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Transtorno do Espectro Autista (TEA) e o Desenvolvimento Emocional

Primitivo na Psicanálise - Parte II

Gilla Maria Jacobus Bastos

A ARQUEOLOGIA DO TEA

Etimologicamente, a palavra "arqueologia" surgiu da junção de dois


termos gregos: archaios, que significa "passado" ou "antigo"; e logos, que quer
dizer "ciência" ou "estudo"; assim sendo, arqueologia significa "ciência que
estuda o passado" ou "ciência que estuda o antigo".

Para entendermos o que acontece hoje com o sujeito precisamos buscar


a sua História então, como bem nos apontou Freud (1937) em Construções em
Análise.

Mas como fazer isso nos casos de Autismo, onde a História nos escapa?

Seguindo por essa metáfora do investigador, em Psicanálise todas as


reações, emoções, atitudes, tornam-se importantes. Temos visto que como
Alvarez refere em seu livro Companhia Viva (1994), a preocupação centra-se na
psicologia da dupla mãe-bebê e não somente na psicologia individual. Pois o
bebê no início de sua vida, nos primeiros dias embora não possa demonstrar tão
claramente está absorvendo e introjetando o ambiente, o que precisaria de uma
companhia Viva junto a ele para conseguir estruturar as excitações vindas do
próprio do corpo, cuja inviabilidade dessa condição, fixaria o bebê nas suas
excitações, fechando-se numa cápsula para não deparar-se com ansiedades
muito primitivas e pavorosas.

Winnicott (1956 - 2000) tão bem descreveu que a mãe passa por um
período de regressão da mente no final da gravidez para conseguir atender o
seu bebê, chamada Preocupação materna primária. Seria então uma regressão
saudável cuja finalidade seria entender as necessidades do seu filho e oferecer
o holding a ele. Holding para o autor teria o sentido de sustentação física com
consequências emocionais importantíssimas, qualquer falha nesse início de vida
psíquica, afetaria a criança e seu desenvolvimento. A mãe precisa ser
suficientemente boa para o filho, equilibrando a gratificação e frustração, para
que ele consiga adquirir suporte interno para aguentar as frustrações.

A mãe teria a função especular, o seu bebê vai se constituindo pelo olhar
dela, numa interação profunda e natural. E chega a dizer que só a mãe sabe o
que fazer com o seu bebê.

Nesse pensador, não existiria a pulsão de morte, diferentemente de outros


autores que vimos, a mãe teria a capacidade para entender seu filho e suportar
suas demandas para a integração de suas ansiedades impensáveis e
proporcionaria a continuidade do ser. Então se essa continuidade do ser não foi
possível é porque houve falha materna.

Para Winnicott o bebê precisa ser o ¨aborrecimento perfeito¨, isto é,


precisa chegar na vida do casal no momento em que estariam aptos a receber
essa responsabilidade física e emocional, onde já teriam sido ¨tudo um para o
outro¨. Complementando a vida do casal.

Parece que todos os autores que se preocuparam com os problemas


psíquicos graves de seus pacientes e investigaram seu histórico, acabaram
chegando nas suas relações primordiais para reconhecer que o seu início de
vida possa ter sido determinante para seu desenvolvimento.

Freud que inicia seus estudos em Histeria (1895), entendeu que a neurose
e seus conflitos vai além disso, chegando até possíveis déficits ocorridos na
estruturação do narcisismo primário. Supondo que algo muito precoce no sujeito
possa intervir no seu desenvolvimento psicológico. O manuseio da mãe no corpo
do bebê daria o destino psíquico, através da interação ali estabelecida. Em Três
ensaios (1905) chega a referi que a mãe erotiza o corpo do bebê, com seu amor
e corpo também. No caso que estamos estudando aqui, não houve esse
desenvolvimento. O que ocorreu foi uma concentração da libido no próprio
individuo, cuja libido objetal não se estabeleceu.

A criança ficaria fixada nas excitações do eu corpo, no seu funcionamento


orgânico, onde qualquer desequilíbrio nele ou no ambiente não é decodificado,
sentido como aniquilamento do seu eu ou self. A cápsula autista de defesas é
justamente sua garantia de subsistência. Não há simbólico, sua comunicação é
concreta, com o corpo, com o pânico a desorganização e maneirismos, seus
rituais seriam a garantia de sobrevivência diante do vazio e do horror.

Alvarez fala que o bebê precisa de uma mãe não deprimida, de uma
companhia viva para prestar atenção nele e nas suas necessidades. Mesmo nas
crianças autistas, deve-se ter o mesmo funcionamento, conservando a
esperança e o desejo de compreendê-la.

O profissional que trabalha com crianças regressivas precisaria, então,


manter-se vivo para oferecer ajuda. E confiar nos próprios sentimentos intuitivos
para entender o que a criança está pedindo, sentindo ou reagindo. Tentar
atravessar essa cápsula de defesas impenetráveis.

Freud, como vimos, chega a afirmar que na comunicação primitiva com


pacientes podem surgir pensamentos como flashes e até alucinações que
seriam provocados pela mente primitiva deles no terapeuta.

Para esse fenômeno, um casal de psicanalistas: César Botello e sua


esposa Sara (2001 – 2003), trouxeram um termo chamado de a figurabilidade do
analista para caracterizá-lo. Desde o início de sua prática clínica com crianças
(algumas apresentando estados autistas) e pacientes adultos, foram atraídos
pelo fato de que, muitas vezes durante as sessões, lhes ocorriam estados
mentais particulares, como se fossem momentos fugidios do pensamento
analítico. Sentiam-se tocados diante das imagens visuais ou auditivas que
surgiam nesses momentos particulares do pensamento, com uma nitidez e uma
vivacidade sensorial lhe conferindo, por vezes, uma qualidade quase
alucinatória. Perceberam que esses “acidentes de pensamento” que se
manifestavam de forma imprevisível deveriam ser melhor estudados. E
passaram a acreditar que esses momentos tinham relações com bases do
psiquismo que estariam ligadas a estados irrepresentáveis do paciente.
Retomaram então um campo deixado por Freud, com a abertura da segunda
tópica e pelo seu artigo Construções em Análise (1937), no qual Freud constata
que o retorno do passado se faz, por vezes, sob formas de flashes quase
alucinatórios, num curto-circuito da via habitual (rememoração pela lembrança
representada).
Através de casos clínicos, temos a oportunidade de entrar na
complexidade processual de uma dinâmica transfero-contratransferencial. O
conceito do trabalho em duplo nos permite entrar em contato com o sem
memória do trauma infantil, escondido nos limbos do psiquismo. Suas
concepções nos impõem a necessidade de uma busca do funcionamento
psíquico do analista e do seu papel determinante nas análises através de uma
procura de criatividade pessoal à qual ele deverá recorrer para elaborar a
ameaça traumática da não-representação por esse movimento de regressão
formal.

Outro trabalho importante nos trouxe Fraiberg, Adelson e Shapiro (1994)


no artigo Fantasmas no quarto do bebê, onde através de atendimento a bebês
com sério risco no desenvolvimento emocional e vincular com os pais,
descobriram que havia fantasmas no quarto do bebês, isto é, os pais que viveram
momentos de extremo terror na sua infância e que se identificaram de forma
patológica com seu agressor o que ameaçava o seu ego. Os pais poderiam até
lembrar da tirania e maus tratos do agressor, mas os afetos relacionados
estavam congelados, impossibilitando o contato espontâneo e terno os fazendo
temer por um passado mortífero a ser repetido na relação com o bebê. Ou seja,
a afetividade não se manifestava para com os cuidados maternos, deixando a
criança em estado quase de abandono e de dificuldade de vinculação por parte
desses pais.

Para finalizar essas questões primitivas da relação mãe-bebê podemos


contar com o Método de observação da relação mãe-bebê. O método de
observação de bebês (O.B) foi criado por Esther Bick em 1948. O método propõe
que um observador acompanhe o desenvolvimento de um bebê em seu meio
familiar até a idade de um ou dois anos, de preferência a partir das últimas
semanas da gravidez ou logo depois de seu nascimento. As observações são
realizadas semanalmente na casa do bebê, em horários previamente
combinados. O setting específico da Observação de Bebês, fundamental para o
trabalho, é constituído pela regularidade dos horários, pela frequência das
observações e pela atitude de não interferência do observador. O processo de
observação é ainda acompanhado por um seminário semanal com um grupo de
observadores. Nesse seminário são discutidos os relatórios de observação,
elaborados em narrativa escrita, o mais pormenorizada possível.

No Método de Observação da Relação Mãe-Bebê, o observador tem a


oportunidade de acompanhar a evolução das relações primárias do bebê com a
família e de considerar a trama dos vínculos emocionais que entre eles se
estabelecem. Acompanha longitudinalmente a constituição da mente de um
bebê, a história das relações emocionais, das funções parentais e do complexo
fraterno. Testemunha assim, no decorrer dos encontros, as invariâncias das
transformações que podem levar ao desenvolvimento normal como também a
um desenvolvimento patológico do bebê, sejam pela estagnação ou pela
deterioração desse desenvolvimento. Como o trabalho é acompanhado em
reuniões semanais com o grupo de observadores, torna-se possível comparar a
evolução e o desenvolvimento dos bebês observados nas diferentes famílias.
Diferenças e semelhanças vão sendo percebidas e consideradas em sua
singularidade, tanto no que se refere aos bebês e às relações mãe-bebê, quanto
às relações que se estabelecem entre o observador e a situação observada.
Tudo isso contribui para ampliar o conjunto de conhecimentos e de vivências de
cada participante dos seminários.

Embora não seja um objetivo do método, ele pode ainda ter um efeito
terapêutico para a família. O método tem servido também como modelo para a
aplicação em outros contextos e com outras finalidades que vão além de sua
especificidade na construção da identidade analítica. Assim é que inúmeros
trabalhos têm destacado o papel que a presença constante do observador pode
desempenhar como modelo continente da função materna. Alguns desses
trabalhos demonstram ainda o valor e a necessidade da experiência com o
Método de Observação de Bebês para que o analista possa trabalhar com
intervenções ‘precoces’ que preferimos chamar de oportunas, seja em
consultório, recebendo o bebê juntamente com a família, seja em instituições.

Alguns casos clínicos:

Caso 1 – Solange
Essa puérpera foi a mim encaminhada pela sua vizinha, estudante de
psicologia, procurada certa noite pelo marido da paciente porque nem sua
esposa e o recém-nascido Luan paravam de chorar por horas. Ele desesperado
e sabendo da formação dela pediu ajuda. Ainda bem. Chegando lá a estudante
pegou o bebê no colo o acalmando e escutou a Solange reclamar da
maternagem para ela. O pai ficou de observador.

Solange me contou essa situação e o porquê do encaminhamento da


vizinha e de conseguir me procurar. O bebê estava com uns 15 dias de vida.

Ela e o marido se organizaram para a gravidez, tinha uma vida estável


profissional e pessoalmente, contando que tudo estava tranquilo até o
nascimento de Luan. A partir daí sentiu-se completamente confusa e sem
conexão com o seu bebê. Sua expectativa foi frustrada porque não conseguia
suportar sua condição vulnerável e o bebê não vinha com um ¨manual de
instrução¨ (s.i.c.) para ser mãe. Dizia ¨eu olhava para ele e não conseguia
entender o que fazer, parecia um estranho, não entendia. Me desesperei.
Comecei a ter muito medo que meu filho se tornasse um autista. O meu marido
também não ajudava muito porque ele tem uma Cultura asiática, fria, não sabe
como lidar¨ (s.i.c.)

Nesse momento a formação que tive no Método Bick fez todo o sentido
para o atendimento. Pois o meu silencio foi fundamental para ceder todos os
minutos para que ela contasse sua história de conflitos com um pai agressivo e
frio e de uma mãe submissa e fraca para defender a filha na infância. Aqui
encaixa o trabalho sobre ¨Fantasma no quarto do bebê¨ como vimos acima. Pois
parece que Solange estava impossibilitada de se conectar com o seu bebê por
um congelamento psíquico, entenda-se aqui afetivo, para acolher seu filho num
holding suficientemente bom. Todos os maus tratos sofridos na relação com os
pais estavam por se repetir com o seu Luan. Mas, agora, diferentemente da
infância, teve um marido e pai que buscou ajuda, amparado a dupla mãe-bebê.

Após 4 sessões com Solange, nos primeiros meses de Luan, ela


expressou seus afetos de sofrimentos soterrados e conseguiu se conectar com
o filho recém-nascido, amamentando e estabelecendo o vínculo afetivo
necessário para sentir-se segura e exercer a maternidade saudável.
Recebi notícias do prosseguimento saudável dessa dupla pela estudante
de Psicologia que, na época, tinha acesso pelo relacionamento na instituição de
ensino que frequentávamos.

Caso 2 – Gabriel.com

Gabriel, com 6 anos, foi encaminhado para avaliação psicológica pela


escola que frequentava, por apresentar comportamento diferente dos colegas.
Pois não compreendiam sua fala e apresentava isolamento dos colegas. Ao
fazer anamnese a mãe não narrava de forma clara a história do filho. Contou que
ele era o caçula e que tinha uma filha já adulta que frequentava a faculdade de
Engenharia e já trabalhava sendo independente. Relatou que não via problemas
com o filho. Só que uma vizinha o viu em casa girando o corpo e balançando as
mãos dizendo que parecia comportamento de crianças autistas.

Realizei a avaliação do Gabriel que confirmaram ser um caso de TEA.

O que foi devolvido aos pais e a escola que o encaminhou.

Também ficou estabelecido que precisaria de atendimento


psicoterapêutico.

Depois de alguns dias os pais me procuraram para atendimento porque


havia deixado meu contato.

Iniciei o tratamento com o paciente por aproximadamente 1 ano, o qual foi


interrompido porque os pais não quiseram mais pagar o tratamento.

As sessões iniciais foram com colagem de palavras estereotipadas como


VIVO, Bradesco, Banco do Brasil, Fiat , etc. As quais ele apreendia
concretamente. Nesse contato através da atividade eu repassava para ele
algumas sensações que eu tinha sobre ele. Se parecia triste, confuso, brabo,
inquieto, agitado, feliz etc. Aos poucos Gabriel foi se vinculando a mim e
conseguindo desenhar, cantar músicas que aprendia e no final desse primeiro
ano conseguiu até brincar com fantoches, se afeiçoando a um pato que mordia
outros bonecos e até meu braço, por vezes. Repassava para ele o que entendia
que expressava através do pato. Ele também gostava de ir ao banheiro e que eu
tirasse a chave para que ele não se trancasse. Ele gostava de ver a minha
preocupação ou pânico por uma situação incontrolável como essa por exemplo.
Parecia que a minha atenção sobre ele e suas reações nos ligavam e o
acalmavam. Enfim, a mãe foi me relatando que conseguiu ir ao dentista e na
escola estabelecer alguns amigos. Possuía na época uma professora muito
sensível que entendia as necessidades de Gabriel, facilitando seu
desenvolvimento. Passou de ano e nas férias os pais não vieram. Uns anos após
esse tratamento o Gabriel veio a atendimento porque o pais precisava de nova
avaliação para o filho tivesse alguns benefícios escolares pelo diagnóstico.
Atualizou-se a condição do Gabriel e os pais não retornaram. Mas enfim, segue
seu caminho escolar e quem sabe retorne em outras condições de ajuda.

Referências

ALVAREZ, A. Companhia Viva: psicoterapia psicanalítica com crianças autistas,


borderlines, carentes e maltratadas. Porto Alegre. Artes Médicas, 1994.
BOTELLA & BOTELLA (2003). Figurabilidade e Regrediência. Revista de
Psicanálise de Porto Alegre, v. X, n.2, p. 249-341.
FRAIBERG, S; ADELSON, E; SHAPIRO, V; Fantasmas no quarto do bebê.
Publicação CEAPIA, ano VII Número 7, setembro de 1994.
FREUD, S. Construções em análise (1937). Obras psicológicas completas, vol.
XXIII. Rio de Janeiro. Imago, 1976.
VIDAL, M. Método de Observação de bebês: Modelo Esther Bick: O ensino da
contratransferência para psicanalistas e psicólogos. Rio de Janeiro. Juruá, 2017
WINNICOTT, D.W. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro. Imago, 2000

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