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Obra Fuvest Livro Terra Sonambula
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OS LIVROS DA FUVEST
TERRA SONÂMBULA
MIA COUTO
TERRA SONÂMBULA
1. BIOGRAFIA DO AUTOR
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O meu pai foi para África porque acho que ele queria seguir a
carreira jornalística e não havia muita hipótese de emprego nessa
altura em Portugal, penso que foi por isso. Mas havia também
uma sensação de que eles precisavam de mais espaço,
precisavam de começar uma coisa nova. A minha mãe [Maria
de Jesus] vem duma aldeia de Trás-os-Montes, não tem história
porque ela não conheceu a mãe nem o pai. A mãe morreu no
parto duma próxima irmã. Ela ficou órfã, abandonada, depois
foi acolhida por um padre que se apresentou como sendo tio
delas. Então até o nome dela foi rescrito, foi inventado para ela
não ter uma ligação com a sua mãe – uma “senhora do pecado”.
Penso que ela queria muito sair dali quando era nova, o meu pai
passou... “distraído”, ela agarrou-o e foram para o Porto. Depois
foram de Portugal para Moçambique e nascemos nós, três
irmãos, eu sou o do meio. Fernando Amado, dois anos mais
velho, e o mais novo, que tem uma diferença de sete anos de
mim, chama-se Armando Jorge. [...] O meu pai, com um grupo
de alguns portugueses, que tinham sido deportados de Portugal
por motivos políticos, formaram associações do tipo cineclubes,
centros culturais onde se faziam debates de certas coisas. O meu
pai trabalhava em três jornais, o Notícias da Beira, o Diário de
Moçambique e o Notícias, de Lourenço Marques.
[...] A Beira era uma cidade muito conflituosa porque a fronteira
entre os brancos e os negros era uma fronteira muito misturada,
muito “atravessada”. E eu recordo-me – toda a minha infância
é uma infância de viver no meio de negros, brincar, com eles, os
meus amigos, as pessoas que eu posso referenciar da minha
infância, com a exceção dos meus irmãos e mais alguns, todo o
resto é uma infância toda vivida ali.
[...] Vivemos em quase todas as partes da Beira. O meu pai
mudava constantemente de bairro. Mas era constante essa
mistura. Porque a Beira é uma cidade conquistada ao pântano.
Então, à medida que era possível secar uma região e construir
casa de cimento isso fazia-se. Mas estavam lá as casas dos
negros locais. Então, sempre do outro lado da rua havia
africanos com casa de caniço. Não tanto esta arquitetura
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arrumada, de urbanização feita com plano, como aconteceu em
Lourenço Marques. Vivi muito nessas zonas suburbanas,
periféricas.
[...] Os brancos da Beira eram profundamente racistas. Quando
eu saí da Beira para Lourenço Marques, em 1971, parecia-me
que estava noutro país, porque na Beira havia quase apartheid
em certas coisas. Não podiam entrar negros nos autocarros, só
no banco de trás. Enfim, era muito agressivo. No Carnaval os
filhos dos brancos vinham com paus e correntes bater nos
negros. Recordo-me duma história: eu tinha um senhor que me
dava explicações de matemática, privadas, e ele era pai dum
coronel que tinha feito um massacre em que tinham sido mortos
125 ou 130 camponeses. E ele tinha fotografias do massacre
dentro de casa, como uma glória! Eu só andei uma semana
naquelas explicações. Nós chamávamos-lhe o “Bengalão”,
porque ele tinha uma bengala grande, e, quando começava a
sessão de estudo, ele mandava sair as mulheres – as meninas –
e ficava só com rapazes, e dizia: “Cuidado, porque o pretinho
está-nos a ouvir, é preciso impedir isso. Na escola eu tenho que
baixar as notas dos negros para eles nunca ficarem à vossa
frente, vocês têm que me ajudar nesta luta...” – e aquilo era uma
coisa que para mim soava horrível.
[...] Eu guardo na minha infância, assim, uma coisa muito
esbatida, um ponto de referência, as histórias que me eram
contadas, dos velhos que moravam perto, vizinhos do outro lado
da rua, de um outro mundo, e eu recordo esse mundo encantado
até algumas histórias, sobretudo como eles me deixaram uma
marca. Os meus dois irmãos também escreviam, com 16, 17
anos, e o meu irmão Carlos mais cedo, até. O meu pai tinha
muito esta coisa que eu era o filho que lhe ia continuar a veia.
[...] em 83, publiquei o meu primeiro livro. Como uma espécie
de contestação contra o domínio absoluto da poesia militante,
panfletária. Para se ser revolucionário era preciso falar de
marxismo, nos operários, e eu resolvi fazer um livro de poesia
íntima, intimista, lírico. E o Orlando Mendes, que faleceu agora,
fez-me um prefácio bonito, explicando que era uma coisa
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“nova”, no sentido de que se pode fazer uma poesia de vanguar-
da sem se falar muito em política. O livro esgotou-se rapida-
mente, não é o mérito daquele livro, quase todos eles se
esgotavam.
Influências? Do Craveirinha, sim, um pouco do Craveirinha.
Mas eu apaixonei-me mais pela linha dos brasileiros, pelo João
Cabral de Melo Neto, pelo Carlos Drummond de Andrade.
Quando comecei a descobrir o mundo da poesia pensava que os
brasileiros tinham valores maiores. Talvez fosse uma resistência
minha. Achava que havia uma certa injustiça praticada no relevo
que se dava aos poetas portugueses em relação aos brasileiros,
quando estes tinham superado os próprios portugueses. Sim, mas
também tive a influência de alguns poetas portugueses, como
Sofia de Mello Breyner, o Eugénio de Andrade, o Fernando
Pessoa.
(Mia Couto, in PATRICK CHABAL,
“Vozes Moçambicanas”)1
––––––––––––––––––––––––––––––
1
Fonte da autobiografia: <www.terravista.pt/bilene/4040/home.htm>.
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Em 1975, com a independência de Moçambique, Mia Couto ingressou
no jornalismo, dirigindo a Agência de Informação de Moçambique (1976 a
1979), a Revista Tempo (1979 a 1981) e o Jornal Notícias (1981 a 1985):
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Após a Independência, seguiu-se a guerra civil, a qual só terminou com
a assinatura do Acordo Geral de Paz, em 4 de outubro de 1992, em Roma,
momento em que os pais de Mia Couto regressaram a Portugal:
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Prêmio Virgílio Ferreira, da Universidade de Évora, Portugal, pelo conjunto
da obra; 1999, o Prêmio Consagração atribuído pela FUNDAC, Maputo;
2001, o Prêmio Mário António, da Fundação Calouste Gulbenkian, por O
último voo do flamingo; 2002, os Prêmios Procópio de Literatura, Lisboa,
e o África Hoje, Maputo; 2007, o Prêmio União Latina de Literaturas
Românicas, Paris, e o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura,
Jornada Nacional de Literatura, Passo Fundo, por O outro pé da sereia;
2009, o Prêmio O Melhor de Literatura em Língua Portuguesa, Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil/PB (FNLIJ), por O gato e o escuro.
Em 2015, Mia Couto figurou na lista de finalistas para o “Man Booker
International Prize”, primeiro autor em Língua Portuguesa a ser indicado
para o prêmio.
––––––––––––––––––––––––––––––
2
<http://countrymeters.info/pt/Mozambique>, site em constante atualização. Acesso em: 20 maio 2021.
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Por haver uma alta taxa de desemprego (cerca de 23% em 2013, segundo
Eduardo Chimela, diretor-geral do Instituto Nacional de Emprego e Formação
Profissional (INEFP) do Ministério do Trabalho3), grande parte da população
de Moçambique vive abaixo da linha da pobreza e tem expectativa de vida
média de 41 anos, em decorrência de diversos fatores, como uma grande
variedade de doenças infecciosas, hepatite A, febre tifoide, malária,
HIV/AIDS e outras. Além disso, são frequentes inundações imensas e grandes
períodos de seca, que geram escassez de alimentos. Segundo dados do Banco
Mundial, o PIB de Moçambique aproxima-se dos 16 bilhões de dólares em
2015, sendo a agricultura o setor dominante e os principais produtos de
exportação o algodão, a castanha-de-caju, a cana-de-açúcar, o tabaco e o chá.
Outra fonte de rendimento das famílias moçambicanas é a venda de
lenha, madeira, carvão e gado. Há também um projeto em expansão para
mineração em Chibuto. A industrialização é pequena no país, de tecnologia
simples e rudimentar, fundamentalmente manufatureira, dedicada às ativi-
dades de extração e transformação de alguns recursos minerais e energéticos.
Vasco da Gama chegou a Moçambique em 1498, encontrando no
território, já instalados, os árabes e o povo Bantu. Até o início de 1900,
Portugal aplicava políticas rentáveis aos seus interesses, priorizando a
riqueza entre os portugueses, num regime colonial que terminou com a
independência de Moçambique em 25 de junho de 1975. Mas o que poderia
ter sido o início de um período de paz, foi o princípio de numa catástrofe:
uma longa guerra civil, que fez mais de um milhão de mortos e quatro
––––––––––––––––––––––––––––––
3
<http://www.verdade.co.mz/economia/37028>.
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milhões de deslocados, tornando-se Moçambique um dos países mais pobres
do mundo.
Durante séculos as atividades portuguesas na região estiveram restritas
a feitorias comerciais costeiras, que disputavam com árabes e indianos o
estabelecimento de relações comerciais com os governantes locais, embates
estes de que dão testemunho a espetacular arquitetura da Ilha de
Moçambique, com suas construções cristãs, muçulmanas e baneanes.
O que se pode chamar de colonização portuguesa começa a se efetivar
no final do século XIX, quando foram instituídos sistemas administrativos
específicos para os indígenas, definindo e mapeando as áreas, denominadas
de circunscrições ou conselhos, e os postos administrativos com os
correspondentes responsáveis por estas localidades.
Apesar dos movimentos de resistência contra o domínio estrangeiro, a
derrota de Gungunhana, rei de Gaza, no último quartel do séc. XIX,
significou a consolidação e o fortalecimento do sistema administrativo
português sobre Moçambique, pressionado pelo avanço da política
neocolonial europeia e pelo “ultimato britânico”, que exigia a ocupação
efetiva do território. A conquista portuguesa, ou pacificação, foi levada a
termo por Freire de Andrade, Antonio Enes, Eduardo Costa, Aires Ornelas,
Eduardo Galhardo e Mouzinho de Albuquerque, representantes da chamada
“Geração 95”. (MACAGNO, 2001, p. 63-66)
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havia 1 milhão de pessoas mortas e cerca de 5 milhões de habitantes
deixando o território moçambicano.
Nesse clima de guerra, a Igreja Católica também não foi poupada e,
identificada com o colonialismo, foi excluída da participação social e
política. No entanto, o Islamismo foi preservado do processo de intimidação,
o que causou um imenso afrontamento das crenças e estruturas tradicionais
do país, desagregação social e aumento de tensões internas.
Um acordo entre Moçambique e a África do Sul, em Inkomati, não
limitou a ação da RENAMO, que, apoiada por parte da população, avançava
pelo território moçambicano, resultando, no plano internacional, na visão de
que o grupo privilegiava a liberdade contra os regimes marxistas, os quais
começavam a ruir com a desagregação do bloco soviético, principal apoio
da FRELIMO.
Frente à nova realidade mundial, a RENAMO e a FRELIMO iniciaram
as negociações de paz, assinando, em 1992, um tratado que punha fim à
guerra, determinando a desmobilização das tropas, a preparação para
eleições multipartidárias no país, supervisionadas pela ONU, e a repatriação
e reestabelecimento dos refugiados.
Pode-se dividir, portanto, o longo período de guerras moçambicanas
em três momentos: de 1975 a 1985, período anterior à guerra civil, em que
Moçambique se via livre de Portugal, mas despreparado para a nova
situação; de 1985 a 1992, época da devastação provocada pela guerra; e de
1992 aos nossos dias, fase pós-guerra, em que o país busca se reconstruir.
Segundo o historiador Egídio Vaz4, a guerra em Moçambique pode ser
dividida na fase da “guerra de desestabilização”, que se segue até a assina-
tura do Acordo de Nkomati na África do Sul, em 1984, com apoio externo,
período que “foi marcado pela falta de um discurso coerente, de uma causa,
e caracterizou-se pela matança, pela destruição e pelo enfraquecimento da
infraestrutura nacional”; e na de “guerra civil”, nos finais da década de
1980, coincidente com a queda do Muro de Berlim e a desagregação da
União Soviética, quando “a RENAMO apropriou-se de novos valores: a
democracia e a liberdade, momento em que Moçambique estava perante
––––––––––––––––––––––––––––––
4
<http://www.dw.de/de-guerra-de-desestabiliza%C3%A7%C3%A3o-a-guerra-civil-historiador-
mo%C3%A7ambicano-fala-sobre-o-conflito-entre-a-frelimo-e-a-renamo/av-16277213>.
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uma guerra civil, dirigida pelos moçambicanos com uma agenda política”,
sendo a “nova postura da RENAMO que impulsionou o governo da
FRELIMO a adotar a democracia como sistema político no país”.
A Guerra Civil terminou em 1992 e, depois de 27 anos de lutas, o que
se viu foi um país devastado e povoado por pessoas famintas que viviam de
auxílio da comunidade internacional.
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1994 – Realização das primeiras eleições gerais e multipartidárias em
Moçambique, sendo a FRELIMO o partido mais votado para o
parlamento.
– Processo de reintegração dos guerrilheiros da RENAMO.
1995 – O Banco Mundial e o FMI acordam um plano de reformas
econômicas e de diminuição da pobreza.
1996 – Adesão de Moçambique à Comunidade de Países de Língua
Oficial Portuguesa (CPLP).
1998 – Primeiras eleições autárquicas nas principais cidades de
Moçambique, mas sem a participação da RENAMO, que não
reconheceu os resultados.
1999 – Segundas eleições legislativas e presidenciais. A FRELIMO e
Joaquim Chissano são novamente declarados vencedores, mas
a RENAMO não reconhece os resultados, alegando fraude.
– RENAMO promove diversas manifestações pelo país, ocorren-
do confrontos com a polícia e morte de 40 manifestantes.
– Oposição exige a recontagem dos votos das eleições de 1999.
2000 – Moçambique é assolado por grandes cheias.
2003 – Brasil compromete-se a construir uma fábrica de produção de
medicamentos antirretrovirais para apoiar as vítimas de
HIV/AIDS.
2004 – Assembleia da República adota uma nova Constituição.
2005 – Armando Guebuza é empossado para segundo mandato como
Presidente de Moçambique.
2006 – Banco Mundial cancela a maior parte das dívidas de
Moçambique.
2008 – Repatriamento de moçambicanos que são vítimas de xenofobia
na África do Sul.
2012 – Março: a Força de Intervenção Rápida faz uma incursão a um
acampamento, onde estavam 300 apoiantes da RENAMO,
supostamente organizados para protestos contra o governo.
– 4 de outubro: Moçambique inteiro comemora os 20 anos de paz.
2014 – FRELIMO, RENAMO e MDM (Movimento Democrático de
Moçambique) foram os principais concorrentes às eleições
presidenciais, legislativas e provinciais de 15 de outubro em
Moçambique.
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– Vitória de Filipe Nyusi para presidente, candidato governista da
FRELIMO, a qual manteve também a maioria dos assentos
parlamentares.
2015 – Chuvas torrenciais em Moçambique destruíram casas, pontes,
propriedades agrícolas e alguns rios.
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A literatura de Moçambique tematiza também a exaltação patriótica
dos feitos da luta de libertação e o culto dos heróis libertadores, denunciando
a corrupção, a miséria, a guerra e a descaracterização social e cultural do
país. Nesse contexto, a publicação de Terra Sonâmbula (1992), de Mia
Couto, coincide com a abertura política do regime, período de pós-inde-
pendência.
A partir do quinto momento, a literatura moçambicana passou a dar
mais importância ao que antes poderia ser caracterizado como situação banal
do cotidiano, adotando-se, de certo modo, a vertente do Realismo
Maravilhoso, associado às crenças populares africanas. Assim, da união do
Fantástico com a realidade coletiva cotidiana, originaram-se obras
envolvendo histórias extraordinárias na recuperação da identidade
moçambicana quase esquecida.
A literatura de Moçambique, então, começou a explorar a multiplicida-
de de narradores e de histórias, que correm paralelamente ou se entrecruzam
por meio de flashbacks, resgatando-se o passado histórico, as profecias e as
lendas, sem preocupação com a cronologia linear, uma vez que o importante
é a recriação do real, permeada de devaneios e críticas sociopolíticas, as
quais remetem o leitor a reflexões sobre os problemas moçambicanos, como
ocorre na obra Terra Sonâmbula.
É importante considerar também que a Língua Portuguesa é, oficialmen-
te, o idioma moçambicano, entretanto não é língua materna da maioria da
população. Segundo o Censo de 2007, 38,7% da população é escolarizada,
vivendo a maioria (71,4%) nas zonas rurais em que predomina o emprego das
várias Línguas Bantu na comunicação cotidiana, sendo o português falado
prioritariamente por pessoas escolarizadas e pelas que habitam as cidades.
Mia Couto, em seu livro E se Obama fosse africano? e outras
intervenções, afirma:
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Partindo-se do princípio da pluralidade, encontra-se na literatura
coutiana uma imensidão de neologismos, que são derivados de mudanças
semânticas de elementos lexicais existentes na língua, quer por via da
substituição dos valores originais, quer por via da sua expansão, sendo
muitos deles empregados naturalmente pela população, como os que
decorrem de empréstimos vindos de inglês. Por exemplo, a palavra biznés
(TS5, p. 113) é oriunda do inglês bussines e incorporada recentemente ao
português de Moçambique em decorrência da globalização.
Em Terra Sonâmbula, há também o livre emprego da pluralização de
substantivos bantu, que segue as regras da Língua Portuguesa, como
xicuembos (TS, p. 44), matsangas (TS, p. 49), naparamas (TS, p. 49), xipo-
cos (TS, p. 83) e machongos (TS, p. 121), os quais significam em português,
respectivamente, deuses, bandidos, guerreiros, fantasmas e terras férteis de
solos argilosos.
Encontram-se, na obra de Mia Couto, imensas variedades decorrentes
das transformações de português para xichangana (conhecida por Língua
Tsonga, uma das onze línguas oficiais da África do Sul, falada também na
parte sul de Moçambique), e depois para o português, como é o caso de
“xicalamidade” (TS, p. 57), que, segundo Mia Couto, tem sentido de
corruptela de “calamidades, forma como popularmente se designam os
donativos para apoiar as vítimas das calamidades naturais”, e, no contexto
moçambicano, significa “roupa usada importada” (Dias, 2002, p. 74), ou a
palavra “satanhoca” (TS, p. 67), originária de satanás, que passou para a
língua xichangana como “satanhoco”, ou “sàthanyokò” de sàthana (diabo)
+ nhòka (cobra), forma usada tanto no xichangana como no português de
Moçambique para insultar o interlocutor (SITOE, 1996, p. 207).
5
Abreviaremos o título do livro Terra Sonâmbula por TS sempre que houver exemplo retirado
da obra.
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escrita entrelaçadas com o plano cultural moçambicano e com as
experiências herdadas pelo próprio autor. Segundo Fonseca e Cury,
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“Esta criança há-de ser chamada de Vinticinco de Junho.” (TS, p. 17)
“Sempre aquelas muçulmanias, servindo os prazeres do senhor.” (TS,
p. 148)
4) Supressão de preposições:
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1) Substituição da partícula negativa “não” por “nada” ou “nem”:
“— Quem não tem amigo é que viaja sem bagagem.” (TS, p. 33)
“Mas nós cumprimos destino de tapete: a História há de limpar os pés
nas nossas costas.” (TS, p. 57)
“E adianta lição: nenhum rio separa, antes costura os destinos dos
viventes.” (TS, p. 87)
“O homem é como a casa: deve ser visto por dentro!” (TS, p. 88)
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5) Emprego de provérbios moçambicanos e ditados populares reescritos:
“A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos
morder. [...] O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos.” (TS,
p. 17)
“Em terra de misérias um pequeno nada é olhado com muita inveja. E,
afinal, se entende: um coxo faz inveja a um paralítico.” (TS, p. 109)
“— Não ligue. Isto é atraso, ignorância bravia. Vale a pena insistir?
Vale a pena esclarecer esta gente? Eu sempre acho que sim. Do menos
o mal: afinal, grão a grão o papa se enche de galinhas.” (TS, p. 129)
“Você sabe: em terra de cego quem tem um olho fica sem ele.” (TS,
p. 129)
“O moçambicano ripostou, quisesse o estrangeiro ensinar o
Padre-Nosso ao vigarista.” (TS, p. 167)
TERRA SONÂMBULA
perfeitamente ser explicados pelas leis da razão”, mas que se destacam pelo
seu caráter extraordinário e singular; o fantástico-estranho, que se
caracteriza pelo insólito: são fatos aparentemente sobrenaturais que
percorrem toda a história narrada e que recebem, ao final, uma explicação
racional; o fantástico-maravilhoso, pertencente “à classe das narrativas
que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do
sobrenatural”; e o maravilhoso puro em que
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leitor adote uma certa atitude para com o texto; ele recusará tanto
a interpretação alegórica quanto a interpretação “poética”.
(TODOROV, 2004, p. 38-39)
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Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o
mundo das personagens como um mundo de criatura vivas e a
hesitar entre uma explicação natural e uma explicação
sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta
hesitação pode ser igualmente experimentada por uma
personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer,
confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação
encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra; no
caso de uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com a
personagem. (TODOROV, 2004, p. 39)
MIA COUTO
Kindzu resulta em novos sonhos, assim como os olhares de Muidinga e de
Tuahir se transformam ao longo das visões proporcionadas pelos escritos de
Kindzu.
A estrada, que muda sem se alterar, movimenta-se sem sair do lugar,
pois o sonho domina a realidade, caminho empregado por Mia Couto para
apresentar Moçambique e suas diversas faces:
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desaparece, assim como as perspectivas futuras de Moçambique. Mas, no
funeral de Taímo, um acontecimento extraordinário dá a Kindzu a
possibilidade de recuperar os sonhos: todo o palmeiral revestiu-se de uma
dimensão sagrada e Kindzu ouviu a voz do pai pedindo que as árvores
fossem poupadas da destruição.
Nesse palmeiral repleto de frutos, o Maravilhoso surge na imagem da
riqueza de uma nação destruída pelos gananciosos que levarão o país à
tragédia: “De novo, a multidão se derramou sobre as palmeiras. Mas quan-
do o primeiro fruto foi cortado, do golpe espirrou a imensa água e, em can-
taratas, o mar se encheu de novo, afundando tudo e todos.” (TS, p. 20-21)
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MIA COUTO
KINDZU – Desejoso de se tornar um naparama, envolve-se com Farida
e parte em busca do menino Gaspar, misturando sonhos e realidade. Indeciso
entre a cultura e a tradição e os novos valores ocidentais, assim como Farida,
Kindzu busca sua real identidade: “Sou chamado de Kindzu. É o nome que
se dá às palmeiritas mindinhas, essas que se curvam junto às praias. Quem
não lhes conhece, arrependidas de terem crescido, saudosas do rente chão?
Meu pai me escolheu para esse nome, homenagem à sua única preferência:
beber sura, o vinho das palmeiras.” (TS, p. 15)
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ANTONINHO – Auxiliar da loja de Surendra. Inicialmente, ele não
gosta de Kindzu, achando que ele traia suas tradições africanas: “O ajudante
da loja, Antoninho, me olhava com os maus fígados. Era um rapaz negro,
de pele escura, agordalhado. Muitas vezes me mentia, à porta, dizendo que
o patrão se tinha ausentado. Parecia invejar-se de meu recebimento entre
os indianos.” (TS, p. 24)
MIA COUTO
ESTÊVÃO JONAS – O “administraidor”, casado com Carolinda e
envolvido em negócios escusos, como, por exemplo, os propostos pelo seu
sócio, o fantasma Romão Pinto, antigo colonizador português. É o típico
ex-combatente da guerra da libertação, corrompido pelo poder e pelo
dinheiro, representante do desprezo pela população faminta: “É o
administrador da localidade, o próprio. É ele que vem vindo, escondido
pelos atalhos. Virgínia se interroga, em sussurro. O que vinha ele ali fazer,
a uma hora daquelas? Resposta que só tive mais tarde quando Quintino me
contou a verdade dos acontecimentos. O que se passava sem que eu nem
Virgínia soubéssemos eram atribulações que agora posso descrever.
Disfarçado na escuridão dos trilhos, o administrador Estêvão Jonas
desconhecia o fim da sua pressa. A mensagem lhe chegara por vias
atravessadas. Fora o tal Quintino que lhe trouxera o recado. Dizia que ele,
o camarada-em-chefe, se deveria conduzir para casa do falecido Romão
Pinto, residência igualmente falecida por nela só habitarem as vozes dos
malquistos.” (TS, p. 165)
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TERRA SONÂMBULA
como fazem com todos os nascidos da sua terra. Cumpria um castigo ditado
pelos milénios: era filha-gémea, tinha nascido de uma morte. Na crença da
sua gente, nascimento de gémeos é sinal de grande desgraça. No dia seguinte
a ela ter nascido, foi declarado chimussi: a todos estava interdito lavrar o
chão. Caso uma enxada, nesse tempo, ferisse a terra, as chuvas deixariam
de cair para sempre.” (TS, p. 70)
MIA COUTO
NGANGA – Feiticeiro responsável pela transformação de pessoas em
animais, logo depois de seu discurso triunfal: “Voltando a levantar o cajado
sobre a cabeça ele ainda voltou a falar. Mas se pronunciou em palavras de
nenhuma língua. As gentes seguiam o restante discurso à cata de alguma
compreensão. Então, o nganga se calou, ergueu uma cabaça e verteu um
líquido sobre os ombros. Depois, desceu o morro e fez pingar a cabaça
sobre cada um dos presentes. Então se deu o mais extraordinário dos
fenómenos e todos os presentes tombaram no chão, agitando-se em
espasmos e berros, e se seguiu uma orgia de convulsões, babas e espumas
e, um por um, todos foram perdendo as humanas dimensões. Penugens e
escamas, garras e bicos, caudas e cristas se espalharam pelos corpos e todo
aquele plenário de gente se transfigurou em bicharada. A fala foi a última
coisa a ser convertida e, durante um tempo, se escutaram espantos e gritos
humanos proferidos pelas mais irracionais bestas. Aos poucos, porém,
também o verbo se perdeu e a bicharada, em desordem, se espalhou pelos
matos.” (TS, p. 202)
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TERRA SONÂMBULA
PASTOR AFONSO – Antigo professor de Kindzu: “O professor tinha
sido assassinado. Acontecera na noite anterior. Cortaram-lhe as mãos e
deixaram-lhe amarrado na grande árvore onde ele teimava continuar suas
lições. As mãos dele, penduradas de um triste ramo, ficaram como
derradeira lição, a aprendizagem da exclusiva lei da morte.” (TS, p. 29)
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MIA COUTO
SHETANI – Homem que impõe o respeito por meio do medo e da
força: “Nesse momento, entrou no bar um homem estranho, pendurando
uma pistola no vasto cinto. Ao sentir a presença do cujo, os presentes se
entrelinharam, caladinhos, metidos com seus líquidos assuntos.”
(TS, p. 128)
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TERRA SONÂMBULA
VINTICINCO DE JUNHO/JUNHITO – Irmão de Kindzu, torna-se,
aos poucos, um galo, pois fora colocado no galinheiro para não ser
capturado e transformado em soldado. Metaforiza o nascimento esperançoso
da nação moçambicana, mas rapidamente convertido em vítima inocente da
guerra e de suas violências: “Vinticinco de Junho era nome demasiado.
Afinal, o menino ficou sendo só Junho. Ou de maneira mais mindinha:
Junhito. Minha mãe não mais teve filhos. Junhito foi o último habitante
daquele ventre.” (TS, p. 17)
8. RESUMO DA OBRA
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MIA COUTO
A meta de Muidinga é descobrir suas origens e sua identidade, enquanto
Kindzu deseja encontrar os guerreiros naparamas e Gaspar. Simbolicamente,
a descoberta de Muidinga representa o renascimento de Moçambique e o
reencontro de suas raízes, assim como o convívio de Tuahir e Muidinga
simboliza a união de duas gerações.
Para Kindzu a representatividade de suas buscas remete ao desejo de
concretização de um sonho de justiça e também a necessidade de se
resgatarem valores esquecidos no passado original de Moçambique. Duas
viagens iniciáticas, que se ligam no final do romance e provam que é
necessária a credibilidade no futuro, sem se obscurecer o aprendizado que
o passado proporcionou a Moçambique.
Já em sua poesia “Raiz de Orvalho”, Mia Couto atribui ao eu lírico um
perfil de alguém que sonha, buscando a morte sem morrer, para encontrar
o próprio destino, assim como ocorre com Muidinga e Kindzu, duas
personagens que viajam ao redor de seus sonhos:
Raiz de orvalho
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TERRA SONÂMBULA
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada
De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens
Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância
Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno
(COUTO, 1999, p. 39-41)
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MIA COUTO
8.1. Primeiro capítulo – A estrada morta
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TERRA SONÂMBULA
Mas a guerra civil chegou em pouco tempo e a pobreza veio com ela.
Kindzu e a família passavam necessidades, não havia o que plantar, nem
comer, mas o velho dizia: “É bom assim! Quem não tem nada não chama
inveja de ninguém. Melhor sentinela é não ter portas.” (TS, p. 17)
Um dia, depois de ter seus sonhos terríveis, Taímo anunciou que alguém
iria morrer naquela casa, pois, na família, ninguém havia servido na guerra,
e apontou para Junhito, o irmão menor da família. Para escapar à morte, o
menino deveria mudar a aparência e a alma, transformando-se numa galinha
para que os bandos não o levassem. E, assim, Junhito foi para o galinheiro,
coberto num saco de penas, costurado pela mãe, e começou a cacarejar.
Depois de algum tempo, o menino desapareceu do galinheiro, a mãe e os
irmãos se desesperaram e o pai caiu em bebedeira constante até morrer.
O sepultamento de Taímo foi feito no mar e, no dia seguinte, onde havia
água surgiu uma planície coberta de palmeiras, repletas de frutos gordos e
apetitosos, que pareciam cabaças de ouro. Vários homens se aproximaram
das árvores para cortarem os frutos, mas ouviram uma voz vinda das
palmeiras alertando-os para não o fazerem, pois eram frutos sagrados:
“De novo, a multidão se derramou sobre as palmeiras. Mas quando o
primeiro fruto foi cortado, do golpe espirrou a imensa água e, em cantaratas,
o mar se encheu de novo, afundando tudo e todos.” (TS, p. 20-21)
A mãe de Kindzu murchava de tristeza e um feiticeiro receitou que se
construísse uma casa afastada e nela se colocasse o barco de Taímo, pois o
pai poderia voltar do mar. Kindzu levava todas as noites comida até a
casinha e, no dia seguinte, a panela aparecia vazia. Uma noite, Kindzu viu
um vulto saindo da casa, amarrado em panos vermelhos e pulseiras e, para
a mãe, era Taímo que voltara.
A guerra crescia e a morte também. As casas tinham paredes
esburacadas pelas balas e apenas um comerciante ficara na vila: Surendra
Valá6, um indiano, casado com Assma, vítima de racismo e auxiliado por um
ajudante, que não gostava de Kindzu, chamado Antoninho. A convivência
com o indiano não era bem vista pela população e a família de Kindzu tinha
––––––––––––––––––––––––––––––
6
Em Terra Sonâmbula, o indiano Surendra Valá representa o estrangeiro em terras
moçambicanas, vítima da discriminação da sociedade local. Havia receio de que a invasão
estrangeira descaracterizasse a cultura moçambicana, representação que pode ser observada na
amizade proibida entre Kindzu e Surendra.
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MIA COUTO
medo de que ele se afastasse das tradições africanas por causa do convívio
com o estrangeiro. Para Surendra, ele e Kindzu partilhavam a mesma pátria,
o mar Índico, e, por isso, eram de igual raça.
Um dia, entrou na loja de Surendra Valá um homem que começou a
roubar as mercadorias. Kindzu avisou o indiano, que pediu ao assaltante
que recolocasse os produtos no lugar, iniciando-se uma briga, na qual
Surendra levou uma cusparada no rosto e manteve-se impassível. O suposto
freguês pegou uma caixa de fósforos, ameaçando incendiar tudo, quando
surgiu um naparama que pôs fim à questão.
Esse é o primeiro contato de Kindzu com um naparama, um guerreiro
abençoado pelos feiticeiros, e o encantamento fará com que ele queira
tornar-se um guerreiro para combater os “fazedores de guerra”.
Numa outra noite, bandidos atacaram a loja de Surendra e destruíram-lhe
tudo. O indiano decide partir, causando imensa tristeza em Kindzu. Confuso,
Kindzu procura seu professor, o velho pastor Afonso, mas encontra mais
desgraça: o professor havia sido assassinado na noite anterior, suas mãos
foram cortadas e dependuradas na grande árvore (onde ele insistia em
lecionar), ao lado do corpo amarrado.
Kindzu procura, então, um adivinho curandeiro, o nganga, que indica
uma viagem ao rapaz:
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TERRA SONÂMBULA
— Vais encontrar alguém que te vai convidar para morar no
mar. Cuidado, meu filho, só mora no mar quem é mar.
(TS, p. 31-32)
MIA COUTO
— Acenda lá fora.
— Mas eu queria ler, tio.
— Leia lá fora.
Muidinga arruma uns paus secos e transporta consigo os escritos
de Kindzu. Acende o fogo na berma da estrada. Depois, se
instala para ler em comodidade o segundo caderno. A voz de
Tuahir o sobressalta:
— Não vai ler isso sozinho, pois não? (TS, p. 39)
Kindzu diz ao pai que ajudará a acabar com a guerra e ouve um alerta:
— Sou um morto desconsolado. Ninguém me presta cerimónias.
Ninguém me mata a galinha, me oferece uma farinhinha, nem
panos, nem bebidas. Como posso te ajudar, te livrar das tuas
sujidades? Deixaste a casa, abandonaste a árvore sagrada.
Partiste sem me rezares. Agora, sofres as consequências. Sou eu
que ando a ratazanar teu juízo. (TS, p. 44)
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TERRA SONÂMBULA
Taímo explica ao filho que, enquanto a sombra do pai lhe perseguisse, ele
nada conseguiria. Kindzu pergunta pela mãe e o pai lhe diz que ela se casou
com outro e agora ele era um “viúvo-solteiro” (TS, p. 45), mas um nhamussoro7
já lhe providenciara uma mulher viva que haveria de morrer em breve. O filho
lhe oferece ajuda, mas Taímo revela não haver mulher alguma e que continuava
sozinho. O sonho encerra-se com uma advertência do pai: “— Você me
inventou em seu sonho de mentira. Merece um castigo: nunca mais você será
capaz de sonhar a não ser que eu lhe acenda o sonho.” (TS, p. 47)
Muidinga puxa a corda para trazer o cabrito de volta, mas nota que ela
está solta. O animal tinha sido comido por “noturnos saltinhadores” (TS, p.
49), que não voltariam mais e não atacariam os dois porque o ônibus estava
queimado. Muidinga e Tuhair colocam um banco do machimbombo no meio
da estrada e sentam-se para tomarem sol.
A fome aperta e o velho diz para Muidinga salivar para confundir o
estômago. Após contar-lhe que seus pais estavam mortos, portanto o menino
deveria parar de perguntar sobre eles, os dois partem em busca de água e
alimento e encontram mandioca roída por ratos. Muidinga se prepara para
comer, mas é repreendido por Tuahir, o qual lhe diz que, por causa de uma
mandioca não comestível como aquela, o menino fora dado como morto e
colocado junto de crianças recém-falecidas e despidas para serem enterradas8.
O velho, instalado, então, num campo de refugiados da guerra, percebeu
que uma das crianças, a mais raquítica e clara de todas, segurava o chão com
as unhas, prendia-se à terra. Tuahir alertou aos demais que aquele menino
estava vivo, era seu sobrinho e cuidaria dele. O garoto foi alimentado com
água por muitos dias, recuperou-se lentamente e foi batizado de Muidinga,
nome do filho mais velho de Tuahir, morto nas minas do Rand9.
––––––––––––––––––––––––––––––
7
Em Moçambique é o nome que se dá ao feiticeiro e adivinho que interpreta as alterações de
comportamento das pessoas, ligando o mundo dos vivos e o dos mortos.
8
A doença chama-se mantakassa, segundo Tuahir.
9
“Rand” ou recife, também conhecido como Witwatersrand, é a fonte de 40% do ouro
explorado no mundo. Sua área de exploração é de 280 km e as minas chegam a atingir 3,6 km
de profundidade. Rand é o nome da moeda sul-africana em homenagem ao local.
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MIA COUTO
8.6. Terceiro caderno de Kindzu – Matimati, a terra da água
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10
“Essas personagens não eram descritas apenas como anões. Chamavam-lhes os Valungwana.
Dizia-se que caíam do Céu na época das grandes chuvas. (...) Vivem no espaço e quando troveja,
sem chuva, os Nkunas dizem: Valungwana vatlanga henhla – Os valungwana divertem-se lá
em cima! (...)” (JUNOD, Henri, 1996, p. 380)
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TERRA SONÂMBULA
Farida aconselha Kindzu a ir embora, mas começa a tremer, ele a segura
nos braços, e ela se volta contra ele. Quando Kindzu finalmente a contém,
ela pede que ele a escute.
Então ele mete o dedo no ouvido, vai enfiando mais e mais fundo
até que sentem o surdo som de qualquer coisa se estourando. O
velho tira o dedo e um jorro de sangue repuxa da orelha. Ele se vai
definhando, até se tornar do tamanho de uma semente. (TS, p. 69)
MIA COUTO
desgraça. Dias após o nascimento, a irmã morrera, pois não a alimentaram
por bondade e, desse modo, aliviaram a maldição. A mãe de Farida, que
nunca mais tivera filhos, foi expulsa da aldeia, e a menina ficou sem saber
que a irmã na verdade não morrera.
A única pessoa que as visitava, sempre trazendo comida, era Tia
Euzinha, viúva de um homem que partira para a guerra. Um dia, Euzinha
contou a Farida que sua irmã estava viva e perguntou pelo colar que fora
dado à menina. Farida mostrou-o e Euzinha disse-lhe que aquela madeirinha
pela metade dependurada era a irmã que sumira e que ela estaria com a outra
metade. Na verdade, a irmã gêmea de Farida não morrera porque a mãe se
recusara a matar a filha e a entregara a um viajante, o qual se lamentava por
não ter um filho de sua própria carne.
A cidade de Farida sofria com as desgraças, e a fome se instalou nas
casas. Diziam que era por culpa da mãe de Farida, por não se ter purificado.
Como não havia chuva e, para as cerimônias mágicas, necessitavam de uma
mãe de gêmeos, buscaram a mãe de Farida e mandaram-na mostrar o túmulo
da filha, para as mulheres do lugar jogarem água no pote fúnebre. Após o
feito, dançaram e colocaram a mãe de Farida dentro de um buraco e
encheram-no de água fria.
Farida se aproximou para tirar a mãe toda ensopada no fundo da terra,
mas ela se recusou, dizendo que deveria ficar ali para pagar sua dívida com
o mundo. À espera da mãe, Farida adormeceu, mas, quando acordou, a mãe
havia sumido e a menina estava órfã e esquecida.
Tempos depois, precisavam de uma gêmea para os rituais da chuva e
foram buscar Farida, que, após participar das cerimônias, partiu, andando
muito até desmaiar de exaustão. Quando recuperou os sentidos estava na
casa de Dona Virgínia e Romão Pinto, um casal de portugueses que, durante
anos, cuidaram dela, até Romão lançar-lhe olhares gulosos.
O português era áspero com a esposa, proibindo-a de ler, ouvir rádio e
cantar. Ela desejava regressar a Portugal e sonhava tanto com isso que tinha
um vestido verde dependurado à espera da viagem. Virgínia vivia num
mundo de fantasias, rabiscando fotografias, recortando-as e criando novas,
imaginando visitas de parentes, as quais nunca existiram, mas passou a se
entreter mais quando pediu a Farida que lhe escrevesse cartas de autorias
falsas. Virgínia as lia entre soluços.
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TERRA SONÂMBULA
Um dia, Virgínia disse a Farida que iria levá-la embora, pois não podia
mais ficar naquela casa. À noite, a portuguesa foi com a menina para a
Missão e entregou-a ao padre. Farida lá ficou por um tempo, mas, infeliz,
decidiu partir de volta para os lugares de sua infância. No caminho, passou
na casa de Virgínia e quem a atendeu foi Romão Pinto, dizendo que Virgínia
tinha ido à vila e que Farida esperasse pelo retorno dela. Nesse ínterim,
Farida foi ao seu antigo quarto e deitou-se. Romão Pinto entrou no aposento
e se “homenzarrou, abusando dela toda inteira” (TS, p. 78). Ao amanhecer,
Farida fugiu, chorando pelo caminho todo.
Tia Euzinha, ao rever Farida, disse-lhe que não deveria ter voltado para
aquela terra. Durante o tempo em que por lá ficou, Farida teve um filho de
pele mais clara. Tia Euzinha aconselhou-a a dizer para todos que ele era
albino, mentira que condenaria o menino a ser discriminado e Farida a ser
mais amaldiçoada, mas que seria o melhor para a criança.
Farida entregou o menino à Missão e partiu, voltando tempos depois
para recuperá-lo. Uma freira, chamada Lúcia, preparou o encontro entre
mãe e filho, mas o menino, Gaspar, fugiu, receando ver a mãe. Farida, que
“chorava lágrimas de leite” (TS, p. 82), partiu desejando ir para uma terra
que ficasse distante de tudo e de todos. Ao saber do navio naufragado,
juntou-se aos pescadores, que iam saquear a embarcação, e ali ficou, pois
não havia lugar para ela nos barcos que voltariam à terra, por estarem
abarrotados de mercadorias.
Kindzu sente necessidade de unir-se a Farida, mas ela lhe diz que é da
família dos xipocos:
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MIA COUTO
8.9. Quinto capítulo – O fazedor de rios
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TERRA SONÂMBULA
Um barco pequeno se aproxima do navio encalhado, o que faz Farida
se agarrar a Kindzu pedindo que a defenda, pois estavam indo buscá-la para
matarem-na. Ele propõe-lhe que volte com ele para a terra, mas ela recusa,
indo banhar-se, fazendo Kindzu sentir-se atraído por ela, que lhe faz um
aceno convidando-o para se aproximar. Após a união física dos dois, Farida
diz a Kindzu que ele deve partir, enquanto ela ficará porque, um dia, irão
buscar aquele navio e ela partirá também.
Kindzu promete a Farida que voltará com Gaspar e, na manhã seguinte,
ele parte:
Pensava sobre as semelhanças entre mim e Farida. Entendia o
que me unia àquela mulher: nós dois estávamos divididos entre
dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da
nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas
indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já
não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão,
culpa do pastor Afonso, de Virgínia, de Surendra. E sobretudo,
culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair para um
novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida
queria sair de África, eu queria encontrar um outro continente
dentro de África. (TS, p. 92)
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MIA COUTO
Os dois voltam para o machimbombo e o velho prepara um chá para
Muidinga recuperar as forças. Enquanto o menino bebe, Tuahir pede-lhe
que continue a ler os cadernos de Kindzu:
Kindzu despede-se de Farida e ela pede que ele não fale nela em
Matimati, pois todos a odiavam por lá. Ao chegar às areias, Kindzu nota
corpos estendidos ao solo e, subindo pela estradinha, vê um homem
deslizando pela ladeira numa cadeira de rodas até cair: era Antoninho, o
ajudante de Surendra.
Kindzu pergunta a Antoninho por Surendra e fica sabendo que ele era
sócio de Assane numa nova loja. Ao encontrar Assane (que alugava a cadeira
de rodas para ganhar algum dinheiro extra), Kindzu é informado de que
Surendra não estava mentalmente bem, mas, mesmo assim, Antoninho o
levaria até o indiano.
Na praia há uma agitação em torno de uma mulher, deitada na areia,
nua, de pele muito clara, posta em exibição, para que um homem con-
seguisse dinheiro com o espetáculo cruel. Esse mesmo homem, que tomava
conta dela, pede a Kindzu que tente fazê-la comer algo, porque, se ela
morresse, acabaria-lhe o lucro, mas Kindzu, ao se aproximar dela, nota-lhe
algo semelhante e foge do lugar.
Antoninho leva Kindzu até a casa de Assane, o qual relata que a briga
com o administrador tinha como causa a ordem de assassinar uma mulher:
Farida.
Assane era sócio de Surendra na loja, mas as coisas não andavam bem
para os indianos, que eram malvistos na região. O motivo da sociedade era
que Surendra tinha o dinheiro para o negócio: “O gajo é que domina os
tacos. É só isso. Depois de um tempo, eu nacionalizo tudo. Para o ano que
vem, eu privo tudo. Chuto o baniane no rabo.” (TS, p. 112)
Enquanto conversam, ouvem-se tiros e rajadas de metralhadoras do
lado de fora. Assane pede a Kindzu que o leve até o quintal traseiro, onde
lhe mostra uma geladeira, vinda de um navio naufragado, e que se tornaria
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TERRA SONÂMBULA
uma cama para as crianças que por lá andavam. Mostra-lhe também,
escondido entre arbustos, um tanque de guerra transformado em galinheiro,
o “biznés” de Assane, caso a loja não desse certo.
Kindzu pergunta sobre a “tal” Farida e Assane a caracteriza como
“muito puta. Mas é uma puta muito, muito...” (TS, p. 115). Surendra surge
e parece estar em outro mundo, desgostoso que estava porque perdera a
mulher quando ele improvisara uma jangada, na qual a colocou, dizendo-lhe
que retornasse a sua terra. Kindzu reconhece, então, a mulher que vira na
praia: era a esposa de Surendra. Todos vão buscá-la e Assane manda que a
coloquem na cadeira de rodas e levem-na ao posto de saúde.
À noite, Kindzu desperta assustado, acreditando ter ouvido a voz de
sua mãe cantando. Logo depois, ele percebe que o som vem do galinheiro,
ao qual se dirige, vendo lá Junhito transformado num galo. Kindzu volta
para casa, acreditando ter sido tudo uma ilusão:
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MIA COUTO
Era a esposa do administrador que observava o monumento, o qual
metaforizava o sistema político Moçambicano, que buscou destruir o
colonialismo e implantou um governo desvinculado das necessidades do
país. Carolinda olha para o monumento todos os dias em sinal de respeito,
refletindo em seus olhos a tristeza e o desencanto da população
moçambicana.
A loja de Assane e Surendra iria ser inaugurada finalmente. O
administrador chega com sua esposa, Carolinda, e Surendra, que parecia
um subordinado, ao lado de Assma, completamente absorta. Um grupo de
homens fardados se aproxima e um deles dispara contra a multidão reunida
para a ocasião. Kindzu se esconde e o administrador e a esposa se retiram
do local, pouco antes de começar o incêndio da loja. Antoninho consegue
tirar Surendra do meio das chamas, mas deixa Assma para trás. Assane,
arrastando-se na cadeira de rodas, abraça sinceramente o sócio indiano.
Já em casa, Kindzu vê pela janela o corpo de um homem deitado e
decide ir ajudá-lo, mas é travado pelo sobrinho de Assane, pois o homem já
não tinha mais vida. A morte é apresentada como um banal acontecimento
e o desrespeito ao morto é a imagem de um país que se destrói pelas mãos
do homem: “o cadáver descuidado no passeio não descondizia com tudo
resto. Simbolizava aquilo que a vila se tinha tornado: uma imensa casa
mortuária.” (TS, p. 121)
––––––––––––––––––––––––––––––
11
Pano usado pelas mulheres como uma saia, podendo também cobrir o tronco e a cabeça.
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Os dois adormecem e, ao acordarem, a chuva já tinha parado. Sem
motivo, ambos começam a cantar e dançar, mas param, pois receiam que o
barulho chame a atenção. Muidinga pergunta ao velho porque não conseguia
recordar o passado e Tuahir conta que ele fora levado a um feiticeiro para
lhe tirar as lembranças do passado:
— Sabe, miúdo, o que vamos fazer? Você me vai ler mais desses
escritos.
— Mas ler agora, com esse escuro?
— Acendes o fogo lá fora.
— Mas, com a chuva, a lenha toda se molhou.
— Então vamos acender o fogo dentro do machimbombo.
Juntamos coisa de arder lá mesmo.
— Podemos, tio? Não há problema?
— Problema é deixar este escuro entrar na cabeça da gente.
Não podemos dançar nem rir. Então vamos para dentro desses
cadernos. Lá podemos cantar, divertir. (TS, p. 126)
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MIA COUTO
Abacar, então, desfere um soco no rosto de Quintino, alegando que não
gostava de bater nas pessoas, mas era necessário calá-lo. Surge Juliana
Bastiana, a prostituta cega, com seu cão imenso, pedindo bebida e mandan-
do o animal ir para fora do bar, ordem obedecida prontamente. Ela conta a
Kindzu que seu brigadeiro, Silvério Damião, militar dedicado, havia ido pa-
ra a guerra e ela aguardava seu retorno. Shetani chama Juliana e pede-lhe a
mão, na qual ele deposita as orelhas ensanguentadas do cachorro da
prostituta. Kindzu afasta a cadeira e avança sobre Shetani, mas é impedido
pela mulher, a qual afirma ter pedido a ele que sacrificasse o animal, pois
estava doente.
Kindzu foi o último a sair do bar ao lado de Quintino. Estavam juntos
quando, repentinamente, um vulto sai do escuro, e Kindzu se atira sobre o
desconhecido, derrubando-o ao chão: era Carolinda. Os dois se tocam, os
corpos se unem e afastam-se para o curral, onde se deitam sobre a palha.
TERRA SONÂMBULA
8.16. Oitavo caderno de Kindzu – Lembranças de Quintino
12
A crença popular africana diz que se relacionar sexualmente com uma mulher menstruada
era impuro e a maldição seria concretizada com a morte do homem que o fizesse.
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MIA COUTO
Kindzu e Quintino são surpreendidos por Carolinda, que os solta.
Kindzu entrega a ela o colar, mas ela lhe pede que fique com a prenda como
recordação. Carolinda explica-lhe que mentiu sobre o dinheiro rasgado para
o marido porque não queria que Kindzu fosse embora, mas, arrependida,
pede a ele que fuja e não volte mais:
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TERRA SONÂMBULA
Porém, ao invés de ajudar, o velho lhe pede apoio. Estava com
frio, solicitou agasalho. O miúdo lhe cobre cuidando de seu pai?
Como é que a sua mão, do tamanho de um beijo, protegia um
homem tão volumoso? E lhe cresce uma grande raiva para com
seu pai. Afinal, nunca ele lhe cobrira dos frios, nunca ele o
empurrara para fora da tristeza. Ou seria que apenas depois da
infância ele poderia ser criança? (TS, p. 155)
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MIA COUTO
contar sua história, fazendo o acordo de que o colocariam amarrado no poço
para ninguém mais ouvir-lhe sua narrativa.
O menino foi colocado no poço e lá se recuperou, sempre calado e
dobrado. Vieram as chuvas, os meninos foram ver o poço e, como a água era
pouca, retiraram-se, mas voltaram surpreendidos com o grito do menino. Ti-
raram o garoto de lá e pediram-lhe que contasse uma história, ameaçando-o
de que, se não gostassem, algo lhe aconteceria.
Gaspar contou sua vida, mas os meninos não gostaram da história e
decidiam qual seria sua punição, quando Virgínia pediu que a deixassem
com o menino. Gaspar perguntou se podia ir embora também, mas a velha
negou, dizendo-lhe que ele era filho dela, quase de seu sangue, porque o
pai dele era seu falecido marido. Depois de alguns dias, o menino fugiu,
talvez por não desejar enfrentar sua origem miscigenada, já que era filho da
mistura de sangue branco com negro.
Virgínia percebe uma aproximação e acredita ser um espírito, mas era
o administrador Estêvão Jonas, o qual vinha conversar com Romão Pinto,
que surgiu na porta carregando seu caixão às costas. Conversaram até a
madrugada e ajustaram o acordo: Romão não podia reaver seus negócios
porque estava morto, mas Estêvão poderia ficar à frente dos
empreendimentos. No entanto, era necessário dinheiro e Romão deixara
muito à esposa, que precisava se manter viva, mesmo não estando bem das
ideias, para o negócio prosperar.
Além disso, a política de Estêvão Jonas deveria ser contra os brancos,
para que ninguém desconfiasse da sociedade com o português. Sem o
administrador esperar, surge Carolinda, perguntando-lhe o que andava
fazendo por ali e onde estava a mulher com quem ele viera se encontrar.
Rindo, aliviado, ele conta a ela que estava negociando com Romão Pinto, o
que despertou indignação na esposa por estar fazendo acordos com um
antigo colono, por isso o chamava de “administraidor”. Carolinda ameaça
o marido com a denúncia do que ele fazia, proíbe-o de voltar àquela casa e
manda-o ir embora.
Virgínia acena a Kindzu que não há mais perigo. Diz que precisa voltar
para sua casa a fim de alimentar os sapos e alerta-o, no entanto, para não se
esquecer de que ela é uma velha tonta e, por isso, não poderia assinar a
papelada para os negócios de Romão Pinto: “A dita loucura dela era seu
refúgio mais seguro.” (TS, p. 170)
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TERRA SONÂMBULA
Carolinda se aproxima, atraída pelas vozes, abraça Kindzu e convida-o
para entrarem na casa. Ele recusa por sentir medo do fantasma, então se
sentam nos degraus da escada e, ao se beijarem, Kindzu chama Carolinda
de Farida. Ela pergunta a ele se conhece Farida e ele nega que a tenha
chamado por tal nome.
A esposa do administrador conta a Kindzu que Estêvão Jonas era
ciumento e questionava se ela pensava ainda no primeiro marido, que tinha
sido morto na guerra, quando ela era ainda muito jovem. Na verdade,
Carolinda não amava Estêvão, que era “simples ausência” (TS, p. 171), um
homem que se converteu de mandante a “pau mandado” (TS, p. 171).
Certa vez, quando Estêvão soube do caso de Farida, pôs nele atenção
especial, o que gerou, pela primeira vez, o ciúme de Carolinda, e, por isso,
achou que Kindzu a tivesse chamado pelo nome da mulher, a qual vive no
navio encalhado: “Carolinda, de novo, amoleceu em meus braços. Ali nos
incómodos degraus do fantasmado casarão, ela estendeu seu corpo com a
paixão do fogo e a ternura da terra.” (TS, p. 173)
––––––––––––––––––––––––––––––
13
Tipo de flauta, feita de casca de massala, com vários orifícios.
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o bicho parecia estar em parto de si mesmo. De sua garganta se
afilaram os gemidos que se foram vertendo, creia-se, num
cantarinhar de ave. Às duas por uma, ele começou a minguar,
pequenando-se de taurino para bezerro, de bezerro para gato
chifrudo. Em violentos arrepios se sacudiu e os pelos, aos tufos,
lhe foram caindo. No igual tempo lhe surgiam plumas brancas.
Em instantes, o mamífero fazia nascer de si uma ave,
profundamente garça.
O recente pássaro, então, percorreu o redor, procurando não se
sabe qual quê com seu olhar em seta. Até que, de súbito, se
vislumbrou uma outra garça, essa mesma que lhe fazia, enquanto
boi, demorar o coração. E o transfigurado mamífero acorreu em
volejos, se chegando à autêntica ave. Dançou em repentinos
saltos, as pernas de nervosa altura, como se estivessem ainda a
soletrar os primeiros passos. A terra parecia demasiado pesada
para aquele habitante dos céus. Ali ficaram os recíprocos dois,
em namoros despregados, soltando brancas fulgurações.
(TS, p. 177)
14
Terreno negro e impróprio para agricultura.
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si, para ganhar quentura. O velho levanta a sua manta, abrindo
espaço para que Muidinga se ajuste. O rapaz se deita, constreito.
Dois medos em si se juntam: o de tocar em Tuahir e o de se estar
deitando com a morte. Maneirosa, a mão do outro lhe desvanece
uma ruga que teima em seu rosto. Longe se escuta o assobio da
xigovia. (TS, p. 178-179)
15
Ave, segundo o livro, responsável por matar as viagens.
16
Segundo o glossário da obra, é corruptela de “calamidades, forma como popularmente se
designam os donativos para apoiar as vítimas das calamidades naturais”.
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MIA COUTO
colar, afirmando que não se deveria mexer no destino das irmãs e que
Carolinda não poderia saber que ela era sua tia, para a desgraça não se abater
sobre as gêmeas. Euzinha diz a Kindzu para se ocupar de encontrar Gaspar,
o qual fora levado para um outro campo, ignorado por ela, e que havia um
demônio atormentando Carolinda. Parecia que a esposa do “administraidor”
desejava a morte de Farida, sem nenhum motivo concreto, e “incitava o
marido a tomar medidas contra o barco.” (TS, p. 183)
Kindzu e Quintino se instalam no meio das palhoças e ficam sabendo que
as mães roubavam a comida dos filhos e os deixavam passar frio no campo,
para eles aprenderem a sobreviver. Kindzu percebe que as pessoas dormiam em
buracos e as casas velhas eram apenas um disfarce para enganar os salteadores.
Quintino, em meio a um passeio pelos arredores, vê uma adolescente,
aproxima-se dela e acena para o amigo se afastar. Kindzu deita-se num
buraco solitário, quando surge Carolinda dizendo estar esperando o avião,
que traria medicamentos ao campo, para partir para a cidade sem o marido
saber. Kindzu pergunta por Surendra e fica sabendo que ele estava na capital
tratando dos negócios, enquanto Assane reconstruía sozinho a loja, e Estêvão
Jonas ainda visitava, à noite, a casa de Romão Pinto para acertarem as
negociações. Ela também alerta que Quintino não escolhera bem a mulher
com quem estava: era Jotinha, adolescente capaz de ver coisas, as quais não
tinham acontecido, mas fazia com que todos nela acreditassem.
Voltam do passeio Quintino e Jotinha, que sugere aos dois rapazes que
durmam na palhoça, onde eram guardadas as xicalamidades, porém, como
o espaço era apertado, iriam dormir encostados uns nos outros. Kindzu sente
um braço tocando-lhe o peito, acredita ser Carolinda e, não resistindo,
entrega-se aos carinhos misteriosos.
Pela manhã, só Kindzu e Carolinda estavam no casebre, repleto de
insetos, os quais se alimentavam da comida ali guardada. Carolinda revela
que o marido deixava os alimentos apodrecerem, pois só poderiam ser
distribuídos na presença dele.
Kindzu e Quintino vão auxiliar Tia Euzinha a buscar lenha, mas ela
recusa ajuda, pois, se percebessem que ela era inútil, seria abandonada para
morrer. Carolinda procura Kindzu e revela-lhe seu plano:
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TERRA SONÂMBULA
se juntariam todos junto do djambalaueiro e entoariam canções
das boas-vindas. O que faríamos nós era aproveitar o momento
para distribuir aquela comida que dormia no armazém. Quintino
até saltou, contente da ideia. Mas Euzinha nos olhou sem
transtorno, talvez meditasse em nosso sentimento. Depois, disse:
— Muitos daqui sabiam que havia comida. Eu sabia. Mas nada
não fizemos. Parece já temos vontade de morrer. (TS, p. 189-190)
MIA COUTO
forças para regressar a Matimati. Carecia de encontrar Farida
mesmo que a ela regressasse sem trazer seu prometido filho. (TS,
p. 192-193)
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TERRA SONÂMBULA
8.22. Último caderno de Kindzu – As páginas da Terra
— Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão
serão ainda piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para
envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse mons-
tros no lugar da esperança. Não mais procureis vossos familiares
que saíram para outras terras em busca da paz. Mesmo que os
reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis
em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi
feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós.
Agora, a arma é a vossa única alma. Roubaram-vos tanto que
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MIA COUTO
nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos
pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos.
Será mil vezes pior que o passado pois não vereis o rosto dos
novos donos e esses patrões se servirão de vossos irmãos para
vos dar castigo. Ao invés de combaterem os inimigos, os
melhores guerreiros afiarão as lanças nos ventres das suas
próprias mulheres. E aqueles que vos deveriam comandar
estarão entretidos a regatear migalhas no banquete da vossa
própria destruição. E até os miseráveis serão donos do vosso
medo pois vivereis no reino da brutalidade. Terão que esperar
que os assassinos sejam mortos por suas próprias mãos pois em
todos haverá medo da justiça. A terra se revolverá e os
enterrados assomarão à superfície para virem buscar as orelhas
que lhes foram decepadas. Outros procurarão seus narizes no
vómito das hienas e escavarão nas lixeiras para resgatarem seus
antigos órgãos. E há-de vir um vento que arrastará os astros
pelos céus e a noite se tornará pequena para tantas luzes
explodindo sobre as vossas cabeças. As areias se voltearão em
remoinhos furiosos pelos ares e os pássaros tombarão
extenuados e ocorrerão desastres que não têm nome, as
machambas serão convertidas em cemitérios e das plantas, secas
e mirradas, brotarão apenas pedras de sal. As mulheres
mastigarão areia e serão tantas e tão esfaimadas que um buraco
imenso tornará a terra oca e desventrada. No final, porém,
restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se escutará
uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de
sermos gente. E surgirão os doces acordes de uma canção, o
terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim, será nosso, a
lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes de nos
arrancar. Essa voz nos dará a força de um novo princípio e, ao
escutá-la, os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes
abraçarão a vida com o ingénuo entusiasmo dos namorados.
Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos deste
tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que
já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos
converteu. (TS, p. 200-201)
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TERRA SONÂMBULA
A profecia do feiticeiro aponta para a necessidade de Moçambique
ouvir a voz de seus ancestrais e resgatar o que é tradicionalmente africano,
valorizando suas crenças e sua história ao longo dos tempos, orgulhando-se
da identidade autêntica de Moçambique. Ao pedir a seus seguidores que
abandonem a condição de animais e enfrentem a morte como seres
humanos, o adivinho joga um líquido sobre seus ombros e sobre seus fiéis,
que caem convulsivos, transformando-se em animais e, convertendo-se-lhes
a fala, espalham-se pelos matos.
Kindzu olha para seu corpo para constatar-se ainda humano, quando
vê um galo se aproximando: era Junhito que se humanizava, ao contrário dos
demais que se animalizavam. Surgem Romão Pinto, Estêvão Jonas, Shetani,
Assane, Antoninho e os milicianos para capturarem Junhito:
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MIA COUTO
fundo de luz muitíssimo branca. Vacilo, vencido por súbito
desfalecimento. Me apetece deitar, me anichar na terra morna.
Deixo cair ali a mala onde trago os cadernos. Uma voz interior
me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me dá força.
Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante
segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis
que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto,
confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado,
chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por
uma segunda vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas
por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as
folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma,
se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus
escritos se vão transformando em páginas de terra. (TS, p. 203-
204)
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TERRA SONÂMBULA
9. BREVE ANÁLISE DO LIVRO
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<http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2014/09/mia-couto-o-grande-crime-do-
racismo-e-que-anula-em-nome-da-raca-o-individuo-4591914.html>. Acesso em: 27 jun. 2015.
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MIA COUTO
Em Terra Sonâmbula, publicado em 1992, Mia Couto percorre a
história de Moçambique e da tristeza de um povo que viveu um longo
período de guerra contra a colonização portuguesa (1965-1975) e uma
guerra civil devastadora (1976-1992), possibilitando não só o encontro do
leitor com as experiências de um período bélico, mas o contato com a
dimensão mítica que perpassa a cultura africana.
A partir de narrativas entrecruzadas, Terra Sonâmbula relata a história de
um velho magro, Tuahir, e de um menino, Muidinga (símbolos do passado e
do futuro, respectivamente), que caminham por meio aos restos da guerra,
constatando a morte, a fome e a perspectiva desesperançada de uma vida futura:
TERRA SONÂMBULA
remete o leitor a um tempo iniciático repleto de profecias e fantasias do
velho Taímo, preso aos seus antepassados e ao tempo primordial, em meio
ao caos da guerra, aludindo, também, à época colonial e ao encantamento
momentâneo provocado pela independência de Moçambique, seguida da
imensa decepção da guerra causadora de destruições, fome, tensões sociais
e miséria.
Mia Couto entremeia o tempo histórico e o tempo mítico, nos episódios
de tensão sociopolítica e econômica e nos momentos marcados pelo
Maravilhoso, indicado pela presença de espíritos, aves míticas, anões que
surgem dos céus, mulheres misteriosas, mortos que voltam à vida,
acontecimentos sobrenaturais relatados nos cadernos de Kindzu e
experimentados por Muidinga por meio da leitura.
Assim, sonho e realidade unem-se, transformando o inimaginável em
algo possível, como, por exemplo, no desfecho da narrativa, quando Kindzu
olha a aproximação de Muidinga e identifica-o como Gaspar, o filho que
Farida procurava.
Enquanto Kindzu se prepara para morrer, Muidinga/Gaspar surge como
se estivesse nascendo, reconhecendo-se, assim como uma Moçambique que
deseja surgir depois de tantas mortes:
Deixo cair ali a mala onde trago os cadernos. Uma voz interior
me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me dá força.
Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante
segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis
que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto,
confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado,
chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por
uma segunda vez. (TS, p. 204)
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MIA COUTO
O livro não pode ter fim. O último capítulo chama-se “As
páginas da terra” – é como se fosse própria terra que estivesse
escrevendo estas cartas que o outro está lendo e o miúdo e o
velho fossem só figurantes do mesmo personagem que é essa
terra dilacerada que não se pode reencontrar, que não pode ser
reconhecida por si própria. (LABAN, 1998, p. 138)
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TERRA SONÂMBULA
(...) envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse
monstros no lugar da esperança. Vós vos convertêsteis em
bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita
para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós.
Agora, a arma é a vossa única alma. Roubaram-vos tanto que
nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos
pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos.
(TS, p. 201)
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MIA COUTO
Independência, vivi mudanças radicais do socialismo ao
capitalismo, da revolução à guerra civil. Nasci num tempo de
charneira, entre um mundo que nascia e outro que morria. Entre
uma pátria que nunca houve e outra que ainda está nascendo.
Essa condição de um ser de fronteira marcou-me para sempre.
As duas partes de mim exigiam um médium, um tradutor. A
poesia [literatura] veio em meu socorro para criar essa ponte
entre dois mundos distantes. (COUTO, 2009, p. 123)
[...] Durante meses, eu despertava entre os sons das armas que
ecoavam ao longe e uma força interior me compelia a sentar na
penumbra do quarto para inventar as viagens cruzadas de Tuhair,
Muidinga, Kindzu, Farida e Junhito. Estes personagens
deslocavam-se para lugar nenhum, provindo de um sítio
inventado. Apenas a viagem lhes dava chão. [...] Tal como era o
meu destino, enclausurado na triste impotência de enfrentar o
absurdo da guerra que matava não apenas as pessoas, mas o meu
próprio país. Um destes personagens me segredou: “fizeram esta
guerra não apenas para nos fazerem fugir do país, mas para
retirarem o país de nós.” A escrita surgia, assim, como um modo
de inventar uma outra terra, fazendo com que a estória
ludibriasse a história, à maneira da sábia enunciação de
Guimarães Rosa. (COUTO apud RIOS, 2007, p. 7)
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TERRA SONÂMBULA
sido abandonadas. Apenas as que ainda trabalhavam eram
suportadas. Por isso Euzinha simulava as mais pesadas labutas.
Pediu-nos que nunca a ajudássemos em nada. Prometemos.
(TS, p. 189)
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Trecho da entrevista concedida a Vera Maquêa em Moçambique em dezembro de 2003, publicada por Via
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Unidos pela leitura, Muidinga e Tuahir encontram juntos a evasão por
meio dela, realizando seus trajetos pelo mundo da fantasia. Em várias
comunidades africanas, o velho ainda é respeitado (embora já enfraquecida
essa visão nos tempos atuais pela influência ocidental), pois simboliza a
sabedoria adquirida ao longo da vida, cabendo a eles, normalmente, a
narrativa de suas experiências, num relato didático aos mais novos,
transmitindo a tradição africana e mantendo vivos os costumes e a memória
coletiva. Logo, a morte de Tuahir poderia representar a extinção da tradição
de seu povo, salva, no livro, pelo menino Muidinga, que permanece vivo em
um meio hostil.
Conforme Mia Couto, a morte e a viagem são dois grandes temas
literários e, em Terra Sonâmbula, eles aparecem unidos, pois “na concepção
africana, os mortos não morrem, apenas deambulam, numa outra dimensão,
produzindo Vida entre os viventes”. (COUTO apud RIOS, 2007, p. 7)
A morte é um acontecimento recorrente na obra coutista e reflete a visão
de que é apenas um rito de passagem, prolongando-se a vida em um novo
estado. Daí os mortos estarem sempre presentes em Terra Sonâmbula,
ressurgindo, como no caso do português Romão Pinto, que aparece a
Quintino, anos depois de ter morrido.
O velho Taímo também aparece a Kindzu depois de morto, reve-
lando-lhe que as dificuldades encontradas ao longo da viagem eram castigos
impostos a ele em decorrência do abandono de sua aldeia e de suas
tradições.
A morte aparece já no primeiro capítulo, “A estrada morta”, espaço em
que se passa a narrativa de Muidinga e Tuahir, representando o país
destruído pela guerra civil, que atinge ricos e pobres indiscriminadamente,
e local oposto à estrada da vida presente na epígrafe do livro, num retrato
angustiante da paisagem misturada à tristeza:
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TERRA SONÂMBULA
Ao encontrarem o machimbombo queimado, Tuahir se comporta de
maneira indiferente frente aos mortos queimados, como se já estivesse acos-
tumado à desgraça ao longo de sua vida, mas Muidinga sente-se receoso
diante da morte, que lhe parece uma contaminação e necessita de purificação.
O mesmo desprezo que Tuahir demonstra pelos mortos do ônibus se
repetirá ao ver o homem morto do lado de fora, vítima de um tiro,
indiferença que se presentifica ao se relatar a morte nos campos de
deslocados, nos quais até vivas ainda as crianças eram enterradas.
Muidinga, que foi salvo da morte por Tuahir, receia que os espíritos dos
mortos ainda estivessem ali próximos ao ônibus queimado, uma vez que as
mortes eram recentes, e perturba-se diante da violência imposta pela guerra.
Essa mesma perspectiva de que os mortos permanecem é encontrada na morte
de Siqueleto, que se transforma numa semente, a qual renascerá sempre:
Então ele mete o dedo no ouvido, vai enfiando mais e mais
fundo até que sentem o surdo som de qualquer coisa se
estourando. O velho tira o dedo e um jorro de sangue repuxa da
orelha. Ele se vai definhando, até se tornar do tamanho de uma
semente. (TS, p. 69)
MIA COUTO
Assim, o desrespeito à natureza e o descaso com os alertas dos mortos
causam a desgraça do homem. Kindzu partirá em busca de seu próprio eu,
mas sofrerá as consequências do distanciamento de suas raízes.
Ao chegar às areias da praia de Tandissico, Kindzu experimentará mais
um momento sobrenatural: conduzido por forças do submundo, ele tem a
visão de um psipoco (espírito do mal que se satisfaz com o sofrimento), o
qual abre uma cova e obriga Kindzu a entrar nela já com água. Esse
sepultamento ainda vivo ligaria o mundo dos vivos ao dos mortos, sendo,
segundo o espírito, o chão deste mundo o teto do mundo dos mortos.
Há, no momento em que Kindzu sonha com o pai, uma descrição feita
por Taímo do que se passaria no mundo dos mortos:
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TERRA SONÂMBULA
Outro momento, que envolve a morte de maneira sobrenatural, ocorre
no reaparecimento de Romão Pinto, depois de ter morrido em circunstâncias
associadas ao imaginário local. Quintino dialoga com o ex-patrão e Estêvão
Jonas acerta com o falecido um negócio lucrativo e fraudulento.
Evidenciam-se neste momento o preconceito racial, inflado pela prepotência
do português falecido há dez anos, a submissão de seu empregado Quintino
e a manutenção do colonialismo, ou neocolonialismo, uma vez que
Moçambique continuava sendo explorado, mas por mãos novas e de
ideologia igual à do período de colônia.
Os mortos rondam a vida de Kindzu, que relata a presença de diversos
espíritos em seus sonhos, estabelecendo-se, assim, o elo entre a vida e a
morte, o presente e o futuro, em que a violência provoca o caos, segundo o
feiticeiro, nganga, que surge no final do livro:
Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do
tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da
esperança. Não mais procureis vossos familiares que saíram para
outras terras em busca da paz. Mesmo que os reencontreis eles
não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis em bichos, sem
família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos
tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma
é a vossa única alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os
sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu
e o mar serão propriedade de estranhos. (...) Aceitemos morrer
como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em
que esta guerra nos converteu. (TS, p. 201-202)
Ao morrer, Kindzu deixa sua mala cair com os cadernos em que seus
devaneios foram registrados; estes, agora, são semeados numa terra que
necessita de sonhos que tragam de volta a vida e Moçambique não seja mais
uma Terra Sonâmbula:
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10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TERRA SONÂMBULA
FERREIRA, Ana Maria Teixeira Soares. Traduzindo mundos: os mortos na
narrativa de Mia Couto. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10773/2869>.
Universidade de Aveiro, 2007.
MIA COUTO
MENDONÇA, Fátima. Para uma periodização da literatura moçambicana.
In: Literatura moçambicana: a história e as escritas. Maputo: Faculdade de
Letras e Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mondlane, 1988.
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TERRA SONÂMBULA
11. EXERCÍCIOS
Meu pai sofria de sonhos, saía pela noite de olhos transabertos. Como
dormia fora, nem dávamos conta. Minha mãe, manhã seguinte, é que nos
convocava:
— Venham: papá teve um sonho!
E nos juntávamos, todos completos, para escutar as verdades que lhe
tinham sido reveladas. Taímo recebia notícia do futuro por via dos
antepassados. Dizia tantas previsões que nem havia tempo de provar
nenhuma. Eu me perguntava sobre a verdade daquelas visões do velho,
estorinhador como ele era.
— Nem duvidem, avisava mamã, suspeitando-nos.
E assim seguia nossa criancice, tempos afora. Nesses anos ainda tudo
tinha sentido: a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável.
Os mais velhos faziam a ponte entre esses dois mundos. Recordo meu pai
nos chamar um dia. Parecia mais uma dessas reuniões em que ele lembrava
as cores e os tamanhos de seus sonhos. Mas não. Dessa vez, o velho se
gravatara, fato e sapato com sola. A sua voz não variava em delírios.
Anunciava um facto: a Independência do país. Nessa altura, nós nem
sabíamos o verdadeiro significado daquele anúncio. Mas havia na voz do
velho uma emoção tão funda, parecia estar ali a consumação de todos seus
sonhos. Chamou minha mãe e, tocando sua barriga redonda como lua
cheia, disse:
— Esta criança há-de ser chamada de Vinticinco de Junho.
Vinticinco de Junho era nome demasiado. Afinal, o menino ficou sendo
só Junho. Ou de maneira mais mindinha: Junhito. Minha mãe não mais
teve filhos, Junhito foi o último habitante daquele ventre.
O tempo passeava com mansas lentidões quando chegou a guerra. Meu
pai dizia que era confusão vinda de fora, trazida por aqueles que tinham
perdido seus privilégios. No princípio, só escutávamos as vagas novidades,
acontecidas no longe. Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o
sangue foi enchendo nossos medos. A guerra é uma cobra que usa nossos
próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os
rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O
sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos. (TS, p. 16-17)
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1. (7.ª ONBH-2014 – Adaptado) – Sobre o trecho extraído do romance
Terra Sonâmbula, de Mia Couto, avalie as afirmações abaixo:
I – Os processos de independência do Brasil e das colônias portuguesas
na África são comparáveis e simultâneos.
II – Embora escrito em nossa língua – a portuguesa – este texto literário
cheio de metáforas traz características da forma de falar de outro
país.
III – A escolha do nome do bebê remete à data da independência de
Moçambique e o sangue mencionado ao final do trecho se refere à
guerra civil que posteriormente se instaurou.
IV – O texto, marcado pela influência do escritor brasileiro João
Guimarães Rosa, revela a esperança de que a independência de
Moçambique, assim como a criança que era aguardada no ventre da
mãe, representassem o início de uma nova vida.
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— Nas primeiras noites, sim. Depois, nunca mais eu vi nada de comer.
Só a panela vazia, mais nada.
— Alguém comia...
— Ninguém toca em prato de defunto.
O velho Taímo se explicou: eu não podia alcançar nada do sonhado
enquanto a sombra dele me pesasse. A mesma coisa se passava com a nossa
terra, em divórcio com os antepassados. Eu e a terra sofríamos de igual
castigo. (TS, p. 44-45)
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4. Um aspecto significativo na obra de Mia Couto é o emprego frequente
de provérbios e expressões idiomáticas do discurso oral, muitas vezes
alterados em relação ao sentido original:
I – E se lançou nas vagas, transversando a corrente. Em meio da
jornada reparou como havia sido grande sua ousadia. E as ondas
cresceram, grandes que ele nunca vira. A barcaça não resistia, o
caudal do rio a ver com quantos paus se desfaz uma canoa.
II – O homem vivia só, se lamentando: antes mal acompanhado!
III – As autoridades imediatamente desencadearam uma ofensiva de
averiguações político-ideológicas tendo apurado a presença do
inimigo da classe. Conclusão do responsável da Segurança: tais
rochas nunca foram vistas antes da mencionada noite.
IV – Não ligue. Isto é atraso, ignorância bravia. Vale a pena insistir? Vale
a pena esclarecer esta gente? Eu sempre acho que sim. Do menos o
mal: afinal, grão a grão o papa se enche de galinhas.
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IV – Tudo aquilo era castigo encomendado por ele, meu legítimo pai.
Minhas desavenças, os tropeços que sofria, provinham de eu não ter
cumprido a tradição.
Chove toda a manhã com tal empenho que, para não se perderem,
Muidinga e Tuahir vagueiam de mãos dadas. Ao meio-dia a chuva para. O
sol se empina no céu, com tamanha vingança que, num instante, chupa os
excessos de água sobre a savana. A terra sorve aquele dilúvio, enxugando
o mais discreto charco. No inacreditável mudar de cenário, a seca volta a
imperar. Onde a água imperara há escassas horas, a poeira agora esfuma
os ares. Ouve-se o tempo raspando seus ossos sobre as pedras. Em toda a
savana o chão está deitado, sem respirar. A cauda do vento se enrosca
longe. Até o capim que nunca tem nenhuns pedidos, até o capim vai
miserando. (TS, p. 89)
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9. Em “As estórias dele (Taímo) faziam o nosso lugarzinho crescer até
ficar maior que o mundo. Nenhuma narração tinha fim, o sono lhe
apagava a boca antes do desfecho. Éramos nós que recolhíamos seu
corpo dorminhoso” (TS, p. 15-16), há uma inversão de situação comum
vivenciada entre adultos e crianças. Explique-a.
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5) Um dos principais recursos empregados por Mia Couto é a criação de
neologismos, como “brincriações”, “marmíferos”, “sozinhar-me”,
“marrecava”, “ingénio” e “acrediteísta”.
Resposta: E
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