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QUASE-CONTRATO ARION SAYAO ROMITA 1. Introducgio As linhas que se seguem, inspiradas no estudo de Enrico Moscati inclui- do na mélange Adriano de Cupis', se certamente cuidam de arqueologia juri- dica (e, portanto, revelam-se anacr6nicas e retrégradas), representam, contudo, uma tentativa de destacar a contribuig&o que 0 quase-contrato pode oferecer & solugao de problemas gerados pela categoria dos negécios jurfdicos caracteri- zados pela obrigagio de restituir, assim como pela declaragaio de nulidade de contratos de execugao continuada, ou de trato sucessivo (por ex., 0 contrato de trabalho). Nao faria sentido — é evidente — tentar ressuscitar 0 velho instituto do quase-contrato, mas é valido o esforgo tendente a evidenciar suas virtudes no setor que medeia entre 0 contrato e 0 ato ilicito (ressarcimento do dano). Em determinadas hipéteses, nem o contrato nem a responsabilidade civil oferecem solugdes satisfatorias, sabendo-se que a finalidade do quase-contrato, moder- namente, orienta-se pelo princfpio de equivaléncia dos sacrificios patrimoniais verificados na circulagio dos bens. E certo que o quase-contrato se justificava pela necessidade de assegurar 0 justo equilibrio patrimonial em casos como os acima indicados. Como se sabe, 0 quase-contrato era um das fontes das obrigacGes. 2. Fontes das obrigagées O conceito de fonte das obrigagdes é polémico e, como séi acontecer com temas de natureza juridica, submete-se as leis da evolugao histérica. Conceituar fonte das obrigagGes como ato ou fato jurfdico do qual decorre um vinculo obrigacional entre pessoas sé faz sentido A luz do antigo direito 25 romano, segundo o qual as fontes das obrigacGes s&o os contratos e os delitos, a0 passo que, no direito contemporaneo, ou seja, no direito do Estado inter- vencionista, a tinica fonte das obrigagdes é 0 ordenamento juridico, ou seja, a lei. Sem dtivida, as relagGes intersubjetivas travadas pelos homens na vida em sociedade s6 assumem significado jurfdico pela intermediagio do direito ob- jetivo. Mas, a lei € um esquema geral e abstrato, inid6neo, por si s6, para gerar obrigacées. Faz-se mister 0 surgimento de um fato ou de uma s tuagio juridica que possa criar para uma pessoa o dever de prestar (que é 0 objeto da obriga- co). Por esta razio, Clovis Bevildqua prefere falar em causas geradoras das obrigagGes, que vém a constituir as “causas eficientes, as fontes geradoras das obrigacées” *. A vontade humana € fato ao qual a lei atribui efeitos juridicos. Para 0 direito moderno, em conseqiiéncia, as fontes das obrigagdes sao o contrato (acordo de vontades) e a lei. A esta concepgao aderiu 0 Cédigo Civil alemao, de 1900 (§ 305), que, sob a epigrafe “formagio das relagdes obrigacionais”, dispde: “Salvo disposigao contraria da lei, € necessdrio um contrato entre os interessados para estabelecer por ato jurfdico uma relagdo obrigacional e para alterar seu contetido”. Roberto de Ruggiero esclarece a fungio da lei na definigao de fonte (ou causa) da obrigaciio: “Do ponto de vista puramente cientifico, se por causa da obrigag’io se entender todo fato juridico gerador da relagado obrigacional, as causas das obrigagdes podem ser agrupadas em duas grandes categorias: a) fatos consistentes na livre manifestagdo da vontade que produz o nascimento de um vinculo obrigacional, isto é, declarag6es de vontade feitas com a inten- ¢ao de obrigar-se; b) fatos de outra natureza que nado implicam determinagao volitiva alguma aos quais 0 direito associa 0 efeito de produzir um vinculo juridico” *. Assim, as relagdes obrigacionais derivam, voluntariamente, de um negocio juridico ou, necessariamente, da lei. Nem sempre, porém, assim se entendeu. Até que se chegasse a essa conclusdo, um longo percurso histérico foi seguido. 3. Direito Romano Nas origens do direito romano, somente duas fontes so admitidas: 0 ato licito e 0 ilfcito, isto é, 0 contrato e o delito. Nas Institutas de Gaio, lé-se: Nunc transeamus ad obligationes, quarum summa divisio in duas species deducitur: omnis enim obligatio vel ex contractu nascitur, aut ex delicto *. Em 26 verndculo: “Passemos agora as obrigac6es, cuja grande divisdo se resolve em duas espécies: pois toda obrigagdo nasce ou do contrato ou do delito”. A insuficiéncia da divisio levou 0 mesmo Gaio a acrescentar ao texto “obrigacées nascidas de varias espécies de causa”. E que, com o desenvolvi- mento dos negécios, surgiram figuras que nao se ajustavam a qualquer da classes da summa divisio °. Em passo incorporado ao Digesto, Gaio escreveu: Obligationes aut ex contractu nascuntur, aut ex maleficio, aut proprio quodam iure ex variis causarum figuris °, ou seja: “As obrigagdes nascem do contrato ou do delito ou por certo direito prdprio de varias espécies de causa”. As variae figurae sio causas diversas daquelas contidas nas do contrato ou do delito, embora possam ser andlogas a estes ou consistir em um preceito especial de direito positivo. Nas escolas bizantinas, observou-se que ha obrigagées niio originadas de um contrato nem de um delito, entretanto, estruturam-se de modo andlogo as obrigagdes contratuais ou delituais, isto é, nascem de fatos semelhantes ao contrato ou ao delito, nos quais nao falta o elemento intencional. O conceito de contrato foi reduzido a tudo quanto decorra do acordo de vontades e o de delito foi reservado aos atos dolosos. Surgira a necessidade de distinguir os negocios juridicos voluntérios dos que nascem sem o concurso de vontades; quanto aos ilicitos, era de rigor destacar os atos dolosos dos meramente culposos 7. Os negécios voluntdrios surgidos sem 0 concurso de vontades so 0s quase-contratos; os atos ilicitos culposos sio os quase-delitos. Surgiu uma divisdo quadripartida, segundo o texto de Justiniano: Sequens divisio in quatuor species deducitur: aut enim ex contractu sunt aut quase ex contractu, aut ex maleficio, aut quase ex maleficio®. Traduzindo: “A divisaio seguinte se desenvolve em quatro espécies: pois (as obrigagdes) nascem de um contrato, de um quase-contrato, de um delito ou de um quase-delito”. As causas assemelhadas ao contrato e ao delito constitufram as categorias do quase-con- trato e do quase-delito, das quais apenas a primeira nos interessa. O direito posterior as consagraria como paralelas, porém distintas, correspondendo a conceitos tao delimitados e precisos como os que correspondem aos de con- trato e delito. A primitiva diviséo em contrato e delito j4 nao bastava. Com o passar do tempo, cresceu 0 numero de obrigagdes sancionadas pelo direito e muitas delas ja nfo poderiam ser inclufdas nem no contrato nem no delito: quanto as derivadas do quase-contrato, embora nascidas de um fato licito, a obrigagao se formava sem convengao’. O quase-contrato era um fato licito que gerava obrigacdes. Distinguia-se do contrato, porque nao dependia do acordo de vontades; entretanto, como o contrato, devia ser provido de aco reipersecu- 27 téria '°. Justiniano, nas Institutas!', enumera, entre as obrigagdes que nascem quasi ex contracto: as obrigagées surgidas da gestio de negécios, vizinhas das que nascem do contrato de mandato; as obrigagGes nascidas da tutela, também vizinhas das nascidas do mandato; as obrigag6es nascidas da indivisao, apro- ximadas das que nascem do contrato de mutuum. Os intérpretes freqiientemen- te ampliaram a lista, por analogia, incluindo, por exemplo, ao lado da acao de repeticado do indébito, as demais agées de repetigéo por enriquecimento ilicito sancionadas por condictiones', 4. Codificagdes modernas A classificac&o quadripartida das fontes das obrigag6es contida nas Ins- titutas de Justiniano (quatro sao as fontes: contrato, quase-contrato, delito, quase-delito), foi acolhida em tempos modernos por varios autores e por cédigos oitocentistas. Observou-se, relativamente as obrigagdes que nascem quasi ex contractu ou quasi ex delicto, que elas sao impostas por lei ao devedor, e nao por ele consentidas. Entre os modernos, receberam elas a denominagiio genérica de obrigacGes legais, sob a influéncia de Pothier. Com o acréscimo da referéncia a lei, como quinta modalidade de fonte das obrigagées, a divisio quadripartida romana (contrato, quase-contrato, de- lito, quase-delito) foi acolhida pelo Cédigo Napoledo (Cédigo Civil dos fran- ceses, 1804), em seu art. 1.370. Como se sabe, este cdigo exerceu influéncia sobre intimeras outras codificagdes. A expansio do Cédigo Civil francés cons- titui fendmeno perfeitamente identificado pelos comparatistas'’. A partir da consagragao, pelo Cédigo francés, de 1804, a enumeracaio das cinco fontes das obrigagGes passou a figurar, entre outros, nos seguintes cédigos: Cédigo Civil belga (que é 0 préprio Codigo Napoledo, adotado em 1830), Codigo Civil italiano, de 1865, Cédigo Civil portugués, de 1867, Cé- digo Civil espanhol, de 1889, além de alguns paises das Américas: Luisiana (1825), Haiti (1826), Bolivia (1843), Peru (1852), Chile (1855), Costa Rica (1856), Uruguai (1869), México (1870), Argentina (1870), Venezuela (1873). A referéncia a lei como fonte das obrigagdes prestou-se a englobar todas as obrigagdes que nao podiam ser inclufdas no negécio juridico bilateral, nem no ato ilicito, nem tampouco nas outras duas categorias. Assim, o Cédigo Civil italiano, de 1865, na esteira do que dispde o art. 1.370 do Cédigo Civil francés, reconhece cinco fontes distintas: a lei, o contrato, 0 quase-contrato, 0 delito e 0 quase-delito (art. 1.097). O Cédigo Civil francés, que inspirou essa enumeracio, contrapGe as obrigagdes conven- 28 cionais (art. 1.101) as que no se originam de convencao alguma. Estas tiltimas sio agrupadas em duas categorias: a primeira tem como fonte imediata a lei; a segunda, 0 fato do homem. As obrigacdes que tém como fonte a vontade humana so subdivididas em trés classes: as que procedem do quase-contrato, do delito e do quase-delito (art. 1370). O art. 1.089 do Cédigo Civil da Espanha, de 1889, enumera as fontes das obrigagdes: “As obrigagdes nascem da lei, dos contratos e quase-contratos € dos atos e omissées ilicitos ou nos quais intervenha qualquer género de culpa ou negligéncia”. Sdo cinco, portanto, as fontes das obrigagées: a lei, 0 contrato, 0 quase-contrato, os atos ou omissées ilicitos e os atos ou omissGes nos quais intervém culpa ou negligéncia. A classificagao das fontes das obrigagdes, embora tenha preocupado os juristas e os legisladores desde a Antigiiidade, apresenta escassa importancia pratica. Como afirma‘ Orlando Gomes, “a exata determinagdo das fontes e, principalmente, sua sistematizag%o constituem problema de interesse doutri . nario a que os Cédigos devem conservar-se alheios”. O Cédigo Civil alemao (BGB), de 1900 e 0 Cédigo das Obrigacdes da Sufga (1911) silenciam a tespeito, adotando, segundo o mesmo autor, “a orientagdo certa”. Os cddigos que, a exemplo do francés, de 1804, determinam e classificam as fontes das obrigagdes, adotam “preceito sem aplicacao pratica”"*. O Cédigo Civil brasileiro, de 1916, seguido pelo de 2002, na esteira das codificagdes germanica e suiga, omite-se, 0 que mereceu, da parte de Orosimbo Nonato, “louvores”'>. A mesma orientagdo é perfilhada pelo vigente Cédigo Civil de Portugal, de 1967, que, no Capitulo dedicado as “Fontes das obriga- goes”, limita-se a regular os contratos, os negécios unilaterais, a gestdo de neg6cios, 0 enriquecimento sem causa e a responsabilidade civil, sem tentar classificé-las e silenciando sobre 0 quase-contrato, 0 delito e o quase-delito. Destaca-se por sua originalidade o vigente Codigo Civil da Italia, de 1942, que, no art. 1.173, dispde: “Fontes das obrigacdes. As obrigagées deri- vam do contrato, do fato ilfcito ou de qualquer outro ato ou fato idéneo a produzi-las, de conformidade com o ordenamento juridico”. Pode-se entender, a luz desse texto, que a ordem jurfdica (a lei) seja a fonte tinica das obrigagées, ja que a vontade humana nao constitui fonte auténoma de efeitos juridicos, sendo apenas um fato ao qual a lei atribui determinados efeitos juridicos. Na verdade, dé-se 0 reconhecimento (como jd ocorrera com a passagem de Gaio: ex variis causarum figuris) da impossibilidade de reduzir as diferentes fontes das obrigagGes as duas fundamentais (0 contrato e 0 ato ilicito), pois é incluido um grupo heterogéneo, que engloba os atos ou fatos idéneos a produzi-los, segundo o ordenamento juridico. Este tiltimo grupo constituiria uma categoria 29 em branco, na qual seriam abrangidas fontes outras que nao o contrato nem 0 ato ilfcito. Si0 colocadas em particular evidéncia as fontes das obrigagGes que constituem expresso da responsabilidade humana: responsabilidade pelo dano injusto causado culposamente ou provocado mediante o exercicio de uma atividade de risco; e responsabilidade pelas obrigagdes voluntariamente assu- midas. O Cédigo italiano de 1942, silenciando quanto ao quase-contrato (e ao quase-delito), permite que se discriminem as diferentes fontes abrangidas na formula genérica (“qualquer outro ato ou fato idéneo a produzi-las de confor- midade com ordenamento juridico”): além das promessas unilaterais (que compreendem também os titulos de crédito), a gestao de negocios, a repetigao do indébito e 0 enriquecimento sem causa'®. Segue 0 Cédigo, portanto, a tendéncia moderna, qual seja, a de ignorar 0 quase-contrato (além do quase- delito) como fonte das obrigagées. 5. O sistema da common law Nos pafses de common law, verificou-se um processo inverso ao regis- trado nos sistemas de civil law. No direito anglo-americano, a categoria dos quase-contratos apareceu tardiamente e s6 se afirmou como fonte de obriga- des depois do célebre caso Moses v. Macferlan, de 1760, por mérito de Lord Mansfield. Atualmente, o quase-contrato representa nos paises de common law um instrumento de grande utilidade e a prépria expressao “quasi-contracts” continua a ser empregada sem qualquer restrig’o pela jurisprudéncia e pela doutrina de lingua inglesa'’. Nos paises de civil law, a supressio da categoria dos quase-contratos impede a reconstrugao de uma categoria geral das relagdes contratuais de fato, ao passo que, no sistema de common law, 0 quase-contrato constitui um pdlo conceitual interposto entre 0 contrato e o ato ilfcito, que permite ordenar e organizar de modo unitdério uma série de medidas distintas das de carater contratual e que se distinguem do ressarcimento do dano. Por este prisma, pode-se afirmar que o sistema da common law prima sobre os direitos conti- nentais em tema de medidas de restituigao. Enquanto nos sistemas de civil law a atengo se concentrou sobretudo nas figuras do contrato e da responsabilidade civil, relegando os procedimentos de restituigdo, no sistema da common law desenvolveu-se uma teoria das ages restitut6rias (the law of restitution), que constitui importante capitulo do di- reito das obrigacdes e que adquire uma feig’o bem precisa e uma importancia nao inferior 4 do contrato e 4 da responsabilidade civil. O maior peso que a 30 categoria dos quase-contratos ostenta nos paises de common law tem por conseqiiéncia a maior atengdo dispensada pelos juristas de lingua inglesa as hip6teses de restituigao. 6. Quase-contrato: conceito, natureza juridica A luz do direito romano, Ebert Chamoun define os quase-contratos como “os atos perfeitamente licitos dos quais nasciam obrigagdes sem, contudo, se fundarem no acordo de vontades, por exemplo, a gestio de negocios, a tutela, 0 legado e 0 pagamento do indevido”'’, Os fatos licitos que dao origem a obrigagdes quase-contratuais agrupam- se em duas classes: 1*— os que dao lugar a obrigagdes recfprocas e de boa-fé, sancionados por agdes de boa-fé; 2* — os que sé geram obrigacgOes unilaterais, sancionados por uma agio de direito estrito, a condictio. Na primeira classe de obrigagdes (geram obrigagGes reciprocas de boa- fé), incluem-se a gestdo de negécios (negotiorum gestio), que consiste no fato de alguém assumir a administracdo de todo ou de parte do patrim6nio de outrem, sem receber mandato; as obrigacGes resultantes da tutela e da curatela; obrigagGes entre coproprietarios: na copropriedade, surgem entre os coproprie- tarios obrigag6es reciprocas que se formam sem convencado, semelhantes as engendradas pela sociedade. Na segunda classe (s6 geram obrigacGes unilate- tais), alinham-se: a obrigagdo assumida pelo herdeiro perante os legatdrios: 0 herdeiro é devedor dos legados feitos pelo testador; e diversos casos de enri- quecimento sem causa, como pagamento do indevido e pagamento efetuado por erro’. O Cédigo Civil francés (1804), no Titulo que regula “as obrigagdes que se formam sem convenciio” (arts. 1.370 e segs.), define quase-contrato no art. 1.371: “Os quase-contratos sfo fatos puramente voluntérios do homem, dos quais resulta uma obrigag4o para com um terceiro, e As vezes uma obrigagao reciproca entre duas partes”. Sao regulados no Capitulo dos quase-contratos: gestdo de negocios (arts. 1.372-1.375), pagamento por erro (arts. 1.376-1.377) € pagamento indevido (arts. 1.379-1.381). O Cédigo Civil espanhol (1889), no art. 1.887, define quase-contratos: “Os fatos licitos e puramente voluntarios dos quais resulta uma obrigagaio do autor para com um terceiro e as vezes uma obrigacdo reciproca entre os interessados”. Como quase-contratos, 0 cédigo regula a gestao de negécios, que se produz quando alguém se encarrega voluntariamente da gestfo ou administragao de assuntos de outrem, sem outorga de mandato por parte deste (arts. 1.888 e segs.) e a obrigacdo de restituir, que alguém contrai por ter 31 cobrado algo que nao Ihe era devido (arts. 1.895 e segs.). Trata-se de inserir fontes das obrigagdes que, sem ser contratuais, delas se aproximam: nascem “como de” um contrato ou se parecem com as que derivam de um contrato. Daf falar-se em obrigagGes quasi ex contractu. A categoria dos quase-contratos tem sido combatida pela doutrina con- temporanea, como totalmente artificial, que possui unicamente explicagao hist6rica. Somente sua origem hist6rica explica as insuficientes caracterfsticas que ela apresenta. As definigdes do instituto, fornecidas pelos cddigos, revelam evidente falta de rigor légico, a qual deriva da conceituagdo adotada por Pothier, para quem 0 quase-contrato é “o fato de uma pessoa permitido pela lei, que se obriga para com outra ou obriga outra para com ela sem que entre ambas intervenha ou medeie convencao alguma”. Tanto esta formula como as que constam dos cédigos sao puramente descritivas. Nelas nao se contém qualquer nota caracteristica que possa ser considerada substancial fora do critério me- ramente negativo da inexisténcia de convengao. Afirma-se que a categoria dos quase-contratos deve ser abandonada, desterrada da dogmatica juridica. Dos cinco quase-contratos classicos, os cé- digos conservam unicamente 0 pagamento do indevido e a gestao de negécios. As demais modalidades (aceitagao de heranga, tutela e curatela, comunhao de bens) incluem-se entre as obrigagGes ex lege. Se alojados em sede sistematica adequada a gestdo de negécios e o pagamento do indevido, a figura do quase- contrato seria esvaziada de qualquer contetido”®. 7. Quase-contrato: fungao atual A despeito das criticas doutrindrias, 0 quase-contrato exerce (ou poderia exercer) fungiio relevante no quadro das figuras de restitui¢gao e de nulidade dos contratos de execucio continuada. Nao cabe — € certo — retomar a tradicfio, mas sim tentar percorrer um processo inverso e atribuir-lhe um significado diverso, que no reproduza a aproximagdo com o instituto do contrato. A categoria dos quase-contratos adquire nitida feigio unitaria quando examinada pela otica da restituicdo. As restituigdes quase-contratuais sao aque- las nas quais a obrigacdo de restituir surge fora de um acordo entre as partes e a prescindir da existéncia de um fato ilicito. A restituigio nao se confunde nem com 0 contrato nem com o fato ilicito. As hipéteses histéricas de quase- contrato eram figuras intermedidrias entre 0 contrato e 0 fato ilicito. Na atualidade, entende-se que a fungo do quase-contrato se baseia na idéia de 32 restitui¢do de quanto se lucrou indevidamente a custa de outrem, embora em determinadas hip6teses se imponha o pagamento de indenizagao substitutiva. Cabe lembrar que 0 Cédigo Civil alemao eleva a principio a restituigéo em espécie, se bem que admita grande ntimero de excegdes a favor do sistema indenizatorio”', 0 que também ocorre no direito patrio (Cédigo Civil de 2002, arts. 884, 952). A caracteristica da solugdo quase-contratual é a de fixar-se na Testituigéo in natura ou, entao, por equivalente, nas hipsteses em que a pri- meira nao seja possivel. O quase-contrato exerce a fungiio de restabelecer equilibrios juridicos perturbados pela ocorréncia de prestagdes indevidas. Evidencia-se entio, a utilidade do instituto, que deve ser reavaliada, porque a férmula do quase-con- trato, melhor do que qualquer outra (inclusive a do contrato), enseja a reali- za¢ao da exigéncia de respeito ao equilibrio entre as partes na circulacdo dos bens. As tradicionais figuras quase-contratuais (gestio de negécios, pagamento do indevido, relagdes contratuais de fato) no se confundem com o instituto do enriquecimento sem causa (enriquecimento obtido mediante fato injusto), pois este mais se aproxima do sistema da responsabilidade civil. Trata-se, no caso das figuras quase-contratuais, de situagdes de fato, as quais a lei atribui oefeito de gerar obrigacées. No direito brasileiro, que desconhece a categoria do quase-contrato, a gestdo de negdcios era regulada como espécie contratual pelo Cédigo Civil de 1916 (art. 1.331) e é considerada, pelo Cédigo vigente (2002), ato unilateral (art. 861). O pagamento indevido, no Cédigo de 1916, estava disciplinado, de forma imprépria, no capitulo da extingdo das obrigagGes (art. 964), enquanto, no Cédigo atual, figura entre os atos unilaterais (art. 876). Por se tratar de situagdes de fato, tais figuras sao tidas por obrigagdes legais, como se derivadas diretamente da lei. Ora, nenhuma obrigagao emana diretamente da lei, por ser de rigor a ocorréncia do fato que determina o surgimento da obrigacao. O faro é a fonte da obrigagao. Entre as situagdes de fato que constituem fontes de obrigagGes, encontra-se 0 enriquecimento sem causa, previsto pelos arts. 884-886 do Cédigo Civil brasileiro, de 2002. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer A custa de outrem, ser4 obrigado a restituir 0 indevidamente auferido (art. 884). O mecanismo da restituigdo, nas hipdteses do enriquecimento sem causa, difere daquele proprio das situagdes quase-con- tratuais (gestdo de negécios, pagamento indevido), porque, nas tiltimas, a agao de enriquecimento depende da iniciativa do empobrecido enquanto, nas pri- Meiras, 0 enriquecimento depende da iniciativa do enriquecido. Explica-se, entado, que os sistemas juridicos que acolhem os quase-contratos omitem uma 33 cldusula geral que veda o enriquecimento sem justa causa, ao passo que, nos sistemas nos quais é expressamente prevista a ago de enriquecimento, estd ausente ou desapareceu a categoria dos quase-contratos. Pela mesma razdo, os ordenamentos juridicos que contemplam a catego- ria do quase-contrato admitem a excego de inadimplemento (exceptio non adimpleti contractus) nos quase-contratos sinalagmaticos, como € 0 caso do direito francés” e do direito belga”’, enquanto, nos sistemas juridicos que desconhecem a categoria do quase-contrato, o obrigado a restituigao nao pode valer-se da referida excegao, como sucede no direito italiano. E que a formula do quase-contrato n&o resulta em uma regulagaio modelada pela do contrato; pelo contrario, implica a exclusao da disciplina legal do contrato, que, quando se trata de quase-contrato, nao se estende as restituigdes reciprocas. 8. Os atos unilaterais e 0 contrato sinalagmatico nulo Nos ordenamentos que acolhem a figura do quase-contrato, a regulagio da obrigacio de restituir se afasta do direito dos contratos e se confunde com a regulagdo da restituigdo do indébito. Nos sistemas juridicos em que a agao de enriquecimento ocupou o espago que deveria caber ao quase-contrato, a regulagdo das restituigdes se confunde com a matéria contratual, como sucede no BGB. No Code Civil e no Cédigo italiano de 1865, 0 instrumento de unificagio das causas da obrigacdo de restituigao era constitufdo pela categoria do quase-contrato, que abrangia a gest’o de negécios e o pagamento indevido, sendo desconhecida, naquelas classificagdes, a ago de enriquecimento. Na Italia, esta ado s6 foi introduzida pelo Cédigo de 1942. J4, porém, quando nao importa que a obrigagao de restituir seja, ou nao, conseqiiéncia da nulidade de um contrato, nao ha razio para regular a resti- tuigfo no Ambito do instituto do contrato, como é 0 caso do direito brasileiro (e do italiano, de 1942, também). Descabe a invocagio do instituto do contrato para fins de regular as restituigdes, porque a obrigagio de restituir tem funda- mento préprio, inconfundivel com 0 contrato e o fato ilfcito. O elemento de unificagao deriva de uma circunstancia de fato: a execugao de uma prestagao indevida, pouco importando que se trate de uma prestago cumprida por forga de um contrato nulo ou de uma prestag&o entre sujeitos que nunca mantiveram contrato entre si. Em ambas as hipoteses, a obrigagao de restituir é de natureza “quase-contratual”. E este o sentido da natureza “quase-contratual” da repeti- cio do indébito, que justifica a tentativa de recuperagao histérica do papel desempenhado pela categoria dos quase-contratos. A designagdo “quase-con- trato” nao significa que a aco de repetigao constitua uma imitagio ou contra- 34 facdo da agdo fundada no contrato (no sentido de que deriva da regulagaio do instituto do contrato), mas, pelo contrario, que se trata de um instituto distinto _ do contrato, dotado de regulacao propria, aut6noma em relagao ao direito dos . contratos. ; Por tais motivos, tanto 0 Cédigo Civil italiano, de 1942, quanto o Codigo | Civil brasileiro de 2002, regulam os institutos da gest%o de negécios, do pagamento indevido e do enriquecimento sem causa & margem da regulacio dos contratos. Nos Cédigo brasileiro de 2002, eles so regulados sob a epigrafe “Dos atos unilaterais”. No Cédigo Civil portugués, de 1967, a gestao de hegécios e o enriquecimento sem causa sao tratados naio como negécios uni- laterais, mas como institutos dotados de autonomia, ao lado dos contratos e da responsabilidade civil, atribuindo a essas situagdes o cardter de fontes auténomas de obrigagées. Melhor, entio, procedeu o legislador brasileiro de 2002 do que o de 1916, ao regular a gest&o de negdcios, 0 pagamento indevido e 0 enriquecimento sem causa. Enquanto, em 1916, a gestdo de negécios figura entre os contratos (e nao € contrato), no Cédigo de 2002, esta incluida entre os atos unilaterais, fora da regulagao dos contratos. O pagamento indevido, em 1916, era regulado no Capitulo geral “Do pagamento”, mas, como fonte autonoma de obrigagdes, que é, mais correta é€ sua localizagdo, no Cédigo de 2002, entre os atos unilaterais. E 0 enriquecimento sem causa — também fonte auténoma de obrigagdes — sequer figura em titulo proprio no cédigo de 1916, onde era lembrado apenas em regras particulares que 0 proibiam nos casos mais co- muns, sendo certo que, no Cédigo de 2002, esta incluido entre os atos unila- terais, ao lado da gestao de negécios e do pagamento indevido (arts. 884 e segs.). No ambito deste trabalho, cabe uma referéncia particularizada, ainda que sintética, aos institutos que assentam sobre a restituigdo (como reminiscéncia da categoria do quase-contrato), a saber, a gest’o de negécios, 0 pagamento indevido e 0 enriquecimento sem causa, além do exame particular do contrato sinalagmatico nulo. Gestdo de negécios. No direito romano, a gestiio de negdcios (negotio- rum gestio) constitufa uma das fontes das obrigagdes quase ex contractu. Ocorre quando uma pessoa (negotiorum gestor) administra, no todo ou em parte, 0 patrim6nio de outra (dominus negotii), sem dela ter recebido mandato. Trata-se de uma intervencdo espontanea, inspirada pelo desejo de prestar servigo a uma pessoa que, por doenga ou auséncia, esté impedida de gerir seus negécios ou que nao pode constituir mandatério. Foi reconhecida pelo pretor .quando, em Roma, as auséncias se tornaram freqiientes por motivo de guerras 35 em paragens longinquas e do desenvolvimento do comércio, sobretudo mari- timo. Para que houvesse gestdo de negécios, era de rigor a pratica de atos de ingeréncia nos negécios de outrem, no interesse deste. Ela obriga 0 gestor a responder por seus atos perante 0 dominus. Em sentido inverso, 0 dominus € obrigado a indenizar o gestor pelas despesas titeis que ele efetuou por motivo da gesto. Daf o surgimento de duas ages: a agio negotiorum gestorum directa (do dominus contra 0 gestor) e a agio negotiorum gestorum contraria (do gestor contra 0 dominus), respectivamente”®. A categoria dos quase-contratos foi acolhida pelo Cédigo Civil francés, de 1804, entre as obrigacgdes que se formam sem convengio (arts. 1.370 e segs.). A gestdo de negécios é regulada entre os quase-contratos pelos arts. 1.372 a 1.375. Sem fornecer defini¢ao do instituto, o Cédigo dispée, no art. 1.372, que, quando alguém voluntariamente gerir os negécios de outrem, quer © proprietério conhega a gestdo quer no, 0 gestor assume a obrigagao tacita de continuar a gest’o que comegou e de termin4-la até que o proprietario possa assumi-la pessoalmente. Do Cédigo Civil francés, a gestao de negdcios, como quase-contrato, passou para as demais codificagdes que sofreram a influéncia do cddigo gaulés. Mesmo aqueles cédigos que nao seguiram a orientagao do francés quanto a enumeragio das fontes das obrigacdes dispdem sobre a gestio de negdcios nos mesmos termos em que ela é regulada pelo Cédigo Napoledao, como sucede com o Cédigo Civil italiano, de 1942 (arts. 2.028 e segs.), 0 Codigo Civil brasileiro, de 1916 (arts. 1.331 e segs.), o Cédigo Civil portugués, de 1967 (arts. 464 e segs.). O vigente cddigo brasileiro, de 2002, fornece de gestao de negocios, no art. 861, a seguinte nogio: “Aquele que, sem autorizacao do interessado, intervém na gestéo de negécios alheio, dirigi-lo-4 segundo 0 interesse e a vontade presumivel de seu dono, ficando respons4vel a este e as pessoas com que tratar”. Da gestio de negécios distingue-se 0 chamado trabalho de gestdo (ou trabalho gerencial — lavoro gestorio), como o denominou Santoro-Passarel- 1i?*, préprio de prestadores de servigos qualificados, como 0 exercido por altos empregados (diretores, superintendentes, procuradores, gerentes), investidos de poder de representagio inerente nado ao mandato, mas a um contrato de trabalho. Segundo a regulagao do instituto da gestdo de negécios pelo Codigo Civil brasileiro, de 2002, se o dono quiser aproveitar-se da gestio, sera obrigado a indenizar 0 gestor das despesas necessdrias, que tiver feito, e dos prejuizos, que por motivo da gestao, houver sofrido (art. 868, pardgrafo tinico). Como observa Fabricio Zamprogna Matiello, se o dono “entendeu conveniente apro- 36 veitar a atividade executada nao poderé locupletar-se indevidamente, auferindo vantagens & custa do empobrecimento do gestor”. E de se entender que a lei impOe a reestruturagao patrimonial do gestor por parte do dono do negécio, 0 que abrange o reembolso das despesas em que, por motivo da gestao, houver incorrido”’. Pagamento indevido. O pagamento indevido, no plano tedrico, é espécie do género enriquecimento sem causa. O direito romano nao elaborou uma teoria da obrigagdio fundada no enriquecimento sem causa. Embora admitido desde os primérdios, 0 principio de eqiiidade, sobre 0 qual ele repousa, s6 era aplicado em alguns casos. Somente com o aperfeigoamento das relagdes so- ciais, ao longo do tempo, ele passou a ser consagrado em ntimero cada vez maior de hipoteses. Entre as obrigagdes quase ex contractu, encontravam-se diversos casos de enriquecimento sem causa, como € 0 caso de pagamento indevido. Para a tepeticao do indébito, havia a conditio indebiti, cabivel para obter a restituigao, quando alguém pagou por erro aquilo que nao devia”. Se alguém recebeu de outrem alguma coisa sem causa ou em raz4o de causa injusta, o pretor concedia ao solvens a conditio, para pleitear a restituigao do que indevidamente pagara. Se faltava a causa do pagamento, ou se ela era injusta, 0 accipiens obteve um enriquecimento injusto e, em conseqiiéncia, deveria restituir aquilo que inde- vidamente recebera. Como modalidade de quase-contrato, o pagamento indevido foi recebido pelo Codigo Civil francés, de 1804, que, no art. 1.376, dispde que “aquele que receber por erro ou cientemente o que nao lhe é devido obriga-se a restituf-lo aquele de quem ele indevidamente recebeu”. O pagamento indevido nao constitui modalidade de pagamento, mas sim fonte de obrigages. Por isso, foi impropriamente regulado no Capitulo “Do pagamento” pelo Cédigo Civil brasileiro, de 1916, nos arts. 964 a 971. O art. 964 dispde: “Todo aquele que recebeu o que the nao era devido fica obrigado a restituir’. Como “pagamento de indébito”, é regulado pelo cédigo Civil italiano, de 1942, nos arts. 2.033 e segs. Reza 0 art. 2.033: “Quem efetuou um pagamento indevido tem direito de repetir 0 que pagou”. Como modalidade de enriquecimento sem causa, 0 pagamento indevido € contemplado pelo Cédigo Civil portugués, de 1967, no art. 476. O Cédigo Civil brasileiro, de 2002, nos arts. 876 e segs., regula o pagamento indevido, reproduzindo o art. 876 0 teor do art. 964 do Cédigo de 1916. A lei socorre aquele que paga por erro, “impedindo, desse modo, e por uma razao de eqiiidade, seu empobrecimento injusto”, como ensina Silvio Rodrigues”. A medida reparatéria prevista por lei 6, sempre, a restituigao, 37 tipica das figuras quase-contratuais, no caso tendente a evitar o enriquecimento sem causa ou injusto, quando ocorre acréscimo patrimonial derivado da causa inexistente ou juridicamente ineficaz. Enriquecimento sem causa, ou enriquecimento ilicito. O principio dominante nesta matéria é que todo enriquecimento desprovido de fundamento juridico gera a obrigacio de restituir. O enriquecimento ilicito ocorre quando alguém, a expensas de outrem, obtém vantagem patrimonial sem causa, ou seja, sem que tal vantagem decorra da lei ou de negécio juridico anterior. Mas, nao basta dizer que ninguém deve enriquecer-se & custa de outrem (ou em detrimento de outrem). A férmula, assim, fica incompleta, porque deixa de lado uma das condigées da existéncia da obrigagao. Esta pressupde dois requi- sitos: 0 enriquecimento e a falta de causa legitima, isto é, de fundamento juridico que justifique o ganho patrimonial®. Trata-se de hipotese de quase-contrato, em que, mais uma vez, prevalece a técnica das restituigdes, que nem sempre ocorre pela recuperagao do bem in natura, mas pelo equivalente. Se uma pessoa se enriquece injustamente 4 custa de outra, apropriando-se de um bem dessa tltima, a reparagio do dano pode efetuar-se diretamente pela acio de reivindicagao. Nao raramente, porém, transformagées juridicas ou econdmicas sé permitem a reparagao pelo equiva- lente em dinheiro, 0 que € préprio dos quase-contratos*!. O principio segundo 0 qual a ninguém é dado locupletar-se com a jactura alheia remonta ao século II da nossa era, quando formulado por Pompénio. 0 texto, constante do Digesto, é 0 seguinte: Jure naturae aequum est, neminem cum alterius detrimento et iniuria fieri locupletiorem™. Tradugao livre: “Por direito de natureza é justo que ninguém se torne mais rico com prejuizo e dano de outrem”. Quase com as mesmas palavras, a regra j4 fora anunciada ante- riormente, em texto também da autoria de Pomp6nio: Nam hoc natura aequum est, neminem cum alterius detrimento fieri locupletiorem. Pela natureza, € justo que ninguém se torne mais rico com prejuizo alheio™*. Aquele que, sem justa causa, obtém ou retém um bem de outrem é,por eqiiidade, obrigado a restitui-lo. A obrigaco de restituir nao deriva de um contrato nem de ato ilicito, mas simplesmente da idéia de aquisigao sem causa, por aplicagio da eqiiidade, como se vé nos fragmentos de Pompénio acima transcritos, além de outros, como 0 de Celso™. A regra que veda 0 enriquecimento sem causa passou para a legislagao de muitos pafses. O Cédigo Civil francés nao a contempla expressamente, mas a jurisprudéncia supre a falta, mediante extensdo da agao nascida da gestio de negécios (ainda aqui, aplicagiio da nogo de quase-contrato). O BGB (Cédigo Civil alemao), em vigor em 1900, faz alusao expressa ao principio no § 812. 38 O Cédigo das Obrigagdes da Suiga, de 1911, sobre ele dispde no art. 62. 0 Cédigo Civil italiano, de 1942, menciona a regra no art. 2.041. O Cédigo Civil de Portugal, de 1967, acolhe o principio geral de vedagao do enriquecimento sem causa no art. 473. O Cédigo Civil brasileiro, de 1916, nao previu regra genérica sobre o enriquecimento sem causa. Apenas regulou o pagamento indevido, que é es- pécie do género enriquecimento sem causa. A omissao, contudo, nao impedia a jurisprudéncia de invocda-la, mesmo porque 0 cédigo, em diversas passagens, proibia o enriquecimento injusto em casos especificos. Ja 0 vigente Cédigo Civil, de 2002, regula o enriquecimento sem causa nos arts. 884 e segs. Dispde o art. 884: “Aquele que, sem justa causa, se enriquece & custa de outrem, sera obrigado a restituir 0 indevidamente auferi- do, feita a atualizagdo dos valores monetarios”. Aduz 0 pardgrafo tinico desse dispositivo que, se o desfalque patrimonial do lesado recair em coisa determi- nada, 0 objeto da agio sera a restitui¢do da prépria coisa e, se esta pereceu, a restituigao se faré pelo valor do bem, estimado a época em que for exigido®. Contrato sinalagmatico nulo. O sinalagma contratual nao se estende as restituigGes reciprocas. Da execugao da prestagaéo de fazer, mesmo que o contrato seja nulo, nasce o direito 4 contraprestag4o, por forga do sinalagma, enquanto a execu¢4o da prestagao indevida é fonte de responsabilidade qua- se-contratual, que se caracteriza em uma obrigacao de restituigao a cargo do accipiens indebiti. A execucio do contrato nulo equivale a uma situacao de fato, e assim nao pode receber tratamento juridico comandado pela légica contratual. Nas relagGes contratuais de fato, a nogaio de quase-contrato como que convalida 0 contrato sinalagmatico nulo e, nao obstante, executado. Nas obrigag6es de restituir derivadas de um contrato nulo, a nogao de quase-con- trato opera em sentido inverso, eliminando do mundo juridico as conseqiién- cias de fato do contrato invalido. Em face de um contrato que foi executado a despeito da nulidade, a declaragao de nulidade tem a funcao prodrémica de eliminar os efeitos juridicos produzidos, suprimindo o contrato; ja a nogdo de quase-contrato, por seu turno, incide sobre as conseqiiéncias de fato da exe- cugio. Daf se conclui que existe, no sistema juridico, uma multiplicidade de solugGes destinadas a regular os interesses patrimoniais surgidos nas relagdes entre particulares que nado se exaurem nos modelos do contrato ou da respon- sabilidade civil. Pode-se entender que a nogao de quase-contrato, particular- mente a repetigao do indébito, assume autonomia perante a disciplina do contrato, no sentido de que a restituigaéo do valor patrimonial derivado da execucdo de um contrato nulo nao se processa segundo as regras dq direito 39 dos contratos, mas por meio de um remédio especifico, que se pode definir como quase-contratual, porque destinado, no sistema de circulagdo dos bens, a restabelecer 0 equilibrio entre os sujeitos do contrato nulo — fungiio essen- cial do instituto do quase-contrato. Quest&o que preocupa os estudiosos do direito do trabalho é a nulidade do contrato de trabalho (que 6, por definigao, sinalagmatico perfeito). O objeto do contrato de trabalho é 0 trabalho, entendido como atividade, gerada, para o empregado, de uma obrigaciio de fazer. O objeto nao € a energia (fisica ou psiquica) do prestador de servigos, pois esta se exaure no préprio ato em que despendida. Qualquer atividade economicamente Util pode consti- tuir objeto do contrato de trabalho. A nulidade do contrato de trabalho, segundo as regras do direito comum, acarreta a dissolugao ex tunc da relagao contratual, de sorte que o contrato nenhum efeito juridico produz. Quod nullum est nullum effectum producit. A nulidade fulmina o contrato desde 0 momento de sua formagao e, em conse- qiiéncia, os sujeitos devem reciprocamente restituir os valores recebidos, re- tornando ao status quo ante, como se nao tivessem contratado. Os efeitos produzidos pela execugio do contrato nulo nao podem ser eliminados retroativamente, porque, sendo o contrato sucessivo, a atividade despendida pelo empregado nao pode ser-lhe devolvida. Surgem, entao, dois problemas distintos, segundo as diferentes hipdteses: a) os saldrios ja foram pagos; b) os saldrios ainda nao foram pagos. Se os saldrios ja foram pagos, eles no estio sujeitos a restituigdo, porque, dentro da ldgica contratual, correspondem 4 contraprestago a cargo do empregador. Na verdade, representam 0 correspectivo da prestagio ja efe- tuada pelo empregado. Se, porém, os saldrios ainda nao foram pagos, o direito do trabalho nao depara solucdo especifica e, neste caso, ela ha de ser encontrada no direito comum. O tema é exposto, com a habitual proficiéncia, por Délio Maranhio: “O direito nao admite que alguém possa enriquecer sem causa, em detrimento de outrem. Se o trabalho foi prestado, ainda que com base em um contrato nulo, o salario ha de ser devido: o empregador obteve o proveito da prestagao do empregado, que sendo, por natureza, infungivel, nao pode ser “restitufda”. ImpGe-se, por conseguinte, o pagamento da contraprestagao equivalente, isto é, do saldrio, para que nao haja enriquecimento ilicito”** No campo do direito comum, trés, portanto, sao as solugdes aventadas: 1* — a irretroatividade da nulidade, que nao é tipica do direito do trabalho, jé que pertinente a todo contrato sucessivo; b) a vedagao de enriquecimento sem causa, se os saldrios nao fossem devidos, o empregador se enriqueceria pelo 40 valor correspondente aos referidos salarios; c) a vedacaio de enriquecimento ilicito, porque o empregador se locupletaria 4 custa do empregado. Todas as solug6es se baseiam na teoria do contrato, levando em conta que, em face do sinalagma inerente a todo contrato de trabalho, posto que nulo: a) a retroatividade da nulidade nao seria admissivel contra 0 empregado; b) o enriquecimento do empregador decorreria de um inadimplemento contratual, caso se entendesse que, por forga da nulidade, inexistiria a obrigagao de pagar 0s saldrios; c) a ldgica do sinalagma contratual veda 0 enriquecimento de um dos sujeitos (no caso, o empregador) com 0 empobrecimento do outro. Nenhuma das solugGes aventadas mediante apelo ao remédio contratual Se mostra, porém, melhor do que a encontrada na teoria do quase-contrato, por aplicagio da técnica das restituigdes: restituigdo, no caso, pelo equivalente, por evidente impossibilidade de restituigdo especifica ou in natura. A prestagao do empregado consiste na atividade por ele desenvolvida em favor do empre- gador. O saldrio representa, por definigao, 0 equivalente da prestacdo execu- tada pelo empregado (contraprestagiio). A teoria da negagio de efeito retroativo da nulidade nao encontra apli- cagao ao caso mesmo que invocada apenas em beneficio do empregado, j4 que 0 sinalagma obrigaria ao reconhecimento da idéntica conseqiiéncia em bene- ficio do empregador. A teoria do enriquecimento sem causa, também, nio merece melhor sorte, uma vez que ele resultaria da dispensa do pagamento do salério pelo empregador, mas, neste caso, a hipdtese resvala para 0 campo do mero descumprimento do contrato por parte do empregador. Quanto & terceira solugao proposta (vedagiio de enriquecimento com o empobrecimento alheio), nao prospera, porque, ao efetuar a prestag&o, o empregado na verdade nao empobrece: deixa de ganhar (0 saldrio), isto é, nada perde, do ponto de vista material (perde juridicamente, porque deixa de auferir o saldrio, mas, do ponto de vista material, de nada foi despojado). A luz da teoria do quase-contrato, a solugdo surge com facilidade, pela simples aplicagio da técnica da restituigdo: ao beneficiar-se da prestacao efetuada pelo empregado, 0 empregador se obriga, por forga da nulidade do contrato, nao a contraprestar (obrigagao inexistente, j4 que 0 contrato é nulo), mas sim a restituir, pelo equivalente, aquilo que auferiu em virtude da presta- ¢4o efetuada pelo empregado. A atividade despendida pelo prestador de servigos na execugao do con- trato nulo € suscetivel de avaliagio pecunidria (tem valor econdmico) e, em conseqiiéncia, pode constituir objeto de restituigao pelo equivalente (montante representado pelo salario). 41 Se, em caso de nulidade do contrato de trabalho, o empregado deixou de auferir o saldrio, tem a seu favor (a despeito da nulidade) agio de restituigio do proveito injustificado. A figura do proveito injustificado é aventada pela doutrina italiana, a propésito da gestdo de negécios, espécie de quase-contra- to’. O gestor do negécio alheio responde, perante o dono, pelos prejuizos causados pela gest&éo (Cédigo Civil brasileiro, de 2002, arts. 861, 863 e 866). Por seu turno, caso o dono queira aproveitar-se da gestio, sera obrigado a indenizar o gestor das despesas necessdrias, que tiver feito, e dos prejuizos, que por motivo da gestao, houver sofrido (Codigo Civil, art. 868, pardgrafo unico). Ad instar da regulacio do instituto da gestéo de negécios, ao qual é inerente a restituigio do proveito indevido, a solugao do problema do contrato de trabalho nulo, quando os salérios nio foram pagos, aponta na mesma diregdo, porquanto 0 empregador, se outra fosse a solugao, tiraria proveito indevido da atividade desenvolvida pelo empregado a seu favor. Este proveito h de ser restitufdo ao empregado pelo valor equivalente, ou seja, a importancia correspondente aos salarios nao pagos. NOTAS 1. MOSCATI, Enrico. Verso il recupero dei “quasi contratti”? (Le obbligazioni restitutorie dal contratto ai “quasi contratti”), in AAVV. Valore della persona e giustizia contratuale — scritti in onore di Adriano de Cupis, Mildo: Giuffré, 2005, p. 185-197. 2. BEVILAQUA, Clévis. Direito das Obrigagées, 8* ed., Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1954, p. 17. 3. DE RUGGIERO, Roberto. Instituciones de Derecho Civil, trad. da 4* ed. Ital. por Ramé6n Serrano Sufier e José Santa Cruz Teijeiro, Madrid: Reus, s/data, p. 96-97. 4. GAIO. Institutas, III, § 88. 5. NONATO, Orosimbo. Curso de Obrigagées, vol. 1, Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 180. 6. D., 44, tit. VIL, fr. 1. 7. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil, vol. II, Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1955, p. 33. 8. JUSTINIANO. Institutas, II, 13, § 2. 9. MAY, Gaston. Elements de Droit Romain, 7° ed., Paris: Librairie de la Société du Recueil Géneral, 1901, p. 225. 10. NOBREGA, Vandick Londres da. Histéria e Sistema do Direito Privado Romano, Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1955, p. 332. 11. JUSTINIANO. Institutas, III, 27, de obligationibus quase ex contractu. 42 12. GIRARD, Fré Rousseau, 1911, p. 609. 13. VON WAHLENDORF, H. A. Schwartz-Liebermann. Droit comparé — Théorie générale et Principes, Paris: LGDJ, 1978, p. 164-170. 14, GOMES, Orlando. Obrigagées, 17° ed., Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 34-35. 15. NONATO, Orosimbo. Curso de Obrigagées, vol. I, cit.,, p. 182. 16. TRIMARCHI, Pietro. Instituzioni di Diritto Privato, 3* ed., Milao: Giuffré, 1977, p. 116. 17. JAMES, Philip S. Introduction to English Law, 9* ed., Londres: Butter- worths, 1976, p. 266-267. 18, CHAMOUN, Ebert. Instituigdes de Direito Romano, 5* ed., Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 305. 19. MAY, Gaston. Elements de Droit Romain, cit., p. 362-368. 20. DIEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos del derecho civil patrimonial, vol. I, 2* ed., Madri: Tecnos, 1983, p. 405. 21. VON THUR, A. Tratado de las obligaciones, t. I, trad. de W. Roces, Madri: Reus, 1934, p. 81. 22. GHESTIN, Jacques. L’exception d’inexécution, in FONTAINE, Marcel et VINEY, Geneviéve (sous la dir.), Les sanctions de l’inexécution des obligations con- tratuelles, Bruxelas: Bruylant, 2001, p. 11. 23. DUBUISSON, Bernard et TRIGAUX, Jean-Marc. L’exception d’inexécution en droit belge, in FONTAINE, Marcel et VINEY, Geneviave (sous la dir.). Les sanc- tions de l’inexécution des obligations, cit., p. 70. 24. JUSTINIANO. Institutas, III, 27, De obligationibus quase ex contract, § 1, Digesto II, 5, De negotiis gestis, 2 (Gaio). 25. MAY, Gaston. Elements de Droit Romain, cit., p. 362. 26. SANTORO-PASSARELLI, Francesco. Nozioni di Diritto del Lavoro, 35* ed., Népoles: Eugenio Jovene, 1987, p. 23 ¢ 89. 27. MATIELLO, Fabricio Zamprogna. Cédigo Civil Comentado, 2* ed., Sao Paulo: LTr, 2005, p. 543. 28. GAIO. Institutas, III, 91; JUSTINIANO. Institutas, III, 27, De obligationi- bus quasi ex contractu, § 6; D., XII, 6, De conditione indebiti, § | (Ulpiano). 29. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol. 3, 30° ed., Sdo Paulo: Saraiva, 2007, p. 413. 30. SALEILLES, Raymond. Etude sur la théorie générale de Il’ obligation, 2* ed., Paris: F. Pichon, 1901, p. 451. 31. SAVATIER, René. La théorie des obligations — vision juridique et écono- mique, 3*., Paris: Dalloz, 1974, p. 316. 32. D., 50, tit. XVII, 206 (Pompdnio). 33. D., 12, tit., VI, De conditione indebiti, 14 (Pompénio). 34. D., 12, tit. I, De rebus creditis, 32 (Celso: bonum et aequum). ric. Manuel élémentaire de droit romain, 5* ed., Paris: Arthur 43 35. LOURES, José Costa e GUIMARAES, Tafs M. L. Dolabela. Novo Cédigo Civil Comentado, 2* ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 383. 36. MARANHAO, Délio. Instituigées de Direito do Trabalho (em colaboragao com Arnaldo Siissekind, Segadas Vianna e Lima Teixeira), 20* ed., vol. 1, Sao Paulo: LTr, 2002, p. 248. 37. SIRENA, Pietro. Note critiche sulla sussidiarieta dell’azione generale di arrichimente senza causa, in AAVV. Valore della perpersona e giustizia contrattuale — scritti in onore di Adriano de Cupis, cit., p. 283. 44

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