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GGILMAR FERREIRA MENDES | Curso Lae de Direito Constitucional : . Che OB ssrsiva lip ges Essa, a nosso ver, 6a forma mais adequada para o trato com as disposigdes constitucionais transitérias, ssas imprescindiveis “pontes no tempo”, que nas mudangas politicas negociadas foram concebidas para trangiilizar ¢ acelerar 4 passagem de um a outro regime constitucional e no para tumultuar nem temnizar essa travessia. Afinal, nada parece mais intransitivo do que uma dispo- sigdo transeunte que nfo transita endo deixa transitar, porque a todo instante, wale dizer, permanentemente, € substituida por outra ¢ assim indefinidamente. Portanto, até mesmo para que tenham vigéncia plenae reinem soberanamente como é da sua natuteza, sentido e funga0 —, as constituigdes precisam livrar se,o quanto antes e da melhor forma possfvel, das reminiscéncias transportadas ton suas disposigées transitGrias, as quais, a se eternizarem, funcionarfo como texpagos de nfio-incidéncia das novas ordens constitucionais ou de inexaurivel ultra-atividade de sistemas peremptos. NORMA CONS} 2.1.Introducéo Registrando, com Jorge Miranda, que as normas constitucionais, enquanto disposigSes juridieas, podem e devem ser agrupadas, aproximando ou afastando ccategorias, de harmonia com diversos crtérios, aplicando-se-thes tanto as class- ficagdes conhecidas da teoria geral do direito quanto as de particular ineidéncia ‘no dominio normativo em que atuam, com esse registro esclarecemos desde ogo que as classificagdes apresentadas a seguir sero apenas as de interesse especificamente constitucional' 2.2.Normas constitucionais materiais e formai Isso posto ¢ levando em conta que, do ponto de vista l6gico, toda norma {que se encontra na Constituicio € norma constitucional e que, por isso, a Cons- tituicao formal é, também, a Constituigdo material, a que serve de expressio, podemos dizer que uina primeira classficago das normas constitucionais se assenta na dicotomia normas constitucionais formaisfnormas constitucionais ma- teriais, a despeito da inexisténcia de critério seguro ¢ objetivo que nos permita identifica, a prior e com validade absoluta, o contesido essencial ou, se preferi- mos, a matéria propria de toda norma constitucional. Afinal de contas, ao que saibamos, néo existe nada que, por natureza, possa reputar-se consttucional e, ‘assim, valer como critério para se constitucionalizay 0 que quer que sea ‘Apesar disso, no particular, anotam-se alguns esforgos doutrinérios, de indole fenomenoldgica e de procedimento indutivo, tendentes a descobrie na experiéncia constitucional o que seria a esséncia da Constituigdo, merecendo ‘We Manual de divitoconsiuconay cit, ps 212-213. 46 destaque, nesse contexto, a célebre conferéncia de Fernando Lassalle — su- _gestivamente intitulada Sobre a esséncia da Consttuigdo — na qual esse famoso socialista alemao identificou essa esséncia com os fatores reas de poder atuantes ‘numa determinada sociedade!™”. Menos ambiciosos e, por certo, mais pragmaticas do que Lassalle e os essencialistas de todos os matizes, os redatores da Constituigdo Politica do Impéio do Brasil inseriram em seu texto o sempre lembrado art. 178, onde decretaram, como antes referido, que “é s6 constitucional o que dit respeito aos limites ¢ atribuigdes respectivas dos poderes politicos, e aos direitos politicos e indivi- duais dos cidadaos. Tudo, o que nao é constitucional, pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelaslegislaturas ordindias”. ‘Com essa decisto, evidentemente, no teri formulado um conceitosubstan- cial, invariével e universalmente valido, do que fosse materia consttucional; mas no ha ckivida que estabeleceram, com observancia obrigatéria, pelo menos nos limites do Impérig, quais assumes, no corpo da Constituigz0, pela sua relevncia, rmereceriam status materialmente constitucional ede que forma se legitimariam, em carter excepcional, os legisladores ordindrios — enquanto detentores do chamado poder constituinte derivado —, para levarem a cabo quaisquer modi- ficagoes nesse contetdo essencial, o qual; mesmo sendo importante, i30 Ihes parecia intocével ou merecedor de protegio sob cléusulis de eterna. ‘Afinal de contas, como éégistra Gilmar Ferreira Mendes, forte na liso de Bryde, o limite da revisio constitucional nao reside, necessariamente, na fronteira entre egitimidade e revoluco"'; nem o poder constituinte dito ovigi- nndrio — como satirizado por Genaro Carrié — possui os atributos que Spinoza considerava privativos de Deus". Por essa formula dos juristas do Império, tudo poderia ser mexido na Cons- tituigio de 1824, desde que, para ranto,fosse consultada previamente a populacio, por meio de umalei especifica, na qual se ordenasse aos eleitores dos deputados paraa seguinte legislatura que nas respectivas procuracces lhes conferissem espe- cial faculdade para a pretendida alteracio ou reforma, como se Ié nos seguintes dispositivos da nossa primeira Carta Politica: “Are. 173. A asseinbléa geral no principio das suas sessdes examinaré se a Cons- tituigdo politica do Estado tem sido exactamente observada, para prover como for just. Art. 174. Se passados quatro annos, depois de jurada a Consituisdo do Brazil, se conhecer que algum dos seus artigos merece reforma, se faré a proposiclo por 1 estncia da Constiipto, ct. '® Limites da reviscr cldusulas péteas ou garantas de etemidade — possibilidadejurdica de sua superagio, Ajis n. 60, p. 253, mar. 1994, 5 Sobre los limites del enguaje normativo, in Notas sobre derecho 9 lenguage, 4. ed, Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1994, p. 235-279; Baruch Spinoza, Exica/Tratado teolégico-politico, México: Pore, 1997, p. 7-34, a sctipto, qual deve ter origem na camara dos deputadose ser apoiada pela terga pare delles. ‘Art. 175. A proposiso ser lida por tres vezes com intervallos de seis dias de uma A outraletura;e depois da terceiradeliberaré a camara dos deputades, se poder ser admitida a discussdo,seguindo-se tudo o mais que € preciso para a formacao deuma le. Ast. 176, Admitida a discussio, vencida a necessidade da reforma do artigo consttucional, se expediré le, que sed sanccionada e promulgada pelo Impera- dor em rma ordndria; ena qual se ordenaré aos eleitores dos deputados para a seguinte legislatura, que nas procuragdes Ines confiedo especial faculdade para a pretendidaalteragio ou eforma. Art 177. Na seguinte legislatura ena primeira sesso seré a maria proposta e discutida, e 0 que se vencerprevaleceré para a mudanga ov addicio a Lei Funda- ‘mental €juntando-se A ConstituicSo sed solemnemente promulzada ‘Art. 178, Es6 constitucional o gue diz resto aos limites attibuigses respect ‘vas dos poleres politicos e aos diteitos politicos ¢individuaes dos cidadsos: tudo ‘o que nio € consticucional pée ser alterado sem as formalidades referidas plas legislaturssondinaris” ‘Comparando essa engenhosa solugo politica, concebida hé mais de sé- culo e meio, com a que foi adotada para 0 processo revisional da Constituigdo espanhola de 1978 — especialmente em seu art. 168 —, causa admiragio no tanto a semelhanga nos ritos estabelecidos para aalteragdio de ambas as cartas politicas, mas principalmente a coincidéncia nas concepges dos seus formula- dores sobre legitimidade do exercicio pleno e continuado do poder constituinte dito origindrio, gragas a um mecanistno legitimador em que 0 povo é chamado se manifestar, necessariamente, em dois tempos. Priineito, de forma indireta, através dos seus representantes, quanto &.con- veniéncia e oportunidade de se habilitar legislatura ordindria — cautelosamen- te, sempre a legislatura seguinte —a discuti a questdo da reforma constitucional; ‘num segundo momento, ediretamente, pela atribui¢do de poderes constitutes & cesses legisladores ondindrios, para que, sem limitagSes juridicas de qualquer natu- teza, possam resolver essa questo constitucional como Ihes parecer adequado, inclusive recusando-se a modificar 0 texto constitucional”. Na Espanha, provavelmente pelas incertezas e dificuldades que singulariza- ram o delicado processo de redemocratizacao desse grande pais, ainda se exigiu ‘uma segunda manifestagao direta do leitorado —o referenda —, para ratificar, depois de aprovadas pelas Cortes Gerais, quer a revisio total da Constituicio, © Sto de especial provelto, no particular, os comentarios de Pimenta Bueno sobre aqueles Aispositivosda Carta de 1824, no seu clssico Diet publico raleae analse da Constinao do Impsrio, Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J Villeneuve, 1857, p. 485-489. 48, quer a revisio parcial que afete o seu Titulo Preliminay; o Capitulo I, Seyo I, do Titulo I; ou 0 Titulo Il (art. 1683)". Dessarte, pelo menos & luz dessas experiéncias constitucionais, que no pademos reputar extravagantes, éIieito concluir que 0 povo nik nee Cessariamente pegar em armas para exercer o poder constituinte, que lhe & imanente, bastando, para tanto, adotar procedimentos que, sem o banalizar, racionalizem o seu continuado exercicio™, Igualmente,¢ por viade conseqiiéncia, pode-se dizer que sob essa concep- io, que é de um pragmatismo politico admiravel, no existem matérias consttu- CGionais intocdveis — cristalizadas em céusulaspéereas ou protegidas por garantias de etemidade —, mas to-somente contetidos normativos de maior significago jurfdico-politica, em relagSo aos quas, precisamente pelo seu particularrelevo, quaisquer mudangas de atitude hio de ser detidamente amadurecidas. 1 as constituigbes pretendem ser — como efetivamente ° tos entre geracdes, parece intuitivo concluir que a sua preservagdo dependerd da poabiidade de virem ase renovadas, pelo menos cada gerago, em todos os sentidos que possui a fecunda expresso renouar™ 2.3.Normas constitucionais operativas e programaticas _ A luz dessa classificagao, das mais conhecidas no direito constitucional, ¢ ‘que sempre teve grande prestfgio, menos por seu intrinseco valor do que pelos propésitos a que, ver por outra, tem servido — por via de regra, quando se quer negar eficdcia a um preceito constitucional diz-se que ele no pode ser aplicado porque se trata de norma simplesmente programdtica —, luz dessa tradicional classificagao, que se baseia na executoriedade das normas constitucionais, "8 As Constieuigdes da Austria (at. 44.3) e da Suga (art. 118) também admitem revisio ‘aiAlSBiene feta refered ppt 481C¥, por todos, osempreatual Emananel Sieys “Antes de tudo uma nagonio pode nem aliena nem abicar o dreito de querer; qualquer que seja aia vote, ela no pee o Alieto de mud, desde que oexijao seu interese” (Qu exi-ce quel ties at?, Centve Dow, 1970p. 182) * Essa renovacto io compreende apenas 2 alterabes formals intrchaldas no texto das, constituigdes ~~ emendas, teformas ou revioes yas ta ‘ofoanais, cenvubstenciade em noes inozs do mesmo texto, cn mt CORA snc {Gomes Canotilho, Dai contin, ctyp. 1101-1102) 49 indo o magistério de Rui Barbosa, as: disposigdes constitucionais, em sua Imaioria, nao sio auto-aplicves, porque a Constituigo no se executa asi mesina, antes impde ou requer a ago legslativa, para Ihe tornarefetivos os preceitos 6 ue no quer dizer, entretanto, que a Lei Maior possua cldusulas ou preceites 8 que se deva atribuir o valor moral de simples conselhos, avisos ou ligbes, até Porque todos tém a forca imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ‘u popular aos seus Grgaos!”, A propésito do tema, ao ensejo do exame quando nos manifestamos, perante o STR, como repr Pablico Federal, sobre a preliminar relativa a auto-aplicabilidade do dispositive ‘que institufra essa nova garantia constitucional, estudamos com razodvel pro- fundidade a questa relativa & operatividade das normas constitucionais, tendo ‘or isso afirmamos, naquela ocasido, sem constrangimento, que nesse terreno, em que pese o prestigio de alguns dos modemos doutrinadores que se debrucaram sobre o tema, as respostas por eles oferecidas, em sua quase-total- dade, embora paregam ministrar novos critérios para resolver o velho problema, em verdad o que tém feito €repetirasteses expostas pelos antigos, sem avanar lum passo sequer no ponto em que a questio permanece criticame nada. Mais ainda — arrematamos —, lo mesmo vio taurlogico das propostas que pretendem superar, esses pensadores “pds-modemos” acabarn por afirmar, em linguagem rebuscada, qui bre cr sna naquela ocasifo, fr ea a — da finalidade que o inspirara, e que dispée 0 § 1° do mesmo artigo da Lei Maior — “as normas definidoras dos dircitos e garantias fundamentais tém aplicac3o imediata” —, seca " Camentrs& Cons Feeal rasa, So Palo Seria, 1933, 2p 488-489, % 2 aplicabldade da norma constinucionsl que instuiy os de Informagio Legislava, Braslia,n, 104, p. 45, ouefdes, 1989, 50. a Mesmo assim, sob aplausos gerais— tanto mais intensos quanto menos avisados — , como afinal e contradito- riamente se afirmou naquela decisio, fanto aos modemnos doutrinadores, feito para densificar a Eo que retratam, salvo engano, estas conc! “Em suma,afogajurica das noemasprograméticastradu-se (por ordemn mais ‘cronoligica do que légica) em: » clas possuem, complementarmen — profbem a emissdo de normas legais contrtias eprofbem a pritica de compor tamentos que tendam a impedir a produgdo de atos por elas impostos inconstitucionalidade por omissio em caso de inércia nconstitucionalidade material (que éinconstitucionalidade por ‘ag30), por desvio de poder, em caso de afastamento desses crtérios; elas adquirem assim, através da anal adquirem uma eficécia criadora de novas normas Onmesmo se poder4 dizer sobre o balango de Gomes Canotilho, essencial- mente idéntico, no particular, ao do seu ilustre compatriota, apesar ou por causa < fimapo imi de ge, marcato una eit aa cn io ee one Miran, Mana d dio cna cbr ie Cl open Mel din ain ‘Ata, 197; Maia Helena Dini, Noma emcnaconaewa flor Ss Bede ene 1989, 103164, Laser Baron © nto cmuttucond ea easdaledesco limite pssbiades cd Coil beat, Rode ane enor aS Mores Neves A contconligta sb, So Pai: Aca 1938 " Manual de deo constacinl cep. 219.220. iaque! se-construa, png se re ome srs nts om 2.5.Normas de organizacéo e normas definidoras de direitos ‘Quanto a matéria que disciplinam, erefletindo a cissca dicotomia Estado| individuo, as disposiges constitucionais podem ser classificadas em norms de organizagdo, dle estrtura ou de competéncia, enormas definidoras de direitos, sendo as primeiras aquelas que disper sobre a ordenago dos poderes do Estado, sus estrutura, competéncia, aticulago reciproca eo estatuto dos seus titulares ax ‘outras, as que definem os diveitos fundamentais dos jurisdicionados. 2.6.Principios juridicos e regras de direito Das mais relevantes para a prética do Direito, sobretudo em ambito cons titucional, essa disting3o tem como xa nos desobrigando de apontar: ‘Wnaediterenga onintigcty #€ porque dita ontologia néo resistiria a0 ee exper —— quadrantes do mundo jurfdico™, dispensan- do-nos deste esforgo essencialistaafirmaremos, cor SSSI 9 ¢ isto constitui sua diferenga ___ Sob perspectiva um tanto diversas istingue essas duas espécies normativas dizendo que “os princfpios juridicos, diferentemente das normas lregras) de direito, sio contetido em oposigdo a forma, embora o uso deseas ea, {egoriasaristotélicas — adverte — no nos deva induzir a pensar que a forma seja oaces6rio de algo essencial”, até porque “hist6rica e efetivamente, a forma, entendida processualmente como meio de protesao do direito ou materialmen, te como norma, & sempre o essencial, o tinico que pode conferit realidade ¢ significagao juridica aquele contetido fundamental ainda nfo reconhecido Seal ___Serporoutr lado, adorarmos 0 crtério dll ERNE airemos que ° C&, por tos, Jos Ese, Pino norma en lt eboricin jurspadencel del derecho brivado, Barcelona’ Bosch, 1961, especialmente asp. 113-179, © Le standard erdiue, Pars: AM, 1927, p. 56 © Prntpioy norma, cit, p65 52 cs re A deve serB isto 6, se ‘ocomrerem os critos na sua hipétese de incidéncia ese elas forem normas vélidas, de acordo com a regra de reconhecimento'» do sistema a que pertencem, Como o Direito, e ca jurisprudéncia foram elaborando algumas regras, de aceitago generalizada, para Las derechos en sero, Barcelona: Ariel, 1995, p. 74. a” concepto de derecho, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1992, p. Ver, também, Juan Ruis Manero, La rela de recone sts n 198, iz Manero, La regla de reconocimiento, in Las piczes del derecho, Barcelona: Ariel, 1996, p. 143-163. bt Ve a propésto, o que disse Kat! Larenz sobre o vaivém diaético da aplicaga do direito "No comeso, est o texto da lei— 6 aparentemente claro e fil de aplicar —e no final —-se ‘ste existe —, entetecda em tomo do texto, uma tea de interpretagoes,restrigdes comple: Imentagdes, que regula a sua aplicagdo no caso singular e que transmudou amplamente ose conteddo, a pontos de em casos extremos quase o tomar irteconhecivel. Com efeito, urn «stranho resultado daquele processo que 0 jurista se habituow a denominarsimplesmente de aplcagao das normas!” (Metodologia da ciéncia do dreito, Lisboa: Fundagao Calouste Gul. benkian, 1989, p. 250) 117-118. 58. tuto dese trabalho so os chamadoe eS NTE Speen verdade simples regras técnicas que, na maioria dos casos, 20 serem ut lizadas par Equeaincidén- 2 ciade uma normaafistaa incidéncia da outa, deal sorte que, no mais das vezes \ as chamadias regras de sousto de confltos so invocadas pelos aplicadores do Direito menos para resolver do que para declararinexistentes supostos defeitos Isgicos nos ordenamentas em que operam. final de contas, parece intuitvo que aquelas regras, precedendo a pro- ‘mulgagio das normas juridicas,previnam ou evitem o aurgimento de contra es entre elas, as quais,precisamente por isso, podem ser descartadas como simplesmente aparentes. Essa conclusio, no entanto, seia correta apenas se, contra toda a evidéncia, existisse de fato o legislador racional!™ e se os sistemas jrfdicos,fruto do seu trabalho, fossem logicamente consistentes a ocorréncia de conflitos reais, i. e., (i) pertencentes ao mesmo ordenamento, (ii) dotadas de igual hierarquia, editadas, sinulaneamee, ¢ (iv) bitas de validade idénticos, ‘Mesmo assim es c¢ alhos do — pelo menos aos intérprete — si -__ Por isso, nesses casos modelares de inconsisténcia total-total ou de incom- patibilidade absoluta entre normas!™, = r Norberto Bobbio, Teoria do ondenamentojurdico, Brat: PolisfEd. da UnB, 1989, p. 100. Emhora formulada em contexto diverso, merece regsto esta observagio de Manuel Calvo (Garcia sobre a racionalidade das lets: “Frente a uno de los postuladon mes earatertticos de la concepcidn metodolégica tradicional, las teoras de la argumentacion defienden que el legislador real no es racional 0, lo que es igual, que no hace leyes perfectas que prevesn soluciones claras yno contradictorias para cualquier caeo hipotético que pueds producise, Y ave, por lo tanto, quines tienen que ser racionales son los jursta, quienes interpretan aplican la ley” (Las fundamentos del método jutdio: una revsign extica, Madtid: Tecnos, 1994, p. 217). am: 5 Sobre a ficgao do legislador racional, ver Carlos Santiago Nino, Cons sobre la lognsticajurdica, México, UNAM, 1974, p. 85-101. "Carlos Santiago Nino, Notas de introducciin l derecho, Buenos Aires: Astrea, 1975, v. 4, p. 52-84; Norberto Bobbio, » P. 86.91. A propésito, para | tessaltar a dificuldade na ident registre-se a autocritica de Roberto | J, Vernengo, no sentido de que ainda s20 relativamente pobres os instrumentos de investi- ‘ago semintica de que dispem os juristas para testaro rigor dos seus métodes, ede que nto ‘existem critérios razoavelmente confiaveis que Thes permitam dizer quando duas expresses ormativas ordenam ou prescrevem um mesmo comportamento (La interpretacin literal de laley, Buenoe Aires: Abeledo-Perrot, 1971, p. 6). “® Alf Ross, Sobre el derecho y la justia, 4.ed., Buenos Aires: Ed. Universitaria de Buenos ‘Aires, 1977, p. 124-125. 64 ——_—_—_——— Se TEE ~~ Dafa observagao de ‘So ari que a propria idéia de “conflito” deve serrepensada, pois se oconteddo normativo de um; de” da decor gE es principios, parece inconcebivel a ocorréncia de fetivas “colisbes” entre eles. Tratar-seia, prossegue esse autor, de um conflito aparente € ndo-uniforme, j que a idéia de conflito pressupée a identidade de hipsteses ‘€ campos materiais de aplicagao entre as normas eventualmente -contrapostas, ‘© que no easo dos prinefpios estd previamente afastado pois eles slo detinidos justamente em fungao de no terem uma hipétese de incidéncia e uma con- seqtiéncia juridica abstratamente determinadas, Dessarte, conclui Humberto Avila, “o problema que surge na aplicago dos princfpios reside muito mais em. saber qual deles sera aplicado e qual a relago que mantém entre si”"®, Dat, ‘gualmente, a observagéo de Juan Cianciardo a nos dizer que, rigor nfo se trata da primazia de um prinepio sobre outro, mas apenas da inaplicabildade do prinefpio eventualmente afastado, funcionando como suposto de fato da regra de decisao — que, ento, necessariamente, se formula —as circunstiincias do caso e, como sua conseqiiéncia jurfdica, a que se extrai do principio de maior peso!" E que, diferentemente das reg °° Carios Santiago Nino, Fundamentos de derecho consttucional, Buenos Aires: Astrea, 1992, 96.97, A distingio entre principioseregrasea redefinigo do dever de proporcionalidade, Revista de Dircto Adminisrativo, Rio de Jane, 215:151-179, jan mar.1999 (nota 48, ap. 162). El confcivismo en las derechos furdamentales, Pamplona: UNSA, 2000, p. 200-201. °® Karl Larens, Metodologia da ciénia do dreto, cit, p. 272-274. 56 © seu caréter ndlo conclusivo, anota Hart! — atualizarse e operar como verdade Por isso, lembrandiRaniiamens di ‘ou ainda no so — parafraseando Eduardo Ca 08 princtpios do as regrasa longo prazo, porqué embora parecam precedé-las— como enganosamente sugere De outra parte, sem impor aos seus operadores uma Gnica decisio correta ¢ justa, eles admitem e até mesmo exigem conuivéncia e conciliagao com outros principios — igualmente operantes ¢ eventualmente concorrentes — que ofe- Team razio para solugdes em sentido diverso, tudo isso num complexo jog? concertado de complementagiese rstrigbesrecfprocas; ou, se preferitmos, num processo essencialmente dialético, ue se inicia no instante em queo intérprete esboca a aplicago dos princfpios as situagSes da vida, e que se conclui quando, Jogrando concretiz4-los, ele dfiel cumprimento a esses mandatos de otimizagao recebidos do legislador'” '© Herbert L. A. Hare, O conceito de divito, 2. ed. tradugo de A. Ribeiro Mendes, Lisboa: Fundagio Calouste Gulbenkian, 1996, p. 322-323. "st Derecho justo: fundamentos de évica juriica, Tradugao de Luis Diet Peazo, Madrid: Civitas, 1993, p. 33. Em perspectiva idéntica, Peter Haberle observa, por exemplo, que todo direito fundamental aspira a ser “regra, para que a sua normatividade se converca em, znormalidade ou pratica efetiva no ambito da sociedade em que pretende atuar (La libertad ‘fusdamental en el Estado constsucional, Lima: Pontificia Universidad Catdliea del Peru, 1997, p, 101 € 197). ' Para Eduardo Couture, “a teoria € a pritica a longo prazo”, conforme anctado por Sadck ‘Belaidem seu Essai sur le pouvoir erdateur et normatif du juge, Pais: LGD), 1974. 5 Josef Esser, Principio y norma, cit. p. 71. Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sstematico e conceto de sistema na ciéncia do dreito, ‘Lisboa: Fundagio Calouste Gulbenkian, 1989, p, 88-99; Karl Larenz (Metodologa da ciénca do direito, cit, ed. de 1989, p.579):"E decisivo, por outro lado, que o penssmento nao procede ‘gui linearmente’, 96 num sentido: o prinefpio esclaece-se pelas as concretizagies e estas ‘pela sua unido perfeita com 0 principio”. ‘A sua génese e 0 modo como sdo positivados nos textos constitucionais evidenciam, por outro lado, que os principios juridicos possuem, igualmente, im decisio paradigmética sobre o modo como se desenvolve o jogo da aplicago dos prinefpiosjuridicos, valores inconeilis- veis, se vistos em abstrato ou tomados em sentid Tare, poranto, conv ine, de une pele de SONENGHEE- — um jogo concertado — menos pela navureza, digamos, Com efeito, nessa decisio STF mais nao fer do que e quando, a vista de ‘concreto, aqueles principios voltarem a entrar em estado de tensa — e novamente a depender das ircunstincias —, o tribunal poders levar a cabo mma tn fs nth Por isso € que, diante das STORES UEPMNIEPDS, quando eth tese nai, cde uma pauta Ihe parecer aplicavel & mesma situagio de fato, em vez de se sentir obrigado a escolher este ou aquele principio, com exclusio de outtos que, prima facie, repute igualmente utiizéveis como noma de decisto, o intéxprete fart ‘uma ponderagao entre os standards concorrentes — obviamente se todos forem F.Rel. Moreira Alves, RT, 1 '8 Norberto Bobbio, Teoria general del derecho, Bogoté: Temis, 1987, p. 190; Josef Esser, Principio 9 noma, ct, p. 35-56. 87 Em palavras de: rincipios concorrentes, iar icentuado, que em face do contexto 0 —niio nos esquegamos que a precedéncia entre la —, 0 fato de se portincia a quiaue efetivagio™, Pois bem, € precisamente nessa caracterstica — pelo menos ao ver de Alexy-— que resiitiao trago fundamental dos prinefpios ur ee 5 Ponto decisivo para distingto et ‘ortanto, os prinespios ay Tea desde fndamenals, xo de Esto Gann Vales, M Estudios Constitueionaes, 1993, p. 9, ” tista Mondin, A metafsicada Tedachon oan pasamento dabioctica, in Quendesatuis de bostica,coondenasaode Sei Spey Si Paulo: Loves, 1990p, M7174, eof fladicadaperorores oe Sree A258 Mieul Reale, Phos etedad, Sto Pale Saran 190 any Filosofia do dri, Sao Pa ra, 1982, p. 211-214; Gregorio Peces-Barbo, Los valores superires, Madi: Tecnos, I 12e 121; Joaquin Arce y Flore. i i Civitas, 1990, p. 144-151 fe despeito da grande aceitagao que mereceu da doutrina, nao sao 08 autores de expressdo que se opdem a iro dif otimizagdo em ver de servir de fundamento para uma diferenca qualitaiva entre regrase printpios, difCSHEDReSeRtaNa gh Di as de registro nesse debate sto também as consi AGREE para quem a diferenca mais importante entre regras e principios talver possa vir sugerida pelo distinto “tratamento” que Ihes dispensa a ciéncia do direito, as formulagses dos princfpios, a0 cont desse modo. E que, usualmente, o se uase sempre se traduzem em expresses um tanto ba nais, “produto de uma recepedo jurdica de terceira ou quarta mao”, mas nem Por isso menos veneraveis, que remetem a tradigdes historicas e contextos de significado a serem entendidos em seu ethos mais do que “interpretados” pela anilise da linguagem. Em poucas palavras, ER o, Por isso, € importante determinar com precisio os preceitos que o legislador estabelece por meio das formulagses que as contém; Hint ke ne BE orci cesp 163-164, 1 Las Prieto Sanchis, Sobre rincipios y normas, Madtid: Centao de Estudios Constitucio- nales, 1992, p. 44-50. 59 , 405 quaisindicarfamos o fatoe eles pront ros a resposta, utilizando, quem sabe, os principais esquemas plicagio de preceitos juridicos —o silogismo judicial e a subsungao do suposto de fato ‘conereto no supesto abstrato da norma. No aso dos princfpios essa “aplicacao” completamente diferente pois quando: scotland princi dienes ene erase pice observa Gomes Canotilho tratarse de uma tarefa particularmente complexa, mas que pode ser cumprida com base nos seguintescrtérios: grau de abstracdo: os principios juricos sio normas com um grau de abs- trasao relativamente mais elevado do.que o das reas de dieto; ¢ grau de determinabilidade na aplicagao do easo concreto: 0s principics, por indeterminados, carecem de mediag®es concretizadoras (e.g. do ou do juz), enquanto as reas sio susceiveis de aplicagio direta; « carster de fndamentalidade no sistema das fontes de direito: os principios ‘so normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurf- dico devido a sua posicao hierdrquica no sistema das fontes (e.g. os pri ios, constitucionais) ou a sua importéncia estruturante dentro do sistema juridico (€- 4 0 principio do Estado de Direito); * proximidade da idéia de direito: os principios sto standards juridicamente vinculantes, radicados nas exigéncias de justca (Dworkin) ou na iia de direto (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um contetido meramente funcional; , '* natureza normogenética: os prinefpios so fundamentos de regras, isto 6, so normas que esto na base ou constituem a ratio de regras "El derecho duct ley, derechos, justia, Madi Tota, 19, p. 110-111, 60 jurfdicas, desempenhando, por isso, uma fungao normogenética funda- mentante!®, Fixadas esas nogGes introdutdrias, que mais adiante servirio de base para o estudo da interpretacio especificamente constitucional, podemos dizer ue, embora existam expressivas diferengas entre os preceitos constitucionsis eas demais normas do ordenamento juridico, a demandarem um tratamento 3. DIREITO, ESTADO E ESTADO DE DIREITO. ORIGENS, DESENVOLVI- MENTO HISTORICO E MODELOS DE ESTADO DE DIREITO 3.1. Colocacao do tema Instado, certa vez, por um jovem estudante, a dizer em poucas palavtas 0 ue era um Estado de Direito, o sauloso professor Roberto Lyra Filho respondeu de pronto: “€ aquele Estado que tem limites e fundamentos definidos pelo Direito”, ‘uma resposta evidentemente correta, inas insuficiente — até mesmo por sua formulagio sintética —, para traduzir toda a complexidade de que se reveste 0 fen6meno conceituado, cuja apreensio depende de prévio “acerto de contas” sobre o que se entende por Direito e Estado, para s6 depois nos aventurarmos em descobriro que significam na expressio compésita Estado de Direito, sob a qual ainda hoje parece ocultar-se algo enigmstico, como sugerem estas palavras do cléssico Luis Legaz y Lacambra: “O Estado de Direito € um dos mistéros da ciéncia juridico-politica; , na esfera da ciéncia do Direito do Estado, o que na Teologia & 0 mistério do Deus Ho- ‘mem, 0 mistrio do Criador da Natureza submetido & Naturezs. Deus e Homens verdadciro, diz 0 Credo; legistador, e, nao obstante, submetido ale, afitma a teoria politica” 3.2. Conceito de Estado Considerando,desnecessérias, para os propésitos deste trabalho, incur- s6e5 mais profundas pelos intimeros autores que formularam conceites sobre © Estado, relembraremos apenas o que dizem os manuais: Estado é wma nagio politicamente organizada', conceito sintético que demandaria desdobramentos esclarecedotes, pelo menos quanto aos chamados elementos constitutivos do * Dizeitoconstisuionl, cit, p. 1034-1035, “ Luis Legat y Lacambra, El Estado de Derecho en la actualdad, Madrid: Reus, 1934, p 12. '* Euzebio de Queto: Lima, Teoria do Estado, Rio de Janeito: A Cata do Livto, 1951, p. 5. 61 nT

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