém quando se ‘cruza um comediante com um performero? Uma piada que ninguém entende.” (Um amigo) Introdugéo. Durante vinte anos, muitos jornalistas, membros do publico e parentes me fizeram as mesmas perguntas de diferentes maneiras: O que é “exatamente” a arte da performance? E o que faz um artista de performance ser, pensar € atuar como tal? Neste texto, tentarei responder a essas perguntas de maneira cliptica, criando um esbogo poético de um performero em pé sobre o mapa da arte da performance no novo século, segundo minha percepcao. Para ser 1” qraduzido para o portugués por Bruna Nunes da Coste Triana (PPGAS/USP), da versio em espanhol publicada em Diana Taylor & Marcela Fuentes (eds.), Estudios avanzados de performance, México, Fondo de Cultura Fconmica, 2011. 2 . 442 coerente com minha pr6pria pratica estética, enquanto tento responders espinhosas perguntas, atravessarei constantemente as fronteiras entre 2% e.acrénica; entre os terrenos acidentados do pessoal e do social (entre o 0 “nés”), com a esperanca de descobrir algumas encruzilhadas e pontes teressantes. Tentarei escrever com toda a paixdo, o valor ea clareza e fazé-lo para leitores nao especializados; porém, peco amavelmente a0 que preste atencao: a natureza escorregadia e em permanente transfo: desse “campo” dificulta a0 extremo tragar definigses simplistas. Come mentou 0 te6rico Richard Schechner, depois de ler a primeira versio Gs texto, “o ‘problema’, se é que hd um problema, é que o campo da perfo ‘em geral’ 6 muito grande e abrangente. Pode ser, ¢ de fato é, aquilo que: que estio fazendo dizem ser. Ao mesmo tempo ¢ pela mesma razio, 0 c ‘especifico’ é muito pequeno ¢ cheio de subterfiigios; € tio pequeno ca a propria préxis de quem a desempenha”, Nesse sentido, no presente text tentarei articular exclusivamente minha viséo. Devido ao fato de que me oponho aos discursos dominantes, especial: aqueles engendrados por minha prépria psiqué, estou plenamente conscie de que minha voz dentro deste texto ¢ somente uma dentre uma multid de subjetividades. De maneira alguma tento falar por outros, nem estabeles fronteiras e postos de controle no mapa da performance, nem declarar il ma nenhuma pritica artistica que nao seja capturada por minha cmera. leitor detectar algumas contradigdes conceituais e inconsisténcias em escrita (especialmente no uso do perigoso pronome “nés”, ou na locali caprichosa de alguma fronteira), peco que me perdoe: sou contraditério, « © a0 a maioria dos performeros que conheco. Para concluir esta introducio, quero agradecer de maneira atenciosa Ric! Schechner, Adrian Heatfield, Carolina Ponde de Leén, Marléne Ramires -Cancio e Nara Heeman por terem desafiado de modo inteligente as vers® prévias deste texto, sugerindo que eu abrisse mais portas € janelas; bem com Rebecca Solnit e Kaytie Jonson pela incomensurivel paciéncia ao revisar mis estranha sintaxe e incongruéncias conceituais em inglés (a versao original escrita nesse idioma). Algumas dessas verses apareceram em Art Papers, assis como em um catélogo intitulado Live Culture, publicado pelo Tate Modes Museum (Londres). Por fim, gostaria de agradecer Silvia Peléez por sua extrem paciéncia ao tentar fazer com que meu texto cruzasse in reverse a fronteira & linguagem para ser publicado em espanhol; ¢ também Marcela Fuentes, afind-lo com sua paciéncia e sua inteligéncia bicultural. rtogratia da performance .O mapa Primeiro, desenhemos 0 mapa. Eu vejo a mim mesmo como um cartégrafo experimental. Nesse sentido, posso aproximar-me de uma definigdo da arte da performance tracando o espago “negativo” (como entendido na fotografia e no como na ética) de seu territério conceitual: ainda que em algumas ocasiées nosso trabalho se sobreponha ao teatro experimental e muitos de nés utilizemos a palavra falada, stricto sensu, no somos nem atores nem poetas. (Podemos ser atores e poetas temporirios, mas nés nos regemos por outras regras e nos sustentamos em uma histéria diferente.) A maioria dos artistas da performance também é formada por es- critores, mas somente alguns de nds escrevemos para publicacio. Teorizamos sobre a arte, a politica e a cultura, mas nossas metodologias interdisciplinares sio diferentes daquelas préprias aos teéricos académicos. Eles utilizam biné- culos; nés usamos radares. De fato, quando os estudos académicos sobre a performance (performance studies ou estudos da performance) se referem ao “campo da performance”, com frequéncia esto se referindo a algo distinto, um campo muito mais amplo que compreende tudo o que envolve a represen- tacdo e a encenacdo da cultura, incluindo a antropologia, as préticas religiosas, a cultura popular e até mesmo os eventos esportivos e civicos. Nos também somos cronistas de nosso tempo, mas, diferentemente dos jornalistas ou co- mentaristas sociais, nossas cr6nicas tendem a se afastar da narrativa e a ser multivocais. Se utilizamos o humor, néo estamos buscando a gargalhada como 0 fazem nossos primos, os comediantes. Pelo contrério, nos interessa provocar a ambivaléncia do riso nervoso e melancélico ou os sorrisos dolorosos, embora seja sempre bem-vindo um estouro ocasional de riso pleno. Muitos de nés somos exilados das artes visuais, mas raramente construimos objetos com a finalidade de que sejam expostos em museus e galerias, De fato, nossa principal obra de arte & nosso pr6prio corpo, impregnado de implicacées semiéticas, politicas, etnograficas, cartograficas e mitolégicas. Diferentemente dos artistas plasticos e dos escultores, quando criamos objetos, nés os fazemos para que sejam manipulados ¢ utilizados sem remorso durante a performance. Nao nos importa, na verdade, se esses abjetos se gastam ou se destroem. Quanto mais utilizamos nossos “artefatos”, mais “carregados” e poderosos eles se tor- nam. A reciclagem é nosso principal modus operandi. E isso nos diferencia, de forma dramitica, da maioria dos designers de vestudrio, aderecos e cenografia, os quais raramente reciclam suas criagdes. aue ep 25ayP 83 a = wo Por vezes, acionamos a esfera civica ¢ provamos nossos novos personagens © acdes nas ruas, mas ndo somos “artistas publicos” em um sentido estrito; as ruas so meras extensdes do nosso laboratério de performance, galerias sem muros. Muitos de nés nos consideramos ativistas, porém nossas estratégias de comunicagao e linguagens experimentais sio consideravelmente distintas daquelas utilizadas pelos ativistas politicos. Em suma, nés somos o que os outros nao sao, dizemos 0 que os outros nae dizem, e ocupamos os espacos culturais que, em geral, sdo ignorados o= desprezados. Por isso, nossas numerosas comunidades est4o constitufdas pow refugiados estéticos, politicos, étnicos e de género. 2. O santuario Para mim, a arte da performance é um “territério” conceitual com clima ca- prichoso e fronteiras movedicas; um lugar onde a contradicio, a ambiguidad= e 0 paradoxo nio séo somente tolerados, mas estimulados. Cada territéric onde atua um artista da performance, incluindo o presente texto, produz um resultado ligeiramente diferente do de seu vizinho. Encontramo-nos “neste” terreno intermediario precisamente porque ele nos assegura liberdades especiais. muitas vezes a nds negadas em outros espacos, onde somos meramente insi- ders temporérios. Nessa medida, somos desertores da ortodoxia, engajados na busca permanente de um sistema de pensamento politico e uma praxis estétics mais inclusivos. £ uma viagem solitéria e mal compreendida, mas nos fascina_ “Aqui”, a tradico pesa menos, as regras podem ser quebradas, as leis e as truturas esto em constante transformagio, e ninguém presta muita atencao 3s hierarquias ou ao poder institucional. “Aqui”, nao hd governo nem autoridade visfvel. “Aqui”, 0 tinico contrato social que existe é nossa vontade de desafi: modelos e|dogmas autoritérios e, assim, continuar pressionando os limites cultura e da identidade. E exatamente nas nitidas fronteiras entre cultur géneros, profissdes, idiomas e formas artfsticas que nos sentimos mais co: fortéveis e onde reconhecemos nossos colegas. Somos criaturas intersticiai e cidadaos fronteiricos por natureza — simultaneamente membros e intrus =, € nos regozijamos nessa paradoxal condicdo. No ato mesmo de cruzar ums fronteira, encontramos nossa emancipacio... temporéria. Diferentemente das fronteiras impostas por um Estado/nagio, as fronteiras. em nosso “pais da performance” estao abertas aos némades, aos imigrantes. aos hibridos e aos desterrados. Nosso pais é um santuério provisério pars’ outros artistas e tedricos rebeldes, expulsos dos campos monodisciplinares e das comunidades separatistas. A performance também é um lugar interno, inventado por cada um de nés, de acordo com nossas préprias aspiracdes po- liticas e necessidades espirituais mais profundas, nossos desejos e obsessdes sexuais mais obscuros, nossas lembrancas mais perturbadoras e nossa busca inexordvel de liberdade. No momento em que termino este pardgrafo, mordo a lingua a0 me descobrir excessivamente romintico. Sangro. E sangue real. Meu piblico se preocupa. 3. O corpo humano Tradicionalmente, 0 corpo humano, nosso corpo ~ e nao 0 cenério -, € 0 ver- dadeiro local para a criagdo e nossa verdadeira matéria-prima. E. nossa tela em branco, nosso instrumento musical e nosso livro aberto, nossa carta de navegacdo € nosso mapa biogréfico; é o recipiente para nossas identidades em perpétua transformacao; em outras palavras, € 0 {cone central do altar. Mesmo quando dependemos demasiadamente de objetos, locais e situacées, nosso corpo continua sendo a matriz da obra de arte. Nosso corpo é também 0 centro absoluto de nosso universo simbélico — um modelo em miniatura da humanidade® (humankind e humanity sio a mesma palavra em espanhol: humanidad) ~ e 6, 20 mesmo tempo, uma metéfora do corpo sociopolitico mais amplo. Se somos capazes de estabelecer todas essas conexées diante de um ptblico, com sorte outros também as reconheceriio em seus préprios corpos. Nossas cicatrizes so palavras involuntérias no livro aberto de nosso corpo, do mesmo modo que nossas tatuagens, perfuragSes (piercings), pinturas corporais, aderecos, préteses €/ou acessérios robéticos sao frases deliberadas. Nossa identidade body/corpo/arte-fato deve ser marcada, decorada, pintada, vestida, culturalmente intervinda, repolitizada, desenhada como um mapa, contada e finalmente documentada. Quando nosso corpo esté ferido ou doente, ‘inevitavelmente, nosso trabalho muda./Frank Moore, Ron Athey, Franco B e outros tem mostrado isso em suas obras, de forma bela e implacavel. Nossos corpos também sao territérios ocupados. Talvez o objetivo tiltimo! da performance, especialmente se vocé for mulher, gay ou um pessoa “de cor” +” Nota da traducdo mexicana: em inglés, a palavra humankind significa humanidade, raga humane, género humano; humanity € humenidade, natureza humana, bem como caracteristicas e atributos hhumanos. No texto original em inglés escrito por Guillermo Gémez Pefia, a palavra esté escrita em espanhol Richard Schechner problematiza o argumento de meu corpo: “Se o corpo humano € 0 lugar tltimo da performance, onde o deixa os artistas ‘virtuais’ que s6 operam na rede usando avatares ou seres aoueunopad ep aye ep esojep wg (ndo anglo-saxdnica), seja descolonizar nossos corpos e evidenciar esses canismos descolonizadores perante o piblico, com a esperanga de que eles inspirem e facam o mesmo por sua propria conta. Ainda que respeitemos profundamente nossos corpos, curiosamente, nos importa colocé-los em constante perigo. £ precisamente nas ten do risco que encontramos nossas possibilidades corpéreas ¢ nossa ra! etre. Mesmo que nossos corpos sejam imperfeitos, frégeis ¢ de aparé: estranha, néo nos importa compartilhé-los completamente desnudos com: piblico, tampouco oferté-los em sacrificio 4 camera de video. No entani devo esclarecer uma coisa: néo é que sejamos exibicionistas (pelo m nao todos 0 somos). Na verdade, sempre € doloroso exibir e document nossos imperfeitos corpos, intervindos pela cirurgia mediatica, cobertos implicagGes politicas ¢ culturais. Nao temos outra opcdo. E quase um “ dato”, na falta de termo mais adequado. 4, Nosso “trabalho” Por acaso nés temos trabalho? Talvez nosso trabalho seja o de abrir um espago utépico/dist6pico tempor: ‘uma zona “desmilitarizada” na qual 0 comportamento “radical” significat (nio superficial) e 0 pensamento progressista sejam permitidos, ainda que’ durante 0 tempo de duracao da pega. Esta zona imaginéria permite, tanto 20 tista quanto aos membros do publico, assurmir posigdes e identidades multi e em continua transformagio. Nesta zona fronteiriga, a distancia entre o “ ©0 “eles”, 0 eu € 0 outro, a arte e a vida, torna-se embagada e nao especii Nao buscamos respostas; simplesmente fazemos perguntas impertine: Nesse sentido, para usar uma yelha metéfora, nosso trabalho poderia const em abrir a caixa de Pandora de nossos tempos, bem no meio da galeria, teatro, da rua, ou na frente da camera de video, e deixar que os dem: surjam e dancem. Outros, mais ‘bem treinados ~ os ativistas os académic terdo que lidar com eles, lutar contra cles, domesticd-los ou tentar explicé. Finda a performance, 0 publico vai embora; resta-nos a esperanga de qi tenha desencadeado um processo de reflexdo em suas perplexas psiqués. a performance for eficaz (no digo “boa”, mas sim eficaz), esse processo durar varias semanas, até mesmo meses, e as perguntas € dilemas encat nas imagens e rituais que apresentamos podem continuar rondando os so: completamente digitalizados?”. Richard propicia uma situacio cabeluda: deverfamos co como reais os “corpos virtuais"? as lembrancas e as conversas do espectador. O objetivo nio é “gostar de” nem mesmo “compreender” a performance, mas sim criar um residuo na psiqua do pblico, 5. O culto a inovacao O campo da arte da performance est4 obcecado com a inovagao e com o pre- sente, especialmente nos paises de primeiro mundo, onde, com frequéncia, a Inovacdo 6 tomada como sinénimo de transgressio, como antitese da historia, A performance se define a si mesma em oposicao ao passado imediato e sempre em didlogo com um futuro iminente e especulativo. A mitologia dominante diz que nds, os performeros, somos uma tribo excéntrica de pioneiros, inovadores e visiondrios. Isso nos propde um tremendo desafio. Se perdermos 0 contato com Os temas sociais e as tendéncias culturais do momento, facilmente podemos ficar “datados” da noite para o dia. Em outras palavras, se néo produzirmos Propostas frescas e inovadoras constantemente, e se néo buscarmos novos modelos e linguagens Para nossas teorias e imagens, seremos deportados ao pais do esquecimento, nquanto outros trinta, muito mais jovens e selvagens, estarao esperando na fila para nos substituir, A pressio que existe Para comprometer-se com esse processo continuo de Teinvengao (e, nos Estados Unidos, de “re-packaging”) forca alguns artistas a desistir dessa Competicao selvagem e outros a adotar um estilo de vida rock'n roll — estes, sem as benesses da Corte e¢ a exagerada fama dos Toqueiros. Aqueles que conseguem sobreviver Se sentem, muitas vezes, como roqueiros decadentes. Nao ha absolutamente nada de romAntico em nossa forma de vida, Apenas a um punhado de nds se concede o privilégio de ter viriee reencarna- S6es — como Bowie e Madonna ~ no impiedoso mundo do pops 6. “Kit” para a sobrevivéncia da identidade A performance nos deu uma ligdo extremamente importante que desafia todos 0s essencialismos: nao estamos presos na camisa de forca da identidade. Temos um repertério de identidades miiltiplas e perambulamos constantemente entre elas. Sabemos muito bem que com o uso de elementos cenogréficos, ue se tos definimos a nés mesmos como artistas da performance dentro da mais alt categoria ue podemos alcancar, entdo talvez nos estressemos com as demandas do mercado (de fato, existe tum mercado da arte da performance). Mas, se nos definimos simplesmente come ene tn entes, essa preocupacio se converte em algo secundério” esajop wi rauopiad ep aue ep § re maquiagem, acess6rios ¢ vestudrio nés podemos muito bem reinventar propria identidade aos olhos dos outros, e nos fascina experimentar © tipo de conhecimento. De fato, o jogo de inverter as estruturas sociais, e de género € parte intrinseca de nossa praxis cotidiana, da mesma fos © travestismo cultural também o é, Na performance, assumir a identi outras culturas e problematizar o préprio processo de representar 0 outro se fazer passar por um outro hibrido pode ser uma estratégia eficaz de “ pologia inversa”. Nao obstante, na vida cotidiana, como vitimas poten racismo (falo como um chicano® nos Estados Unidos), assumir a perso: de outras culturas pode, literalmente, salvar nossas vidas. Para dar um exemplo: quando meus colegas chicanos ¢ eu cruzamos fr internacionais, estamos cientes de que para evitar sermos enviados & i: mais rigorosa podemos usar sombreros ¢ trajes de mariachi e, assim, nos ventarmos instantaneamente como friendly mexicans (mexicanos amig® diante dos olhos racistas da lei. Funciona. Mas, mesmo af, se nao so: dadosos, nossa aura pode nos denunciar. 7. Sonhando em espanhol Sonhei, em espanhol, que um dia havia decidido nunca mais fazer mances em inglés. A partir desse momento, me dediquei a apresentar préprias ideias e minha arte estritamente em espanhol e somente para estadunidenses atonitos que ndo entendiam nada. Meu espanhol tornou-se vez mais retorico e complicado até o ponto em que perdi todo contato coms: priblico. Apesar dos ataques dos criticos racistas, teimei em falar espanhol. colaboradores se aborreceram e comecaram ame abandonar. De repente, sozinho, falando espanhol, entre fantasmas conceituais angléfonos. Feliz» acordei, e pude novamente fazer performances em inglés. Escrevi em didrio: “Os sonhos tendem a ser muito mais radicais que a ‘realidade’. P estdo mais perto da arte que da vida”. 8. O corpo insubstituivel E possivel que nossos publicos experimentem, indiretamente, isto 6, termédio de nés, outras possibilidades de liberdade estética, politica e Nota da trachigdo brasileira: chicano ¢ uma giria referente aos cidadios mexicanos que v Estados Unidos. Optamos por deixar o termo em espanhol, ¢ nfo traduzi-lo, por exem; exicano”, devido as intencionalidades e ambiguidades que o termo guarda em sua tanto em inglés quanto em espaahol. 0 texto em itélico foi escrito pelo autor em espanhol no original das quais carecem em seu cotidiano. Talvez seja essa a razdo pela qual, apesar das inémeras previsdes durante os tiltimos trinta anos, a arte da performance no tenha morrido nem sido substitufda pelo video, pelas novas tecnologias, pela robética ou ainda pelos avatares virtuais. No inicio dos anos 1990, 0 per- formero australiano Stelarc advertia que “o corpo humano (estava) tornando- -se obsoleto”, comentiirio que, felizmente, nao se tornou realidade. Por qué? Simplesmente porque é impossfvel “substituir” a magia inefavel de um corpo pulsante, suado, imerso em um ritual vivo diante de nossos olhos, £ uma questao xaménica Essa fascinacao pela performance ao vivo também esté conectada a poderosa mitologia do artista da performance como anti-heréi ¢ encarnagao da con- tracultura de seu tempo. Para nossos ptiblicos, realmente, néo importa que Annie Sprinkle ndo seja uma atriz preparada, nem que Ema Villanueva ou La Congelada de Uva no sejam bailarinas treinadas. Os publicos assistem 3 performance justamente para serem testemunhas de nossa experiéncia tinica, € nao para aplaudir nosso virtuosismo. Quaisquer que sejam as razdes, o fato é que nenhum ator, rob6 ou encamacéo virtual (avatar) € capaz de substituir o singular espetaculo do corpo-em-acio do artista da performance. Simplesmente nao posso imaginar uma atriz contratada, por melhor que ela seja, reapresentando as intervencées cirtirgicas de Orlan, Quando somos testemunhas de Stelarc apresentando um novo bodysuit robs. tico ou um brinquedo de alta tecnologia, depois de quinze minutos tendemos a prestar mais atencdo em seu corpo suado ¢ em seu rosto do que propriamente em sua armadura robética ou em suas extensdes protéticas. A paraferndlia & surpreendente, concordo; mas o corpo humano somado a identidade mftica do artista da performance diante de nés permanece 0 centro mesmo do evento. Recentemente, a artista da performance cubana Tania Bruguera embarcou €m um projeto extremamente ousado: abolir a presenca fisica do performero durante sua prépria performance. Bruguera pede antecipadamente que os curadores designem uma “pessoa normal”, nfo necessariamente ligada as artes, para que a substitua durante a performance. Quando Tania chega ao local do projeto, troca sua identidade com a da pessoa escolhida e se torna uma simples assistente para a realizacao dos desejos de sua colaboradora, Os curadores ficam boquiabertos. iad ep aue ep esajop wa Voltar o olhar para dentro 1. Em permanente desacordo com a autoridade Sim. Estou em permanente desacordo com a autoridade, seja ela poli religiosa, sexual ou estética, e questiono constantemente as estruturas 2 postas € os comportamentos dogmiticos onde quer que os encontre. que alguém me diz 0 que devo fazer e como fazé-lo, meu cabelo se erica, sangue ferve, e comeco a imaginar modos surpreendentes para desmant essa forma particular de autoridade. Compartilho esse trago de personali com a maioria de meus colegas. De fato, nds, performeros, sempre busc: o desafio que implica desmantelar a autoridade abusiva. Talvez porque em nosso empobrecido campo tenhamos muito pouco a pe: somado ao fato de que literalmente somos alérgicos 4 autoridade, nunca mos duas vezes por nos localizar na linha de fogo e denunciar a injustica onde quer que a detectemos. Assim, sem pensar duas vezes, estamos s preparados para jogar uma torta na cara de um politico corrupto, fazer sinal obsceno para 0 arrogante diretor de um museu ou colocar em seu um jornalista impertinente, sem nos importar com as consequéncias. frequéncia, essa caracterfstica de personalidade nos faz parecer antis imaturos € excessivamente dramiticos aos olhos dos demais — mas nao mos evitar. E uma questo visceral e, as vezes, um verdadeiro inconys de nossa personalidade. 2. Aliar-se com os de baixo Vemos nosso provével futuro refletido nos olhos dos indigentes, dos dos desempregados, dos doentes e dos imigrantes recém-chegados. } mundo se sobrepée ao deles. Frequentemente, sentimo-nos atraidos na diregao daqueles que apenas, brevivem nas perigosas esquinas da sociedade: as prostitutas, os béba loucos ¢ os prisioneiros so nossos irmios e irmis espirituais. Sentimos forte fraternidade espiritual com eles. Infelizmente, muitas vezes, afogamn nas guas em que nds nadamos; so as mesmas 4guas, mas se t diferentes niveis de imersio. No terreno politico, nossas acdes nao est4o motivadas pela ideologia. » humanismo reside na garganta, na pele, nos mtisculos, no coragio, no: solar e nos Grgaos genitais. Nossa empatia pela orfandade social se ex como uma forma visceral de solidariedade com aqueles povos, com: ou paises imersos na opressdo € nas violagdes dos direitos humanos, com aquelas vitimas das guerras impostas e das politicas econdmicas injustas. La- mentavelmente, como me afirmou recentemente a teérica Ellen Zacco, “[nés, 0s artistas] tendemos a falar por eles, 0 que é muito presungoso”. S6 posso concordar com ela. 3. Uma questao de vida ou morte A nuvem do niilismo nos persegue constantemente, mas, de alguma forma, escapamos dela. £ uma danga macabra. De maneira consciente ou nfo, den- tro de nés mesmos de fato acreditamos que o que fazemos muda a vida das pessoas, e tivemos muitas dificuldades para nos manter serenos em relagio a isso. Para n6s, a performance é uma questo de vida ou morte. Muitas vezes, nosso senso de humor empalidece diante de nossa sobriedade quando chega 0 momento de comprometer-se com um projeto de vida/arte. As vezes, nosso nivel de compromisso com nossas crengas pode beirar 0 fanatismo. Se repen- tinamente decidimos parar de falar durante um més (quer dizer, investigar 0 “siléncio”), caminhar durante trés dias para nos reconectarmos com o mundo social ou para investigar a especificidade do local de um projeto, cruzar a fronteira México-Estados Unidos sem documentos para fazer um pronuncia- mento politico, néo descansaremos até terminar nossa tarefa, nio importam as consequéncias. Para nossos entes queridos, isso pode parecer uma loucura, pois devem exercitar uma paciéncia épica conosco. Devem viver com a in- certeza ameagadora e 0 profundo temor do nosso compromisso seguinte em direcao a um projeto ainda mais transformador. Benditos sejam os coracées ¢ as maos dos(as) companheiros(as) de nossas vidas ~ sempre nos esperando e se preocupando conosco. E os riscos que corremos em nome da performance nem sempre valem a pena. 4. Riscos necessarios e desnecessarios Mesmo que sempre arrisquemos nossas vidas e a integridade fisica em nome da arte, raramente nos suicidamos ou perdemos a vida por causa de um acidente provocado pela performance, e definitivamente nunca assassinamos ninguém. Em vinte anos andando e trabalhando com artistas da performance, nunca co- nheci um homicida; somente trés colegas se suicidaram e dois perderam suas vidas devido a falhas de célculo durante uma performance. No processo de encontrar as verdadeiras dimensées e possibilidades de uma nova pega, alguns de nés, de maneira estipida, corremos riscos desnecessarios e, 4s vezes, coloca- mos em risco nosso ptiblico, mas felizmente nada de grave ocorreu ainda. Bato trés vezes na madeira. Cito de um de meus diérios: “Querido ptblico, tenho aouewrojsed ep ae ep esajap wy 45 cicatrizes; a metade delas produzidas pela arte, e esta nao é uma metéfora. Minha obsessao artfstica me levou a realizar atos flagrantemente esttipidos de transgressfo, como viver dentro de uma caixa de acrilico por varios dias exibindo uma identidade ficticia, crucificar-me vestido de mariachi para pro- testar contra a politica migratéria dos EUA, visitar 0 Museu Metropolitano de Nova York vestido como El Mad Mex e levado pelo pescogo com uma coleira de cachorro por uma dominatrix espanhola... Caros membros do piblico, por acaso desejam que eu seja mais explicito... digamos, que eu beba uma garrafa de ‘Ms Clean’ para exorcizar meus deménio coloniais? Lembro que em ce: ocasiao entreguei um punhal a um membro do piblico e lhe ofereci meu plex (Pausa.) ‘Mulher, eis aqui... meu corpo colonizado’ — disse-lhe em tom desa~ fiador. Ela veio até mim e, sem hesitar, me apunhalou, infligindo-me, assim minha cicatriz ntimero 45. Ela tinha apenas vinte anos, era porto-riquenha, desconhecia a diferenca entre a performance, o rock & roll e a vida da Péssima frase. Apaga...”. 5. Teoria incorporada ao corpo Cito dos meus diérios de performance: “Nossa inteligéncia, como a dos ea dos poetas, é simbélica e associativa. Nosso sistema de pensamento tende: possuir fundamentos tanto emocionais como corporais. De fato, a performa: sempre comeca em nossa pele e em nossos miisculos, se projeta sobre a esf social e retorna, pela via da nossa psiqué, a0 nosso corpo € A nossa corr sanguinea, apenas para ser refratada novamente ao mundo social por meio documentagao. Tendemos a desconfiar de todos aqueles pensamentos que podemos encarnar. Tendemos a nao considerar aquelas ideias que nao pod: sentir profundamente. Nesse sentido, podemos dizer que a performance é teoria incorporada ao corpo... “Apesar do fato de que analisamos as coisas obsessivamente e sob varios ret tores, quando chega a hora de tomar decisdes no dia a dia, tendemos a o por meio do impulso (raramente por meio da légica ou da conveniéncia) tomamos decisées baseadas na intuicdo, na supersticdo e nos sonhos. Por i: perante os olhos dos demais, parecemos seres ensimesmados, como se 0 verso girasse permanentemente ao redor de nossa psiqué e de nosso co: Muitas vezes, nosso maior desafio consiste precisamente em escapar de n« subjetividade — a prisio de nossas obsessies pessoais e de nosso deses; solipsista -, ¢ a performance se converte na tnica safda. Por intermédio performance, nosso paradigma pessoal se cruza com o social...” 6. A vida cotidiana Se eu tentasse “antropologizar” minha vida cotidiana, 0 que encontraria? Cito uma série de e-mails com um amigo peruano que procura entender “como émi- nha vida cotidiana em Siio Francisco”; “Querido X: os meandros de minha vida Cotidiana séo um verdadeiro inferno. Para ser sincero, simplesmente nao sei como administrar-me. Sou péssimo com dinheiro, assuntos administrativos, solicitagéo de bolsas, promogao pessoal e, com frequéncia, confio na boa vontade de quern queira me ajudar. Nao tenho plano de satide nem automével. Nao tenho casa propria, Viajo muito, mas sempre com relacdo ao meu trabalho, e raramente tenho férias, longas férias, como as que tém as ‘pessoas normais. Estou permanentemente endividado, mas, na verdade, eu nao me importo. Creio que é parte do prego que tenho que pagar por nao ter que me ver continuamente perturbado por questoes financeiras. Se pudesse viver sem conta em banco, sem carteira de motorista, passaporte ¢ telefone celular, eu seria muito feliz, ainda que esteja plenamente consciente da ingenuidade das minhas aspiragOes anarcorroménticas. Muitos colegas meus, aqui no chamado primeiro mundo, estao em situacio similar. E os artistas de performance de seu pais, como lidam com a cotidianidade?”. “Nao, meu inimigo mais formidavel nem sempre é a extrema-direita da socie- dade, mas sim minha prépria incapacidade de domesticar o caos cotidiano ¢ de me disciplinar, Na falta de um emprego das 9h as 17h, de estruturas sociais tradicionais e dos requisitos rituais de outras disciplinas (como os ensaios, as chamadas e reunides de producao no teatro, ou as vidas estruturadas e soci- Aveis dos dancarinos e miisicos), tendo a me sentir oprimido pela tirania da domesticidade e me perco facilmente no horror vacui de um escritério/atelié vazio ou na tela liquida de meu computador portitil. Algumas veres, a tela de meu computador se transforma em um espelho, e no gosto do que vejo. A melancolia rege meu processo criativo... Nao, ndo creio que a melancolia seja um traco de personalidade dos artistas chicanos.” “A performance é sim uma necessidade. Se nao fago performance durante um periodo longo de tempo, digamos dois ou trés meses, fico insuportével e deixo loucos meus entes queridos, Uma vez que retorno a galeria ou ao cenério, instantaneamente me sobreponho 4 minha orfandade metafisica e A minha fragilidade psicol6gica e me torno, como dizemos aqui, larger than life. Mais tarde, no bar, voltarei a recuperar minha verdadeira dimens&o e minhas me- diocridades endémicas. O humor irreverente de meus colaboradores e amigos contribui com este proceso de, chamemos-lhe, ‘apequenamento’.” “Minha salvacdo? Minha salvagio reside em minha propria habilidade para criar um sistema alternativo de pensamento e acdo capaz de proporcionar a>ueuoysad ep aize ep esajap wa uma estrutura ritualizada para minha vida cotidiana... Nao, retiro 0 que d Minha verdadeira salvacio a colaboracdo. Colaboro com outros na espe: de desenvolver pontes entre minhas obsessbes pessoais € 0 universo soc “Certo. Sou um pouco peculiar aos olhos de meus vizinhos e parentes. com os animais, com as plantas € com meus miiltiplos seres internos. Me cinam urinar ao ar livre e me perder nas ruas de cidades que desconheco. fascinam a maquiagem, a decoracao do corpo ¢ a roupa feminina. Em gosto de cyborgizar® a roupa folclérica. Paradoxalmente, nao gosto que fi me olhando. Sou uma contradigio ambulante. E vocé?” “Coleciono figurinhas, lembrangas, talismas e trajes incomuns, objetos = cionados simbolicamente & minha ‘cosmologia’, com a esperanga de que dia possam ser titeis em alguma obra. Trata-se de minha ‘arqueologia a qual remonta ao dia em que nasci. Com ela, aonde quer que eu v: truo efémeros altares para ancorar-me, ‘reterritorializar-me’, como di: académicos. Esses altares so téo ecléticos ¢ complexos como minha pra estética e minhas miltiplas identidades sincréticas.” “Sou extremamente supersticioso, mas prefiro ndo falar muito a respeito & Vejo fantasmas e leio mensagens simbélicas em todo lugar. Dentro de penso que existem leis metafisicas que regem tanto minha vida como processo criativo. Tudo é para mim um processo, até mesmo dormir ¢ nhar. Meus amigos xamis dizem que sou ‘tm xamé que perdeu seu ca Gosto desta definigdo da arte da performance.” 7. Arquivos disfuncionais Os artistas da performance possuem enormes arquivos em suas casas, mas nao séo precisamente funcionais. Em outras palavras, “as outras hist6riasé contempordnea” estio literalmente enterradas em caixas timidas, nos guarda-roupas dos artistas da performance em todo o mundo. Pior: algumas dessas caixas contém fotos e documentos tinicos de perfor matrizes originais de dudio e video; e, muitas vezes, esses arquivos ins tuiveis se extraviam no processo de mudanga para outra casa, cidade, ou amante, ou no processo de adquirir uma nova identidade. Se cada departamento de arte e de performance studies em cada univ: fizesse um esforco por resgatar de nossas desajeitadas mos esses argu ® © termo cyborg se utiliza na atualidade para descrever um ser que € metade humano «| ‘tecnologia. Nesse sentido, quando Gémez Pefia se refere a cyborgizar a roupa, implica logizacao do vestusto. Perigo, se salvaria uma importante historia que raramente se escreve, preci- samente porque constitui o espago “negativo” da cultura (como entendido na fotografia, e néo como na ética). 8. Ativistas desajeitados Com poucas excecoes, nés, artistas da performance, somos desajeitados mediado- res politicos e péssimos organizadores comunitérios. Nosso grande dilema a esse respeito 6 que, muitas vezes, nos vernos a nés mesmos como ativistas e, como. tais, tentamos mobilizar nossas comunidades étnicas ou profissionais. Entretanto, os resultados, benditos sejam nossos coragdes, com frequéncia sio pobres, Por qué? Perdemo-nos facilmente em questoes logisticas e discussées pragmiticas, Ademiais, nossas personalidades iconoclastas, nossas posturas antinacionalistas © propostas experimentais frequentemente nos colocam em oposi¢éo aos seto- Tes mais conservadores dentro mesmo de nossas comunidades. Porém, nunca aprendemos esta licdo basica: definitivamente, a organizag3o comunitdria ¢ a negociacdo politica nao so 0 nosso forte. Outros, mais sagazes, devem ajudar- “hos @ organizar a estrutura de nossa loucura compartilhada - e ndo 0 contrério. ‘Também possufmos outro tipo de habilidade e desempenhamos melhor outros P ipo pel papéis importantes para nossa comunidade, tais como animateurs, reformistas, inventores de metaficcdes originais, coredgrafos de surpreendentes agdes co- letivas, semiticos alternativos e piratas da midia. De fato, nossas estratégias estéticas (¢ nao nossas habilidades politicas) podem ser extremamente titeis aos ativistas. Com frequéncia, eles compreendem que é conveniente ter-nos por perto. Eu assessoro, em segredo, varios ativistas. Outros, como Marcos e Superbarrio, eximios ativistas da performance, seguem me inspirando. 9. A beleza fisica Nao somos nem mais nem menos bonitos do que qualquer outra pessoa; mas tampouco exibimos porte fisico mediano. Os atores, dancarinos e modelos séo mais atraentes do que nés. Os esportistas e aqueles que se dedicam as artes marciais estio em melhor forma, ¢ as estrelas porné sio, definitivamente, mais sensuais. De fato, nossos corpos e nossos rostos posstiem uma aparéncia ambivalente; no entanto, em troca, possuimos um olhar intenso, certa pre- senga essencial e perigosa e uma qualidade ética em nossos tracos ¢ em nossas mos. E isso nos torna confiaveis aos proscritos ¢ aos rebeldes, assim como altamente suspeitos as autoridades. Quando as pessoas nos olham nos olhos, dio-se conta, de imediato, que, como dizemos em inglés, we mean it. Isso se traduz em um tipo diferente de beleza. eWO}ad ep ave ep esajap wa 2 10. A cultura da celebridade Para nés, a cultura da celebridade é desconcertante e vergonhosa. Feli nunca somos convidados para a mansio da Playboy nem para as festas de nos embaixadas quando estamos em turné. Se assistirmos 4 inauguragao da Biss no Whitney, é muito provavel que rapidamente nos entediemos ou nos sin’ oprimidos. A despeito de nossas personalidades bizarras e de nossa capacid de compromisso com o chamado “comportamento extremo”, tendemos a timidos e inseguros em situagGes sociais. Nao gostamos de confraternizar « ricos e famosos, e quando o fazemos somos muito desajeitados e acabamos derramar vinho no colo de alguém ou dizer algo fora de contexto. Quando: apresentam a um potencial patrocinador ou a algum critico de arte famoso, ou tornamos rudes por causa da inseguranga, ou ficamos entio cataténicos. Ege do nossos fas nos elogiam, simplesmente nao sabemos como responder. O = provavel é que desaparecamos instantaneamente nas ruas ou nos esconda durante uma hora no banheiro mais préximo. Obviamente, existem excegi 11. Uma lenda urbana As vezes, nosso universo de performance pode ameacar nossos entes quer Nosso “comportamento extremo” no palco, somado a nossa frequente as com radicais sexuais, desajustados sociais ¢ excéntricos, pode fazer com nossos entes queridos sintam-se um pouco “inadequados’” ou desnorteados 4 de nosso estranho universo. E, para complicar ainda mais, as energias alta sexualizadas e os corpos nus perambulando ao redor do espaco antes de performance podem tornar-se facilmente uma fonte de ciémes para n companheiro(a), que com frequéncia passa (mal) tentando diferenciar o re simbilico. O grande paradoxo aqui € que, apesar de nossas excentricidades se ais no palco (certamente simbilicas) e de nossa disposicao para apresenta nus, tendemos a ser muito leais e comprometidos com nosso(a) compa e familias. Nossa decadéncia é uma lenda urbana, e empalidece se comp: dos convidados dos talk shows e 4 conduta dos sacerdotes catélicos. A performance diante do teatro, do mundo da arte e da cultura dominante 1. Performance e teatro Antes de cruzar a seguinte e perigosa fronteira, devemos reconhecer as tantes contribuigdes do teatro experimental (0 Living Theater, 0 Performs Group, Jodorowsky, entre outros) no desenvolvimento da performance, bem como a influéncia mais recente que a arte da performance tem tido sobre o teatro cada vez que este se encontra em crise. Tendo dito isso, agora tentarei aventurar-me na perigosfssima zona fronteirica entre 0 teatro e a performance. Apesar de ambos ocuparem com frequéncia 0 mesmo cenério, hé algumas diferencas fundamentais: 0 virtuosismo, o entretenimento e as atitudes his- tridnicas sio muito apreciadas no teatro, enquanto na performance so muito mais estimados a originalidade, o contetido e o carisma. Inclusive as formas mais experimentais e antinarrativas do teatro, que no dependem de um texto, tém um princfpio, uma crise dramitica (ou varias) e um final, Um “evento” ou “ado” de performance é simplesmente o segmento de um processo muito maior que nao esté disponivel para o ptblico e, nesse sentido, stricto sensu, ndo tem princfpio nem fim. Nés simplesmente escolhemos uma porcao de nosso proceso ¢ abrimos as portas para expor essa experiéncia ao piblico. A maioria das estruturas do teatro ocidental (inclusive a dos grupos de teatro de ensemble ou cooperativa e os teatros rebeldes coletivos) tende a ser, de alguma maneira, hierérquica, com uma divisio especializada do trabalho (0 lider ou visiondrio, os melhores atores, os atores coadjuvantes e a equipe técnica, cada um se ocupando de uma tarefa especifica). A estrutura da performance tende a ser mais horizontal, descentralizada e em constante mudanca. Na performance, cada projeto exige uma divisio de trabalho distinta. E quando trabalhamos em pegas de uma sé pessoa, nds nos convertemos em produtores, escritores, diretores ¢ executores de nosso proprio material. Desenhamos as luzes, o som © 0 vestuario, inclusive. Nao ha nada de heroico nisso; simplesmente é assim. Na prética teatral baseada no texto, uma vez que o roteiro é finalizado, os atores 0 memorizam e ensaiam obsessivamente ~ ¢ ele sera representado da mesma forma todas as noites. Na performance, seja com o texto ou sem ele, © roteiro é somente um diagrama da acao, um hipertexto que contempla mil- tiplas contingéncias e opcbes ~ ¢ que nunca esta “finalizado”. Cada vez. que publico um roteiro, devo advertir 0 leitor: “Esta é s6 uma versio do texto. Na préxima semana, seguramente, seré diferente”. Para n6s, os ensaios, no sentido tradicional, nao sio tao importantes. De fato, nés, os artistas da performance, passamos mais tempo investigando o lugar € 0 tema do projeto, reunindo aderecos e objetos, estudando seus piiblicos, debatendo ideias com nossos colaboradores, escrevendo notas rebuscadas ¢ preparando-nos psicologicamente do que “ensaiando” de portas fechadas. £ simplesmente um processo diferente. No palco, os artistas da performance raras vezes “representam” outros. Em vez disso, permitimos que se desdobre a ‘souewsopiad ep auie ep esayap wa mutltiplicidade de nossos “eus” e vozes, e que representem suas fricgdes € com tradig6es diante do ptiblico.’ A esse respeito, Nara Heeman diss: significaria ‘ser diferente’ do que estamos fazendo: Nosso conhecimento e imagens corporificadas s6 sao possiveis porque sio realmente nossos”. Estejaz treinados ou nao (na maioria das vezes, nds nao estamos), isso separa 0s artist da performance, dramaticamente, dos atores de teatro de uma sé pessoa, g representam miltiplos personagens: quando Anna Deavere-Smith, Elia ou Eric Bogosian “executam” muiltiplos personagens, nao os “representam™ atuam. Pelo contririo, eles se transformam dentro e fora deles sem desapa completamente como “eles mesmos”, isto €, ocupam um espaco entre 0 ser eles préprios. A certa altura de suas vidas, alguns atores de teatro de um pessoa, como Spalding Gray e Jerusa Rodriguez, decidiram cruzar a ténue até a performance, em busca de liberdade e de perigo. Que sejam bem-a Obviamente, existem muitas excecdes A regra de ambos os lados do espe e existem também muitos tipos de espelhos.!” 2. Um artista da performance sonha em ser um ator Sonhei que eu era um bom ator, nao um artista da performance, mas verdadeiro ator, e dos bons. Podia representar mimeticamente outros & filme ou em uma pega de teatro, e era tio convincente como ator gx converter-me nessa outra pessoa, esquecendo completamente quem em “personagem” teatral que eu representava em meu sonho era o de um da performance; alguém que odiava a atuacio naturalista ¢ o reali e psicolégico; alguém que depreciava o artificio, a maquiagem, o as linhas decoradas. Em meu sonho, 0 artista da performance rebelar contra 0 ator, ou seja, contra si mesmo. Fazia coisas esti por exemplo nfo falar durante toda uma semana, mover-se em Camaes durante todo 0 dia ou maquiar-se de forma tribal e sair pela rua pa o sentido do familiar nas pessoas. O artista da performance estava claramente jogando com minha o “bom ator”, me confundi tanto que acabei experimentando uma Em inglés, persona significa personagem, no sentido de character. Todavia, pars © mance, diferencia-se personagem, que implica representar outro, ¢ persona, que s= mesmo dramatizando complexidades. Richard Schechner me adverte: “Eu diria que ¢ necessério tomar certa distincis 0 teatro que representa dramas (obras) do teatro que é ‘direto’ ou que apace sem obra. Também devemos reconhecer que no teatro de drama os atores no ges ‘enquanto na arte da performance os executores quase sempre sio também o= de identidade. J4 ndo sabia como atuar. Um dia, adotei uma estereotipada posicao fetal e prostrei-me dentro de uma grande vitrine de exibicao durante uma semana inteira. Por sorte, era apenas um sonho. Quando finalmente despertei, seguia sendo o mesmo e velho artista da performance, e me senti agradecido por nao saber atuar. 3. Tempo e espaco Na performance, as nogées de tempo e espaco so complicadas. Temos que lidar com um “agora” ¢ um “aqui” hiperintensificados; temos que vagar no espaco ambiguo entre o “tempo real” e o “tempo ritual”, em oposicao ao tempo teatral ou ficticio. (O tempo ritual ndo deve ser confundido com o movimento em camera lenta.) Temos que lidar com a “presenca” e com a atitude desafiante em oposicéo a “representagio” ou a profundidade psicol6gica, com o estar aqui € agora neste espacgo em oposicao ao “atuar” ou fingir que somos ou estamos sendo, Richard Schechner elabora a seguinte ideia: “Na arte da performance, a ‘distancia’ entre o real-verdadeiro (social ¢ pessoal) e o simbélico é muito menor que no teatro de drama, em que quase tudo consiste em fingir, em que inclusive o real (uma xicara de café, uma cadeira) se conyerte em fingimento”. Assim como 0 tempo, para nds, 0 espago também é “real”, do ponto de vista fenomenolégico. O edificio onde acontece a performance é exatamente este edificio. A performance acontece precisamente no dia e no tempo em que ocorre, € no preciso lugar em que ocorre. Nao existe magia teatral. Nao hi suspensio de inverossimilhanca."! Permanece sem respostaa espinhosa pergunta sea arte da performance pode ou nio existir no espaco virtual. A performance é, portanto, uma forma de ser e estar no espaco, frente a (ow em torno de) um piblico especifico. Também é um olhar intensificado, um sentido tinico de propésito no manejo de objetos, de compromissos e de pa- lavras e, a0 mesmo tempo, uma “atitude” ontolégica em diregio ao universo. Xamas, faquires, dervixes e merélicos compreendem isso muito bem. Mas a maioria dos atores draméticos e dos dangarinos, infelizmente, assim nao 0 entende. Entdo me pergunto se este ndo é um preconceito meu. 4.0 Mundo da Arte Nossa relacdo com o Mundo da Arte (em maitisculas) é agridoce. ‘Tradicio- nalmente, operamos nas fronteiras culturais e nas margens sociais onde nos sentimos mais comodos. Cada vez. que nos aventuramos aos luxuosos templos 11 Esse sentido se refere 2 convencio, ao acordo de que o que estamos vendo nio € real. ep aye ep esajap 1g 460) p6s-modernos da alta cultura — digamos, para apresentar nosso trabalho eam: museu importante —, tendemos a nos sentir um pouco deslocados. nossa breve estada, fazemos amizades com os segurancas, com 0 pesst limpeza e com aqueles que trabalham no departamento educativo. Os a distancia. Apenas na noite anterior 4 nossa partida é que seremos con para tomar uns drinques. As instituig6es artisticas dominantes dedicam uma relagdo de amo: e6d nosco (ou melhor, com 0 que eles percebem que nés representamos). que nos convidam, tremem nervosamente, como se, em segredo, que féssemos destruir as paredes da galeria, arranhar uma pintura com: objeto, ou ainda urinar no sagudo. E dificil se desfazer desse estis remonta aos dias do NEA Four (1989-1991),! quando os artistas da mance, tidos como provocadores irresponséveis ¢ terroristas cul politicos e pelos representantes dos meios de comunicagao, fo: de uma grande lista negra. Cada vez que termino um projeto em uma grande instituigao, o 4 chama, no dia anterior 4 minha partida, e diz: “Guillermo, ob: sido... téo amével e profissional”. No fundo, talvez se sinta um pe pontado porque néo me comportei de maneira similar aos meus P= de performance. 5, Sonho etnografico Sonhei que meu colega Juan Ybarra e eu estdvamos em exibicgo te em um Museu de Histéria Natural. Eramos espécimes hi rara “tribo urbana pés-mexicana” e viviamos dentro de caixes junto com outros espécimes e animais dissecados. Os docentes nos alimentavam com suas maos e nos levavam ao banheiro com: cachorro. Ocasionalmente, algum curador nos limpava com. enquanto, secretamente, sentia apetite carnal por nés. Nosso & to emocionante, mas, por desgraca, posto que se tratava de ux podfamos mudar 0 roteiro. Era mais ou menos assim: das 10h 2 navamos aces ritualizadas em camera lenta com “demonstra de nossos costumes e préticas artisticas, ¢ faziamos roupa triball desenhada por um dos curadores. Aos domingos, abriam a parte 1 Refere-se ao famoso caso do veredito do National Endowment for the Arts (EI das Artes] nos Estados Unidos, que aegou subsidio aos artistas da performance Fleck, Holly Hughes ¢ Tim Miller pelo contetido de sua obra caixas de acrilico para que o publico pudesse ter uma “experiéncia mais direta”, hands-on, como dizem os gringos. Um membro do pessoal do departamento educativo nos pedia para deixar o ptiblico nos tocar, sentir nossos cheiros, € também trocar nossa roupa e alterar a posicdo de nossos corpos. Para algumas pessoas, inclusive, era permitido sentar-se em nossas pernas e fazer de nés 0 que quisessem. Era uma piada, uma vergonha etnogréfica; mas, como Juan e eu éramos meros “espécimes” e nao artistas, nada podfamos fazer a respeito. Certo dia houve um incéndio. Evacuaram 0 edificio; restamos nés. Repenti- namente, tudo estava se incendiando. Era algo lindo. Nunca voltei a ter esse sonho. Suponho que perdi a vida durante o incéndio. 6. Deportado/descoberto O autoproclamado “mundo da arte internacional” muda continuamente sua atitude em relagdo aos artistas da performance. Cada vez que o mundo da arte passa por uma crise de ideias, pedem-nos para que dele participemos, por um curto perfodo. Em um ano estamos in (se nossa estética, etnicidade ou politica de género coincidem com suas tendéncias) ¢ no ano seguinte es- tamos out. Somos bem-vindos e deportados uma e outra vez de maneira tao constante que j4 nos acostumamos com isso. (Agora, se produzimos video, fotografia das performances ou arte-instalacio como extensdo de nossa obra performativa, entao temos a oportunidade de sermos convidados com maior frequéncia.) Em realidade, nao nos incomoda possuir adesio temporéria ao “mundo da arte internacional”, Nossa invisibilidade parcial é, em realidade, um privilégio: garante-nos certas liberdades especiais e certa respeitabilidade (aquela que impée o medo) que os membros fixos e constantes e os “darlings da arte” simplesmente nao tém. Gracas a essa liberdade extra, podemos de- saparecer ocasionalmente e reinventar-nos uma vez mais, nas sombras e nas ruinas da civilizagdo ocidental. Em 22 anos de fazer artistico da performance, fui deportado ao menos sete vezes do mundo da arte, para ser (re)descoberto somente no ano seguinte sob uma nova luz: arte mexicana, latina, multicultural ou hibrida? Arte “etno-tecno” ou “estrangeira”? Arte chicana ciberpunk ou “extrema”? Qual seria a proxima, entdo? A arte “neo-aztec/ hi-tech pés-retro- -pop-colonial”? Espero pacientemente a chegada da etiqueta seguinte. 7. Nomenclatura marginalizante A nomenclatura, os adjetivos e as etiquetas na arte contribuiram para a per- manente marginalizagéo da arte da performance. Desde os anos 1930, os muitos autodenominados mundos da arte da tendéncia dominante em cada ‘apueUo}iad ep aye ep esajap wy pais se referiram de maneira conveniente aos artistas da performance “alternativos” (em relac&o ao qué?, A arte “verdadeira”?), “periféricos” ( préprio “centro” autoimposto?), “experimentais”, como querendo dizer permanente processo de prova”, ou “heterodoxos” (em combate mo a tradicao). Se nds somos “de cor” (¢ quem nao 0 &?) sempre somes & tados como “emergentes” (a condescendente versio artistica dos “paises em vias de desenvolvimento”) ou como “recém-descobertos”, se f6ssemos espécimes de uma exética tribo estética. Muito frequen’ nés, carentes de reflexdo e desejosos de fazer parte da “contracultura™ tamos tal terminologia. Inclusive, a palavra “radical”, que amitide ns mesmos para nomear nossa praxis, chega a ser empregada pela tend dominante (mainstream) como uma luz vermelha, com 0 perigoso de: “Comportamento imprevisivel. Manuseie sob sua inteira respon: € risco”. 8. Os criminosos da arte Os artistas da performance facilmente sdo tachados de criminosos. As im altamente carregadas de implicagées sexuais, politicas ou religiosas que p zimos, conjugadas as mitologias que nos envolvem por sermos perso: piiblicas, nos convertem em alvos reconheciveis da ira de politicos opo: e de jornalistas conservadores com sede de sangue. Eles adoram retrats como inadaptados sociais e promiscuos, provocadores gratuitos ou (nos Unidos) como boémios “elitistas” financiados pelo “establishment liberal” ferentemente da maioria dos meus colegas que se assustam com esses a a mim nio preocupa muito essa equivocada caracterizacio, pois creio q outorga uma certa respeitabilidade e poderes imerecidos, como anti-he: ladrdes da cultura. Os politicos conservadores estao plenamente consc: poder de arte da performance. E quando chega a hora dos cortes no orcamse o primeiro a desaparecer é a arte da performance. Por qué? Eles alegams somos “decadentes”, “elitistas” ou: (nos Estados Unidos) “antiamerica De fato, os republicanos estadunidenses adoram caracterizar nosso t7 como um tipo de pornografia comunista excéntrica, mas ~ reconheg fato é que esses idedlogos sabem muito bem que é extremamente dificil domesticar. Quando um politico ataca a arte da performance, é porque se quando vé sua propria imagem, de mente tacanha ou intolerante, refl: cabega no nitido espelho da arte. Vém-me de imediato na mente os horripilantes de Helms, Buchanan ¢ Giuliani 9. O mainstream do bizarro Nos tiltimos sete anos tem ocorrido um fenémeno que nos tem deixado per- plexos: a chamada tendéncia dominante devorou literalmente a linguagem e 0 imaginario das muito solicitadas “margens” — quanto mais espinhosas e afiadas so as bordas, melhor — e a “performance” se transformou literalmente em uma estratégia de marketing sexy abertamente “pop”. High Performance, a lendaria revista de Los Angeles dedicada 4 performance, é agora um lema de comercial de carros; 0 imbecil apresentador do programa da MTV Jack Ass (Juan Asno”/“Joao Idiota”) e o brega-macabro Howard Stern se autodenomi- nam “artistas de performance”, e também o fazem Madonna, Iggy Pop, Bowie Marilyn Manson. As personalidades “performativas”, o comportamento “radical” e a interativi- dade superficial sao celebrados com regularidade nos reality shows, nos talk shows e nos esportes extremos. De fato, todo “extremo” é, hoje em dia, a norma. Nesse novo contexto, me pergunto: como podem os puiblicos jovens e novos diferenciar entre as agdes “transgressoras” € “extremas” de Annie Sprinkle, Orlan ou de um servidor, e os convidados de Jerry Springer ou Laura da América? O que diferencia “nés” de “eles”? Alguém poderia responder: “O contetido”. Porém, o que acontece se “o contetido” j4 ndo importa tanto atu- almente? O mesmo ocorre com a profundidade e a diferenga. Entao, ficamos sem trabalho? Ou deveriamos redefinir, mais uma vez, pela enésima vez, nossos novos papéis em uma nova era? Preso entre o antigo dialeto marginalizante € 0 cardter distintivo de “tudo que é impactante cabe ou vale” da tendéncia dominante excéntrica (0 mainstream do bizarro), 0 terreno da performance se encontra diante de uma urgente necessidade de voltar e novamente marcar seu territério e redefinir as nogées bindrias de centro/periferia, tendéncia do- minante/subcultura. Talvez uma estratégia util para n6s possa ser ocupar um centro ficticio e empurrar a cultura dominante em direcao ds suas verdadeiras margens indesejveis. 10. Perguntas espinhosas A seguir, apresento algumas perguntas tipicas que me fazem os jornalistas da cultura dominante anglo-saxénica, acompanhadas de algumas respostas igual- mente “tfpicas” de um servidor: Jornalista: A performance é algo relativamente novo? aouewiojied ep oue ep esajap wa GP: Nao. Toda cultura possui espacos assinalados para a renovacéo da espacos para 0 comportamento contestador e desviante. Aqueles que ocupam est ailtimos gozam de certas liberdades espaciais. Jornalista: Vocé pode discorrer mais sobre essa ideia? GP: Nas culturas indgenas americanas, por exemplo, era 0 xami, 0 coiote, nabush que possuia permissio para cruzat as perigosas fronteiras dos sonbos: género, da loucura e da bruxaria. Na cultura ocidental, esse espago liminar ocupado pelo artista da performance, o anti-her6i contemporaneo por excel provocador aceito. Sabemos que esse lugar existe ¢ nés simplesmente 0 0 Jornalista: Nao entendo. Qual é, entéo, a fungdo da arte da performance! acaso existe uma? GP: (Longa pausa.) Os artistas da performance so um constante lembrete, sociedade sobre as possibilidades de outros comportamentos artisticos, sexuais ¢ espirituais; e esta, devo dizer com veeméncia, é uma funcio v mente importante. Jornalista: Por qué? GP; Porque ajuda os outros a se reconectarem com as zonas proibidas de sua ede seus corpos ¢ a reconhecer as possibilidades de suas préprias liberdades. medida, a arte da performance pode ser tio titil como a medicina, a engen 0s artistas da performance sao tdo necessérios como as enfermeiras, os profes 08 sacerdotes ou os taxistas. A maior parte do tempo, nem ao menos nés =e somos conscientes dessas funcées. Jornalista: © que quero saber €: 0 que a arte da performance fez por vor GP: Por mim? (Pausa longa.) Ensinou-me a responder. £ uma forma de responder. Também me ajudou a recuperar meu extraviado ser civico, ¢ = pedagos de minha identidade fragmentada. Jornalista: Senhor Comes Pifia ou Comes Penis (pronunciado em pensa nisso todos os dias, isto é, durante todo 0 dia? GP: Claro que no, a maior parte do tempo eu sigo com minha vida cotid vo, investigo, me emociono com um projeto, pago minhas dividas, me um resfriado e espero ansioso uma miigica chamada telefnica, para ser com a apresentar minha obra em uma cidade ou pafs aonde nunca fui... Jornalista: Creio que nfo estou sendo claro: o que realmente quero saber & a arte da performance Ihe ensinou? GP: Ah, vocé quer um soundbite (uma frase de efeito), nio é verdade? Jornalista: Sim... GP: Muito bem, deixe-me pensar um pouco... (Pausa dramética.) Af vai. Uma autocitagéo: “Quando eu era mais jovern, a performance me ensinou a responder &s autoridades. Ultimamente, esta me ensinando a escutar com muita atengdo os demais... inclusive os babacas”, Da mesma forma que a performance, este texto também esté inconcluso, e seguiré mudando de ordem e estilo nos meses seguintes. Como um guerreiro sem gl6ria, eu desligo meu computador. Continuaré... janeiro de 2004 eoueuojied ep aue ep esojap wa

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