Obra Fuvest Livro Terra Sonambula

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TSONAMBULA_OBRAS FUVEST_2021.

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OS LIVROS DA FUVEST

TERRA SONÂMBULA
MIA COUTO

Análise da obra, seleção de fragmentos e questionário

MARIA DE LOURDES DA CONCEIÇÃO CUNHA


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TERRA SONÂMBULA
1. BIOGRAFIA DO AUTOR

(Mia Couto – Foto Lusofolia)

António Emílio Leite Couto, filho de emigrantes portugueses, nasceu


em Moçambique, na cidade da Beira, província de Sofala, no dia 5 de julho
de 1955:

Nasci na Beira em 1955, sou filho de uma família de emigrantes


portugueses que chegaram a Moçambique no princípio dessa
década de 50. O meu pai [Fernando Couto] era jornalista e era
poeta. Ele publicou cinco ou seis títulos em Moçambique, uma
poesia pouco íntima, mas também dois dos livros foram livros
que tentaram ser livros de preocupação social, em relação ao
conflito da situação existente em Moçambique. Mas eram livros
em que a consciência política era mais antifascista, liberal,
democrática, mas não questionando ainda a questão colonial. A
família do meu pai é gente que enriqueceu um pouco no período
da guerra, com garagens, e tinham, portanto, negócios ligados a
automóveis. Eram do Porto.

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MIA COUTO
O meu pai foi para África porque acho que ele queria seguir a
carreira jornalística e não havia muita hipótese de emprego nessa
altura em Portugal, penso que foi por isso. Mas havia também
uma sensação de que eles precisavam de mais espaço,
precisavam de começar uma coisa nova. A minha mãe [Maria
de Jesus] vem duma aldeia de Trás-os-Montes, não tem história
porque ela não conheceu a mãe nem o pai. A mãe morreu no
parto duma próxima irmã. Ela ficou órfã, abandonada, depois
foi acolhida por um padre que se apresentou como sendo tio
delas. Então até o nome dela foi rescrito, foi inventado para ela
não ter uma ligação com a sua mãe – uma “senhora do pecado”.
Penso que ela queria muito sair dali quando era nova, o meu pai
passou... “distraído”, ela agarrou-o e foram para o Porto. Depois
foram de Portugal para Moçambique e nascemos nós, três
irmãos, eu sou o do meio. Fernando Amado, dois anos mais
velho, e o mais novo, que tem uma diferença de sete anos de
mim, chama-se Armando Jorge. [...] O meu pai, com um grupo
de alguns portugueses, que tinham sido deportados de Portugal
por motivos políticos, formaram associações do tipo cineclubes,
centros culturais onde se faziam debates de certas coisas. O meu
pai trabalhava em três jornais, o Notícias da Beira, o Diário de
Moçambique e o Notícias, de Lourenço Marques.
[...] A Beira era uma cidade muito conflituosa porque a fronteira
entre os brancos e os negros era uma fronteira muito misturada,
muito “atravessada”. E eu recordo-me – toda a minha infância
é uma infância de viver no meio de negros, brincar, com eles, os
meus amigos, as pessoas que eu posso referenciar da minha
infância, com a exceção dos meus irmãos e mais alguns, todo o
resto é uma infância toda vivida ali.
[...] Vivemos em quase todas as partes da Beira. O meu pai
mudava constantemente de bairro. Mas era constante essa
mistura. Porque a Beira é uma cidade conquistada ao pântano.
Então, à medida que era possível secar uma região e construir
casa de cimento isso fazia-se. Mas estavam lá as casas dos
negros locais. Então, sempre do outro lado da rua havia
africanos com casa de caniço. Não tanto esta arquitetura

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arrumada, de urbanização feita com plano, como aconteceu em
Lourenço Marques. Vivi muito nessas zonas suburbanas,
periféricas.
[...] Os brancos da Beira eram profundamente racistas. Quando
eu saí da Beira para Lourenço Marques, em 1971, parecia-me
que estava noutro país, porque na Beira havia quase apartheid
em certas coisas. Não podiam entrar negros nos autocarros, só
no banco de trás. Enfim, era muito agressivo. No Carnaval os
filhos dos brancos vinham com paus e correntes bater nos
negros. Recordo-me duma história: eu tinha um senhor que me
dava explicações de matemática, privadas, e ele era pai dum
coronel que tinha feito um massacre em que tinham sido mortos
125 ou 130 camponeses. E ele tinha fotografias do massacre
dentro de casa, como uma glória! Eu só andei uma semana
naquelas explicações. Nós chamávamos-lhe o “Bengalão”,
porque ele tinha uma bengala grande, e, quando começava a
sessão de estudo, ele mandava sair as mulheres – as meninas –
e ficava só com rapazes, e dizia: “Cuidado, porque o pretinho
está-nos a ouvir, é preciso impedir isso. Na escola eu tenho que
baixar as notas dos negros para eles nunca ficarem à vossa
frente, vocês têm que me ajudar nesta luta...” – e aquilo era uma
coisa que para mim soava horrível.
[...] Eu guardo na minha infância, assim, uma coisa muito
esbatida, um ponto de referência, as histórias que me eram
contadas, dos velhos que moravam perto, vizinhos do outro lado
da rua, de um outro mundo, e eu recordo esse mundo encantado
até algumas histórias, sobretudo como eles me deixaram uma
marca. Os meus dois irmãos também escreviam, com 16, 17
anos, e o meu irmão Carlos mais cedo, até. O meu pai tinha
muito esta coisa que eu era o filho que lhe ia continuar a veia.
[...] em 83, publiquei o meu primeiro livro. Como uma espécie
de contestação contra o domínio absoluto da poesia militante,
panfletária. Para se ser revolucionário era preciso falar de
marxismo, nos operários, e eu resolvi fazer um livro de poesia
íntima, intimista, lírico. E o Orlando Mendes, que faleceu agora,
fez-me um prefácio bonito, explicando que era uma coisa

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“nova”, no sentido de que se pode fazer uma poesia de vanguar-
da sem se falar muito em política. O livro esgotou-se rapida-
mente, não é o mérito daquele livro, quase todos eles se
esgotavam.
Influências? Do Craveirinha, sim, um pouco do Craveirinha.
Mas eu apaixonei-me mais pela linha dos brasileiros, pelo João
Cabral de Melo Neto, pelo Carlos Drummond de Andrade.
Quando comecei a descobrir o mundo da poesia pensava que os
brasileiros tinham valores maiores. Talvez fosse uma resistência
minha. Achava que havia uma certa injustiça praticada no relevo
que se dava aos poetas portugueses em relação aos brasileiros,
quando estes tinham superado os próprios portugueses. Sim, mas
também tive a influência de alguns poetas portugueses, como
Sofia de Mello Breyner, o Eugénio de Andrade, o Fernando
Pessoa.
(Mia Couto, in PATRICK CHABAL,
“Vozes Moçambicanas”)1

Mia Couto começou a cursar Biologia, de 1971 a 1974, e, depois, Medi-


cina em Lourenço Marques (atualmente, Maputo), ambiente intensamente
racista e de forte pressão sobre os estudantes universitários, o que levou o
autor a abandonar a medicina e colaborar com a FRELIMO (Frente de
Libertação de Moçambique), partido engajado com a independência de
Moçambique de Portugal:

Naquela altura a coisa era complicada. Até porque o militante


branco estava numa situação complicada. Ele não podia aparecer
assim e dizer: “Eu sou da FRELIMO, eu sou simpatizante.” Ele
era olhado com muita desconfiança, podia ser um provocador.
Por outro lado, era muito odiado pelos outros brancos, que o
consideravam traidor. (COUTO apud CHABAL, 1994, p. 280)

––––––––––––––––––––––––––––––

1
Fonte da autobiografia: <www.terravista.pt/bilene/4040/home.htm>.

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Em 1975, com a independência de Moçambique, Mia Couto ingressou
no jornalismo, dirigindo a Agência de Informação de Moçambique (1976 a
1979), a Revista Tempo (1979 a 1981) e o Jornal Notícias (1981 a 1985):

A independência nacional era para mim o final desse universo de


injustiças. Foi por isso que abracei a causa revolucionária como se
fosse a minha predestinação. Cedo me tornei um membro da
Frente de Libertação de Moçambique e a minha vida foi, durante
um tempo, guiada por um sentimento épico de estarmos criando
uma sociedade nova. No dia da Independência de Moçambique eu
tinha 19 anos. Alimentava, então, a expectativa de ver subir num
mastro uma bandeira para o meu país. Eu acreditava, assim, que o
sonho de um povo se poderia traduzir numa simples bandeira. Em
1975, eu era jornalista, o mundo era a minha igreja, os homens a
minha religião. E tudo era ainda possível. (COUTO, 2005, p. 191)

Mia Couto iniciou a carreira de escritor na poesia, publicando, em 1983,


Raiz de Orvalho, relançado em 2001. No prefácio de Raiz de Orvalho e
outros poemas, o autor atribui ao exercício poético a possibilidade de
ingressar no mundo dos romances:

Hesitei muito e muito tempo até aceitar republicar este livro de


versos. A edição original foi publicada em Maputo, em 1983.
Rapidamente o livro se esgotou e tenho, ao longo deste tempo,
recebido várias sugestões para o reeditar. Desde então, porém, a
minha escrita derivou para outros universos e hoje sou um poeta
cuja prosa é muito distante daquilo que se pode pressentir em Raiz
de Orvalho. Eu próprio não me reconheço em muitos desses versos.
Alguns não resistiram ao tempo, outros adoeceram de serem tão
íntimos. Assim, ao aceder a publicar a minha poesia inicial eu senti
que devia escolher apenas alguns dos poemas da primeira versão de
Raiz de Orvalho. Acrescentei outros versos inéditos, todos eles
datados da década de oitenta. Assumo estes versos como parte do
meu percurso. Foi daqui que eu parti a desvendar outros terrenos.
O que me liga a este livro não é apenas memória. Mas o
reconhecimento de que, sem esta escrita, eu nunca experimentaria
outras dimensões da palavra. (COUTO, 1999, p. 7)

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Após a Independência, seguiu-se a guerra civil, a qual só terminou com
a assinatura do Acordo Geral de Paz, em 4 de outubro de 1992, em Roma,
momento em que os pais de Mia Couto regressaram a Portugal:

Os meus pais, depois da Independência, foram por quatro vezes


para Portugal, para voltar definitivamente e só à quinta é que
ficaram definitivamente em Portugal. Eu creio que eles
pertencem àquela gente que já não tem mundo, porque,
entretanto, Portugal já não é aquele Portugal que eles deixaram,
e Moçambique também já não é aquilo que eles tinham
encontrado e onde sabiam viver, portanto eles pertencem a uma
terra de ninguém, não têm mundo. Das vezes que voltaram para
Portugal tentaram integrar-se e nunca conseguiram. Agora como
já estão idosos, já não voltam. Vão lá várias vezes visitar-nos,
estar conosco. (COUTO apud CHABAL, 1994, p. 284)

Abandonando a carreira jornalística, Mia Couto retornou à Universi-


dade para terminar o curso de Biologia e especializar-se na área de Ecologia,
em 1989, passando, então, a colaborar em jornais, cadeias de Rádio e
Televisão, dedicando-se, principalmente, à área de estudos sobre impacto
ambiental.
Hoje, Mia Couto é o autor moçambicano mais traduzido e lido no
mundo. Seu primeiro romance, Terra Sonâmbula (1992) recebeu o Prêmio
Nacional de ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO)
em 1995; em 1996, o Prêmio da Associação dos Críticos de Arte de São
Paulo, “Os melhores de 95”; o Prêmio ALOA para o Melhor Romance do
Terceiro Mundo, Associação dos Editores Dinamarqueses, Dinamarca, em
1999; o “Noma African Awards”, em 2005; o Prêmio Camões, em 2013; e
o “Neustadt Prize”, em 2014, além de ser considerado, na Feira Interna-
cional de Zimbabwe, um dos doze melhores livros africanos do século XX.
Além desses prêmios, Mia Couto também recebeu: em 1989, o Prêmio
Nacional de Jornalismo Aerosa Pena, pela Organização Nacional de
Jornalistas de Moçambique, por Cronicando; 1990, o Grande Prêmio da
Ficção Narrativa de Moçambique, por Vozes anoitecidas; 1993, o Prêmio
Nacional de Literatura de Moçambique, por Vozes anoitecidas; 1999, o

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Prêmio Virgílio Ferreira, da Universidade de Évora, Portugal, pelo conjunto
da obra; 1999, o Prêmio Consagração atribuído pela FUNDAC, Maputo;
2001, o Prêmio Mário António, da Fundação Calouste Gulbenkian, por O
último voo do flamingo; 2002, os Prêmios Procópio de Literatura, Lisboa,
e o África Hoje, Maputo; 2007, o Prêmio União Latina de Literaturas
Românicas, Paris, e o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura,
Jornada Nacional de Literatura, Passo Fundo, por O outro pé da sereia;
2009, o Prêmio O Melhor de Literatura em Língua Portuguesa, Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil/PB (FNLIJ), por O gato e o escuro.
Em 2015, Mia Couto figurou na lista de finalistas para o “Man Booker
International Prize”, primeiro autor em Língua Portuguesa a ser indicado
para o prêmio.

2. MOÇAMBIQUE, GUERRA E LITERATURA

Tendo como países fronteiriços Malawi, África do Sul, Suazilândia,


Tanzânia, Zâmbia e Zimbabwe, Moçambique está localizado no sudeste da
África, com área total de 801.590 quilômetros quadrados, população
aproximada de 32.000.0002, e sua capital é Maputo, antigamente chamada
Lourenço Marques.

––––––––––––––––––––––––––––––

2
<http://countrymeters.info/pt/Mozambique>, site em constante atualização. Acesso em: 20 maio 2021.

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Por haver uma alta taxa de desemprego (cerca de 23% em 2013, segundo
Eduardo Chimela, diretor-geral do Instituto Nacional de Emprego e Formação
Profissional (INEFP) do Ministério do Trabalho3), grande parte da população
de Moçambique vive abaixo da linha da pobreza e tem expectativa de vida
média de 41 anos, em decorrência de diversos fatores, como uma grande
variedade de doenças infecciosas, hepatite A, febre tifoide, malária,
HIV/AIDS e outras. Além disso, são frequentes inundações imensas e grandes
períodos de seca, que geram escassez de alimentos. Segundo dados do Banco
Mundial, o PIB de Moçambique aproxima-se dos 16 bilhões de dólares em
2015, sendo a agricultura o setor dominante e os principais produtos de
exportação o algodão, a castanha-de-caju, a cana-de-açúcar, o tabaco e o chá.
Outra fonte de rendimento das famílias moçambicanas é a venda de
lenha, madeira, carvão e gado. Há também um projeto em expansão para
mineração em Chibuto. A industrialização é pequena no país, de tecnologia
simples e rudimentar, fundamentalmente manufatureira, dedicada às ativi-
dades de extração e transformação de alguns recursos minerais e energéticos.
Vasco da Gama chegou a Moçambique em 1498, encontrando no
território, já instalados, os árabes e o povo Bantu. Até o início de 1900,
Portugal aplicava políticas rentáveis aos seus interesses, priorizando a
riqueza entre os portugueses, num regime colonial que terminou com a
independência de Moçambique em 25 de junho de 1975. Mas o que poderia
ter sido o início de um período de paz, foi o princípio de numa catástrofe:
uma longa guerra civil, que fez mais de um milhão de mortos e quatro
––––––––––––––––––––––––––––––

3
<http://www.verdade.co.mz/economia/37028>.

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milhões de deslocados, tornando-se Moçambique um dos países mais pobres
do mundo.
Durante séculos as atividades portuguesas na região estiveram restritas
a feitorias comerciais costeiras, que disputavam com árabes e indianos o
estabelecimento de relações comerciais com os governantes locais, embates
estes de que dão testemunho a espetacular arquitetura da Ilha de
Moçambique, com suas construções cristãs, muçulmanas e baneanes.
O que se pode chamar de colonização portuguesa começa a se efetivar
no final do século XIX, quando foram instituídos sistemas administrativos
específicos para os indígenas, definindo e mapeando as áreas, denominadas
de circunscrições ou conselhos, e os postos administrativos com os
correspondentes responsáveis por estas localidades.
Apesar dos movimentos de resistência contra o domínio estrangeiro, a
derrota de Gungunhana, rei de Gaza, no último quartel do séc. XIX,
significou a consolidação e o fortalecimento do sistema administrativo
português sobre Moçambique, pressionado pelo avanço da política
neocolonial europeia e pelo “ultimato britânico”, que exigia a ocupação
efetiva do território. A conquista portuguesa, ou pacificação, foi levada a
termo por Freire de Andrade, Antonio Enes, Eduardo Costa, Aires Ornelas,
Eduardo Galhardo e Mouzinho de Albuquerque, representantes da chamada
“Geração 95”. (MACAGNO, 2001, p. 63-66)

A guerra civil em Moçambique durou 16 anos e,


segundo estudiosos, Portugal não teria preparado
devidamente o país para a administração do poder,
mas apenas instruído para servir o próprio sistema
colonial e nada mais. No final da década de 1970, o
governo moçambicano apoiou o movimento de
libertação da Rodésia (atual Zimbabwe), permitindo-lhe a utilização de
bases em território moçambicano, mas o poder rodésio revidou treinando a
Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) que, liderada por Afonso
Dhlakama, invadiu Moçambique em luta armada. As sanções decretadas
contra a Rodésia, como o fechamento das fronteiras e a entrada de produtos
deste país, propondo-se ao combate ao regime branco rodésio, abriu espaço
para os guerrilheiros da ZANU (Zimbabwe African National Union),
movimento nacionalista da Rodésia e, consequentemente, a África do Sul
fechou as portas aos emigrantes moçambicanos.
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O Governo da FRELIMO (Frente de Libertação de


Moçambique), liderado por Samora Machel, estabele-
ceu um Estado de tipo marxista, aproximando-se de
posições pró-chinesas (maoístas), e evoluiu para uma
adesão à ideologia marxista-leninista, aproximando-se
do bloco da ex-União Soviética e projetando a
construção de um Estado Socialista e a criação de um
Homem Novo. Desse modo, foram tomadas medidas, como o planejamento
centralizado, passando tudo pelo Estado, sendo que quem se oposicionasse
ao partido seria rotulado de tribalista, traidor, ignorante, colonialista, e
mandado para um campo de reeducação inspirado nos modelos chineses,
soviéticos ou cubanos, o que resultou na transferência de mais de 2 milhões
de camponeses para aldeias comunais de modelo determinado pela
FRELIMO, que foram construídas em lugares definidos pelo Estado por
mais de 5 anos.
O ímpeto revolucionário inicial reverteu-se em intrigas entre os
dirigentes e no despotismo do Partido, gerando a reação do povo
moçambicano, que estava sem suas aldeias, a fim de derrubar o novo
regime. Além disso, a FRELIMO passou a hostilizar os brancos que
permaneciam em Moçambique, exaltando valores raciais disfarçados de
nacionalismo africano, o que resultou numa retirada em massa dos brancos
do país entre 1975 e 1976.
A RENAMO, que inicialmente tinha como objetivo desestabilizar o
governo moçambicano, tornara-se um grupo de mercenários recrutados
pelos serviços secretos da Rodésia, a qual buscava uma mudança de regime,
agindo de maneira violenta, massacrando as populações, roubando (o que
não era possível de ser levado, compensava-se com a violação das mulhe-
res), destruindo o país e demolindo infraestruturas.
A FRELIMO também foi responsável pela guerra civil em decorrência
de sua governabilidade de linha dura, chegando a matar indiscriminada-
mente quem enfrentasse o governo, diminuindo a visão do desenvolvimento
do país e desprezando a cultura moçambicana.
Nos anos 1980, a guerra civil era descontrolada, os sistemas de saúde
e educação faliram, a produção agrícola desaparecera em grande parte de
Moçambique, uma terrível seca desencadeou a fome por grande parte do
país, resultando em habitantes completamente abandonados e, em 1990, já

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havia 1 milhão de pessoas mortas e cerca de 5 milhões de habitantes
deixando o território moçambicano.
Nesse clima de guerra, a Igreja Católica também não foi poupada e,
identificada com o colonialismo, foi excluída da participação social e
política. No entanto, o Islamismo foi preservado do processo de intimidação,
o que causou um imenso afrontamento das crenças e estruturas tradicionais
do país, desagregação social e aumento de tensões internas.
Um acordo entre Moçambique e a África do Sul, em Inkomati, não
limitou a ação da RENAMO, que, apoiada por parte da população, avançava
pelo território moçambicano, resultando, no plano internacional, na visão de
que o grupo privilegiava a liberdade contra os regimes marxistas, os quais
começavam a ruir com a desagregação do bloco soviético, principal apoio
da FRELIMO.
Frente à nova realidade mundial, a RENAMO e a FRELIMO iniciaram
as negociações de paz, assinando, em 1992, um tratado que punha fim à
guerra, determinando a desmobilização das tropas, a preparação para
eleições multipartidárias no país, supervisionadas pela ONU, e a repatriação
e reestabelecimento dos refugiados.
Pode-se dividir, portanto, o longo período de guerras moçambicanas
em três momentos: de 1975 a 1985, período anterior à guerra civil, em que
Moçambique se via livre de Portugal, mas despreparado para a nova
situação; de 1985 a 1992, época da devastação provocada pela guerra; e de
1992 aos nossos dias, fase pós-guerra, em que o país busca se reconstruir.
Segundo o historiador Egídio Vaz4, a guerra em Moçambique pode ser
dividida na fase da “guerra de desestabilização”, que se segue até a assina-
tura do Acordo de Nkomati na África do Sul, em 1984, com apoio externo,
período que “foi marcado pela falta de um discurso coerente, de uma causa,
e caracterizou-se pela matança, pela destruição e pelo enfraquecimento da
infraestrutura nacional”; e na de “guerra civil”, nos finais da década de
1980, coincidente com a queda do Muro de Berlim e a desagregação da
União Soviética, quando “a RENAMO apropriou-se de novos valores: a
democracia e a liberdade, momento em que Moçambique estava perante

––––––––––––––––––––––––––––––

4
<http://www.dw.de/de-guerra-de-desestabiliza%C3%A7%C3%A3o-a-guerra-civil-historiador-
mo%C3%A7ambicano-fala-sobre-o-conflito-entre-a-frelimo-e-a-renamo/av-16277213>.

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uma guerra civil, dirigida pelos moçambicanos com uma agenda política”,
sendo a “nova postura da RENAMO que impulsionou o governo da
FRELIMO a adotar a democracia como sistema político no país”.
A Guerra Civil terminou em 1992 e, depois de 27 anos de lutas, o que
se viu foi um país devastado e povoado por pessoas famintas que viviam de
auxílio da comunidade internacional.

3. BREVE CRONOLOGIA DA GUERRA CIVIL MOÇAMBICANA

1975 – Independência de Moçambique a 25 de junho. Samora Machel


é empossado presidente.
1976 – Fundação da RENAMO (Resistência Nacional de Moçam-
bique), movimento de reação ao regime monopartidário
marxista moçambicano.
1976/77 – Início da guerra civil entre a FRELIMO e a RENAMO.
1980 – O Governo do Apartheid da África do Sul declara apoio ao
movimento rebelde RENAMO.
1984 – Assinatura dos Acordos de Nkomati, entre os governos de
Moçambique e da África do Sul, que afirma deixar de apoiar a
RENAMO.
1986 – Samora Moisés Machel morre a 19 de outubro, num acidente
aéreo.
1987 – A guerra civil intensifica-se. Massacre das populações de
Homoíne (cerca de 400 pessoas mortas) e de Manjacaze.
1989 – Queda do bloco da ex-União Soviética.
– A RENAMO perde os seus apoios no Zimbabwe e na África do
Sul.
– A FRELIMO abandona o marxismo-leninismo.
– Início de conversações entre a RENAMO e a FRELIMO.
1990 – Negociações de paz entre o governo de Moçambique e a
RENAMO.
1992 – É assinado, em 4 de outubro, em Roma, o Tratado de Paz entre
o governo e a RENAMO.
– ONU envia para Moçambique forças para a manutenção da paz
numa missão denominada ONUMOZ.

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1994 – Realização das primeiras eleições gerais e multipartidárias em
Moçambique, sendo a FRELIMO o partido mais votado para o
parlamento.
– Processo de reintegração dos guerrilheiros da RENAMO.
1995 – O Banco Mundial e o FMI acordam um plano de reformas
econômicas e de diminuição da pobreza.
1996 – Adesão de Moçambique à Comunidade de Países de Língua
Oficial Portuguesa (CPLP).
1998 – Primeiras eleições autárquicas nas principais cidades de
Moçambique, mas sem a participação da RENAMO, que não
reconheceu os resultados.
1999 – Segundas eleições legislativas e presidenciais. A FRELIMO e
Joaquim Chissano são novamente declarados vencedores, mas
a RENAMO não reconhece os resultados, alegando fraude.
– RENAMO promove diversas manifestações pelo país, ocorren-
do confrontos com a polícia e morte de 40 manifestantes.
– Oposição exige a recontagem dos votos das eleições de 1999.
2000 – Moçambique é assolado por grandes cheias.
2003 – Brasil compromete-se a construir uma fábrica de produção de
medicamentos antirretrovirais para apoiar as vítimas de
HIV/AIDS.
2004 – Assembleia da República adota uma nova Constituição.
2005 – Armando Guebuza é empossado para segundo mandato como
Presidente de Moçambique.
2006 – Banco Mundial cancela a maior parte das dívidas de
Moçambique.
2008 – Repatriamento de moçambicanos que são vítimas de xenofobia
na África do Sul.
2012 – Março: a Força de Intervenção Rápida faz uma incursão a um
acampamento, onde estavam 300 apoiantes da RENAMO,
supostamente organizados para protestos contra o governo.
– 4 de outubro: Moçambique inteiro comemora os 20 anos de paz.
2014 – FRELIMO, RENAMO e MDM (Movimento Democrático de
Moçambique) foram os principais concorrentes às eleições
presidenciais, legislativas e provinciais de 15 de outubro em
Moçambique.

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MIA COUTO
– Vitória de Filipe Nyusi para presidente, candidato governista da
FRELIMO, a qual manteve também a maioria dos assentos
parlamentares.
2015 – Chuvas torrenciais em Moçambique destruíram casas, pontes,
propriedades agrícolas e alguns rios.

4. LITERATURA E LINGUAGEM MOÇAMBICANAS

Até os anos 20 do século passado, não houve atividade literária con-


sistente em Moçambique, conforme relata Pires Laranjeira (1995, p. 256-
262). Assim, a literatura moçambicana conta com cinco períodos:
1.º – “Incipiência”, da origem da permanência portuguesa até 1924,
quando foi publicado O livro da dor, de João Albasini, sendo o
gênero literário predominante a poesia;
2.º – “Prelúdio”, de 1925 até o fim da Segunda Guerra Mundial, incluindo,
além do livro do jornalista João Albasini, os poemas dispersos, nos
anos 1930, de Rui de Noronha, depois publicados com o título de
Sonetos (1946), por ser o gênero mais cultivado por ele;
3.º – “Formação”, de 1945/48 a 1963, destacando-se a “consciência
grupal dos (candidatos a) escritores”, inspirados pelo Neorrealismo
e a “Negritude”, destacando-se José Craveirinha;
4.º – “Desenvolvimento”, de 1964 a 1975, após a fundação da FRELIMO,
marcado “pela coexistência de uma intensa atividade cultural e literária
no hinterland, no ghetto”. Essa é a fase, segundo Fátima Mendonça
(1988, p. 33-45), da emergência de um ideal de “moçambicanidade”,
congregador das diferenças regionais e da ruptura definitiva com “o
campo ideológico do inimigo”, surgindo textos “marcadamente
políticos” e a “emancipação da narrativa em relação à preponderância
da poesia”, pontificando intelectuais, escritores e artistas como Eugênio
Lisboa, Rui Knopfli, o português António Quadros, entre outros, ao
lado de poemas anticolonialistas defensores da revolução;
5.º – “Consolidação”, de 1975 a 1992, com textos de “temática militante,
engajada e doutrinária” e outros com “novas perspectivas”, des-
tacando-se a autonomia da literatura moçambicana, divulgando-se
textos até então guardados, como o Silêncio escancarado (1982), de
Rui Nogar.

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TERRA SONÂMBULA
A literatura de Moçambique tematiza também a exaltação patriótica
dos feitos da luta de libertação e o culto dos heróis libertadores, denunciando
a corrupção, a miséria, a guerra e a descaracterização social e cultural do
país. Nesse contexto, a publicação de Terra Sonâmbula (1992), de Mia
Couto, coincide com a abertura política do regime, período de pós-inde-
pendência.
A partir do quinto momento, a literatura moçambicana passou a dar
mais importância ao que antes poderia ser caracterizado como situação banal
do cotidiano, adotando-se, de certo modo, a vertente do Realismo
Maravilhoso, associado às crenças populares africanas. Assim, da união do
Fantástico com a realidade coletiva cotidiana, originaram-se obras
envolvendo histórias extraordinárias na recuperação da identidade
moçambicana quase esquecida.
A literatura de Moçambique, então, começou a explorar a multiplicida-
de de narradores e de histórias, que correm paralelamente ou se entrecruzam
por meio de flashbacks, resgatando-se o passado histórico, as profecias e as
lendas, sem preocupação com a cronologia linear, uma vez que o importante
é a recriação do real, permeada de devaneios e críticas sociopolíticas, as
quais remetem o leitor a reflexões sobre os problemas moçambicanos, como
ocorre na obra Terra Sonâmbula.
É importante considerar também que a Língua Portuguesa é, oficialmen-
te, o idioma moçambicano, entretanto não é língua materna da maioria da
população. Segundo o Censo de 2007, 38,7% da população é escolarizada,
vivendo a maioria (71,4%) nas zonas rurais em que predomina o emprego das
várias Línguas Bantu na comunicação cotidiana, sendo o português falado
prioritariamente por pessoas escolarizadas e pelas que habitam as cidades.
Mia Couto, em seu livro E se Obama fosse africano? e outras
intervenções, afirma:

O que advogo é um homem plural, munido de um idioma plural.


Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir
uma outra que nos faça sair do mundo. De um lado, um idioma
que nos crie raiz e lugar. Do outro, um idioma que nos faça ser
asa e viagem. Ao lado de uma língua que nos faça ser
humanidade, deve existir uma outra que nos eleve à condição
de divindade. (COUTO, 2009, p. 26)

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MIA COUTO
Partindo-se do princípio da pluralidade, encontra-se na literatura
coutiana uma imensidão de neologismos, que são derivados de mudanças
semânticas de elementos lexicais existentes na língua, quer por via da
substituição dos valores originais, quer por via da sua expansão, sendo
muitos deles empregados naturalmente pela população, como os que
decorrem de empréstimos vindos de inglês. Por exemplo, a palavra biznés
(TS5, p. 113) é oriunda do inglês bussines e incorporada recentemente ao
português de Moçambique em decorrência da globalização.
Em Terra Sonâmbula, há também o livre emprego da pluralização de
substantivos bantu, que segue as regras da Língua Portuguesa, como
xicuembos (TS, p. 44), matsangas (TS, p. 49), naparamas (TS, p. 49), xipo-
cos (TS, p. 83) e machongos (TS, p. 121), os quais significam em português,
respectivamente, deuses, bandidos, guerreiros, fantasmas e terras férteis de
solos argilosos.
Encontram-se, na obra de Mia Couto, imensas variedades decorrentes
das transformações de português para xichangana (conhecida por Língua
Tsonga, uma das onze línguas oficiais da África do Sul, falada também na
parte sul de Moçambique), e depois para o português, como é o caso de
“xicalamidade” (TS, p. 57), que, segundo Mia Couto, tem sentido de
corruptela de “calamidades, forma como popularmente se designam os
donativos para apoiar as vítimas das calamidades naturais”, e, no contexto
moçambicano, significa “roupa usada importada” (Dias, 2002, p. 74), ou a
palavra “satanhoca” (TS, p. 67), originária de satanás, que passou para a
língua xichangana como “satanhoco”, ou “sàthanyokò” de sàthana (diabo)
+ nhòka (cobra), forma usada tanto no xichangana como no português de
Moçambique para insultar o interlocutor (SITOE, 1996, p. 207).

5. AS “BRINCRIAÇÕES” DE MIA COUTO


EM TERRA SONÂMBULA

Na literatura africana, a reunião de diversas linguagens decorre,


principalmente, do processo de colonização de muitas regiões. Mia Couto,
em sua obra, apropria-se dessa multiplicidade, conciliando a oralidade e a
––––––––––––––––––––––––––––––

5
Abreviaremos o título do livro Terra Sonâmbula por TS sempre que houver exemplo retirado
da obra.

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TERRA SONÂMBULA
escrita entrelaçadas com o plano cultural moçambicano e com as
experiências herdadas pelo próprio autor. Segundo Fonseca e Cury,

Pode-se dizer que sua escrita é um lugar de mediação das várias


heranças do escritor. Nesse sentido, vale a referência ao seu
depoimento quando se reporta aos contadores de estórias
moçambicanos. O processo de contação pode ser pensado,
segundo o escritor, em alguns momentos, como uma partilha do
contador com seus antepassados mortos, e as narrativas
cumprem função mediadora entre estes últimos e o auditório.
(FONSECA; CURY, 2007, p. 17)

Em Terra Sonâmbula, os narradores e personagens compõem suas


histórias interseccionadas e, ao conduzirem a narração, exercitam a palavra
polifonicamente, criando uma rede de discursos com identidade semântica
e lexical próprias. Desse modo, surpreende, em Terra Sonâmbula, a criati-
vidade de Mia Couto, a qual, no exercício com a linguagem, assemelha-se
ao que se encontra nas obras do brasileiro João Guimarães Rosa, do irlandês
James Joyce, do angolano José Luandino Vieira e do argelino Kateb Yacine.
Explorando as estruturas da Língua Portuguesa e das Africanas,
associadas a outros idiomas, o autor moçambicano vincula as falas
populares e a norma culta, remodelando a linguagem do romance em
Moçambique, valendo-se, segundo Ana Luísa Pleno Rajão Lisboa (2011),
de diversos métodos em toda a sua obra, tais como:

1) Formação de novas palavras por derivação:

“Ela acreditava que aquele homem estivesse de passagem para muito


longe, para um mundo invislumbrável.” (TS, p. 172)
“Ou fazer como minha mãe me ensinou: ser a mais delicada sombra.
É isso que desejo: me apagar, perder voz, desexistir.” (TS, p. 200)

2) Formação de novas palavras por composição por aglutinação:

“Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e


sofrências.” (TS, p. 15)

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MIA COUTO
“Esta criança há-de ser chamada de Vinticinco de Junho.” (TS, p. 17)
“Sempre aquelas muçulmanias, servindo os prazeres do senhor.” (TS,
p. 148)

3) Importação de palavras, expressões ou interjeições das línguas bantu e


inglesa, por vezes adaptadas:

“— Em tempos de guerra filhos são um peso que trapalha maningue.”


[= muito, do inglês many]. (TS, p. 12)
“— Chai, patrão!” [Sha = O quê? Ai!, Não!, interjeição em macua]
(TS, p. 146)

4) Supressão de preposições:

“— Está (a) mandar que escrevas o nome dele.” (TS, p. 69)

5) Omissão da conjunção subordinativa integrante “que”:

“— Vou-lhe confessar: me irrita esse Quintino é só por gosto que tenho


nele. O gajo não compreende que eu lhe quero proteger. Quando lhe
trato assim, faz conta um doentio, é para esses grandes pensarem ele
é tonto, suas palavras são sempre de tira-e-põe.” (TS, p. 129)

6) Emprego de frases curtas, predominando orações coordenadas, e


interrogações retóricas.

“Deveríamos ir ao bar, lá se encontrava o desditoso cujo.” (TS, p. 127)


“O destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego?”
(TS, p. 203)

A valorização da oralidade é característica na escrita de Mia Couto,


que, por meio de neologismos, provérbios e frases feitas subvertidos, figuras
de linguagem, aforismos ricos, contextualiza a trama de Terra Sonâmbula,
criando também um registro da cultura popular e das tradições
moçambicanas:

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TERRA SONÂMBULA
1) Substituição da partícula negativa “não” por “nada” ou “nem”:

“— Mas o senhor me conhecia, sabia quem eu era?


— Nada. Você nunca me foi visto. Agora, acabou-se a conversa.
Apague a fogueira.” (TS, p. 35)

2) Marcas pleonásticas na negativa dupla e outras expressões e utilização


de elementos de baixo calão e gírias:

“Patrão não conhece nem um bocadinho de ninguém.” (TS, p. 157)


“— Cabrões, foi aqui mesmo!” (TS, p. 130)
“Logo na primeira noite os sentem. Os mosquitos. São grandes, negros,
zunzumbentes. Não mordem, apenas. Entram no sangue e ficam
chiando lá dentro.
— Merda de mosquitos!” (TS, p. 175)
“— Deixa lá isso, pá. Agora, vamos lá ao que importa. Ora diz-me cá
uma coisa. Onde é que está Farida?” (TS, p. 150)

3) Prefixação de palavra que já é prefixada e utilização de clíticos em


posição proclítica:

“Contudo, naquele momento, Quintino Massua se desimportou, alheio


aos perigos.” (TS, p. 129)
“Lhe dói o corpo da posição que a rede lhe obrigava, dobrado pelo
umbigo.” (TS, p. 68)

4) Criação de máximas ou aforismos:

“— Quem não tem amigo é que viaja sem bagagem.” (TS, p. 33)
“Mas nós cumprimos destino de tapete: a História há de limpar os pés
nas nossas costas.” (TS, p. 57)
“E adianta lição: nenhum rio separa, antes costura os destinos dos
viventes.” (TS, p. 87)
“O homem é como a casa: deve ser visto por dentro!” (TS, p. 88)

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MIA COUTO
5) Emprego de provérbios moçambicanos e ditados populares reescritos:

“A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos
morder. [...] O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos.” (TS,
p. 17)
“Em terra de misérias um pequeno nada é olhado com muita inveja. E,
afinal, se entende: um coxo faz inveja a um paralítico.” (TS, p. 109)
“— Não ligue. Isto é atraso, ignorância bravia. Vale a pena insistir?
Vale a pena esclarecer esta gente? Eu sempre acho que sim. Do menos
o mal: afinal, grão a grão o papa se enche de galinhas.” (TS, p. 129)
“Você sabe: em terra de cego quem tem um olho fica sem ele.” (TS,
p. 129)
“O moçambicano ripostou, quisesse o estrangeiro ensinar o
Padre-Nosso ao vigarista.” (TS, p. 167)

6) Uso abundante de recursos estilísticos, como metáforas, hipérboles,


comparações, prosopopeias, eufemismos e onomatopeias:

“Os relâmpagos circuitam a noite, tricotando a noite com súbitos fios


de luz.” (TS, p. 88)
“Fui subindo por um caminhozito descalço, um trilho tão estreito que
mesmo duas serpentes não podiam namorar.” (TS, p. 105)
“A tempestade cresce como o pão na quentura do forno.” (TS, p. 88)
“A terra toda se despira, esperando em vão receber o beijo do arado.”
(TS, p. 51)
“Seu marido, Romão Pinto, se retirou da vida vai fazer dez anos.” (TS,
p. 158)
“Se aproxima por trás e dispara um puxado pontapé no animal. Um
méééé se amplia pela noite.
— Hidjii! Afinal, é um cabrito!” (TS, p. 35)

6. LITERATURA FANTÁSTICA DE MIA COUTO

Em seu livro Introdução à literatura fantástica (2004), Todorov


distingue quatro categorias de interferência do sobrenatural na narrativa: o
estranho puro, quando são relatados “acontecimentos que podem
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TERRA SONÂMBULA
perfeitamente ser explicados pelas leis da razão”, mas que se destacam pelo
seu caráter extraordinário e singular; o fantástico-estranho, que se
caracteriza pelo insólito: são fatos aparentemente sobrenaturais que
percorrem toda a história narrada e que recebem, ao final, uma explicação
racional; o fantástico-maravilhoso, pertencente “à classe das narrativas
que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do
sobrenatural”; e o maravilhoso puro em que

os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação


particular, nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é
uma atitude para com os acontecimentos narrados que
caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses
acontecimentos [...] O maravilhoso implica que estejamos
mergulhados num mundo de leis totalmente diferentes das que
existem no nosso; por este fato, os acontecimentos sobrenaturais
que se produzem não são absolutamente inquietantes.
(TODOROV, 2004, p. 51 a 60, 179-180).

Todorov analisa o fantástico na literatura com o propósito de


estabelecer determinado padrão que possibilite a avaliação do que é, ou não,
fantástico. Segundo ele, “o fantástico é a hesitação experimentada por um
ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (TODOROV, 2004, p. 31), fazendo o leitor duvidar da
veracidade do fato, distante de uma explicação lógica. Desse modo, Todorov
indica que o fantástico

[...] exige que três condições sejam preenchidas. Primeiro, é


preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das
personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre
uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos
acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser
igualmente experimentada por uma personagem; desta forma, o
papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e
ao mesmo tempo a hesitação encontra-se representada, torna-se
um dos temas da obra; no caso de uma leitura ingênua, o leitor
real se identifica com a personagem. Enfim, é importante que o

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MIA COUTO
leitor adote uma certa atitude para com o texto; ele recusará tanto
a interpretação alegórica quanto a interpretação “poética”.
(TODOROV, 2004, p. 38-39)

Ainda segundo Todorov, “no mundo sobrenatural não há acaso, reina


ao contrário o que se pode chamar de “pandeterminismo” (Todorov, 2004,
p. 51) e as coincidências vêm seguidas do sonho. Em Mia Couto,
frequentemente a ordem sobrenatural surge, transcendendo a realidade,
como ocorre em símbolos, crenças, rituais e tradições africanas, o que faz
das teorias sobre o Realismo Maravilhoso algo naturalmente expresso no
dia a dia da população africana, isto é, o que para nós seria sobrenatural de
ser entendido, para eles é normal e comum.
Le Goff afirma também que o maravilhoso, na Idade Média, exercia
uma

Função compensatória em um mundo de duras realidades e de


violência, de penúria e de repressão eclesiástica, além de
contestar a ideologia cristã, opondo-se à concepção do homem
criado “à imagem de Deus”. (LE GOFF, 2002, p. 118)

Assim, a narrativa fantástica envolve o leitor, levando-o a


questionamentos sobre acontecimentos reais e irreais ou insólitos, que
conduzem a uma ruptura da fronteira entre o mundo real e o ficcional, que
não pode ser explicado logicamente. Logo, a realidade pode ser questionada,
mas também exige do leitor a crença no evento sobrenatural, aceitando o
encantamento proporcionado pelo texto e, caso ocorra a sensação de pavor
diante do acontecimento insólito, o gênero Fantástico se fará presente,
segundo Todorov.
Em Terra Sonâmbula, por exemplo, o tema da metamorfose ocorrida
com irmão de Kindzu, Junhito, que se transforma em um galo, conforme o
sonho premonitório do pai, Taímo, exige do leitor uma cumplicidade com
o mágico. Evidencia-se, nessa atitude, um comportamento tático: mudando
de forma, o homem é capaz de ludibriar a morte e a explicação é privada de
lógica interna, isto é, ocorre um fenômeno estranho, que exige um pacto do
leitor com o texto, rompendo a ordem estabelecida e implicando uma
integração do leitor no mundo das personagens. Portanto,

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TERRA SONÂMBULA
Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o
mundo das personagens como um mundo de criatura vivas e a
hesitar entre uma explicação natural e uma explicação
sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta
hesitação pode ser igualmente experimentada por uma
personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer,
confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação
encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra; no
caso de uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com a
personagem. (TODOROV, 2004, p. 39)

Desse modo, é comum que um leitor apegado aos valores tradicionais


da literatura realista experimente, em Terra Sonâmbula, o Unheimliche
(estranheza inquietante), o que Freud descreveu em um de seus ensaios e
“aplica-se com justeza ao efeito de fantasticidade. O leitor teme o ‘não
familiar’, o novo, enquanto signos da outridade, que ameaça a sua ordem
de valores estabelecida.” (CHIAMPI, 1980, p. 68)
Já no título do romance, a palavra Sonâmbula indica que o sonho
predominará na narrativa e os acontecimentos maravilhosos marcarão as
viagens das personagens (por exemplo, a de Kindzu em sua busca dos
míticos naparamas), sejam as narrativas de histórias reais ou das imaginadas
relatadas pelos diversos narradores em primeira ou em terceira pessoa
surgidas ao longo de Terra Sonâmbula.
É justamente a fantasia que salva as personagens da destruição e da
morte presente em todos os lugares, decorrentes da guerra que originou,
além disso, a desarmonia e o quase esquecimento das tradições e da cultura
popular moçambicanas. O sonho, portanto, serve para manter vivo o passado
do país:
Aquela noite lhe dera a certeza: os sonhos são cartas que
enviamos a nossas outras, restantes vidas. Os cadernos de
Kindzu não deviam ter sido escritos por mão de carne e ossuda
mas por sonhos iguais aos dele. (TS, p. 65)

Assim, Kindzu metaforiza o sonhador inconformado com a realidade,


e, buscando os ideais de solidariedade, justiça e amor, a personagem
encontra valores que se manterão vivos por meio da leitura de Muidinga
dos cadernos deixados ao lado do machimbombo. O ato de ler os sonhos de
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MIA COUTO
Kindzu resulta em novos sonhos, assim como os olhares de Muidinga e de
Tuahir se transformam ao longo das visões proporcionadas pelos escritos de
Kindzu.
A estrada, que muda sem se alterar, movimenta-se sem sair do lugar,
pois o sonho domina a realidade, caminho empregado por Mia Couto para
apresentar Moçambique e suas diversas faces:

Tudo acontecera na vizinhança do autocarro. Era o país que


desfilava por ali, sonhambulante. Siqueleto esvaindo,
Nhamataca fazendo rios, as velhas caçando gafanhotos, tudo o
que se passara tinha sucedido em plena estrada.
— É miúdo, estamos a viajar. Nesse machimbombo parado nós
não paramos de viajar. Me faz lembrar quando andava de
comboio. (TS, p. 137)

Outra personagem “sonâmbula” é Siqueleto, que sonha assegurar a


manutenção de sua povoação ao gravar seu nome numa árvore e concretiza
tal permanência ao se transformar em semente, a qual trará novos
Siqueletos. Simbolicamente, sua morte remete ao desaparecimento das
sociedades rurais moçambicanas que não seriam mais úteis ao novo
Moçambique.
Assim como o desejo de Siqueleto é povoar Moçambique de árvo-
res-gente, o de Nhamataca é alimentar a terra com a água do rio que ele
mesmo cava: dois sonhadores de uma vida abundante depois da destruição
provocada pela guerra. No entanto, Nhamataca é punido por desafiar os
deuses, sendo arrastado pela enxurrada numa noite de temporal, morrendo
crente em que o rio havia sido feito e o sonho realizado.
Outro que sofre por sonhar é Taímo, o pai de Kindzu que, de tanto viver
nas margens do devaneio, cega-se para a realidade e afasta-se da vida.
Kindzu, quando criança, vivia rodeado das histórias do pai que lhe
ampliavam o mundo restrito real, limitado de mitos e lendas. No entanto,
Kindzu duvidava do pai em decorrência da educação escolar, a qual lhe
minava a capacidade de crer na cultura tradicional, sem perceber,
inicialmente, que os sonhos podem conduzir o futuro das pessoas.
A capacidade de Taímo de sonhar acaba ao ver seu filho Junhito ser
destruído. Metáfora da ruína do sonho de um país liberto, o menino-galo

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TERRA SONÂMBULA
desaparece, assim como as perspectivas futuras de Moçambique. Mas, no
funeral de Taímo, um acontecimento extraordinário dá a Kindzu a
possibilidade de recuperar os sonhos: todo o palmeiral revestiu-se de uma
dimensão sagrada e Kindzu ouviu a voz do pai pedindo que as árvores
fossem poupadas da destruição.
Nesse palmeiral repleto de frutos, o Maravilhoso surge na imagem da
riqueza de uma nação destruída pelos gananciosos que levarão o país à
tragédia: “De novo, a multidão se derramou sobre as palmeiras. Mas quan-
do o primeiro fruto foi cortado, do golpe espirrou a imensa água e, em can-
taratas, o mar se encheu de novo, afundando tudo e todos.” (TS, p. 20-21)

7. AS PERSONAGENS DE TERRA SONÂMBULA

MUIDINGA/GASPAR – Garoto, que busca pelos pais sem saber


quem são, foi salvo da morte por Tuahir. Representa a inteligência e a
esperteza, passando por um rito de iniciação: separado da mãe, enfraquece
por causa da mandioca venenosa para consumo e, ressuscitado por Tuahir,
inicia sua fase adulta pelas mãos do idoso e pelos escritos de Kindzu.
Inicialmente, é o jovem conduzido pelo velho, mas, depois, sozinho, Mui-
dinga traça seu caminho para o futuro. No desfecho da obra, revelam-se seu
verdadeiro nome e sua identidade: Gaspar, nome de um dos Reis Magos,
justamente o que leva mirra ao menino Jesus. Tal erva é nativa do nordeste
da África e, conforme a Bíblia, é tão amarga quanto foram os sofrimentos
de Jesus. Além disso, Gaspar é nome de origem persa e significa “aquele que
leva tesouros”. Logo, Muidinga carrega, em seu verdadeiro nome,
sofrimentos e riquezas, correspondendo metaforicamente ao passado e ao
futuro esperado de Moçambique: “O jovem se chama Muidinga. Caminha
à frente desde que saíra do campo de refugiados. Se nota nele um leve
coxear, uma perna demorando mais que o passo. Vestígio da doença que,
ainda há pouco, o arrastara quase até à morte. Quem o recolhera fora o
velho Tuahir, quando todos outros o haviam abandonado. O menino estava
já sem estado, os ranhos lhe saíam não do nariz mas de toda a cabeça. O
velho teve que lhe ensinar todos os inícios: andar, falar, pensar. Muidinga
se meninou outra vez.” (TS, p. 10)

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MIA COUTO
KINDZU – Desejoso de se tornar um naparama, envolve-se com Farida
e parte em busca do menino Gaspar, misturando sonhos e realidade. Indeciso
entre a cultura e a tradição e os novos valores ocidentais, assim como Farida,
Kindzu busca sua real identidade: “Sou chamado de Kindzu. É o nome que
se dá às palmeiritas mindinhas, essas que se curvam junto às praias. Quem
não lhes conhece, arrependidas de terem crescido, saudosas do rente chão?
Meu pai me escolheu para esse nome, homenagem à sua única preferência:
beber sura, o vinho das palmeiras.” (TS, p. 15)

TUAHIR – Homem idoso que cuida de Muidinga, representa o pai que


o menino procurava e metaforiza a continuidade da tradição africana e a
sabedoria do tempo. Em princípio é ele quem guia e protege Muidinga, mas
o papel tradicional do velho guiar o jovem se altera, dando ao menino a
responsabilidade de cuidar de Tuahir: “O velho se chama Tuahir. É magro,
parece ter perdido toda a substância.” (TS, p. 9)

ABACAR RUISONHO – Homem gordo, responsável pela segurança


e pelo controle do número total de sobreviventes da guerra: “O homem era
o chefe dos serviços de segurança, vacilando entre o ruim e o perdoável.
Pois ele chegava onde quer que não fosse, abanava um cartão, nomeado
que estava para intimar, intimidar e lavrar em acta. Seu permanente serviço
era contar os viventes, conhecer quantos deslocados chegavam do campo.
Passava o dia de esquina em esguelha, numerando: um, dois, por aí avinte...
Empilhavam-se os números, baralhavam-se as pessoas. E recomeçava a
contagem. Às vezes, rebentavam-lhe as fúrias: que esta gente nunca está
quieta, grande porra! Uma coisa era certa: o gordo nem mau seria.”
(TS, p. 128)

ABDUL REMANE – Mecânico maometano, marido de Salima:


“Naquele dia Romão Pinto saiu, sem notícia, pelas sombrias palhotas.
Aspirou o intenso perfume das goiabeiras, com modos do nariz trincar a
vermelha polpa do fruto. Ficou por baixo da árvore olhando a oficina de
Abdul Remane. Não tardaria que o maometano saísse, levando suas latas
para soldar, no bairro vizinho.” (TS, p. 147)

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TERRA SONÂMBULA
ANTONINHO – Auxiliar da loja de Surendra. Inicialmente, ele não
gosta de Kindzu, achando que ele traia suas tradições africanas: “O ajudante
da loja, Antoninho, me olhava com os maus fígados. Era um rapaz negro,
de pele escura, agordalhado. Muitas vezes me mentia, à porta, dizendo que
o patrão se tinha ausentado. Parecia invejar-se de meu recebimento entre
os indianos.” (TS, p. 24)

ASSANE – Antigo secretário de Estêvão Jonas, preso por ele e


paralítico depois da surra tomada na prisão: “Assane foi preso, sujado por
mil bocas. Na prisão lhe bateram, chambocado nas costas até que as pernas
se exilaram daquele sofrimento que lhe era infligido. Perdeu o sentimento
da cintura para baixo. Assane passou as palmas das mãos pelas
desempregadas coxas. Tinha sido apenas há dias que lhe abriram a porta
da prisão. Ainda nem sabia bem se arrastar de mãos pelo chão. Por isso as
sacudia, limpando essas mãos que ele sempre aplicara nos documentos.”
(TS, p. 58)

ASSMA – Esposa do indiano Surendra; morre numa explosão em


decorrência da guerra: “Sua mulher Assma não aguentara o peso do mundo.
Todo o dia ela ficava na sombria traseira do balcão, cabeça encostada num
rádio. Escutava era o quê? Ouvia ruídos, sem sintonia nenhuma. Mas para
ela, por trás daqueles barulhos, havia música da sua Índia, melodias de
sarar saudades do Oriente. Dos paus de incenso esvoavam fumos. Os olhos
de Assma seguiam aqueles perfumes, dançando em tontas direções. Ela
adormecia embalada pelos ruídos.” (TS, p. 24)

CAROLINDA – Irmã gêmea de Farida e esposa do “administraidor”;


demonstra poder, senso de justiça e enfrenta a todos sem medo: “Carolinda,
a esposa do administrador, se emancipou da penumbra, desfez-se da silhueta.
Com a luta, a roupa se havia esfarrapado. Agora, no claro da luz, ela se
enfeitava com seu próprio corpo, fosse era a abelha florindo. Atirava o
pescoço para trás, no provoco de um riso. A língua, matreira, espreitava à
soleira da boca. De passagem, Carolinda me fez lembrar Farida. Qualquer
coisa as igualava, rosto em rosto. Ou será que o fogo do desejo faz semelhar
toda a mulher? As nossas mãos se laçaram, como se temessem a separação.”
(TS, p. 136)
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MIA COUTO
ESTÊVÃO JONAS – O “administraidor”, casado com Carolinda e
envolvido em negócios escusos, como, por exemplo, os propostos pelo seu
sócio, o fantasma Romão Pinto, antigo colonizador português. É o típico
ex-combatente da guerra da libertação, corrompido pelo poder e pelo
dinheiro, representante do desprezo pela população faminta: “É o
administrador da localidade, o próprio. É ele que vem vindo, escondido
pelos atalhos. Virgínia se interroga, em sussurro. O que vinha ele ali fazer,
a uma hora daquelas? Resposta que só tive mais tarde quando Quintino me
contou a verdade dos acontecimentos. O que se passava sem que eu nem
Virgínia soubéssemos eram atribulações que agora posso descrever.
Disfarçado na escuridão dos trilhos, o administrador Estêvão Jonas
desconhecia o fim da sua pressa. A mensagem lhe chegara por vias
atravessadas. Fora o tal Quintino que lhe trouxera o recado. Dizia que ele,
o camarada-em-chefe, se deveria conduzir para casa do falecido Romão
Pinto, residência igualmente falecida por nela só habitarem as vozes dos
malquistos.” (TS, p. 165)

EUZINHA – Tia de Farida, velha e esquecida: “A única que lhes trazia


comida era tia Euzinha, mulher larga, de muito assento. Ela conversava
com elas, trazia notícias dos outros. Também Euzinha conhecia os modos
de estar só, seu marido partira para a guerra, moribundando em parte
incerta.” (TS, p. 71)

FARIDA – Personagem feminina central do romance, bela, sensual e


misteriosa, representa a consequência da colonização portuguesa em
Moçambique. O nome Farida é de origem árabe e significa “sem igual”,
“única”, e, paradoxalmente, em Terra Sonâmbula, ela tem uma irmã gêmea,
Carolinda. Adotada por Virgínia e Romão Pinto, ela sofre violência sexual do
padrasto e engravida. Mãe de Gaspar, metaforiza a terra presa às tradições e
invasões constantes, vivendo isolada num barco encalhado: “Me chamo
Farida, começou a mulher o seu relato. Falava com voz baixa, em rouquidão
que vinha da timidez. Conservei-me afastado, de olhos no chão. Durante a
sua longa fala me calei como uma sombra para lhe dar coragem. A mulher
se trocou por palavra até quase ser manhã. Farida era filha do Céu, estava
condenada a não poder nunca olhar o arco-íris. Não lhe apresentaram à lua

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TERRA SONÂMBULA
como fazem com todos os nascidos da sua terra. Cumpria um castigo ditado
pelos milénios: era filha-gémea, tinha nascido de uma morte. Na crença da
sua gente, nascimento de gémeos é sinal de grande desgraça. No dia seguinte
a ela ter nascido, foi declarado chimussi: a todos estava interdito lavrar o
chão. Caso uma enxada, nesse tempo, ferisse a terra, as chuvas deixariam
de cair para sempre.” (TS, p. 70)

JOROGINA – Prostituta por quem Tuahir se apaixonara: “Mulher que


merecera suas eternas promessas. Ela parecia burrinha, metida em ideia só
por biscate.” (TS, p. 123)

JOTINHA – Adolescente com poderes sobrenaturais, considerada


feiticeira: “Se chamava Jotinha, era dona de poderes. Nem os curandeiros
lhe tinham dado direitamento. A menina recordava coisas que nunca
houveram. Mas punha tanta alma na lembrança que todos se recordavam
com ela. Acontecera com o dilúvio dos dinheiros, moedas chovendo sem
parar, cobrindo o chão de pratas e tilintações. E todos refugiados se
lançaram de gatas, facocherando na poeira. Não fora a única visão de
Jotinha, suas miraginações se seguiam sempre contra o regime da
realidade. Ela agora prometia outras enxurradas.” (TS, p. 186)

JULIANA BASTIANA - Prostituta cega, que aguarda a volta do seu


“brigadeiro”: “Suspirava saudades que nem convinham a uma mulher
sabida e cursada em contrabandalheiras. Seu modo de ser cega fazia que
não parecesse uma dessas trampalhonas, virabazucas. Ela se chegou, me
cheirou. A saia dela se apertava no corpo, o rabo quase nem devia respirar.”
(TS, p. 131)

MÃE DE KINDZU – Personagem sem nome no romance, dedicada ao


marido Taímo, vive constantemente grávida, o que evita o sofrimento do
filho, que nunca nasce e torna-a “muitíssimo mãe” (TS, p. 22). Metaforiza
a mulher moçambicana ligada à natureza e à geração de frutos: “Minha mãe
saía com a enxada, manhã cedinho, mas não se encaminhava para terra
nenhuma. Não passava das micaias que vedavam o quintal. Ficava a olhar
o antigamente. Seu corpo emagrecia, sua sombra crescia. Em pouco tempo,
aquela sombra se ia tornar do tamanho de toda a terra.” (TS, p. 17)
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MIA COUTO
NGANGA – Feiticeiro responsável pela transformação de pessoas em
animais, logo depois de seu discurso triunfal: “Voltando a levantar o cajado
sobre a cabeça ele ainda voltou a falar. Mas se pronunciou em palavras de
nenhuma língua. As gentes seguiam o restante discurso à cata de alguma
compreensão. Então, o nganga se calou, ergueu uma cabaça e verteu um
líquido sobre os ombros. Depois, desceu o morro e fez pingar a cabaça
sobre cada um dos presentes. Então se deu o mais extraordinário dos
fenómenos e todos os presentes tombaram no chão, agitando-se em
espasmos e berros, e se seguiu uma orgia de convulsões, babas e espumas
e, um por um, todos foram perdendo as humanas dimensões. Penugens e
escamas, garras e bicos, caudas e cristas se espalharam pelos corpos e todo
aquele plenário de gente se transfigurou em bicharada. A fala foi a última
coisa a ser convertida e, durante um tempo, se escutaram espantos e gritos
humanos proferidos pelas mais irracionais bestas. Aos poucos, porém,
também o verbo se perdeu e a bicharada, em desordem, se espalhou pelos
matos.” (TS, p. 202)

NHAMATACA - Amigo e antigo colega de trabalho de Tuahir, ele


tenta abrir a terra para formar um rio para matar a sede e a fome de
Moçambique, que renasceria para uma nova vida: “Do fundo do buraco o
desconhecido faz sinais com a mão, mostrando que deveriam esperar. Vai
subindo com vagares, demorado como se fosse cobra procurando os pés. Ao
chegar perto, se afina e, sem mais nem porquê, corre para Tuahir. Se
abraçam, amistosos. Muidinga olha, sem compreensão.” (TS, p. 85)

NIPITA – Pescador esfaqueado por bandos armados, que volta depois


de morto para buscar suas tripas: “Tuahir lembra Nipita, um pescador que
fora esfaquinhado pelos bandos armados. Acontecera de noite, o
desgraçado voltou de madrugada, vinha buscar as tripas. Deixei-lhes aqui,
esbarriguei-me num nadinha, disse num derradeiro sopro. Agora estando
quase para morrer, não podia se presentar perante a cova sem estar
devidamente completo. Alguém ainda lhe disse: vai que nós te levamos
depois as partes que te faltam. E ele se sepultou, assim, destripado. Nunca
mais ninguém lhe levou os restos de suas entranhas. O falecido pescador,
agora, passava a morte a maldiçoar os viventes.” (TS, p. 154)

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TERRA SONÂMBULA
PASTOR AFONSO – Antigo professor de Kindzu: “O professor tinha
sido assassinado. Acontecera na noite anterior. Cortaram-lhe as mãos e
deixaram-lhe amarrado na grande árvore onde ele teimava continuar suas
lições. As mãos dele, penduradas de um triste ramo, ficaram como
derradeira lição, a aprendizagem da exclusiva lei da morte.” (TS, p. 29)

QUINTINO MASSUA – Guia de Kindzu na busca por Gaspar e antigo


empregado de Romão Pinto, que, mesmo morto, persegue-o: “Homem
nervoso, tão magro que uma ideia, só de ter peso, lhe fazia transpirar. Pois
este Quintino levantava o copo e celebrava as boas graças.” (TS, p. 128)

ROMÃO PINTO – Ex-colono português, abusa de Farida,


engravidando-a. Homem viril e incontrolado, morre por ter se relacionado
com uma mulher menstruada. Volta à vida dez anos depois, assombrando a
casa onde morara e o empregado Quintino e, aliando-se a Estêvão Jonas
para negócios ilícitos, continua valorizando o racismo e a prepotência: “O
português se homenzarrou, abusando dela toda inteira. Transpirava
imensos suores. Romão surgia cada vez mais peganhento, colajoso como um
sapo. Aquele suor lhe surgiu como se fosse a prova: aquele homem era um
estrangeiro, retirado do seu mundo. Na sua terra ele pouparia suores ao
fazer amor. Mas ele estava deslocado como um sapo longe do seu charco.
E como um sapo adormeceu em seus braços, roncando. Empurrou o peso
daquele corpo como quem afasta uma culpa.” (TS, p. 78)

SALIMA – Esposa de Abdul e responsável indireta pela morte de


Romão Pinto por ter se relacionado com ele durante o período menstrual:
“Há quanto tempo duravam os dois, nesse esconde-aonde? Sempre sem
grande namoro, o Romão rumando direto no corpo de Salima. Atirava a
mulher ao ar, pronunciando as jogáveis palavras: cara ou coroa? Qualquer
que fosse o modo dela tombar no colchão ele sempre ganhava a aposta.
Afinal, os dois lados da mulher eram, para ele, o mesmo e único. Agora,
mergulhados na penumbra da cozinha eles se comemoravam, enroscados,
gatinhosos. Salima se despediu das vestes, açucarando as carnes.” (TS, p.
148)

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MIA COUTO
SHETANI – Homem que impõe o respeito por meio do medo e da
força: “Nesse momento, entrou no bar um homem estranho, pendurando
uma pistola no vasto cinto. Ao sentir a presença do cujo, os presentes se
entrelinharam, caladinhos, metidos com seus líquidos assuntos.”
(TS, p. 128)

SILVÉRIO DAMIÃO – Brigadeiro de Juliana, desaparecido na


guerra: “Seu amante muito militar, exercendo patentes no exército colonial.
Juliana historiava: que o brigadeiro tinha saído em missão recente contra
os turras, na defesa da lusitana terra.” (TS, p. 132)

SIQUELETO – Ancião alto e magro, que vive numa aldeia


abandonada, falando apenas a língua local, figurando um esqueleto: “E ali
está o velho Siqueleto, sonecando em trégua de existir. Olhando o seu corpo
abandonado dá vontade de sorrir como se faz ao contemplar o sono
indefeso de uma criança. E os dois prisioneiros se entretêm a fabricar um
tabaco, feito de folha que o velho deixara cair. Fumam com o gosto de serem
eles mesmos o incenso, fumam como se em seus dedos esfumasse o tempo,
como se não houvesse rede os aprisionando.” (TS, p. 68)

SURENDRA VALÁ – Comerciante indiano, perseguido pelo


preconceito por ser estrangeiro: “Um único comerciante ficara na vila:
Surendra Valá, indiano de raça e profissão. Eu gostava de lhe visitar,
receber suas conversas, provar os cheiros de sua casa. Ele me servia
comidas bem cheias, dessas dos olhos salivarem na língua.” (TS, p. 23)

TAÍMO – Pai de Kindzu, solitário e alcoólatra; tinha sonhos


premonitórios e fantásticos. Morreu logo após a independência de
Moçambique: “Assim era o velho Taímo, solitário pescador. Primeiro, ele
ainda esperava que o tempo trabalhasse a bebida, dedicado nos proibidos
serviços de fermentar e alambicar. Depois, nem isso: simplesmente cortava
os rebentos das palmeiras e ficava deitado, boquinhaberto, deixando as
gotas pingar na concha dos lábios. Daquele modo, nenhum cipaio lhe
apertaria os engasganetes: ele nunca destilava sura. Vida boa, aconselhava
ele, é chupar manga sem descascar o fruto.” (TS, p. 15)

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TERRA SONÂMBULA
VINTICINCO DE JUNHO/JUNHITO – Irmão de Kindzu, torna-se,
aos poucos, um galo, pois fora colocado no galinheiro para não ser
capturado e transformado em soldado. Metaforiza o nascimento esperançoso
da nação moçambicana, mas rapidamente convertido em vítima inocente da
guerra e de suas violências: “Vinticinco de Junho era nome demasiado.
Afinal, o menino ficou sendo só Junho. Ou de maneira mais mindinha:
Junhito. Minha mãe não mais teve filhos. Junhito foi o último habitante
daquele ventre.” (TS, p. 17)

VIRGÍNIA – Esposa de Romão Pinto, portuguesa de vida apagada


pelo marido, refugia-se na loucura para não sofrer vivendo histórias
fantasiosas para evitar a realidade infeliz: “Virigínia, assim lhe chamavam,
era generosa como já não há. Foi ela que teimou em lhe adoptar como se
fosse sua filha. Muitas vezes Farida sentiu desejo de a tratar por ‘mãe’.
Mas ela não aceitou. Tua mãe não haveria de gostar, dizia ela. Suas mãos
trançavam os cabelos de Farida e a cabeça dela adormecia longe de si,
longe do mundo.” (TS, p. 74)

8. RESUMO DA OBRA

Terra Sonâmbula constitui-se por uma narrativa desenvolvida em dois


âmbitos: um em terceira pessoa, que relata a história de Tuahir e Muindinga,
dois sobreviventes da guerra, e o outro, em primeira pessoa, composto dos
cadernos-diários de Kindzu, instâncias as quais se interseccionam a partir do
momento em que Muidinga encontra os escritos de Kindzu e passa a lê-los
para Tuahir.
A história de Muidinga e Tuahir desenvolve-se, portanto, paralelamente
à de Kindzu, também repleta de outras ações, que criam uma teia de
narrativas, as quais se cruzam complementarmente. Assim, dentro de uma
ação principal encontramos outras secundárias, histórias dentro da história
relatadas por diferentes narradores, que se interseccionam e se complemen-
tam no final do romance.

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MIA COUTO
A meta de Muidinga é descobrir suas origens e sua identidade, enquanto
Kindzu deseja encontrar os guerreiros naparamas e Gaspar. Simbolicamente,
a descoberta de Muidinga representa o renascimento de Moçambique e o
reencontro de suas raízes, assim como o convívio de Tuahir e Muidinga
simboliza a união de duas gerações.
Para Kindzu a representatividade de suas buscas remete ao desejo de
concretização de um sonho de justiça e também a necessidade de se
resgatarem valores esquecidos no passado original de Moçambique. Duas
viagens iniciáticas, que se ligam no final do romance e provam que é
necessária a credibilidade no futuro, sem se obscurecer o aprendizado que
o passado proporcionou a Moçambique.
Já em sua poesia “Raiz de Orvalho”, Mia Couto atribui ao eu lírico um
perfil de alguém que sonha, buscando a morte sem morrer, para encontrar
o próprio destino, assim como ocorre com Muidinga e Kindzu, duas
personagens que viajam ao redor de seus sonhos:

Raiz de orvalho

Sou agora menos eu


e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram

Quem me dera acontecer


essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou

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TERRA SONÂMBULA
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada

De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens

Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância

Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno
(COUTO, 1999, p. 39-41)

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MIA COUTO
8.1. Primeiro capítulo – A estrada morta

Um velho, Tuahir, e um menino, Muidinga, descalços, caminham por


uma estrada fugindo da guerra em busca de um refúgio tranquilo. O menino
coxeia em decorrência da doença, que quase o levou à morte, se não fosse
Tuahir salvá-lo e, depois, ensinar-lhe a andar, falar e pensar.
Os dois param em frente a um ônibus queimado e Tuahir estabelece
que ali instalariam morada. O menino receia ficar no meio da estrada, à vista
dos bandos, mas o velho insiste dizendo que, se eles viessem atacar, os dois
fingiriam estar mortos. Muidinga se incomoda com os cadáveres no ônibus,
mas Tuahir o encoraja, afirmando que eles estão limpos pelo fogo.
Os dois enterram os corpos e, ao retornarem para o machimbombo, veem
na beira um morto por tiro, havendo ao lado dele uma mala fechada. Muidinga
e Tuahir enterram este último cadáver sem lhe ver o rosto, pois arrastaram o
corpo pela terra até a cova da maneira como estava deitado ao chão.
Eles abrem a mala e encontram nela roupas, comida e cadernos
escolares repletos de anotações que, para Tuahir, serviriam para fazer fogo.
Mas Muidinga guarda os escritos embaixo de seu banco e, com medo da
noite, começa a chorar. Tuahir manda-o acender uma fogueira e ele,
arrancando a capa de um dos cadernos, faz fogo, senta-se e começa a ler,
letra por letra, em voz alta para o velho adormecer, surgindo, assim, uma
história dentro da história em Terra Sonâmbula:

8.2. Primeiro caderno de Kindzu – O tempo em que o mundo tinha


nossa idade

Kindzu se apresenta, explicando que seu nome é o mesmo “que se dá


às palmeiras mindinhas, essas que se curvam junto às praias.” (TS, p. 15)
Seu pai, o velho Taímo, contador de histórias sem fim, escolhera-lhe “esse
nome em homenagem à sua única preferência: beber sura, o vinho das
palmeiras.” (TS, p. 15)
Certa vez, Taímo se vestiu alinhado, gravata, sapato, para anunciar a
Independência de Moçambique, emocionado e certo de que seus sonhos se
realizavam. Chamou a esposa grávida e disse-lhe, com a mão em sua
barriga, que o filho iria se chamar Vinticinco de Junho, o qual fora, depois,
apelidado de Junhito.

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TERRA SONÂMBULA
Mas a guerra civil chegou em pouco tempo e a pobreza veio com ela.
Kindzu e a família passavam necessidades, não havia o que plantar, nem
comer, mas o velho dizia: “É bom assim! Quem não tem nada não chama
inveja de ninguém. Melhor sentinela é não ter portas.” (TS, p. 17)
Um dia, depois de ter seus sonhos terríveis, Taímo anunciou que alguém
iria morrer naquela casa, pois, na família, ninguém havia servido na guerra,
e apontou para Junhito, o irmão menor da família. Para escapar à morte, o
menino deveria mudar a aparência e a alma, transformando-se numa galinha
para que os bandos não o levassem. E, assim, Junhito foi para o galinheiro,
coberto num saco de penas, costurado pela mãe, e começou a cacarejar.
Depois de algum tempo, o menino desapareceu do galinheiro, a mãe e os
irmãos se desesperaram e o pai caiu em bebedeira constante até morrer.
O sepultamento de Taímo foi feito no mar e, no dia seguinte, onde havia
água surgiu uma planície coberta de palmeiras, repletas de frutos gordos e
apetitosos, que pareciam cabaças de ouro. Vários homens se aproximaram
das árvores para cortarem os frutos, mas ouviram uma voz vinda das
palmeiras alertando-os para não o fazerem, pois eram frutos sagrados:
“De novo, a multidão se derramou sobre as palmeiras. Mas quando o
primeiro fruto foi cortado, do golpe espirrou a imensa água e, em cantaratas,
o mar se encheu de novo, afundando tudo e todos.” (TS, p. 20-21)
A mãe de Kindzu murchava de tristeza e um feiticeiro receitou que se
construísse uma casa afastada e nela se colocasse o barco de Taímo, pois o
pai poderia voltar do mar. Kindzu levava todas as noites comida até a
casinha e, no dia seguinte, a panela aparecia vazia. Uma noite, Kindzu viu
um vulto saindo da casa, amarrado em panos vermelhos e pulseiras e, para
a mãe, era Taímo que voltara.
A guerra crescia e a morte também. As casas tinham paredes
esburacadas pelas balas e apenas um comerciante ficara na vila: Surendra
Valá6, um indiano, casado com Assma, vítima de racismo e auxiliado por um
ajudante, que não gostava de Kindzu, chamado Antoninho. A convivência
com o indiano não era bem vista pela população e a família de Kindzu tinha
––––––––––––––––––––––––––––––

6
Em Terra Sonâmbula, o indiano Surendra Valá representa o estrangeiro em terras
moçambicanas, vítima da discriminação da sociedade local. Havia receio de que a invasão
estrangeira descaracterizasse a cultura moçambicana, representação que pode ser observada na
amizade proibida entre Kindzu e Surendra.

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MIA COUTO
medo de que ele se afastasse das tradições africanas por causa do convívio
com o estrangeiro. Para Surendra, ele e Kindzu partilhavam a mesma pátria,
o mar Índico, e, por isso, eram de igual raça.
Um dia, entrou na loja de Surendra Valá um homem que começou a
roubar as mercadorias. Kindzu avisou o indiano, que pediu ao assaltante
que recolocasse os produtos no lugar, iniciando-se uma briga, na qual
Surendra levou uma cusparada no rosto e manteve-se impassível. O suposto
freguês pegou uma caixa de fósforos, ameaçando incendiar tudo, quando
surgiu um naparama que pôs fim à questão.
Esse é o primeiro contato de Kindzu com um naparama, um guerreiro
abençoado pelos feiticeiros, e o encantamento fará com que ele queira
tornar-se um guerreiro para combater os “fazedores de guerra”.
Numa outra noite, bandidos atacaram a loja de Surendra e destruíram-lhe
tudo. O indiano decide partir, causando imensa tristeza em Kindzu. Confuso,
Kindzu procura seu professor, o velho pastor Afonso, mas encontra mais
desgraça: o professor havia sido assassinado na noite anterior, suas mãos
foram cortadas e dependuradas na grande árvore (onde ele insistia em
lecionar), ao lado do corpo amarrado.
Kindzu procura, então, um adivinho curandeiro, o nganga, que indica
uma viagem ao rapaz:

Essa viagem, porém, teria que seguir o respeito de seu conselho:


eu deveria ir pelo mar, caminhar no último lábio da terra, onde
a água faz sede e a areia não guarda nenhuma pegada. Eu que
levasse o amuleto dos viajeiros e o guardasse em velha casca do
fruto ncuácuá. E procurasse os confins onde os homens não
amealham nenhuma lembrança. Para me livrar de ser seguido
por meu pai eu não podia deixar sinais do meu percurso. Minha
passagem se faria igual aos pássaros atravessando os poentes
numa linha, disciplinados.
— Está ver, todos linhados? Isso quer dizer: você é um homem
de viagem. E aqui vejo água, vejo o mar.
O mar será tua cura, continuou o velho. A terra está carregada
das leis, mandos e desmandos. O mar não tem governador. Mas
cuidado, filho, a pessoa não mora no mar. Mesmo teu pai que
sempre andou no mar: a casa onde o espírito dele vem
descansar fica em terra.

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TERRA SONÂMBULA
— Vais encontrar alguém que te vai convidar para morar no
mar. Cuidado, meu filho, só mora no mar quem é mar.
(TS, p. 31-32)

A mãe de Kindzu avisa-lhe que está mais uma vez grávida:

A velha devaneava, sonhatriz. Com aquela idade como podia ela


se duplicar? A voz dela, porém, trazia certezas capazes de me
confundir.
— Estou grávida, filho. Não é de agora, é já de muito tempo.
— Muito tempo, quanto?
— São anos que guardo essa criança. Nem quero ela nascer
nesse tempo. Fica assim dentro de mim, me companha o
coração. (TS, p. 33)

8.3. Segundo capítulo – As letras do sonho

Muidinga observa Tuahir, pensando em quem seria o autor dos


cadernos e, como não lembra o seu passado, pede ao velho para lhe contar
sua vida. Tuahir revela apenas que o pegou num campo de refugiados à beira
da morte e ordena ao menino que apague o fogo, pois o ônibus poderia
incendiar-se. Os dois adormecem, mas Muidinga acorda sobressaltado ao
sentir algo roçar-lhe o rosto: era um cabrito, que recebe um pontapé de
Tuahir, pois acreditava ser uma hiena. Muidinga diz ao velho que afastará
o cabrito e aproveita para chamá-lo de tio mais uma vez, mas Tuahir o
proíbe de fazê-lo novamente.
Tuahir deseja matar o cabrito para comerem, mas o menino reage
negativamente e vai amarrar o animal. Ele pega um pequeno pau e rabisca
a palavra “azul” no chão, descobrindo que sabe escrever e relembrando
obscuramente o tempo de escola.
Muidinga corre até Tuahir e conta-lhe o que lembrara, mas o velho
afirma que era apenas imaginação, pois nunca houvera escola nem outros
meninos, porque o garoto nascera com ele que era seu pai. O menino sorri
com doçura dizendo que gosta de Tuahir como se lhe fosse o “autêntico pai”.
Fazem silêncio ao verem um elefante se aproximar, observando que o
animal mal caminhava, pois havia levado um tiro disparado pelos “fazedores
da guerra”, que lhe queriam os dentes de marfim. Muidinga pergunta a
Tuahir se pode acender a fogueira, pois queria ler:
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MIA COUTO
— Acenda lá fora.
— Mas eu queria ler, tio.
— Leia lá fora.
Muidinga arruma uns paus secos e transporta consigo os escritos
de Kindzu. Acende o fogo na berma da estrada. Depois, se
instala para ler em comodidade o segundo caderno. A voz de
Tuahir o sobressalta:
— Não vai ler isso sozinho, pois não? (TS, p. 39)

8.4. Segundo caderno de Kindzu – Uma cova no tecto do mundo

Kindzu prepara a canoa e parte, deixando a mãe grávida. Inicia sua


viagem acompanhado pelo espírito do pai, que o perseguia. Depois de
ocorrerem “estranhas sucedências” (TS, p. 40), como os remos se
converterem em árvores que afundaram, fazendo Kindzu remar com as
mãos e sentir-se peixe, ele chega às areias do Tandissico, senta-se na beira
do barco e vê uma mão sair da terra para lhe agarrar a perna. Kindzu chora.
Eram psipocos, fantasmas que se alegravam com o sofrimento. Abrem
uma cova e ordenam que Kindzu entre nela. Ele desmaia e, ao recuperar os
sentidos, encontra-se coberto de areia. Recuperado do pesadelo, Kindzu
volta para sua canoa, que chamava de Taímo, e recomeça a viagem por
vários dias, com o propósito firme de virar um naparama.
Numa noite, Kindzu tem um sonho: o mar ficava imóvel e das profundezas
emergiam afogados, entre eles, o pai Taímo, o qual o chamou dizendo que
fizeram bem em não o terem enterrado, já que o chão estava repleto de mortos,
revelando o que vive no além:

Também lá não sucedia o sossego: toda a hora os ossos


disputavam lugar nos seus antigos corpos. Na confusão, eles se
baralhavam todos e se combinavam em desordem, ossos de uns
em corpos de outros. No resultado, se pariam desencontrados
monstros. (TS, p. 44)

Kindzu diz ao pai que ajudará a acabar com a guerra e ouve um alerta:
— Sou um morto desconsolado. Ninguém me presta cerimónias.
Ninguém me mata a galinha, me oferece uma farinhinha, nem
panos, nem bebidas. Como posso te ajudar, te livrar das tuas
sujidades? Deixaste a casa, abandonaste a árvore sagrada.
Partiste sem me rezares. Agora, sofres as consequências. Sou eu
que ando a ratazanar teu juízo. (TS, p. 44)
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TERRA SONÂMBULA
Taímo explica ao filho que, enquanto a sombra do pai lhe perseguisse, ele
nada conseguiria. Kindzu pergunta pela mãe e o pai lhe diz que ela se casou
com outro e agora ele era um “viúvo-solteiro” (TS, p. 45), mas um nhamussoro7
já lhe providenciara uma mulher viva que haveria de morrer em breve. O filho
lhe oferece ajuda, mas Taímo revela não haver mulher alguma e que continuava
sozinho. O sonho encerra-se com uma advertência do pai: “— Você me
inventou em seu sonho de mentira. Merece um castigo: nunca mais você será
capaz de sonhar a não ser que eu lhe acenda o sonho.” (TS, p. 47)

8.5. Terceiro capítulo – O amargo gosto da maquela

Muidinga puxa a corda para trazer o cabrito de volta, mas nota que ela
está solta. O animal tinha sido comido por “noturnos saltinhadores” (TS, p.
49), que não voltariam mais e não atacariam os dois porque o ônibus estava
queimado. Muidinga e Tuhair colocam um banco do machimbombo no meio
da estrada e sentam-se para tomarem sol.
A fome aperta e o velho diz para Muidinga salivar para confundir o
estômago. Após contar-lhe que seus pais estavam mortos, portanto o menino
deveria parar de perguntar sobre eles, os dois partem em busca de água e
alimento e encontram mandioca roída por ratos. Muidinga se prepara para
comer, mas é repreendido por Tuahir, o qual lhe diz que, por causa de uma
mandioca não comestível como aquela, o menino fora dado como morto e
colocado junto de crianças recém-falecidas e despidas para serem enterradas8.
O velho, instalado, então, num campo de refugiados da guerra, percebeu
que uma das crianças, a mais raquítica e clara de todas, segurava o chão com
as unhas, prendia-se à terra. Tuahir alertou aos demais que aquele menino
estava vivo, era seu sobrinho e cuidaria dele. O garoto foi alimentado com
água por muitos dias, recuperou-se lentamente e foi batizado de Muidinga,
nome do filho mais velho de Tuahir, morto nas minas do Rand9.
––––––––––––––––––––––––––––––

7
Em Moçambique é o nome que se dá ao feiticeiro e adivinho que interpreta as alterações de
comportamento das pessoas, ligando o mundo dos vivos e o dos mortos.
8
A doença chama-se mantakassa, segundo Tuahir.
9
“Rand” ou recife, também conhecido como Witwatersrand, é a fonte de 40% do ouro
explorado no mundo. Sua área de exploração é de 280 km e as minas chegam a atingir 3,6 km
de profundidade. Rand é o nome da moeda sul-africana em homenagem ao local.

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MIA COUTO
8.6. Terceiro caderno de Kindzu – Matimati, a terra da água

Ao chegar à baia de Matimati, Kindzu encontra uma multidão


concentrada na praia, fugida do interior em decorrência da invasão de mata-
dores em suas terras de origem. Vários homens cercam o recém-chegado e
alertam-no de que o melhor seria sair dali, pois as autoridades o prenderiam
sem fazer perguntas.
É chamado o antigo secretário do administrador, Assane, paralítico que
relata um acontecimento recente: durante uma forte tempestade, numa noite
de imensa escuridão, um navio, que transportava donativos destinados à
província, foi de encontro às rochas e, em meio a ondas gigantescas, toda sua
tripulação desapareceu. Centenas de pessoas dirigiram-se até o navio para
saqueá-lo, mas, quando regressavam à terra, seus barcos carregados de
mercadorias afundaram e desapareceram. Por causa disso, rezas e tambores
passaram a ser ouvidos na praia, num pedido de que outros navios
afundassem para que as cargas alimentassem os famintos. As autoridades
locais proibiram as danças e cerimônias na praia, e Assane, preso acusado
de desvios e abusos de poder, foi na cadeia espancado até suas pernas não
mais responderem aos movimentos.
Kindzu recebe comida e bebida, além de remos, para retornar ao mar.
Repentinamente se inicia uma tempestade cheia de relâmpagos, “diluvian-
do toda a paisagem” (TS, p. 59), e um anão (tchóti)10 cai do céu dentro da
canoa de Kindzu, dizendo que viera buscar as coisas, referindo-se aos
donativos do navio, pois no céu também havia faltas.
Sobem os dois ao convés do navio e ouvem gritos, vozes e gemidos
que vinham das paredes, chão e teto. O anão, parecendo conhecer os
caminhos pelo navio, desaparece. Kindzu começa a andar explorando a
embarcação, quando vê o xipoco que já lhe tinha aparecido na praia de
Tandissico. Assustado, Kindzu procura pelo anão para saírem do navio
assombrado, mas lhe surge à frente uma linda mulher: Farida.

––––––––––––––––––––––––––––––

10
“Essas personagens não eram descritas apenas como anões. Chamavam-lhes os Valungwana.
Dizia-se que caíam do Céu na época das grandes chuvas. (...) Vivem no espaço e quando troveja,
sem chuva, os Nkunas dizem: Valungwana vatlanga henhla – Os valungwana divertem-se lá
em cima! (...)” (JUNOD, Henri, 1996, p. 380)

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TERRA SONÂMBULA
Farida aconselha Kindzu a ir embora, mas começa a tremer, ele a segura
nos braços, e ela se volta contra ele. Quando Kindzu finalmente a contém,
ela pede que ele a escute.

8.7. Quarto capítulo – A lição de Siqueleto

Tuahir começa a explorar a região, mas Muidinga não tem vontade de


acompanhá-lo porque a “estrada está morta” (TS, p. 63). O velho decide,
então, uma falsa viagem, pois andariam em círculos sem chegar a lugar
algum. Percorrem por “caminhos saudosos do pé de gente” (TS, p. 64) e,
repentinamente, caem em um buraco.
Surge um velho alto que lhes lança uma rede, aprisionando-os. O
homem, Siqueleto, que abre um olho de cada vez por causa do cansaço, diz
que vai semear os dois capturados para nascerem pessoas, repovoando o
lugar. Abanando uma lata enferrujada contendo seus dentes, que ele mesmo
arrancou para espantar a fome, Siqueleto lamenta o momento atual:
“nos dias de hoje, os filhos mordem as mães quando ainda estão no ventre.
Vejam a pedra em que me sento: parece morta, enquanto não, vive
devagarinho, sem barulho.” (TS, p. 67)
Ao longe, ouvem-se os tiros da guerra, enquanto Siqueleto dorme. Uma
hiena, desprovida das traseiras, aproxima-se e Muidinga e Tuahir se
amedrontam. Siqueleto acorda e avisa-os de que o animal era sentinela de
sua vida. Por um vão na rede, Muidinga tira o braço, pega um pau e escreve
no chão, encantando Siqueleto, que os solta e ordena ao menino escrever o
nome Siqueleto num tronco de árvore, acreditando que daquela árvore
seriam paridos outros Siqueletos.
Muidinga e Tuahir são libertados e observam o fim de Siqueleto:

Então ele mete o dedo no ouvido, vai enfiando mais e mais fundo
até que sentem o surdo som de qualquer coisa se estourando. O
velho tira o dedo e um jorro de sangue repuxa da orelha. Ele se vai
definhando, até se tornar do tamanho de uma semente. (TS, p. 69)

8.8. Quarto caderno de Kindzu – A filha do céu

Farida é “filha do céu”, porque cumpre um castigo celestial: dividira o


ventre da mãe com uma irmã gêmea, acontecimento que prenunciava
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MIA COUTO
desgraça. Dias após o nascimento, a irmã morrera, pois não a alimentaram
por bondade e, desse modo, aliviaram a maldição. A mãe de Farida, que
nunca mais tivera filhos, foi expulsa da aldeia, e a menina ficou sem saber
que a irmã na verdade não morrera.
A única pessoa que as visitava, sempre trazendo comida, era Tia
Euzinha, viúva de um homem que partira para a guerra. Um dia, Euzinha
contou a Farida que sua irmã estava viva e perguntou pelo colar que fora
dado à menina. Farida mostrou-o e Euzinha disse-lhe que aquela madeirinha
pela metade dependurada era a irmã que sumira e que ela estaria com a outra
metade. Na verdade, a irmã gêmea de Farida não morrera porque a mãe se
recusara a matar a filha e a entregara a um viajante, o qual se lamentava por
não ter um filho de sua própria carne.
A cidade de Farida sofria com as desgraças, e a fome se instalou nas
casas. Diziam que era por culpa da mãe de Farida, por não se ter purificado.
Como não havia chuva e, para as cerimônias mágicas, necessitavam de uma
mãe de gêmeos, buscaram a mãe de Farida e mandaram-na mostrar o túmulo
da filha, para as mulheres do lugar jogarem água no pote fúnebre. Após o
feito, dançaram e colocaram a mãe de Farida dentro de um buraco e
encheram-no de água fria.
Farida se aproximou para tirar a mãe toda ensopada no fundo da terra,
mas ela se recusou, dizendo que deveria ficar ali para pagar sua dívida com
o mundo. À espera da mãe, Farida adormeceu, mas, quando acordou, a mãe
havia sumido e a menina estava órfã e esquecida.
Tempos depois, precisavam de uma gêmea para os rituais da chuva e
foram buscar Farida, que, após participar das cerimônias, partiu, andando
muito até desmaiar de exaustão. Quando recuperou os sentidos estava na
casa de Dona Virgínia e Romão Pinto, um casal de portugueses que, durante
anos, cuidaram dela, até Romão lançar-lhe olhares gulosos.
O português era áspero com a esposa, proibindo-a de ler, ouvir rádio e
cantar. Ela desejava regressar a Portugal e sonhava tanto com isso que tinha
um vestido verde dependurado à espera da viagem. Virgínia vivia num
mundo de fantasias, rabiscando fotografias, recortando-as e criando novas,
imaginando visitas de parentes, as quais nunca existiram, mas passou a se
entreter mais quando pediu a Farida que lhe escrevesse cartas de autorias
falsas. Virgínia as lia entre soluços.

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TERRA SONÂMBULA
Um dia, Virgínia disse a Farida que iria levá-la embora, pois não podia
mais ficar naquela casa. À noite, a portuguesa foi com a menina para a
Missão e entregou-a ao padre. Farida lá ficou por um tempo, mas, infeliz,
decidiu partir de volta para os lugares de sua infância. No caminho, passou
na casa de Virgínia e quem a atendeu foi Romão Pinto, dizendo que Virgínia
tinha ido à vila e que Farida esperasse pelo retorno dela. Nesse ínterim,
Farida foi ao seu antigo quarto e deitou-se. Romão Pinto entrou no aposento
e se “homenzarrou, abusando dela toda inteira” (TS, p. 78). Ao amanhecer,
Farida fugiu, chorando pelo caminho todo.
Tia Euzinha, ao rever Farida, disse-lhe que não deveria ter voltado para
aquela terra. Durante o tempo em que por lá ficou, Farida teve um filho de
pele mais clara. Tia Euzinha aconselhou-a a dizer para todos que ele era
albino, mentira que condenaria o menino a ser discriminado e Farida a ser
mais amaldiçoada, mas que seria o melhor para a criança.
Farida entregou o menino à Missão e partiu, voltando tempos depois
para recuperá-lo. Uma freira, chamada Lúcia, preparou o encontro entre
mãe e filho, mas o menino, Gaspar, fugiu, receando ver a mãe. Farida, que
“chorava lágrimas de leite” (TS, p. 82), partiu desejando ir para uma terra
que ficasse distante de tudo e de todos. Ao saber do navio naufragado,
juntou-se aos pescadores, que iam saquear a embarcação, e ali ficou, pois
não havia lugar para ela nos barcos que voltariam à terra, por estarem
abarrotados de mercadorias.
Kindzu sente necessidade de unir-se a Farida, mas ela lhe diz que é da
família dos xipocos:

(...) Um espírito que vagueia em desordem por não saber a exata


fronteira que nos separa de vocês, os viventes. Nós somos
sombras no teu mundo, tu jamais nos tinhas escutado. É porque
vivemos do outro lado da terra, como o bicho que mora dentro do
fruto. Tu estás do lado de fora da casca. Eu já te tinha visto desse
outro lado, mas as tuas linhas eram de água, teu rosto era cacimbo.
Fui eu que te trouxe, fui eu que te chamei. Quando queremos que
vocês, os da luz, venham até nós, espetamos uma semente no teto
do mundo. Tu foste um que semeámos, nasceste da nossa vontade.
Eu sabia que vinhas. Te esperava, Kindzu. (TS, p. 85)

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MIA COUTO
8.9. Quinto capítulo – O fazedor de rios

Muidinga e Tuahir tinham andado em círculos o dia todo. Ao longe


ouvem vozes, ruídos, e veem um homem abrindo um imenso buraco. Era
Nhamataca fazendo um rio, que iria se chamar Mãe-água. O pai dele fizera
amizade com um vulto, que lhe aparecia do outro lado do rio, até que, um
dia, o suposto homem enfrentou as águas para ver se o amigo precisava de
ajuda e, ao chegar do outro lado, descobriu que o vulto era uma mulher,
com quem se envolveu amorosamente e teve um filho, Nhamataca: “nenhum
rio separa, antes costura os destinos dos viventes.” (TS, p. 87)
O velho e o menino começam a cavar junto com Nhamataca, embora
Muidinga ache loucura a ideia de se construir um rio. Durante a noite, cai
uma tempestade e todos se abraçam na esperança de o rio surgir. Nhamataca
ergue os braços em meio aos raios e “cai na torrente do furioso regato” (TS,
p. 88-89). Tuahir e Muidinga tentam resgatá-lo, mas Nhamataca desaparece.
No dia seguinte, o sol surge ao meio-dia, absorve a água, a seca volta e
Muidinga pensa: “Morreu um homem que sonhava, a terra está triste como
uma viúva.” (TS, p. 89)
Anoitece e os dois se deitam ao relento, mas Tuahir não consegue
dormir porque sente falta das histórias dos cadernos de Kindzu. Muidinga
diz que os deixou no ônibus, mas pode contar o que lembra de memória.

8.10. Quinto caderno de Kindzu – Juras, promessas, enganos

Farida sempre dormia na cabine do capitão do navio encalhado. Kindzu


vê o anão (tchóti) e mostra-o à Farida, mas ela não é capaz de vê-lo. Logo
depois, o anão desaparece também dos olhos dele. Farida frequentemente
tinha febres e, durante o efeito delas, relatava suas tristes lembranças, o que
aproximava os dois, pois ambos eram vítimas das atrocidades do mundo e
estavam perdidos entre o passado e o futuro.
Farida pede a Kindzu que procure pelo filho dela, mas ele recusa a
tarefa porque iria atrás do seu sonho de ser um naparama. Ela o alerta de que
ele nunca encontraria os naparamas e, caso eles vencessem a guerra,
ficariam iguais aos que estavam no poder naquele momento. Kindzu
reconsidera sua decisão e aceita procurar o filho de Farida, durante sua busca
aos naparamas.

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TERRA SONÂMBULA
Um barco pequeno se aproxima do navio encalhado, o que faz Farida
se agarrar a Kindzu pedindo que a defenda, pois estavam indo buscá-la para
matarem-na. Ele propõe-lhe que volte com ele para a terra, mas ela recusa,
indo banhar-se, fazendo Kindzu sentir-se atraído por ela, que lhe faz um
aceno convidando-o para se aproximar. Após a união física dos dois, Farida
diz a Kindzu que ele deve partir, enquanto ela ficará porque, um dia, irão
buscar aquele navio e ela partirá também.
Kindzu promete a Farida que voltará com Gaspar e, na manhã seguinte,
ele parte:
Pensava sobre as semelhanças entre mim e Farida. Entendia o
que me unia àquela mulher: nós dois estávamos divididos entre
dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da
nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas
indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já
não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão,
culpa do pastor Afonso, de Virgínia, de Surendra. E sobretudo,
culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair para um
novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida
queria sair de África, eu queria encontrar um outro continente
dentro de África. (TS, p. 92)

8.11. Sexto capítulo – As idosas profanadoras

Tuahir insiste para que ele e Muidinga andem pelas redondezas. No


meio do percurso encontram uma clareira entre as árvores, onde estavam
mulheres cantando e dançando, numa espécie de ritual. Muidinga grita, para
que elas olhem para ele, aproximando-se delas. Tuahir avisa-o do perigo,
mandando-o fugir, mas a mulher mais velha chega até Muidinga e bate no
rosto do menino, acompanhada pelas demais, que começam a espancá-lo.
Ele implora para que não lhe batam mais, mas elas não compreendem a
língua dele. Muidinga, caído no chão, é surpreendido quando a mais velha
se coloca em cima dele e puxa-lhe as partes íntimas, violentando-o.
Tuahir consegue resgatar Muidinga e explica-lhe que as mulheres
estavam numa cerimônia sagrada para afastar os gafanhotos das plantações
e a aproximação do menino “quebrou os mandamentos da tradição” (TS, p.
101), pois nenhum homem poderia assistir ao ritual.

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MIA COUTO
Os dois voltam para o machimbombo e o velho prepara um chá para
Muidinga recuperar as forças. Enquanto o menino bebe, Tuahir pede-lhe
que continue a ler os cadernos de Kindzu:

— Mas, tio. Nem sei se vou conseguir.


— Consegue. Leia como o velho Siqueleto, um olho aberto de
cada turno. (TS, p. 102)

8.12. Sexto caderno de Kindzu – O regresso a Matimati

Kindzu despede-se de Farida e ela pede que ele não fale nela em
Matimati, pois todos a odiavam por lá. Ao chegar às areias, Kindzu nota
corpos estendidos ao solo e, subindo pela estradinha, vê um homem
deslizando pela ladeira numa cadeira de rodas até cair: era Antoninho, o
ajudante de Surendra.
Kindzu pergunta a Antoninho por Surendra e fica sabendo que ele era
sócio de Assane numa nova loja. Ao encontrar Assane (que alugava a cadeira
de rodas para ganhar algum dinheiro extra), Kindzu é informado de que
Surendra não estava mentalmente bem, mas, mesmo assim, Antoninho o
levaria até o indiano.
Na praia há uma agitação em torno de uma mulher, deitada na areia,
nua, de pele muito clara, posta em exibição, para que um homem con-
seguisse dinheiro com o espetáculo cruel. Esse mesmo homem, que tomava
conta dela, pede a Kindzu que tente fazê-la comer algo, porque, se ela
morresse, acabaria-lhe o lucro, mas Kindzu, ao se aproximar dela, nota-lhe
algo semelhante e foge do lugar.
Antoninho leva Kindzu até a casa de Assane, o qual relata que a briga
com o administrador tinha como causa a ordem de assassinar uma mulher:
Farida.
Assane era sócio de Surendra na loja, mas as coisas não andavam bem
para os indianos, que eram malvistos na região. O motivo da sociedade era
que Surendra tinha o dinheiro para o negócio: “O gajo é que domina os
tacos. É só isso. Depois de um tempo, eu nacionalizo tudo. Para o ano que
vem, eu privo tudo. Chuto o baniane no rabo.” (TS, p. 112)
Enquanto conversam, ouvem-se tiros e rajadas de metralhadoras do
lado de fora. Assane pede a Kindzu que o leve até o quintal traseiro, onde
lhe mostra uma geladeira, vinda de um navio naufragado, e que se tornaria

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TERRA SONÂMBULA
uma cama para as crianças que por lá andavam. Mostra-lhe também,
escondido entre arbustos, um tanque de guerra transformado em galinheiro,
o “biznés” de Assane, caso a loja não desse certo.
Kindzu pergunta sobre a “tal” Farida e Assane a caracteriza como
“muito puta. Mas é uma puta muito, muito...” (TS, p. 115). Surendra surge
e parece estar em outro mundo, desgostoso que estava porque perdera a
mulher quando ele improvisara uma jangada, na qual a colocou, dizendo-lhe
que retornasse a sua terra. Kindzu reconhece, então, a mulher que vira na
praia: era a esposa de Surendra. Todos vão buscá-la e Assane manda que a
coloquem na cadeira de rodas e levem-na ao posto de saúde.
À noite, Kindzu desperta assustado, acreditando ter ouvido a voz de
sua mãe cantando. Logo depois, ele percebe que o som vem do galinheiro,
ao qual se dirige, vendo lá Junhito transformado num galo. Kindzu volta
para casa, acreditando ter sido tudo uma ilusão:

Nunca mais voltei à capoeira. Me convenci que aquele encontro


tinha sido uma ilusão, excesso de minha fantasia. Junhito estava
falecido, perdido nos lugares que eu deixara. Era isso que eu
repetia todas manhãs, quem sabe em limpeza da consciência?
Naqueles dias, eu despertava mais cedo que o sol. Da minha
janela via mulheres plantando milho perto da estrada. Insistiam
em todo o lado, mesmo onde nem pedra dá semente. Perdiam
horas naquela luta inválida. Tal como minha mãe elas
acreditavam que um ventre morto pode dar à luz. Dali, do meu
quarto eu alcançava toda a estrada de areia até a uma praça. Era
uma praça quieta, lembrando o estuário de um pequenito riacho.
No centro se erguia uma estátua. Era um monumento aos heróis
da Independência. A estátua tinha sido levantada a substituir uma
outra, antiga, de política avessa, gloriando os coloniais
guerreiros. Derrubaram-na no dia da Independência, quebraram
a pedra em mil pedrinhas. E edificaram uma outra, disseram que
provisória, mas que ainda durava. Estava suja, coberta de pó,
com lixos ao redor. Ninguém parecia lhe dedicar grande
respeito. Exceto uma mulher que ali se postava, horas a fio. Eu
olhava essa mulher, vestida de negro, e acreditava tratar-se de
uma viúva. (TS, p. 118)

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MIA COUTO
Era a esposa do administrador que observava o monumento, o qual
metaforizava o sistema político Moçambicano, que buscou destruir o
colonialismo e implantou um governo desvinculado das necessidades do
país. Carolinda olha para o monumento todos os dias em sinal de respeito,
refletindo em seus olhos a tristeza e o desencanto da população
moçambicana.
A loja de Assane e Surendra iria ser inaugurada finalmente. O
administrador chega com sua esposa, Carolinda, e Surendra, que parecia
um subordinado, ao lado de Assma, completamente absorta. Um grupo de
homens fardados se aproxima e um deles dispara contra a multidão reunida
para a ocasião. Kindzu se esconde e o administrador e a esposa se retiram
do local, pouco antes de começar o incêndio da loja. Antoninho consegue
tirar Surendra do meio das chamas, mas deixa Assma para trás. Assane,
arrastando-se na cadeira de rodas, abraça sinceramente o sócio indiano.
Já em casa, Kindzu vê pela janela o corpo de um homem deitado e
decide ir ajudá-lo, mas é travado pelo sobrinho de Assane, pois o homem já
não tinha mais vida. A morte é apresentada como um banal acontecimento
e o desrespeito ao morto é a imagem de um país que se destrói pelas mãos
do homem: “o cadáver descuidado no passeio não descondizia com tudo
resto. Simbolizava aquilo que a vila se tinha tornado: uma imensa casa
mortuária.” (TS, p. 121)

8.13. Sétimo capítulo – Mãos sonhando mulheres

Chovia e Tuahir, coberto por uma capulana11, diz a Muidinga que o


menino precisava de uma mulher, mas uma prostituta, a qual faz gastar o
bolso, mas não o coração.
Tuahir fala de seu caso com Jorogina, por quem se apaixonara um dia,
mas se enganara, pois ela era volúvel. Ele sorri, lembrando-se das velhas
violentando Muidinga e decide que o menino precisava de outras iniciações.
Então, Tuahir se aproxima de Muidinga, coloca a mão entre as virilhas do
menino e, mesmo com a negação dele, diz-lhe para pensar que ele é
Jorogina.

––––––––––––––––––––––––––––––

11
Pano usado pelas mulheres como uma saia, podendo também cobrir o tronco e a cabeça.

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TERRA SONÂMBULA
Os dois adormecem e, ao acordarem, a chuva já tinha parado. Sem
motivo, ambos começam a cantar e dançar, mas param, pois receiam que o
barulho chame a atenção. Muidinga pergunta ao velho porque não conseguia
recordar o passado e Tuahir conta que ele fora levado a um feiticeiro para
lhe tirar as lembranças do passado:

— Sabe, miúdo, o que vamos fazer? Você me vai ler mais desses
escritos.
— Mas ler agora, com esse escuro?
— Acendes o fogo lá fora.
— Mas, com a chuva, a lenha toda se molhou.
— Então vamos acender o fogo dentro do machimbombo.
Juntamos coisa de arder lá mesmo.
— Podemos, tio? Não há problema?
— Problema é deixar este escuro entrar na cabeça da gente.
Não podemos dançar nem rir. Então vamos para dentro desses
cadernos. Lá podemos cantar, divertir. (TS, p. 126)

8.14. Sétimo caderno de Kindzu – Um guia embriagado

Surendra e Assane nada sabem sobre Gaspar e dizem a Kindzu que,


como a aldeia de Euzinha já não existia mais, ela devia estar num campo de
refugiados.
Kindzu e Antoninho vão ao bar e presenciam dois homens discutindo:
Abacar Ruisonho e Quintino Massua. Ruisonho era chefe dos serviços de
segurança, “entre o ruim e o perdoável” (TS, p. 128), sendo sua tarefa contar
os viventes e saber quantos chegavam ao campo dos refugiados. Quintino
era o único que não tinha medo de Abacar, o qual lhe reprovava as falações.
No bar, entra Shetani, e o silêncio se faz completo, apenas sendo
quebrado pela explosão dos tiros do lado de fora. Quintino se aproxima de
Kindzu, dizendo: “— Você estrangeiro, escuta. Nesta terra se passam muitas
merdas, todos tem medo de falar. Eu sei quem está a matar aqui. Não são
só os bandos. Há outros, também.” (TS, p. 130). Explicando-se melhor,
afirma que: “a guerra gerava altos tacos, cada um semeava uma guerra
particular. Cada um punha as vidas dos outros a render.” (TS, p. 130)

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MIA COUTO
Abacar, então, desfere um soco no rosto de Quintino, alegando que não
gostava de bater nas pessoas, mas era necessário calá-lo. Surge Juliana
Bastiana, a prostituta cega, com seu cão imenso, pedindo bebida e mandan-
do o animal ir para fora do bar, ordem obedecida prontamente. Ela conta a
Kindzu que seu brigadeiro, Silvério Damião, militar dedicado, havia ido pa-
ra a guerra e ela aguardava seu retorno. Shetani chama Juliana e pede-lhe a
mão, na qual ele deposita as orelhas ensanguentadas do cachorro da
prostituta. Kindzu afasta a cadeira e avança sobre Shetani, mas é impedido
pela mulher, a qual afirma ter pedido a ele que sacrificasse o animal, pois
estava doente.
Kindzu foi o último a sair do bar ao lado de Quintino. Estavam juntos
quando, repentinamente, um vulto sai do escuro, e Kindzu se atira sobre o
desconhecido, derrubando-o ao chão: era Carolinda. Os dois se tocam, os
corpos se unem e afastam-se para o curral, onde se deitam sobre a palha.

8.15. Oitavo capítulo – O suspiro dos comboios

— Lhe vou confessar miúdo. Eu sei que é verdade: não somos


nós que estamos a andar. É a estrada.
— Isso eu disse desde há muito tempo.
— Você disse, não. Eu é que digo.
E Tuahir revela: de todas as vezes que ele lhe guiara pelos
caminhos era só fingimento. Porque nenhuma das vezes que
saíram pelos matos eles se tinham afastado por reais distâncias:
— Sempre estávamos aqui pertinho, a reduzidos metros.
(TS, p. 137)

Tudo o que Muidinga e Tuahir viram e viveram ocorrera na vizinhança


do autocarro, metáfora de Moçambique desfilando sonhambulante.
Siqueleto esvaindo, Nhamataca fazendo rios, as velhas caçando gafanhotos,
tudo o que se passara tinha sucedido em plena estrada: “— É miúdo, estamos
a viajar. Nesse machimbombo parado nós não paramos de viajar. Me faz
lembrar quando andava no comboio.” (TS, p. 137)
Tuahir, relembrando seus tempos de trabalho nos trens, tira um apito do
bolso e o dá a Muidinga para lhe dar sorte. O velho pede ao menino que
leia enquanto ele limpa o machimbombo, recolhendo as cinzas para serem
usadas como adubo, caso chovesse no dia seguinte.
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TERRA SONÂMBULA
8.16. Oitavo caderno de Kindzu – Lembranças de Quintino

Kindzu desperta e percebe que Carolinda se fora, mas deixara ali um


colar, o qual ele apanha e guarda para entregar a ela posteriormente. Ao voltar
ao bar, Kindzu vê Shetani carregando Quintino embriagado, tenta ajudar e vai
parar na administração. O administrador manda chamar a esposa Carolinda,
que confirma ter visto Kindzu rasgando dinheiro e atirando as notas ao mar.
Frente à negativa de Kindzu, o marido de Carolinda pergunta-lhe se ele havia
se relacionado sexualmente com ela e Estêvão Jonas ouve mais uma negativa
do rapaz.
Kindzu e Quintino são presos e conversam amarrados um ao outro.
Kindzu propõe a Quintino que, depois de saírem da prisão, leve-o pelo mato
até o campo de refugiados, mas o bêbado, receoso da tarefa, conta-lhe sua
história: era perseguido pelo fantasma de seu antigo patrão colonial, o
português Romão Pinto, falecido nos tempos da Independência, porque,
segundo alguns, tinha visto seus campos de algodão em chamas e, conforme
outros, tinha sido castigado com a morte por ter se relacionado sexualmente
com uma mulher menstruada.
Dez anos depois da morte do português, Quintino foi até a casa onde
trabalhara e encontrou o fantasma de Romão Pinto se levantando de seu
leito (havia sido enterrado no chão da cave, para não serem necessárias as
cerimônias fúnebres, o que o fazia vaguear entre o mundo dos vivos e o dos
mortos) e, depois de reclamar a falta dos sapatos, perguntou ao empregado
por onde andava a esposa Virgínia. Ao saber que ela ainda vivia, ele quis sair
para dar uma volta, mas Quintino o alertou de que eram tempos ruins para
passear, já que não mais havia as pessoas que ele conhecia.
Romão Pinto esclareceu, então, o motivo de sua morte: envolvera-se
com Salima e relacionara-se com ela durante o período de menstruação12. Ao
saber que ela o enganara, ele ordenou que se deitasse com o marido, assim
ele também morreria, mas ela não o fez e o marido continuava vivo.
O português perguntou a Quintino sobre Farida e, segundo o emprega-
do, ninguém sabia dela, nem de seu filho. Romão Pinto surpreendeu-se ao
saber que Farida tivera um filho e, desejoso de conversar com a esposa
Virgínia, foi alertado por Quintino de que ela não tinha as ideias no lugar.
––––––––––––––––––––––––––––––

12
A crença popular africana diz que se relacionar sexualmente com uma mulher menstruada
era impuro e a maldição seria concretizada com a morte do homem que o fizesse.
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MIA COUTO
Kindzu e Quintino são surpreendidos por Carolinda, que os solta.
Kindzu entrega a ela o colar, mas ela lhe pede que fique com a prenda como
recordação. Carolinda explica-lhe que mentiu sobre o dinheiro rasgado para
o marido porque não queria que Kindzu fosse embora, mas, arrependida,
pede a ele que fuja e não volte mais:

Depois, me empurrou com suavidade. Mas eu resisti, me


demorando junto dela. Assim, de face em riste, ela me surgia
exclusivamente única, triste como pétala depois da flor. Meu
peito se encheu. Eu sei que em cada mulher a gente lembra
outra, a que nem há. Mas Carolinda me entregava essa doce
mentira, o impossível cálculo do amor: dois seres, um e um,
somando o infinito. Se aproximou e me acariciou os braços, ali
onde as cordas me doeram. A cintura de suas mãos me
afagavam, em suave arrependimento. Aquele momento
confirmava: o melhor da vida é o que não há-de vir. (TS, p. 152)

8.17. Nono capítulo – Miragens da solidão

Muidinga, enquanto observa as nuvens e vê nelas diversas raças e sexos,


propõem a Tuahir fazerem de conta que são Kindzu e Taímo. O velho nega
dizendo que não se deve brincar com os mortos, exemplificando com a
história de Nipita, pescador que morreu esfaqueado e voltou dos mortos para
buscar suas tripas e, por ter sido enterrado incompleto, assombrava os
viventes. O menino diz a Tuahir que eles brincariam com respeito.
Tuahir/Taímo conta a Muidinga/Kindzu a origem das montanhas e
percebe que o menino se distancia e, misturando realidade e ficção, vê o
velho sair do charco, aproximando-se e perguntando-lhe o que ele tem.
Muidinga/Kindzu diz que é desgosto de mulher, o que faz Tuahir/Taímo
afirmar:
O que valia o amor, a amizade? O único valor, nos atuais dias,
é sobreviver. Muidinga, aliás Kindzu, queria saber da felicidade;
os outros queriam saber de comida. Ele procurava bondade; os
outros só queriam saber quanta vantagem podiam tirar. À
medida que Tuahir fala o miúdo se sente minguar, pequeno,
quase sem nenhuma idade. Ele carecia de sua paterna mão.

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TERRA SONÂMBULA
Porém, ao invés de ajudar, o velho lhe pede apoio. Estava com
frio, solicitou agasalho. O miúdo lhe cobre cuidando de seu pai?
Como é que a sua mão, do tamanho de um beijo, protegia um
homem tão volumoso? E lhe cresce uma grande raiva para com
seu pai. Afinal, nunca ele lhe cobrira dos frios, nunca ele o
empurrara para fora da tristeza. Ou seria que apenas depois da
infância ele poderia ser criança? (TS, p. 155)

Realidade e devaneio se misturam na cabeça de Muidinga, que sente,


pela primeira vez, a presença do pai:

E eles se rebolam, em folgações mútuas, alegres tresloucuras.


Até que exausto, Muidinga se deita no banco do machimbombo.
Fazendo de almofada, se amontoam os cadernos de Kindzu.
Antes de adormecer o miúdo passa a mão por aquelas folhas,
em cúmplice afago. (TS, p. 156)

8.18. Nono caderno de Kindzu – Apresentação de Virgínia

Quintino, que se encontrara com Romão Pinto, embriaga-se e não


comparece no dia combinado para levar Kindzu até o mato. Enquanto espera
a recuperação da bebedeira de Quintino, Kindzu vai ver Virgínia, que vivia
no mundo da infância, sonhando com o futuro, criando sapos no quintal e
contando histórias às crianças (TS, p. 160).

Quando terminava as narrativas, Virgínia levava os meninos para


jogarem uma pedra ao poço de onde ouvia-se um lamento, o qual, segundo
ela, era a água chorando por uma viúva que já não vivia mais, porque tinha
perdido o marido, vítima de uma maldição.
Kindzu se aproxima dela e a chama pelo nome, dizendo que precisa
conversar com ela. Virgínia pede a Kindzu que a chame de vovó para ela o
ver como criança, enquanto vão até a antiga casa dela, onde nunca mais
estivera depois da morte do marido. Virgínia senta-se nos degraus da escada
da “moradia colonial” e conta a Kindzu que, um dia, chamaram-na porque
havia um menino morto em seu quintal. Ela foi até ele e, percebendo que ele
ainda vivia, atirou-lhe terra para morrer e deixar de sofrer para sempre.
Outras crianças se aproximaram e pediram-lhe que o deixasse viver para

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MIA COUTO
contar sua história, fazendo o acordo de que o colocariam amarrado no poço
para ninguém mais ouvir-lhe sua narrativa.
O menino foi colocado no poço e lá se recuperou, sempre calado e
dobrado. Vieram as chuvas, os meninos foram ver o poço e, como a água era
pouca, retiraram-se, mas voltaram surpreendidos com o grito do menino. Ti-
raram o garoto de lá e pediram-lhe que contasse uma história, ameaçando-o
de que, se não gostassem, algo lhe aconteceria.
Gaspar contou sua vida, mas os meninos não gostaram da história e
decidiam qual seria sua punição, quando Virgínia pediu que a deixassem
com o menino. Gaspar perguntou se podia ir embora também, mas a velha
negou, dizendo-lhe que ele era filho dela, quase de seu sangue, porque o
pai dele era seu falecido marido. Depois de alguns dias, o menino fugiu,
talvez por não desejar enfrentar sua origem miscigenada, já que era filho da
mistura de sangue branco com negro.
Virgínia percebe uma aproximação e acredita ser um espírito, mas era
o administrador Estêvão Jonas, o qual vinha conversar com Romão Pinto,
que surgiu na porta carregando seu caixão às costas. Conversaram até a
madrugada e ajustaram o acordo: Romão não podia reaver seus negócios
porque estava morto, mas Estêvão poderia ficar à frente dos
empreendimentos. No entanto, era necessário dinheiro e Romão deixara
muito à esposa, que precisava se manter viva, mesmo não estando bem das
ideias, para o negócio prosperar.
Além disso, a política de Estêvão Jonas deveria ser contra os brancos,
para que ninguém desconfiasse da sociedade com o português. Sem o
administrador esperar, surge Carolinda, perguntando-lhe o que andava
fazendo por ali e onde estava a mulher com quem ele viera se encontrar.
Rindo, aliviado, ele conta a ela que estava negociando com Romão Pinto, o
que despertou indignação na esposa por estar fazendo acordos com um
antigo colono, por isso o chamava de “administraidor”. Carolinda ameaça
o marido com a denúncia do que ele fazia, proíbe-o de voltar àquela casa e
manda-o ir embora.
Virgínia acena a Kindzu que não há mais perigo. Diz que precisa voltar
para sua casa a fim de alimentar os sapos e alerta-o, no entanto, para não se
esquecer de que ela é uma velha tonta e, por isso, não poderia assinar a
papelada para os negócios de Romão Pinto: “A dita loucura dela era seu
refúgio mais seguro.” (TS, p. 170)

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Carolinda se aproxima, atraída pelas vozes, abraça Kindzu e convida-o
para entrarem na casa. Ele recusa por sentir medo do fantasma, então se
sentam nos degraus da escada e, ao se beijarem, Kindzu chama Carolinda
de Farida. Ela pergunta a ele se conhece Farida e ele nega que a tenha
chamado por tal nome.
A esposa do administrador conta a Kindzu que Estêvão Jonas era
ciumento e questionava se ela pensava ainda no primeiro marido, que tinha
sido morto na guerra, quando ela era ainda muito jovem. Na verdade,
Carolinda não amava Estêvão, que era “simples ausência” (TS, p. 171), um
homem que se converteu de mandante a “pau mandado” (TS, p. 171).
Certa vez, quando Estêvão soube do caso de Farida, pôs nele atenção
especial, o que gerou, pela primeira vez, o ciúme de Carolinda, e, por isso,
achou que Kindzu a tivesse chamado pelo nome da mulher, a qual vive no
navio encalhado: “Carolinda, de novo, amoleceu em meus braços. Ali nos
incómodos degraus do fantasmado casarão, ela estendeu seu corpo com a
paixão do fogo e a ternura da terra.” (TS, p. 173)

8.19. Décimo capítulo – A doença do pântano

Tuahir pergunta a Muidinga se ele deseja conhecer o mar e recebe uma


resposta positiva. Decidem partir. Os mosquitos picam os dois e logo a febre
atormenta Tuahir, que delira vendo pássaros voando. O velho pede ao garoto
que vá assustar as aves que lhe trazem a febre e Muidinga parte pelo
lamaçal, ouvindo o som de uma xigovia13.
Um pequeno pastor se aproxima do menino e conta-lhe uma história:
havia falecido o maior boi de todos os que existiam por ali, um animal que
vivia em extrema solidão por ter se apaixonado por uma garça:

Sem nenhum comer, o bicho definhava-se. O pastor nem sabia


como explicar a seu tio, dono da criação. Certa noite, ao juntar
suas migalhas, o pastor viu aquilo que duvidava de contar. Pois
que o boi esticava o pescoço para a lua e declamava mugidos
que nunca foram ouvidos. De repente, se agitou todo seu corpo,

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13
Tipo de flauta, feita de casca de massala, com vários orifícios.

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MIA COUTO
o bicho parecia estar em parto de si mesmo. De sua garganta se
afilaram os gemidos que se foram vertendo, creia-se, num
cantarinhar de ave. Às duas por uma, ele começou a minguar,
pequenando-se de taurino para bezerro, de bezerro para gato
chifrudo. Em violentos arrepios se sacudiu e os pelos, aos tufos,
lhe foram caindo. No igual tempo lhe surgiam plumas brancas.
Em instantes, o mamífero fazia nascer de si uma ave,
profundamente garça.
O recente pássaro, então, percorreu o redor, procurando não se
sabe qual quê com seu olhar em seta. Até que, de súbito, se
vislumbrou uma outra garça, essa mesma que lhe fazia, enquanto
boi, demorar o coração. E o transfigurado mamífero acorreu em
volejos, se chegando à autêntica ave. Dançou em repentinos
saltos, as pernas de nervosa altura, como se estivessem ainda a
soletrar os primeiros passos. A terra parecia demasiado pesada
para aquele habitante dos céus. Ali ficaram os recíprocos dois,
em namoros despregados, soltando brancas fulgurações.
(TS, p. 177)

Muidinga se despede do pastor e retorna ao local em que deixara Tuahir.


Mais uma vez a narrativa vale-se do Maravilhoso para suavizar a trajetória
de Muidinga, associando-se a história do menino à tradição oral dos
“causos” contados pelo povo.
O velho pede ao menino que o ajude a fazer uma jangada e instrui
Muidinga para enterrá-lo no matope14. O menino recusa a ideia da morte de
Tuahir, mas lhe promete, caso aconteça, sepultá-lo no mar como fora feito
com Taímo.
A jangada corre pela água até encostar numa margem de areias brancas:

Cada vez mais a voz de Tuahir se esfuma. Em auge de arrepios,


o velho pede carinhos de mão e de peito. Não era requerer de
doente mas de esposa. Muidinga lhe ajusta a manta na esperança
que ele caia em sono. Porém, Tuahir lhe surpreende as mãos,
juntando-as a seu rosto. Pede ao rapaz que se deite juntinho a
––––––––––––––––––––––––––––––

14
Terreno negro e impróprio para agricultura.

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si, para ganhar quentura. O velho levanta a sua manta, abrindo
espaço para que Muidinga se ajuste. O rapaz se deita, constreito.
Dois medos em si se juntam: o de tocar em Tuahir e o de se estar
deitando com a morte. Maneirosa, a mão do outro lhe desvanece
uma ruga que teima em seu rosto. Longe se escuta o assobio da
xigovia. (TS, p. 178-179)

8.20. Décimo caderno de Kindzu – No campo da morte

Kindzu desperta Quintino para irem procurar por Euzinha, última


chance de encontrar Gaspar. Eles partem em busca da tia de Farida e chegam
a um terreno branco, repleto de ossos espalhados de animais mortos, caídos
da árvore amaldiçoada.
Kindzu olha para a árvore e vê o pássaro mampfana15 cantando. Saudoso
do pai, ele reza para que Taímo não o abandone e, nesse instante, a ave se
divide em duas partes, que se desfazem. Completamente tonto, ele se apodera
de um facão e golpeia a árvore, de onde sai uma voz, a qual o alerta ser esta
a última árvore e quem a cortasse se transformaria em uma pessoa do sexo
oposto. Kindzu reconhece a voz como sendo a mesma do fantasma que lhe
aparecera nas praias de Tandissico. O xipoco pegunta-lhe o que aprendera em
sua vida e Kindzu pede ao espírito do pai que o ajude a voltar, pois estava
cansado.
Taímo questiona, então, o que ele escreve em seus cadernos e Kindzu
responde que redije seus sonhos. Taímo diz que a “terra anda procurar
dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos” (TS, p. 182). O pai parte e
Kindzu pede-lhe que espere, mas é interrompido por Quintino, o qual lhe
pergunta se anda falando sozinho.
Quintino relata que vira milhares de camponeses famintos à espera de
xicalamidades16 e chama Kindzu para ver as pessoas, que dormiam ao
relento sem água e sem comida. Kindzu identifica Euzinha no meio da
multidão, fala com ela e mostra-lhe o colar de Carolinda. Euzinha, que
sempre desconfiara das semelhanças entre Carolinda e Farida, pede a ele o
––––––––––––––––––––––––––––––

15
Ave, segundo o livro, responsável por matar as viagens.
16
Segundo o glossário da obra, é corruptela de “calamidades, forma como popularmente se
designam os donativos para apoiar as vítimas das calamidades naturais”.

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colar, afirmando que não se deveria mexer no destino das irmãs e que
Carolinda não poderia saber que ela era sua tia, para a desgraça não se abater
sobre as gêmeas. Euzinha diz a Kindzu para se ocupar de encontrar Gaspar,
o qual fora levado para um outro campo, ignorado por ela, e que havia um
demônio atormentando Carolinda. Parecia que a esposa do “administraidor”
desejava a morte de Farida, sem nenhum motivo concreto, e “incitava o
marido a tomar medidas contra o barco.” (TS, p. 183)
Kindzu e Quintino se instalam no meio das palhoças e ficam sabendo que
as mães roubavam a comida dos filhos e os deixavam passar frio no campo,
para eles aprenderem a sobreviver. Kindzu percebe que as pessoas dormiam em
buracos e as casas velhas eram apenas um disfarce para enganar os salteadores.
Quintino, em meio a um passeio pelos arredores, vê uma adolescente,
aproxima-se dela e acena para o amigo se afastar. Kindzu deita-se num
buraco solitário, quando surge Carolinda dizendo estar esperando o avião,
que traria medicamentos ao campo, para partir para a cidade sem o marido
saber. Kindzu pergunta por Surendra e fica sabendo que ele estava na capital
tratando dos negócios, enquanto Assane reconstruía sozinho a loja, e Estêvão
Jonas ainda visitava, à noite, a casa de Romão Pinto para acertarem as
negociações. Ela também alerta que Quintino não escolhera bem a mulher
com quem estava: era Jotinha, adolescente capaz de ver coisas, as quais não
tinham acontecido, mas fazia com que todos nela acreditassem.
Voltam do passeio Quintino e Jotinha, que sugere aos dois rapazes que
durmam na palhoça, onde eram guardadas as xicalamidades, porém, como
o espaço era apertado, iriam dormir encostados uns nos outros. Kindzu sente
um braço tocando-lhe o peito, acredita ser Carolinda e, não resistindo,
entrega-se aos carinhos misteriosos.
Pela manhã, só Kindzu e Carolinda estavam no casebre, repleto de
insetos, os quais se alimentavam da comida ali guardada. Carolinda revela
que o marido deixava os alimentos apodrecerem, pois só poderiam ser
distribuídos na presença dele.
Kindzu e Quintino vão auxiliar Tia Euzinha a buscar lenha, mas ela
recusa ajuda, pois, se percebessem que ela era inútil, seria abandonada para
morrer. Carolinda procura Kindzu e revela-lhe seu plano:

Nessa tarde, o campo recebera mais deslocados. Ela os tinha


visto chegar, cobertos de cascas de árvores. Com certeza à noite

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se juntariam todos junto do djambalaueiro e entoariam canções
das boas-vindas. O que faríamos nós era aproveitar o momento
para distribuir aquela comida que dormia no armazém. Quintino
até saltou, contente da ideia. Mas Euzinha nos olhou sem
transtorno, talvez meditasse em nosso sentimento. Depois, disse:
— Muitos daqui sabiam que havia comida. Eu sabia. Mas nada
não fizemos. Parece já temos vontade de morrer. (TS, p. 189-190)

Ao chegarem nas proximidades da árvore do djambalau, eles percebem


uma movimentação: as crianças tinham acendido as panelas e elas racharam,
sinal de que alguém andava namorando no novo campo, o que era proibido,
pois atraia desgraças. Euzinha pede a Quintino que alerte Jotinha do perigo,
mas Carolinda manda Kindzu ir avisar no lugar dele, alegando que não seria
bom Quintino ser visto com ela.
Kindzu encontra Jotinha, a qual começa a rodopiar de dor, decorrente
de ferimentos causados por arames pontudos imaginários. Ela abraça
Kindzu, ele sente as farpas e afasta-se para buscar socorro, encontrando Tia
Euzinha, que o aconselha a partir no dia seguinte e esquecer-se de tudo o que
vira. Quintino ficaria no acampamento, porque estava preso ao feitiço de
Jotinha.
Naquela noite, houve festa e todos os refugiados se atiraram famintos
à comida que Quintino trazia. Euzinha sacudiu os braços de Kindzu,
gritando que a guerra iria acabar, e começou a rodopiar, dançando até cair
no chão morta:

Olhei em volta, só eu notara o fim de Euzinha. Lhe cobri com


jeito como se dormisse. E me retirei, discreto. Era hora de eu
sair dali, virar costas daquele campo. Preferi nem sequer trocar
explicação com Quintino. Ele tinha o direito de nada me dizer.
Me descaminhei pelo mato, tão absorto em mim que nem o
medo me chegou. Andei até reconhecer o caminhinho por onde
Quintino me guiara. Mais um pouco e lá estava a árvore onde eu,
junto com meu pai, matámos a ave mampfana. Me deitei
afastado dos ramos, numa berma suave. Eu estava
completamente cansado. A noite anterior quase não dormira. No
imediato, o sono me alcançou todo corpo. Eu precisava ganhar
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MIA COUTO
forças para regressar a Matimati. Carecia de encontrar Farida
mesmo que a ela regressasse sem trazer seu prometido filho. (TS,
p. 192-193)

8.21. Décimo primeiro capítulo – Ondas escrevendo estórias

Tuahir piora ao longo da viagem e pede a Muidinga que, caso a doença


o deixe sem falar e andar, ensine-lhe outra vez. Ao avistar um barco, o velho
pede ao menino que o coloque nele, tal como Surendra fizera com sua
esposa, assim morreria no mar, sem ver terra alguma. Muidinga se aproxima
do barco e Tuahir pergunta qual o nome dele. O menino, surpreso, diz que
se chama Taímo, como o barco de Kindzu, mas Tuahir acredita ser invenção
de Muidinga.
O menino coloca o velho no barco, dizendo que, depois, regressariam
ao machimbombo, mas Tuahir recusa-se a voltar para o ônibus, pois seria
comido pelos ratos. Assim, esperariam a maré subir e ela levaria o barco
para o mar.
Enquanto aguardam, o menino pega os cadernos para ler e Tuahir
pergunta quanto faltava para acabar a leitura deles. Muidinga diz ser o
último capítulo e o velho pede para ele ler depois, quando estivesse sozinho,
mas ele recusa. Nesse momento do livro, as histórias de Muidinga e Kindzu
se entrelaçam, pois a semelhança entre as experiências dos dois é registrada
pelo narrador. Tuahir e Muidinga aguardam, então, a maré subir e o menino
recomeça a leitura:

As ondas vão subindo a duna e rodeiam a canoa. A voz do miúdo


quase não se escuta, abafada pelo requebrar das vagas. Tuahir
está deitado, olhando a água a chegar. Agora, já o barquinho
balouça. Aos poucos se vai tornando leve como mulher ao sabor
de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa
então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas
fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de
embalar as crianças do inteiro mundo. (TS, p. 195-196)

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TERRA SONÂMBULA
8.22. Último caderno de Kindzu – As páginas da Terra

Kindzu volta a Matimati sem Quintino e sem Gaspar. Ao chegar à casa


de Assane, é recebido por Antoninho com os braços envolvidos por ataduras.
Assane, tentando abraçar Kindzu, como se quisesse confortá-lo, relata que
Farida já não o esperava mais.
Assane ordenara a Antoninho que fosse até ela para ajudá-la. Ela queria
saber as novidades, pois Kindzu demorava demais para lhe trazer Gaspar e
já havia perdido a esperança de reencontrar o filho. Farida disse que iria até
o farol para acendê-lo, partindo na embarcação de Antoninho. Depois de
algum tempo, houve uma forte explosão e toda a ilha ardeu em chamas.
Ao ouvir o relato, Kindzu não acredita na morte de Farida, afirmando
que Antoninho mentia. Assane garante a Kindzu a veracidade do ocorrido
e conta que Antoninho tentou salvar Farida, entrando no meio do fogo,
queimando seus braços intensamente, mas não obteve êxito no resgate.
Assane ouve de Kindzu o desejo de ir embora e oferece-lhe transporte
no primeiro machimbombo da empresa, que de lá partiria no dia seguinte.
Assane havia se unido ao administrador Estêvão Jonas e prestava-lhe
favores, como a tentativa de tirar Farida do navio encalhado.
Kindzu pensa na mãe, infinitamente grávida, em Junhito cocoricando,
e revela seu último sonho para se libertar das lembranças terríveis do que
havia passado. Desejoso de “desexistir”, escreve seu último caderno
relatando o que sonhara desordenadamente: ele descia por um vale cheio de
luz na primeira madrugada do mundo, quando vira centenas de pessoas
pobres e esfarrapadas seguindo o feiticeiro da aldeia. O adivinho, que
parecia procurar um lugar invisível, parou e iniciou seu discurso:

— Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão
serão ainda piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para
envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse mons-
tros no lugar da esperança. Não mais procureis vossos familiares
que saíram para outras terras em busca da paz. Mesmo que os
reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis
em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi
feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós.
Agora, a arma é a vossa única alma. Roubaram-vos tanto que

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MIA COUTO
nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos
pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos.
Será mil vezes pior que o passado pois não vereis o rosto dos
novos donos e esses patrões se servirão de vossos irmãos para
vos dar castigo. Ao invés de combaterem os inimigos, os
melhores guerreiros afiarão as lanças nos ventres das suas
próprias mulheres. E aqueles que vos deveriam comandar
estarão entretidos a regatear migalhas no banquete da vossa
própria destruição. E até os miseráveis serão donos do vosso
medo pois vivereis no reino da brutalidade. Terão que esperar
que os assassinos sejam mortos por suas próprias mãos pois em
todos haverá medo da justiça. A terra se revolverá e os
enterrados assomarão à superfície para virem buscar as orelhas
que lhes foram decepadas. Outros procurarão seus narizes no
vómito das hienas e escavarão nas lixeiras para resgatarem seus
antigos órgãos. E há-de vir um vento que arrastará os astros
pelos céus e a noite se tornará pequena para tantas luzes
explodindo sobre as vossas cabeças. As areias se voltearão em
remoinhos furiosos pelos ares e os pássaros tombarão
extenuados e ocorrerão desastres que não têm nome, as
machambas serão convertidas em cemitérios e das plantas, secas
e mirradas, brotarão apenas pedras de sal. As mulheres
mastigarão areia e serão tantas e tão esfaimadas que um buraco
imenso tornará a terra oca e desventrada. No final, porém,
restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se escutará
uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de
sermos gente. E surgirão os doces acordes de uma canção, o
terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim, será nosso, a
lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes de nos
arrancar. Essa voz nos dará a força de um novo princípio e, ao
escutá-la, os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes
abraçarão a vida com o ingénuo entusiasmo dos namorados.
Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos deste
tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que
já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos
converteu. (TS, p. 200-201)

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TERRA SONÂMBULA
A profecia do feiticeiro aponta para a necessidade de Moçambique
ouvir a voz de seus ancestrais e resgatar o que é tradicionalmente africano,
valorizando suas crenças e sua história ao longo dos tempos, orgulhando-se
da identidade autêntica de Moçambique. Ao pedir a seus seguidores que
abandonem a condição de animais e enfrentem a morte como seres
humanos, o adivinho joga um líquido sobre seus ombros e sobre seus fiéis,
que caem convulsivos, transformando-se em animais e, convertendo-se-lhes
a fala, espalham-se pelos matos.
Kindzu olha para seu corpo para constatar-se ainda humano, quando
vê um galo se aproximando: era Junhito que se humanizava, ao contrário dos
demais que se animalizavam. Surgem Romão Pinto, Estêvão Jonas, Shetani,
Assane, Antoninho e os milicianos para capturarem Junhito:

Então, Junhito me chamou. Eu me olhei, sem confiança. Mas o


que em mim vi foi de dar surpresa, mesmo em sonho: porque em
meus braços se exibiam lenços e enfeites. Minhas mãos
seguravam uma zagaia. Me certifiquei: eu era um naparama! Ao
me verem, em minha nova figura, aqueles que maltratavam o meu
irmão se extinguiram num fechar de olhos. Mas Junhito ainda
lutava para se desbichar, desembaraçar-se da condenação. Me veio
à ideia que ele precisava de um pouco de infância e cantei os
embalos de nossa mãe, sua última ponte com a família. Enquanto
eu cantava ele se foi vertendo todo gente, completamente Junhito.
A seu lado, como se chamada por meu canto, minha mãe apareceu
segurando uma criança em seu colo. Lhes chamei mas eles nem
me pareciam ouvir. Junhito colocou a mão aberta sobre o peito e
depois fechou as duas mãos em concha. Me agradecia. Acenei
uma despedida e ele, segurando minha mãe pelo braço,
desapareceu nas infinitas folhagens. (TS, p. 203)

Kindzu tem mais alucinações e vê a estrada mexer-se, deslocando-se de


paisagem a paisagem. Repentinamente seu coração aperta e surge o
machimbombo queimado, caído num acostamento da estrada:

De repente, a cabeça me estala em surdo baque. Parecia que o


mundo inteiro rebentava, fios de sangue se desalinhavam num

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MIA COUTO
fundo de luz muitíssimo branca. Vacilo, vencido por súbito
desfalecimento. Me apetece deitar, me anichar na terra morna.
Deixo cair ali a mala onde trago os cadernos. Uma voz interior
me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me dá força.
Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante
segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis
que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto,
confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado,
chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por
uma segunda vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas
por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as
folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma,
se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus
escritos se vão transformando em páginas de terra. (TS, p. 203-
204)

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TERRA SONÂMBULA
9. BREVE ANÁLISE DO LIVRO

Em entrevista ao Jornal Zero Hora17, Mia Couto revelou como foi o


processo de criação de Terra Sonâmbula:

Seu processo de escrita é sempre assim, de se sentir convocado pelas


histórias?

Só houve um livro em que o processo foi outro, e doloroso.


Normalmente eu não sofro, não sou masoquista (risos). Mas Terra
Sonâmbula foi um processo diferente, sofrido, porque eu escrevi durante a
guerra. E a ideia que eu tinha era que a guerra não terminaria nunca.
Pensava que, só depois de acabar a guerra, faria um livro sobre a guerra,
mas o livro começou-me a nascer. E era doloroso mesmo, porque à noite era
visitado não por personagens, mas por fantasmas quase, gente que morreu,
amigos meus que desapareceram na guerra... e eu ia para o computador e,
depois de duas horas, estava cansado, queria voltar à cama. Deitava-me
cinco minutos e estava a ser convocado outra vez. Foi um processo doloroso
mesmo, não estou romantizando. Percebi que não estava só a escrever,
estava lutando contra aquela asfixia que a guerra nos trazia.

E isso vinha como sonhos?

Eram como sonhos. A partir dessas pessoas que eu conheci, dessas


vozes. Eu era jornalista àquela altura. Lembro-me que um dos meus
colegas, que era chefe da redação do jornal e era uma pessoa mais doce,
cheia de esperança, anunciou que ia fazer uma viagem para um ritual de
família. Eu insisti tanto que ele não fosse, porque a guerra estava ali na
estrada... e ele foi morto. Ele, a mulher e os filhos foram queimados dentro
do carro. Então essa relação com essa memória, com essa perda, era algo
que me pedia uma história. Eu não sabia lidar com aquela ausência.

––––––––––––––––––––––––––––––

17
<http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2014/09/mia-couto-o-grande-crime-do-
racismo-e-que-anula-em-nome-da-raca-o-individuo-4591914.html>. Acesso em: 27 jun. 2015.

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MIA COUTO
Em Terra Sonâmbula, publicado em 1992, Mia Couto percorre a
história de Moçambique e da tristeza de um povo que viveu um longo
período de guerra contra a colonização portuguesa (1965-1975) e uma
guerra civil devastadora (1976-1992), possibilitando não só o encontro do
leitor com as experiências de um período bélico, mas o contato com a
dimensão mítica que perpassa a cultura africana.
A partir de narrativas entrecruzadas, Terra Sonâmbula relata a história de
um velho magro, Tuahir, e de um menino, Muidinga (símbolos do passado e
do futuro, respectivamente), que caminham por meio aos restos da guerra,
constatando a morte, a fome e a perspectiva desesperançada de uma vida futura:

A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para


nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da
nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O
sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos. (TS, p. 17).

No transcorrer dessa caminhada de tradição e modernidade, eles se


instalam num machimbombo, um ônibus queimado no meio da paisagem
ressequida pela morte, e, ao lado dele, um homem morto, virado de costas,
acompanhado de uma mala fechada, na qual, ao ser aberta, encontram-se
onze cadernos escritos por Kindzu, os quais ligarão o passado e o presente
e revelarão a Muidinga sua origem e identidade.
A partir daí, as duas histórias centrais vão se entrelaçando ao longo de
onze capítulos, que narram as aventuras dos refugiados no ônibus e o relato
de Kindzu em sua busca existencial, entremeadas ambas as narrativas de
episódios mágicos, reveladores, questionadores, históricos, folclóricos,
numa ficção de intensa criatividade.
A primeira epígrafe da obra apresenta uma crença dos habitantes de
Matimati, segundo a qual a terra se movimenta enquanto os homens
dormem e, ao despertarem e verem a nova paisagem, constatam que a
fantasia do sonho os tinha visitado, ideia semelhante à fala de Tuahir: “O que
faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada
permanecerá viva.” (TS, p. 5). A estrada é elemento vivo e se movimenta ao
passo em que Muidinga vai lendo os cadernos de Kindzu, isto é, o sonho de
Kindzu movimenta o de Muidinga.
O tempo é um dos temas de Terra Sonâmbula. Logo no primeiro
caderno de Kindzu, o título, “O tempo em que o mundo tinha a nossa idade”,
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TERRA SONÂMBULA
remete o leitor a um tempo iniciático repleto de profecias e fantasias do
velho Taímo, preso aos seus antepassados e ao tempo primordial, em meio
ao caos da guerra, aludindo, também, à época colonial e ao encantamento
momentâneo provocado pela independência de Moçambique, seguida da
imensa decepção da guerra causadora de destruições, fome, tensões sociais
e miséria.
Mia Couto entremeia o tempo histórico e o tempo mítico, nos episódios
de tensão sociopolítica e econômica e nos momentos marcados pelo
Maravilhoso, indicado pela presença de espíritos, aves míticas, anões que
surgem dos céus, mulheres misteriosas, mortos que voltam à vida,
acontecimentos sobrenaturais relatados nos cadernos de Kindzu e
experimentados por Muidinga por meio da leitura.
Assim, sonho e realidade unem-se, transformando o inimaginável em
algo possível, como, por exemplo, no desfecho da narrativa, quando Kindzu
olha a aproximação de Muidinga e identifica-o como Gaspar, o filho que
Farida procurava.
Enquanto Kindzu se prepara para morrer, Muidinga/Gaspar surge como
se estivesse nascendo, reconhecendo-se, assim como uma Moçambique que
deseja surgir depois de tantas mortes:

Deixo cair ali a mala onde trago os cadernos. Uma voz interior
me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me dá força.
Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante
segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis
que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto,
confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado,
chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por
uma segunda vez. (TS, p. 204)

No entanto, o impossível se destaca no desfecho do livro: como Kindzu


poderia ter descrito a aproximação de Muidinga/Gaspar, se já estava
moribundo? Kindzu tivera um sonho premonitório e escrevera sua morte
antes de ela ocorrer? Talvez, sonho e realidade se misturem nesse momento
da narrativa, o que originaria um efeito circular na obra, se considerarmos
que no primeiro capítulo Muidinga/Gaspar se aproxima do ônibus. Segundo
Laban,

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MIA COUTO
O livro não pode ter fim. O último capítulo chama-se “As
páginas da terra” – é como se fosse própria terra que estivesse
escrevendo estas cartas que o outro está lendo e o miúdo e o
velho fossem só figurantes do mesmo personagem que é essa
terra dilacerada que não se pode reencontrar, que não pode ser
reconhecida por si própria. (LABAN, 1998, p. 138)

Assim, a narrativa se marca pela presença constante do sobrenatural


vinculado com a realidade da guerra civil moçambicana, que serve de
suporte para as personagens ficcionais representarem e refletirem o que a
nação vivia em sua complexidade política, cultural, econômica e social:

Em redor dos sacos, milhares de insetos roubavam comida. Os


bichos vazavam o armazém com gulas de gigante. Como era
possível? Tanto alimento apodrecendo ali enquanto morriam
pessoas às centenas no campo?
– É culpa de Estêvão Jonas, meu marido. É por isso que lhe
chamo administraidor! (TS, p. 188)

Terra Sonâmbula é um romance da guerra, mas também uma obra em


que a esperança, as crenças, os costumes, as tradições estão presentes. Mia
Couto proporciona ao leitor uma longa viagem por Moçambique e pela
busca de sua identidade autêntica, projetando o futuro de uma nação vítima
de um passado sangrento.
Vinticinco de Junho, irmão de Kindzu, metaforiza uma Moçambique
nascida da esperança de que a independência do domínio de Portugal (25 de
junho de 1975) trouxesse a realização do sonho de uma nação que
caminhasse pelos próprios pés, mas ocorreu o inesperado da guerra,
destruindo a nação e afogando a prosperidade da população.
O ressurgimento de Junhito, no delírio de Kindzu no final da narrativa,
simboliza a esperança no futuro, enquanto o discurso do feiticeiro,
apresentado no último capítulo, anunciando o fim do mundo, indica,
simultaneamente, a revolta da natureza e a destruição total provocada pela
guerra, que serviu para

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TERRA SONÂMBULA
(...) envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse
monstros no lugar da esperança. Vós vos convertêsteis em
bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita
para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós.
Agora, a arma é a vossa única alma. Roubaram-vos tanto que
nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos
pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos.
(TS, p. 201)

Imensamente metafórico, o discurso do feiticeiro, num tom


apocalíptico, anuncia o fim do mundo, marcado por uma imagem forte dos
mortos, os quais retornarão ao mundo dos vivos para resgatar os órgãos
retirados deles, horrores que se justificam porque o presente da narrativa é
toldado pela guerra e por homens que se converteram “em bichos, sem
família, sem nação.” (TS, p. 200-201)
Mas a esperança surge no final da fala exaurida do feiticeiro, na
perspectiva de se retornar ao tempo iniciático em que

(...) restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se


escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de
antes de sermos gente. E surgirão os doces acordes de uma
canção, o terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim, será
nosso, a lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes
de nos arrancar. (TS, p. 201)

Desse modo, a viagem de Muidinga ao redor do machimbombo e a de


Kindzu em busca de si simbolizam o percurso de Moçambique, sendo a
guerra o elo entre as variadas discussões propostas pelo livro, envolvendo
a realidade, a história, os mitos e as crenças africanas. São personagens de
um período colonial e pós-colonial que permeiam o universo coutiano e
metaforizam Moçambique em suas diversas facetas:

O meu país tem países diversos dentro, profundamente divididos


entre universos culturais e sociais variados. Eu mesmo sou a
prova desse cruzar de mundos e de tempos. Sou moçambicano,
filho de portugueses, vivi o sistema colonial, combati pela

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MIA COUTO
Independência, vivi mudanças radicais do socialismo ao
capitalismo, da revolução à guerra civil. Nasci num tempo de
charneira, entre um mundo que nascia e outro que morria. Entre
uma pátria que nunca houve e outra que ainda está nascendo.
Essa condição de um ser de fronteira marcou-me para sempre.
As duas partes de mim exigiam um médium, um tradutor. A
poesia [literatura] veio em meu socorro para criar essa ponte
entre dois mundos distantes. (COUTO, 2009, p. 123)
[...] Durante meses, eu despertava entre os sons das armas que
ecoavam ao longe e uma força interior me compelia a sentar na
penumbra do quarto para inventar as viagens cruzadas de Tuhair,
Muidinga, Kindzu, Farida e Junhito. Estes personagens
deslocavam-se para lugar nenhum, provindo de um sítio
inventado. Apenas a viagem lhes dava chão. [...] Tal como era o
meu destino, enclausurado na triste impotência de enfrentar o
absurdo da guerra que matava não apenas as pessoas, mas o meu
próprio país. Um destes personagens me segredou: “fizeram esta
guerra não apenas para nos fazerem fugir do país, mas para
retirarem o país de nós.” A escrita surgia, assim, como um modo
de inventar uma outra terra, fazendo com que a estória
ludibriasse a história, à maneira da sábia enunciação de
Guimarães Rosa. (COUTO apud RIOS, 2007, p. 7)

Tuahir, símbolo da sabedoria decorrente do tempo de vida, da velhice,


é, ao contrário do que se estabelece tradicionalmente, guiado por uma
criança, Muidinga, desfazendo-se a ideia de liderança, pois a tarefa de
encontrar um caminho melhor para Moçambique estaria nas mãos dos
jovens, já que as gerações anteriores levaram o país à desagregação total da
sociedade e da família.
Desse modo, os velhos tornam-se um pesado fardo por serem já inúteis
como mão de obra ativa, e depositá-los à espera da morte seria a única
solução, como teme que lhe aconteça a personagem Euzinha,

Só já quando atávamos a lenha cortada é que Euzinha explicou


aquele seu comportamento: as velhas ali não eram queridas. Sua
carga era um indesejado fardo. As de sua idade já haviam todas

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TERRA SONÂMBULA
sido abandonadas. Apenas as que ainda trabalhavam eram
suportadas. Por isso Euzinha simulava as mais pesadas labutas.
Pediu-nos que nunca a ajudássemos em nada. Prometemos.
(TS, p. 189)

A guerra destrói o passado, a tradição e o conhecimento, que era


transferido de uma geração a outra, mas a possibilidade de se manterem as
histórias, que perpetuariam o que foi Moçambique, concretiza-se na
oralidade do povo, nas palavras sábias dos velhos. No entanto,
curiosamente, em Terra Sonâmbula, a palavra é oralizada pelo menino, que
lê os diários de Kindzu, enquanto o velho Tuahir é um ouvinte atento,
invertendo-se os papéis convencionais, que envolvem os velhos contadores
de casos, pois é o menino que conta histórias para o velho, retomando-se a
herança cultural dos contadores de histórias, mas de um modo novo.
Segundo Mia Couto,

Entramos no mundo pela porta da escrita, de uma escrita conta-


minada (ou melhor, fertilizada) pela oralidade. Nós não podemos
ir pela porta de trás, pela via do exótico terceiro-mundista. O
fato é que há uma espécie de costura que precisa ser feita [...].
São costuras que atravessam o tempo e que, quase sempre,
implicam numa viagem através da escrita. No fundo, o meu
próprio trabalho literário é um bocadinho esse resgate daquilo
que se pode perder, não porque seja frágil, mas porque é
desvalorizado num mundo de trocas culturais que se processam
de forma desigual. Temos aqui um país que está a viver
basicamente na oralidade. Noventa por cento existem na
oralidade, moram na oralidade, pensam e amam esse universo.
Aí eu funciono muito como tradutor. Tradutor não de línguas,
mas desses universos.18

––––––––––––––––––––––––––––––

18
Trecho da entrevista concedida a Vera Maquêa em Moçambique em dezembro de 2003, publicada por Via

Atlântica, número 8, dez. 2005.

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MIA COUTO
Unidos pela leitura, Muidinga e Tuahir encontram juntos a evasão por
meio dela, realizando seus trajetos pelo mundo da fantasia. Em várias
comunidades africanas, o velho ainda é respeitado (embora já enfraquecida
essa visão nos tempos atuais pela influência ocidental), pois simboliza a
sabedoria adquirida ao longo da vida, cabendo a eles, normalmente, a
narrativa de suas experiências, num relato didático aos mais novos,
transmitindo a tradição africana e mantendo vivos os costumes e a memória
coletiva. Logo, a morte de Tuahir poderia representar a extinção da tradição
de seu povo, salva, no livro, pelo menino Muidinga, que permanece vivo em
um meio hostil.
Conforme Mia Couto, a morte e a viagem são dois grandes temas
literários e, em Terra Sonâmbula, eles aparecem unidos, pois “na concepção
africana, os mortos não morrem, apenas deambulam, numa outra dimensão,
produzindo Vida entre os viventes”. (COUTO apud RIOS, 2007, p. 7)
A morte é um acontecimento recorrente na obra coutista e reflete a visão
de que é apenas um rito de passagem, prolongando-se a vida em um novo
estado. Daí os mortos estarem sempre presentes em Terra Sonâmbula,
ressurgindo, como no caso do português Romão Pinto, que aparece a
Quintino, anos depois de ter morrido.
O velho Taímo também aparece a Kindzu depois de morto, reve-
lando-lhe que as dificuldades encontradas ao longo da viagem eram castigos
impostos a ele em decorrência do abandono de sua aldeia e de suas
tradições.
A morte aparece já no primeiro capítulo, “A estrada morta”, espaço em
que se passa a narrativa de Muidinga e Tuahir, representando o país
destruído pela guerra civil, que atinge ricos e pobres indiscriminadamente,
e local oposto à estrada da vida presente na epígrafe do livro, num retrato
angustiante da paisagem misturada à tristeza:

Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só


as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A
paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se
pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido
toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul.
Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se costumaram
ao chão, em resignada aprendizagem da morte. (TS, p. 9)

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TERRA SONÂMBULA
Ao encontrarem o machimbombo queimado, Tuahir se comporta de
maneira indiferente frente aos mortos queimados, como se já estivesse acos-
tumado à desgraça ao longo de sua vida, mas Muidinga sente-se receoso
diante da morte, que lhe parece uma contaminação e necessita de purificação.
O mesmo desprezo que Tuahir demonstra pelos mortos do ônibus se
repetirá ao ver o homem morto do lado de fora, vítima de um tiro,
indiferença que se presentifica ao se relatar a morte nos campos de
deslocados, nos quais até vivas ainda as crianças eram enterradas.
Muidinga, que foi salvo da morte por Tuahir, receia que os espíritos dos
mortos ainda estivessem ali próximos ao ônibus queimado, uma vez que as
mortes eram recentes, e perturba-se diante da violência imposta pela guerra.
Essa mesma perspectiva de que os mortos permanecem é encontrada na morte
de Siqueleto, que se transforma numa semente, a qual renascerá sempre:
Então ele mete o dedo no ouvido, vai enfiando mais e mais
fundo até que sentem o surdo som de qualquer coisa se
estourando. O velho tira o dedo e um jorro de sangue repuxa da
orelha. Ele se vai definhando, até se tornar do tamanho de uma
semente. (TS, p. 69)

No entanto, acrescenta-se à morte de Siqueleto, que se transforma na


semente de um novo país, também a preocupação do fim da cultura e da
perpetuidade das tradições de um povo, sugerindo-se o fim do mundo como
o anunciado pelo feiticeiro no desfecho da obra:

Contudo, no falecimento de Siqueleto havia um espinho excres-


cente. Com ele todas as aldeias morriam. Os antepassados
ficavam órfãos da terra, os vivos deixavam de ter lugar para
eternizar as tradições. Não era apenas um homem mas todo o
mundo que desaparecia. (TS, p. 84)

Na segunda narrativa, composta pelos cadernos de Kindzu, os mortos


surgem para advertir os vivos de que há forças invisíveis, as quais podem
conduzir o presente, como, por exemplo, o momento em que o mar seca, as
palmeiras surgem e a voz de Taímo, conforme a crença de Kindzu, pede que
respeitem os frutos sagrados, acontecendo justamente o contrário em
decorrência da ganância e da desobediência da população, desencadeando-
se uma inundação que metaforiza a tragédia provocada pela guerra civil.
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MIA COUTO
Assim, o desrespeito à natureza e o descaso com os alertas dos mortos
causam a desgraça do homem. Kindzu partirá em busca de seu próprio eu,
mas sofrerá as consequências do distanciamento de suas raízes.
Ao chegar às areias da praia de Tandissico, Kindzu experimentará mais
um momento sobrenatural: conduzido por forças do submundo, ele tem a
visão de um psipoco (espírito do mal que se satisfaz com o sofrimento), o
qual abre uma cova e obriga Kindzu a entrar nela já com água. Esse
sepultamento ainda vivo ligaria o mundo dos vivos ao dos mortos, sendo,
segundo o espírito, o chão deste mundo o teto do mundo dos mortos.
Há, no momento em que Kindzu sonha com o pai, uma descrição feita
por Taímo do que se passaria no mundo dos mortos:

Também lá não sucedia o sossego: toda a hora os ossos


disputavam lugar nos seus antigos corpos. Na confusão, eles se
baralhavam todos e se combinavam em desordem, ossos de uns
em corpos de outros. No resultado, se pariam desencontrados
monstros. (TS, p. 44)

Nesta passagem apocalíptica, a situação de Moçambique se reflete no


ambiente dos mortos, repleto de destruição e fome, e nas desgraças pelas
quais passa Kindzu por ter se afastado de seus antepassados e tradições, tão
prezados por Mia Couto em sua obra.
Kindzu, pela influência ocidental, não ouvia os antepassados e, por isso,
era necessário semeá-lo na terra para ressurgir no teto do mundo, conforme
alerta Farida:

Nós somos sombras no teu mundo, tu jamais nos tinhas


escutado. É porque vivemos do outro lado da terra, como o bicho
que mora dentro do fruto. Tu estás do lado de fora da casca. Eu
já te tinha visto desse outro lado, mas as tuas linhas eram de
água, teu rosto era cacimbo. Fui eu que te trouxe, fui eu que te
chamei. Quando queremos que vocês, os da luz, venham até nós,
espetamos uma semente no teto do mundo. Tu foste um que
semeámos, nasceste da nossa vontade. Eu sabia que vinhas. Te
esperava, Kindzu. (TS, p. 83)

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TERRA SONÂMBULA
Outro momento, que envolve a morte de maneira sobrenatural, ocorre
no reaparecimento de Romão Pinto, depois de ter morrido em circunstâncias
associadas ao imaginário local. Quintino dialoga com o ex-patrão e Estêvão
Jonas acerta com o falecido um negócio lucrativo e fraudulento.
Evidenciam-se neste momento o preconceito racial, inflado pela prepotência
do português falecido há dez anos, a submissão de seu empregado Quintino
e a manutenção do colonialismo, ou neocolonialismo, uma vez que
Moçambique continuava sendo explorado, mas por mãos novas e de
ideologia igual à do período de colônia.
Os mortos rondam a vida de Kindzu, que relata a presença de diversos
espíritos em seus sonhos, estabelecendo-se, assim, o elo entre a vida e a
morte, o presente e o futuro, em que a violência provoca o caos, segundo o
feiticeiro, nganga, que surge no final do livro:
Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do
tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da
esperança. Não mais procureis vossos familiares que saíram para
outras terras em busca da paz. Mesmo que os reencontreis eles
não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis em bichos, sem
família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos
tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma
é a vossa única alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os
sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu
e o mar serão propriedade de estranhos. (...) Aceitemos morrer
como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em
que esta guerra nos converteu. (TS, p. 201-202)

Ao morrer, Kindzu deixa sua mala cair com os cadernos em que seus
devaneios foram registrados; estes, agora, são semeados numa terra que
necessita de sonhos que tragam de volta a vida e Moçambique não seja mais
uma Terra Sonâmbula:

De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que


nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela
estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em
grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão
transformando em páginas de terra. (TS, p. 204)

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MIA COUTO
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TERRA SONÂMBULA
11. EXERCÍCIOS

Texto para o teste 1.

Meu pai sofria de sonhos, saía pela noite de olhos transabertos. Como
dormia fora, nem dávamos conta. Minha mãe, manhã seguinte, é que nos
convocava:
— Venham: papá teve um sonho!
E nos juntávamos, todos completos, para escutar as verdades que lhe
tinham sido reveladas. Taímo recebia notícia do futuro por via dos
antepassados. Dizia tantas previsões que nem havia tempo de provar
nenhuma. Eu me perguntava sobre a verdade daquelas visões do velho,
estorinhador como ele era.
— Nem duvidem, avisava mamã, suspeitando-nos.
E assim seguia nossa criancice, tempos afora. Nesses anos ainda tudo
tinha sentido: a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável.
Os mais velhos faziam a ponte entre esses dois mundos. Recordo meu pai
nos chamar um dia. Parecia mais uma dessas reuniões em que ele lembrava
as cores e os tamanhos de seus sonhos. Mas não. Dessa vez, o velho se
gravatara, fato e sapato com sola. A sua voz não variava em delírios.
Anunciava um facto: a Independência do país. Nessa altura, nós nem
sabíamos o verdadeiro significado daquele anúncio. Mas havia na voz do
velho uma emoção tão funda, parecia estar ali a consumação de todos seus
sonhos. Chamou minha mãe e, tocando sua barriga redonda como lua
cheia, disse:
— Esta criança há-de ser chamada de Vinticinco de Junho.
Vinticinco de Junho era nome demasiado. Afinal, o menino ficou sendo
só Junho. Ou de maneira mais mindinha: Junhito. Minha mãe não mais
teve filhos, Junhito foi o último habitante daquele ventre.
O tempo passeava com mansas lentidões quando chegou a guerra. Meu
pai dizia que era confusão vinda de fora, trazida por aqueles que tinham
perdido seus privilégios. No princípio, só escutávamos as vagas novidades,
acontecidas no longe. Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o
sangue foi enchendo nossos medos. A guerra é uma cobra que usa nossos
próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os
rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O
sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos. (TS, p. 16-17)
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MIA COUTO
1. (7.ª ONBH-2014 – Adaptado) – Sobre o trecho extraído do romance
Terra Sonâmbula, de Mia Couto, avalie as afirmações abaixo:
I – Os processos de independência do Brasil e das colônias portuguesas
na África são comparáveis e simultâneos.
II – Embora escrito em nossa língua – a portuguesa – este texto literário
cheio de metáforas traz características da forma de falar de outro
país.
III – A escolha do nome do bebê remete à data da independência de
Moçambique e o sangue mencionado ao final do trecho se refere à
guerra civil que posteriormente se instaurou.
IV – O texto, marcado pela influência do escritor brasileiro João
Guimarães Rosa, revela a esperança de que a independência de
Moçambique, assim como a criança que era aguardada no ventre da
mãe, representassem o início de uma nova vida.

Está totalmente correto o que se afirma em


a) I e II, apenas.
b) II e III, apenas.
c) III e IV, apenas.
d) II e IV, apenas.
e) IV, apenas.

Texto para o teste 2.

Ele sorriu, desprezador. Eu, se me pensava esperto, não descobrira a


razão da vida estar a correr às mil porcarias? Tudo aquilo era castigo
encomendado por ele, meu legítimo pai. Minhas desavenças, os tropeços
que sofria, provinham de eu não ter cumprido a tradição. Agora, sofria
castigos dos deuses, nossos antepassados. Lamentava-se da cansativa
morte:
— Sou um morto desconsolado. Ninguém me presta cerimónias.
Ninguém me mata a galinha, me oferece uma farinhinha, nem panos, nem
bebidas. Como posso te ajudar, te livrar das tuas sujidades? Deixaste a
casa, abandonaste a árvore sagrada. Partiste sem me rezares. Agora, sofres
as consequências. Sou eu que ando a ratazanar teu juízo.
— Mas, pai, durante todos os dias eu te levava comida...

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TERRA SONÂMBULA
— Nas primeiras noites, sim. Depois, nunca mais eu vi nada de comer.
Só a panela vazia, mais nada.
— Alguém comia...
— Ninguém toca em prato de defunto.
O velho Taímo se explicou: eu não podia alcançar nada do sonhado
enquanto a sombra dele me pesasse. A mesma coisa se passava com a nossa
terra, em divórcio com os antepassados. Eu e a terra sofríamos de igual
castigo. (TS, p. 44-45)

2. A partir da leitura do texto e de acordo com o enredo do romance,


considere as seguintes proposições sobre Terra Sonâmbula:
I – A vida de Kindzu é metáfora de uma Moçambique fragmentada e
desestruturada cultural e socialmente, formada por um conjunto de
desgarrados, seja um nativo, como ele, ou um estrangeiro, como seu
amigo indiano Surendra Valá.
II – Kindzu, em sua viagem, sofre sucessivos incidentes que o pai, o
velho Taímo, personificação da resistência das tradições no livro,
atribui ao fato de o filho não seguir o mandamento dos costumes.
III – O rompimento com o passado se deve às atribulações pelas quais
passa Kindzu e também Moçambique.
III – A preocupação com a identidade, com a sabedoria dos antigos, é
constante em todo o livro.

Está correto o que se afirma em


a) I e II, apenas.
b) II, III e IV, apenas.
c) III e IV, apenas.
d) I, II e IV, apenas.
e) I, II, III e IV.

3. Em Terra Sonâmbula, o passado aparece com vivacidade numa terra


submetida ao silêncio e ao divórcio com seus antepassados. No entanto,
é necessária a aceitação do passado para que se possa entender o
presente. Assim, qual é a representatividade de Kindzu ser sempre
assombrado pelo espectro do pai?

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MIA COUTO
4. Um aspecto significativo na obra de Mia Couto é o emprego frequente
de provérbios e expressões idiomáticas do discurso oral, muitas vezes
alterados em relação ao sentido original:
I – E se lançou nas vagas, transversando a corrente. Em meio da
jornada reparou como havia sido grande sua ousadia. E as ondas
cresceram, grandes que ele nunca vira. A barcaça não resistia, o
caudal do rio a ver com quantos paus se desfaz uma canoa.
II – O homem vivia só, se lamentando: antes mal acompanhado!
III – As autoridades imediatamente desencadearam uma ofensiva de
averiguações político-ideológicas tendo apurado a presença do
inimigo da classe. Conclusão do responsável da Segurança: tais
rochas nunca foram vistas antes da mencionada noite.
IV – Não ligue. Isto é atraso, ignorância bravia. Vale a pena insistir? Vale
a pena esclarecer esta gente? Eu sempre acho que sim. Do menos o
mal: afinal, grão a grão o papa se enche de galinhas.

Nos fragmentos acima, verificam-se os exercícios criativos do autor em


a) I e II, apenas.
b) II, III e IV, apenas.
c) III e IV, apenas.
d) I, II e IV, apenas.
e) I, II, III e IV.

5. Na passagem “Quando iniciaram a viagem já ele se acostumava de


cantar, dando vaga a distraídas brincriações”, encontra-se um
procedimento comum na obra coutiana, que é a criação de palavras
novas. Observe as passagens a seguir:
I – Ouvíamos a baleia mas não lhe víamos. Até que, certa vez, desaguou
na praia um desses marmíferos, enormão.
II – Sem família, sem amigos: o que me restava fazer? Única saída era
sozinhar-me, por minha conta, antes que me empurrassem para esse
fogo que, lá fora, consumia tudo.
III – Aquelas pontas, viradas para o alto, eram o sinal que a desgraça
continuava apostada em mim. E me marrecava na canoa, ingénio,
acrediteísta.

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TERRA SONÂMBULA
IV – Tudo aquilo era castigo encomendado por ele, meu legítimo pai.
Minhas desavenças, os tropeços que sofria, provinham de eu não ter
cumprido a tradição.

Os neologismos coutianos estão presentes em


a) I e II, apenas.
b) II, III e IV, apenas.
c) III e IV, apenas.
d) I, II e IV, apenas.
e) I, II e III, apenas.

Texto para as questões 6 e 7.

Chove toda a manhã com tal empenho que, para não se perderem,
Muidinga e Tuahir vagueiam de mãos dadas. Ao meio-dia a chuva para. O
sol se empina no céu, com tamanha vingança que, num instante, chupa os
excessos de água sobre a savana. A terra sorve aquele dilúvio, enxugando
o mais discreto charco. No inacreditável mudar de cenário, a seca volta a
imperar. Onde a água imperara há escassas horas, a poeira agora esfuma
os ares. Ouve-se o tempo raspando seus ossos sobre as pedras. Em toda a
savana o chão está deitado, sem respirar. A cauda do vento se enrosca
longe. Até o capim que nunca tem nenhuns pedidos, até o capim vai
miserando. (TS, p. 89)

6. Se fosse omitida a vogal em “chove toda a manhã”, haveria alteração


de sentido? Explique.

7. A prosopopeia, segundo o dicionário Houaiss, é a “figura pela qual o


orador ou escritor empresta sentimentos humanos e palavras a seres
inanimados, a animais, a mortos ou a ausentes”. Destaque, do
fragmento de Terra Sonâmbula, as prosopopeias.

8 . Em Terra Sonâmbula, a cautela do silêncio está frequentemente


associada ao medo de haver comprometimento por meio da palavra.
Cite um episódio que exemplifique essa forma de silêncio e justifique.

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MIA COUTO
9. Em “As estórias dele (Taímo) faziam o nosso lugarzinho crescer até
ficar maior que o mundo. Nenhuma narração tinha fim, o sono lhe
apagava a boca antes do desfecho. Éramos nós que recolhíamos seu
corpo dorminhoso” (TS, p. 15-16), há uma inversão de situação comum
vivenciada entre adultos e crianças. Explique-a.

10. Um aspecto importante na obra de Mia Couto é o amplo emprego de


expressões idiomáticas do discurso oral. Explique o sentido delas em:
I – Dentro dessa solitária residência ela deveria colocar o velho barco
de meu pai, com seu mastro, sua tristonha vela. Seu dito, nosso feito.
II – Lembrei meu pai, sua palavra sempre azeda: agora, somos um povo
de mendigos, nem temos onde cair vivos.

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TERRA SONÂMBULA

12. RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS

1) A alternativa I está incorreta porque, embora os processos de


independência do Brasil e das colônias africanas possam ser
comparados, decorreram de situações diferentes, além de não terem
sido simultâneos em todos os lugares colonizados por Portugal; em II,
pode ser aceito o fato de ser um livro escrito em Língua Portuguesa,
mas explorando, além da forma de falar moçambicana, também o modo
comum de comunicação em Língua Portuguesa de outros países; em
III, o “sangue” é metáfora de morte, decorrente da guerra; e a afirmação
IV é totalmente adequada ao romance de Mia Couto.
Resposta: E

2) No romance Terra Sonâmbula, Kindzu metaforiza Moçambique


destroçada pela guerra civil, que atingiu, de maneiras diferentes, a
maior parte da população do país. Os incidentes vivenciados pela
personagem figuram os percalços sofridos por quem vivia tanto o
conflito da guerra, como também o que ocorria entre a manutenção das
tradições e as transformações impostas pela modernidade, as quais,
muitas vezes, desrespeitavam e destruíam o passado cultural moçam-
bicano, colocando em risco a preservação da identidade do país.
Resposta: E

3) A figura do pai é exemplar para se mostrar a relação de Kindzu com a


tradição passada de Moçambique. Daí o velho Taímo ser uma metáfora
da Moçambique portuguesa, antiga, a qual Kindzu se via preso,
representando-se a mesma relação de sofrimento entre a terra e a
personagem: “O velho Taímo se explicou: eu não podia alcançar nada
do sonhado enquanto a sombra dele me pesasse. A mesma coisa se
passava com a nossa terra, em divórcio com os antepassados. Eu e a
terra sofríamos de igual castigo.” (TS, p. 45)

4) Em I, altera-se a expressão popular “com quantos paus se faz uma


canoa”; em II e IV, invertem-se os ditados “antes só do que mal
acompanhado” e “de grão em grão, a galinha enche o papo”.
Resposta: D

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MIA COUTO
5) Um dos principais recursos empregados por Mia Couto é a criação de
neologismos, como “brincriações”, “marmíferos”, “sozinhar-me”,
“marrecava”, “ingénio” e “acrediteísta”.
Resposta: E

6) “Chove toda a manhã” significa que houve chuva durante todo o


período matinal. A omissão do artigo alteraria o sentido, indicando que
a chuva ocorria sempre pelas manhãs, e não a manhã inteira.

7) Ocorre prosopopeia em “Ouve-se o tempo raspando seus ossos sobre


as pedras”, “o chão está deitado, sem respirar”, “A cauda do vento se
enrosca longe” e “o capim vai miserando”.

8) A velha Virgínia, esposa de Romão Pinto, ao ser questionada por


Kindzu sobre Farida, nega-se a responder, alegando que, caso falasse,
sua casa se encheria de fantasmas. Retiram-se os dois para o velho
casarão e na escada, em ambiente seguro, conversam sobre Farida.
Depois dos esclarecimentos, Virgínia alerta Kindzu que ela só
conversava com crianças e era tida como louca, justamente o que a
protegia de qualquer perigo, uma vez que ela se refugiava no silêncio
dos loucos para não ser perseguida.

9) O sono contamina as histórias narradas por Taímo de modo invertido


porque, ao invés de as crianças dormirem embaladas pelas fábulas, era
ele, o velho, que adormecia e era carregado pelos pequenos para a
cama.

10) I) A expressão “seu dito, nosso feito” foi empregada com


acréscimos pronominais, demonstrando que o conselho do
feiticeiro foi seguido rigorosamente, reforçando a ideia de que o
previsto era “dito e feito”.
II) A expressão comum “não ter onde cair morto” ganha sentido
inverso, pois o vocábulo “vivos” permite a ideia de que os
habitantes não tinham onde ficar enquanto vivos e, muito menos,
quando mortos.

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