A psicanálise É coisa engraçada Como pode esse diz que me diz Fazer ou não fazer casa?
Alguém já me perguntou na sessão
Não sei onde eu termino, onde o outro começa? Mal sabemos que as respostas na vida, Não nos vêm esclarecidas, mas sentidas, sem pressa
O dentro e o fora se misturam,
De quem eu reclamo, por quem eu me espanto? Em mim eu prossigo, todos os dias, pressinto, Um quer destruir, outro fazer o bem, Eis o santo
Mais atrapalhado eu fico,
A cada vez que interajo Comigo mesmo, com a mãe, o irmão, um amigo Eu viajo, Cadê o segredo de tudo, a senha, o sonho, o umbigo?
Se o símbolo me orienta, para associar de qualquer jeito
A palavra livre, espontânea, até chorada, Traduz aquilo que de mais profundo brota do peito Mas que ao vir, no viver, continua incógnita Charada
Psicanalisar é calar, escutando
Para poder dizer, um silêncio eloquente, Intervir, entre vivos, no par, um terceiro Investir, apropriar-se de si Somente (Só mente?)
Dentro (Do livro “Em alguma parte alguma”, de Ferreira Gullar)
estamos dentro de um dentro
que não tem fora e não tem fora porque o dentro é tudo o que há e por ser tudo é o todo: tem tudo dentro de si até mesmo o fora se, por hipótese, se admitisse existir A psicanálise não descobriu o inconsciente. Ela na verdade propiciou os meios para que o inconsciente pudesse falar pela primeira vez, mostrando-se em seus efeitos mediante a aventura clínica da escuta desimpedida do sofrimento humano. Em vez de designá-lo pela via teórica da conjectura, como fizeram os filósofos antes de Freud, o inconsciente somente deu mostras efetivas de sua magnitude pela batuta do fundador da psicanálise. Porém, desde as origens da associação livre, quando se dissociou da hipnose e do método catártico, o empreendimento psicanalítico notavelmente singularizou, em vez de simplificar e de sistematizar, o modo de nos debruçarmos sobre a constelação psíquica dos sujeitos. Para começar, tudo aquilo em que toca a investigação de Freud reluz no metal nobre do ouro epistemológico da complexidade. Como fiel observador dos padecimentos na clínica de sua época, ele jamais conduziu para a sua teoria o acabamento que somente a abstração especulativa é capaz de superficialmente promover. Em vez de ser um profeta a defender uma visão de mundo no interior de cuja gramática tudo poderia guardar coerência com ares de uma plataforma dogmática, Freud modestamente professava o exercício da ciência. Assim, promovia incansável o arejamento intelectual de sua obra em sintonia com a complexa realidade advinda da experiência com os seus pacientes. Podemos dizer, então, que nada em sua obra se desenvolveu e se concluiu magnetizado por argumentos e conceitos unidirecionais, muito menos se mobilizados pela ambição do alcance de respostas definitivas para problemas fundamentais concernentes ao psiquismo. A notável sabedoria de Freud era proporcional ao seu gigantesco entusiasmo pelas conquistas da curiosidade e da explanação, numa aliança ilustrativa do gênio a que estava destinado. Ávido pelo conhecimento e defensor da livre circulação de ideias, era tolerante à revisão de seus pressupostos a cada nova evidência iluminada, fosse o interlocutor um colega, um confidente, um analisando. Sua prudência científica na investigação psicanalítica – em obter explicações satisfatórias cujo sucesso, sabia ele, não perduraria para sempre – precisava ser acompanhada por um timbre próprio de rigor e de sutileza na escrita, capaz de aliar obstinação e investimento crítico pelo saber. Reivindicava-se então uma específica metodologia perpassada do início ao fim pelos contornos imprecisos e dinâmicos do seu objeto de estudo, uma correspondência especular a ser perseguida entre o texto e o contexto da psicanálise: a dialética da complexidade. Se o sujeito em debate (e em análise) é o sujeito dividido, era preciso estabelecer discursivamente os pontos de vista a partir de um congruente arcabouço de argumentos habilitado a engendrar por dentro do texto aquilo que resulta presenciado fora dele, diante da realidade do mundo onde as pessoas vivem e se relacionam umas com as outras. Notemos como a marca da psicanálise resulta, desde as suas raízes, caracterizada pelo modo limítrofe e tensional de enxergar as coisas, ilustrando-as por meio de conceitos não- totalizantes e recursivos dialeticamente uns com os outros. Desde a instauração do agir específico da mãe com o seu bebê, passando pelo conceito das moções pulsionais situadas entre o somático e o psíquico (em paralelo ao descortinar fantasmático da realidade psíquica frente às relações de objeto havidas do ambiente exterior), sem esquecer os incontáveis fenômenos identificadores de um algo a mais desconhecido para a consciência, cujos efeitos são sentidos pelos indivíduos e qualificados das mais variadas formas, o empreendimento psicanalítico se mostrou sempre avesso a reducionismos de toda e qualquer ordem. Nem mesmo o avanço tecnológico dos tempos atuais, quando os diagnósticos são antecipados estatisticamente pela contabilidade genética promovida pelos computadores de ponta, seria capaz de invalidar o veredicto tardio de Freud, guardião da complexidade dos seres humanos e da qualidade indevassável do seu aparato mental. Para ele, a localização anatômica das incidências corpóreo-cerebrais, por mais exata que seja, jamais coincidirá com a compreensão exaustiva do funcionamento da psique humana, garantindo-se a posição nuclear da psicanálise para a posteridade, segundo a qual somos destituídos de uma natureza passível de ser catalogada e ordenada normativamente. Em psicanálise, o que é “um” necessariamente precisa se fazer par para poder ser pensado e refletido, sob pena do fracasso imediato e retumbante do raciocínio, tal qual a inviabilidade primária de o recém-nascido advir ao mundo por si mesmo e sobreviver alheio à alteridade do cuidado de quem por ele é responsável. Assim sendo, a lógica psicanalítica, se há de existir alguma, concentra-se em dialetizar, em erigir relações nas quais a síntese principia a cada vez um novo movimento, em vez de esgotá-lo. A (dia)lógica da psicanálise, portanto, induz o um a se tornar dois, pluralizando-se com a finalidade de instituir o registro simbólico do terceiro, sem o qual as intensidades se desligam, frágeis, ou explodem em onipotência. Por outro lado, a genealogia oferecida pela psicanálise para as atribulações da alma humana contempla paradoxalmente um lugar onde as origens apontam para um projeto, remetendo menos para um destino inevitável, e mais para um horizonte cujas determinações se misturam às possibilidades. As temporalidades não se sucedem cronológicas na ampulheta psicanalítica: passado, presente e futuro se amalgamam numa reciprocidade continuativa destituída de natureza, de linearidade, de ordem. A força das quantidades é tão inesgotável na fonte pulsional de cada sujeito quanto é indeterminado e desvinculado o sentido porventura estabelecido das qualidades inscritas no itinerário de sua existência. O sentido na psicanálise, assim, escapa de uma interpretação antecipadora e parasitária para a qual o sujeito constituiria a replicação de uma série comandada por um algoritmo responsável por discriminar normais de desviantes. Nesse aspecto, podemos dizer que a psicanálise se mostra essencialmente como sem sentido, melhor dizendo, como destituída de ressonâncias interpretativas prévias, mandatórias e estranhas à singularidade de cada específico sujeito sob o enquadre da transferência em dupla. Por outro lado, nem por isso ela se constituirá direcionada ao sem-sentido, numa subordinação hierarquizante às avessas. Ou seja, não se trata de enaltecer um imperativo caótico a favor da mais absoluta aleatoriedade, mas de uma exploração interpretativa singular capaz de interrogar e produzir o sentido na sua mais íntima manifestação, sem alienar-se em meio a marcadores socioculturais hegemônicos em dado período da história. Marcadores cujo predomínio inconteste culmina por transfigurar, aniquilando, cada individual em idêntico. A quem dedicamos a escuta no nosso ofício de psicanalistas? O que escutamos no hiato entre o dito e não dito dos nossos pacientes? Qual é a justa palavra a ser endereçada ao outro para promover alguma, a mínima, mobilização de sua ordem psíquica? Padecemos nós nesse suposto saber à busca exatamente de qual magnitude clínica, de qual acontecimento terapêutico? Deveríamos realmente sofrer por isto ou se trata de um desgaste característico dos inexperientes e dos insensatos? Com sofrimento do analista ou sem ele, parece-nos irrecusável que há pelo menos um sofrimento dentro da sala de atendimento, o do paciente. Talvez as inquietações de um psicanalista orbitem em torno de como afinal de contas podemos – se é que podemos – aliviar o sofrimento de quem nos procura, quiçá implementar alguma transformação para que os analisandos se tornem eles mesmos, aproximando-se de suas próprias verdades ou, quem sabe, alcançar a fortuna da cura como um lucro não desejado, aquele que vem por acréscimo. A justa palavra (e escuta) do psicanalista funciona como a medida ética para o vislumbre tangível das conexões suficientemente boas no âmbito do setting clínico, uma exigência casuisticamente aberta cujas modulações permitam sempre o realinhamento das intervenções de toda ordem conforme o andamento do trabalho efetuado pelo par. A justa interpretação do psicanalista englobará, por conseguinte, o verbo ajustar, ajustar a interpretação em meio a erros, frustrações e realizações pela metade. Além disso, a justa palavra não pode ser confundida com a palavra milimetricamente ajustada, aderente em perfeição ao estado em que se encontra, como se a psicanálise fosse uma metafísica sacra e exegética, à cata de mandamentos impecavelmente mágicos. Não estamos falando de uma psicoterapia sugestiva, para a qual o enlace transferencial representa a cama de Procusto onde vamos deformar os nossos pacientes com o carimbo padronizador das boas práticas. As perguntas antes formuladas mais questionam do que indagam, ou seja, elas dizem alguma coisa na sua interrogação em vez de simplesmente estarem à espera, vazias, por respostas que as preencham por completo. O seu caráter crítico, portanto, funciona como um catalisador do próprio movimento do pensamento, do refletir-se em desdobramentos sucessivos: assim opera o dispositivo psicanalítico na dobradiça versátil entre teoria, método e técnica. Andante na continuidade instável do processo analítico, em busca de associações que possibilitem os sentidos, e não errática, à revelia de referenciais significativos, muito menos responsiva ao desejo de saber, pelo sim e pelo não, ante um apelo interpretativo autômato, a psicanálise nos faz assumir a condição essencial do sujeito humano: os seus modos de existência, incluindo os estados de sofrimento patológico, consistem em efeitos das relações entre os sistemas psíquicos. Não se sabe que no fundo efetivamente o sabemos, que desejamos: não está nesse enigma os sinais do inconsciente, desta instância dita incognoscível? Como vimos, Freud foi um homem implacavelmente perseverante na investigação da mente humana, de suas origens, das tramas complexas de uma individualidade psíquica pouco coerente, embora assujeitada ao porvir conflitivo advindo das histórias por ela vivenciadas. Trata-se mais dos efeitos estilhaçados de um arranjo singular próprio – e fantasmático – irredutível aos fatos da vida, embora deles derivados. No flagrante manifesto das indagações sedentas por respostas, esconde-se o latente desejo de um saber interrogativo incessante que quer cultivar espaço fértil para o florescimento dos sentidos em seus múltiplos caminhos de ligação e desinvestimento no correr da vida dos sujeitos. Bem por isso, assim concluímos, a psicanálise é tecida artesanalmente pelos fios da interpretação, a começar pela esfera da constituição do psiquismo humano em seus efeitos de apropriação da realidade exterior numa temporalidade historicizante própria com múltiplas facetas. Pensar o psiquismo como um sistema aberto em gênese e funcionamento importa em defini-lo para cada sujeito como uma estrutura interpretativa de ressonância própria perante a realidade exterior, que o auxilia a se envolver com os acontecimentos, com tra(u)mas relacionais diante da experiência frente aos outros, mediante o aporte de apropriações fantasmáticas (realidade psíquica) que informam sobre o ocorrido e traduzem os efeitos particulares do experimentado.