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Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Processo: 296/07.7TBMCN.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
RESPONSABILIDADE HOSPITALAR
RESPONSABILIDADE MÉDICA
ACTO MÉDICO
ATO MÉDICO
ACTOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
ATOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
PRESUNÇÃO DE CULPA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
MÉDICO
LEGES ARTIS
ÓNUS DA PROVA
DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 23-03-2017
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DA RÉ SANTA CASA. CONCEDIDA A REVISTA DO RÉU BB.
CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA DA AUTORA
Área Temática:
DIREITO BIOMÉDICO - RESPONSABILIDADE MÉDICA.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO
JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES /
FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / RESPONSABILIDADE CIVIL /
CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM
ESPECIAL / CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª Edição, Almedina, 1039 e ss..
- André Gonçalo Dias Pereira, «Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica»,
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Centro de Direito Biomédico, Coimbra
Editora, 1.ª Edição, 2015, 667-674, 684, 708 e ss. (717).
- André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, 670-673,
684.
- António Henriques Gaspar, «A responsabilidade civil do médico», CJ Ano III (1979), Tomo
1, 335 e ss. (340-342), 543.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. 1.º, Almedina, 10.ª Edição, 2006, 584 e 585;
Das Obrigações em Geral, Vol .2.º, Almedina, 7.ª Edição, 101.
- Carlos Ferreira de Almeida, «Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico», in
Direito de Saúde e da Bioética, A.A.F.D.L., Lisboa, 1996, 75 e seguintes (88).
- Carneiro da Frada, Direito Civil/Responsabilidade Civil – O Método do Caso, Almedina,
2006, 81-82.
- Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, «Responsabilidade Médica …», Scientia Iurida, XXXIII,
Janeiro-Abril 1984, 107.
- Nuno Manuel Pinto Oliveira, «Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde, in
Responsabilidade Civil dos Médicos», Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra –
Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 11, 1.ª Edição, 2005, 132, 214-215.
- Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 1990, 410-411.
- Vaz Serra, «Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos Representantes
Legais ou dos Substitutos», in B.M.J. n.º 72, 286.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 8.º, N.º 3, 70.º, N.º 1, 342.º, N.º 1, 405.º, 494.º, 496.º, N.ºS
1 E 3, 798.º, 799.º, 800.º, N.º 1, 1154.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11/07/2006, PROCESSO N.º 06A1503, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 07/10/2010, PROCESSO N.º 1364/05. 5TBBCL.G1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 07/06/2011, PROCESSO N.º 160/2002.P1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 15/12/2011, PROCESSO N.º 209/06.3TVPRT.P1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 05/02/2013, PROCESSO N.º 2035/05.8TVLSB.L1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT
.
-DE 04/06/2015, PROCESSO N.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT
.
-DE 21/01/2016, PROCESSO N.º 1021/11.3TBABT.E1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT
.
-DE 28/01/2016, PROCESSO N.º 136/12.5TVLSB.L1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 26/04/2016, PROCESSO N.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT
.
Sumário :   
I. No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de
natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados
de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela
instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor,
pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo
médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação
contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC.   
  II. Porém, o médico poderá também responder perante o paciente a
título de responsabilidade civil extracontratual concomitante ou,
eventualmente, no âmbito de alguma obrigação negocial que tenha
assumido com aquele.
  III. A responsabilidade contratual da instituição prestadora dos
cuidados de saúde perante o paciente, ao abrigo do artigo 800.º do CC,
será aferida em função dos ditames que o médico “auxiliar” do
cumprimento deva observar na execução da prestação ao serviço
daquela instituição.
  IV. De um modo geral, tem-se entendido que o resultado
correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de
ato médico não se reconduz a uma obrigação de resultado, no sentido
de garantir a cura do paciente, mas a uma obrigação de meios dirigida
ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância
diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges
artis).
  V. Porém, casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de
risco ínfima, a obrigação pode assumir a natureza de obrigação de
resultado.
VI. Para efeitos dessa qualificação, não se mostra curial adotar critérios
apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade
médica, mas sim de forma casuística centrada no contexto e contornos
de cada situação.
VII. Em sede de obrigações de meios, incumbe ao credor lesado
(paciente), provar a falta de cumprimento do dever objetivo de
diligência ou de cuidado, nomeadamente o requerido pelas leges artis,
como pressuposto de ilicitude, recaindo, por seu turno, sobre o devedor
o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir
a presunção da culpa, nos termos do artigo 799.º do CC.
VIII. No âmbito da execução do ato médico correspondente ao
cumprimento do dever de prestar, importa ainda atentar no dever de
proteção na salvaguarda da integridade física do paciente, coberta pela
tutela da personalidade, nos termos previstos no artigo 70.º, n.º 1, do
CC, na medida em que se mostre estreitamente conexionado com esse
cumprimento.
IX. Nessa medida, o reforço daquele dever de prestar por virtude do
referido dever de proteção permitirá configurar a ilicitude do ato
médico violador da integridade física do paciente, ocorrido em sede da
própria execução do cumprimento da obrigação contratual.
X. Assim, num caso como o dos autos em que, no decurso de uma
intervenção cirúrgica destinada a colher tecido necrosado na zona da
cabeça femoral para permitir a sua revascularização, foi atingido o
tronco externo do nervo ciático adjacente pelo manuseamento do
instrumento de colheita, ante a emergência de dificuldade de acesso à
zona a intervencionar, resultando daí a paralisia daquele nervo, é de
considerar verificada a prática de um ato ilícito violador da integridade
física do paciente.

XI. Nessas circunstâncias, presumindo-se a culpa do médico operador,


incumbirá ao devedor da prestação provar que tal ocorrência não lhe é
imputável por falta de cuidado ou de imperícia, nos termos do artigo
799.º do CC. 
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório

1. AA (A.), beneficiando de apoio judiciário (fls. 10), instaurou, em


08/03/2007, junto do então designado Tribunal Judicial de …, ação
declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB (1.º R.),
entretanto falecido e ora representado pelas habilitadas CC, DD, EE e
FF, e contra a Santa Casa da Misericórdia do …. (2.ª R), alegando,
no essencial, que:
. Em meados de 2001, foi detetada à A. uma lesão na cabeça femoral
direita, tendo sido encaminhada para os serviços de ortopedia da 2.ª R.,
onde foi consultada várias vezes pelo 1.º R. Dr. BB, médico
ortopedista, contra o pagamento de honorários à 2.ª R., quase sempre
de 6.500$00;
. Foi-lhe detetada uma “osteonecrose” numa fase precoce da cabeça
femoral direita, tendo, em consequência e por ordem e sugestão do Dr.
BB, sido sujeita a intervenção cirúrgica em 03/09/2001, num ato
cirúrgico que é tido em meios médicos como muito simples e sem
riscos.
. O mau uso das técnicas cirúrgicas empregues - uma técnica
denominada “mielectomia”, muito pouco usada já ao tempo por os
resultados não serem muito eficazes – teve como consequência a
paralisia do ciático da A., à direita, em virtude da qual passou a ter
dores intensas;
. Sem aparente solução, foi a A. assistida, ao longo dos três anos
subsequentes ao ato cirúrgico pelo 1.º R. e pelos serviços clínicos da 2.ª
R.;
. Ao fim de três anos de total sofrimento, a A. foi aconselhada a
submeter-se a nova intervenção cirúrgica destinada a corrigir todas as
consequências do ato cirúrgico anterior;
. Em 22/03/2004, a A. foi sujeita a outra intervenção cirúrgica, agora
com implantação de prótese total da anca direita, tendo tido alta
hospitalar em 27/03/2004;
. Em consequência desse ato, a A. ficou totalmente incapacitada,
andando agora com extrema dificuldade, só de canadianas, e ficando
totalmente incapacitada para o trabalho, sem nada pode executar, não
conseguindo fazer o que quer que seja na vida de casa, como cozinhar,
brunir, lavar ou fazer as camas;
. O limite da perna intervencionada ficou com mais 3,5 cm,
apresentando um atrofiamento do membro inferior direito, à custa da
prótese da anca, de 3,5 cm, tendo o pé direito ficado sem movimentos,
não conseguindo levantar a perna direita, não podendo dormir para o
lado direito, não conseguindo sair de casa sozinha, não sendo capaz de
se calçar sozinha, nem podendo nada ou quase nada fazer, passando a
vida de casa a ser feita pelo marido e filho;
. A A., em 2004, tinha 48 anos de idade e executava todas as tarefas da
casa e ainda prestava o trabalho como empregada doméstica, auferindo
então € 2,49 à hora, trabalhando por mês 80 horas, auferindo € 199,20
por mês;
. Por ter sofrido incapacidade total para o trabalho, deve ser
indemnizada na importância de € 150.000,00 e compensada, a título de
danos não patrimoniais, no valor de € 75.000,00;
. Em consultas médicas a A. pagou à 2.ª R. € 545,00 e em fisioterapia
despendeu € 250,00.
. O 1.º R. não usou os conhecimentos científicos então existentes, mas
antes técnicas cirúrgicas erradas, sendo os serviços prestados nas
instalações da 2.ª R. contra o pagamento de um preço, pelo que são
ambos responsáveis solidariamente pelos prejuízos causados à A..
Concluiu a A. a pedir que os R.R. fossem condenados a pagar-lhe uma
indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, no
total de € 225.795,00, acrescido de juros de mora desde a citação.

2. O 1.º R. apresentou contestação-reconvenção, em que, além de arguir


a sua ilegitimidade, a incompatibilidade entre a responsabilidade
contratual e a responsabilidade extracontratual que lhe foram imputadas
e a prescrição do direito peticionado, impugnou os factos aduzidos pela
A. e sustentou, no que aqui releva, que:
. Observou, no caso, as leges artis a que estava obrigado;
. Explicou à A. os riscos associados à sua particular situação, antes de
cada uma das operações, tendo aquela dado o seu consentimento
informado para ambas as operações, assinando os correspondentes
termos de responsabilidade;
. Só devido a fatores pessoais atinentes à própria A. é que “os
resultados não foram tão excelentes, por se tratar de uma pessoa
marcadamente obesa, hipertensa e com tendência para artroses;
Concluiu pela sua absolvição da instância ou pela improcedência da
ação e pede, por sua vez, que a A. seja condenada a pagar-lhe uma
indemnização, a título de danos patrimoniais, no que se vier a liquidar
ulteriormente e ainda como litigante de má-fé.
3. A 2.ª R., Santa Casa da Misericórdia do …, também apresentou
contestação, na qual invocou quer a sua ilegitimidade quer a prescrição
do direito peticionado e impugnou os factos alegados pela A.,
sustentando que foram observadas leges artis e que quem agiu
culposamente foi a demandante e concluindo pela sua absolvição da
instância e, subsidiariamente do pedido.
4. A 2.ª R. requereu ainda a intervenção principal da Companhia de
Seguros GG, S.A., para quem tinha transferida a responsabilidade civil
decorrente da sua atividade de prestação de serviços médico-cirúrgicos,
intervenção que foi admitida, conforme despacho de fls. 102-103, do
qual a chamada interpôs agravo que foi recebido com subida diferida.
5. A mesma Interveniente apresentou contestação, em que sustentou
que a sua intervenção adequada seria a título acessório, invocando
ainda a prescrição do direito peticionado e concluindo pela sua
absolvição do pedido. 
6. A A. deduziu réplicas, separadamente em relação a cada uma das
contestações, reiterando o petitório e pugnando pela improcedência da
pretensão reconvencional do 1.º R..
7. Por seu lado, a 2.ª R. veio sustentar que a prescrição não se
verificava quanto à Interveniente, na medida em que respondesse pela
segurada.
8. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, em que
foram julgadas improcedentes as exceções de ilegitimidade invocadas
pelos 1.º e 2.ª R.R., inadmissível a reconvenção deduzida pelo 1.º R.,
bem como a exceção de incompatibilidade entre responsabilidade
contratual e extracontratual pelo mesmo suscitada, e ainda as exceções
de prescrição, sendo depois selecionada a matéria de facto tida por
relevante com organização da base instrutória.
9. Tendo falecido o 1.º R. em 30/11/2012, foram habilitadas a
representá-lo o cônjuge sobrevivo CC e as suas filhas DD, EE e FF.
10. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 852-961
(Vol. 3.º), em 12/11/2015, na qual foi inserida a decisão de facto e
respetiva motivação, a julgar a ação parcialmente procedente,
decidindo:
a) – Condenar a Interveniente HH - Companhia de Seguros, S.A., a
pagar à A. a quantia de € 186.849,40, acrescida de juros de mora a
contar daquela data e de juros de mora sobre a quantia de € 795,00,
desde a citação;
b) - Absolver a mesma Interveniente do mais contra ela peticionado;
c) – Considerar, em consequência do decidido em a), prejudicado o
pedido relativamente aos 1.º R. e 2.ª R..
11. Inconformada com tal decisão, a Interveniente HH, S.A., interpôs
recurso para o Tribunal da Relação do Porto, com impugnação em sede
de facto e de direito, no âmbito do qual foi proferido o acórdão de fls.
1119-1182, datado de 30/05/2016, em que se decidiu:
a) - Dar provimento ao agravo retido, interposto do despacho que
admitiu a intervenção principal provocada da Interveniente, revogando
tal decisão e admitindo esta Interveniente como parte acessória;
b) – Julgar parcialmente procedente a apelação e, nessa medida,
também parcialmente procedente a ação, condenando-se as “Rés
habilitadas EE, FF e DD” e a Santa Casa da Misericórdia de … a
pagarem à A. a quantia de € 126.849,40, acrescida de juros legais de
mora sobre a quantia de € 126.054,40”, desde aquela data, e sobre a
parcela de € 795,00 desde a citação.
12. Desta feita, tanto a A. como as habilitadas em representação do 1.º
R. e a 2.ª R. vieram pedir revista, em que:
 12.1. A A. AA formulou as seguintes conclusões:  
1.ª - Atenta a matéria dada como provada e definitivamente fixada, a
A., era jovem e saudável, sendo que hoje não trabalha nem o pode
fazer, ou seja tem total incapacidade para o trabalho;
2.ª - A A. não consegue calçar-se, não consegue andar que não seja
com o apoio de canadianas, não consegue brunir, não consegue sair de
casa sozinha, é e considera-se uma inválida;
3.ª - Perante este quadro, será mais equilibrada a quantia fixada em 1.ª
Instância de € 100.000,00, por justa, equitativa e proporcional;
4.ª - Tal o exige a jurisprudência para casos similares e também o art.º
496.º do CC;
5.ª – O acórdão recorrido não valorou nem a jurisprudência, quanto a
casos similares, não atendeu aos valores em causa e à gravidade dos
mesmos e assim também violou o que dispõe o art.º 496.º do CC;
6.ª - Deve ser revogado aquele acórdão e, no que concerne à fixação de
€ 40.000,00 para indemnização dos danos não patrimoniais,
mantendo-se o fixado na sentença da 1.ª  instância.
  12.2. Por seu turno, as habilitadas em representação do 1.º R.
formularam as seguintes conclusões:
1.ª – Por contrato verbal, celebrado entre a A. e a 2.ª R. esta obrigou-
se a fazer àquela, pelo preço entre ambas acordado, as duas
intervenções cirúrgicas que foram precedidas de consultas da
especialidade de ortopedia;
2.ª – A A. pagou à 2.ª R. ambas as cirurgias, tal como as referidas
consultas;
3.ª – A 2.ª R., por causa de tais cirurgias, procedeu ao internamento da
A. no seu hospital, disponibilizando-lhe a sala de operações, toda uma
equipa chefiada pelo Dr. BB, instrumentos e produtos cirúrgicos;
4.ª – A A. nada pagou pelas aludidas consultas e cirurgias ao 1.º R., o
qual sempre foi pago, por essas prestações, pela 2.º R.;
5.ª – Alegando ter havido erro médico em ambas as cirurgias, a A. veio
a demandar aquele 1.º R., entretanto falecido e ora representado pelas
habilitadas, e a 2.ª R.;
6.ª – A 1.ª instância absolveu as habilitadas do pedido, condenando,
em substituição da 2.ª R. a respetiva seguradora Interveniente;
7.ª - Esta, entendendo ser apenas parte acessória, recorreu daquela
condenação e ainda por entender ser exagerado o montante de €
40.000,00 arbitrado à A. a título de danos não patrimoniais;
8.ª – A Relação, dando razão à Seguradora, absolveu-a do pedido e
limitou a indemnização pelos danos não patrimoniais àquela quantia,
condenando as 3 filhas do 1.º R. e a 2.ª R. na quantia de € 126.849,40 e
nas custas da ação;
9.ª – Por se tratar de manifesto lapso, as Recorrentes dão por
corrigido que tal condenação não se limita àquelas três habilitadas
mas às quatro;
10.ª – Também entendem as Recorrentes que a condenação das R.R.
será na proporção de metade para as habilitadas e metade para a 2.ª
R.;
11.ª – Considerando o invocado contrato, devia então a 2.ª R., como
devedora, responder – ela e só ela – para com a A. pelos atos dos seus
auxiliares ou serventuários, entre os quais se encontrava o 1.º R., em
obediência ao disposto no artigo 800.º do CC;
12.ª – Assim, devia a Relação ter absolvido as quatro habilitadas do
pedido, até porque quem cobrou os preços à A. foi a 2.ª R.;
13.ª – A condenação das habilitadas, além de violar o disposto,
designadamente no artigo 800.º do CC, é ainda mais chocante, quanto
é certo que se trata de uma lide desigual, pelo fato de o óbito do 1.º R.
ter impedido de melhor se explicar e defender a discussão da causa,
sendo que as habilitadas desconhecem as cirurgias em causa,
ocorridas há mais de uma década;
14.ª – Ao condenar as habilitadas, o acórdão recorrido fez incorreta
interpretação e aplicação do artigo 800.º do CC.
    Pedem assim as Recorrentes que se revogue o acórdão recorrido na
parte em que as condenou, absolvendo-as do pedido.
    12.3. A 2.ª R., Santa Casa da Misericórdia do …, formulou as
seguintes conclusões:
1.ª - A definição de um quadro de responsabilidade contratual médica
exige a verificação dos elementos típicos do contrato, com a exigência
e o pagamento de um preço contratual livremente estabelecido pelas
partes:
2.ª - Não estamos perante responsabilidade contratual, pois não foram
demonstrados pela A. os pressupostos da existência de uma relação
contratual com o hospital da recorrente - Santa Casa da Misericórdia
de … -, designadamente não foi nem alegada nem demonstrada a
existência de um preço, mas antes de uma «comparticipação» no
pagamento do preço, que ficou a encargo do Serviço Nacional de
Saúde e projeta a relação para a responsabilidade civil
extracontratual;
3.ª - Essa «comparticipação» está confessada pela A., pois integra o
objeto da própria causa de pedir, tal como a A. o modelou deste o
início da instância;
4.ª - Sem prescindir mesmo em contexto de responsabilidade contratual
médica, não pode operar nem opera mecanicamente a norma do artigo
799.º/1 do CC, a chamada «culpa presumida» por estarmos no domínio
de adoção de obrigações de meios, onde a «culpa» se desloca do
“incumprimento” da lei geral para a eventual não adoção com a
diligência devida das corretas “leges artis”, incumbindo ao lesado o
ónus de fazer a contraprova da invocação da atuação médica;
5.ª - Estando-se fora de eventual responsabilidade contratual, não pode
operar qualquer “culpa presumida”, a qual foi apenas instituída pela
reforma operada pela Lei n.º 67/2007, de 31-12 antes se exigiria a
demonstração da culpa médica, do cirurgião ortopedista que realizou
as cirurgias, o que a A. não logrou demonstrar;
6.ª - A ilicitude da ação médica nunca se presume, incumbindo ao
lesado o ónus de realizar a sua demonstração através de meios de
prova idónea, vg pela fixação das “leges artis”, para se confrontar as
seguidas no caso dos autos com as legalmente exigíveis
7.ª - A culpa médica não pode ser estabelecida senão na falta de
cuidado geral e de diligência na ação, sendo de afastar qualquer
sentido culposo quando ocorrem efeitos inesperados, adversos mas
inelutáveis para os agentes médicos;
8.ª - Ainda sem prescindir, a fixação do montante do dano patrimonial
de uma cidadã trabalhadora auferindo uma remuneração mensal de €
199,20 não pode razoavelmente atingir o montante estabelecido no
acórdão recorrido, o qual corresponde ao montante que a A. auferiria
até ao seu 108 anos de vida (por corresponderem, sem redução
financeira, a mais 60 anos de vida) o que se mostra irrazoável e
desproporcionado;
9.ª – Em relação aos danos patrimoniais, deve o valor fixado pelo
acórdão recorrido ser reduzido de € 86.054,40 para € 40.000,00, valor
que se deve reputar mais do que razoável atenta a situação concreta da
A.
10.ª - Relativamente aos danos não patrimoniais fixados no acórdão
recorrido de € 40 000,00, deve o mesmo ser reduzido para € 30.000,00,
valor que se entende em consonância com a jurisprudência dominante,
atenta a condição da A. reduções essas que devem atender à
contribuição culposa da A. para o agravamento do dano.
11.ª - Ao julgar como o fez, violou o acórdão recorrido as normas dos
artigos 799.º/1 e ainda as normas dos artigos 341.º e segs. e 388.º e
389.º todos do CC;
12.ª - Violações essas que constituem fundamento do presente recurso,
a que aludem as normas do invocado art.º 674.º do CPC.
13. As habilitadas em representação do 1.º R. responderam à revista
interposta pela A., rematando com o seguinte quadro conclusivo:
1.ª – O acórdão recorrido reduziu de € 100.000,00 para € 40,000,00 o
“quantum” a prestar à A., a título de danos não patrimoniais, que foi
submetida (aos 40 anos) a duas cirurgias - uma mielectomia e 4 anos
depois a 1 PTA -, de que, como complicação, lhe resultou lesão do
ciático com necessidade de duas canadianas: para se deslocar, em
marcha claudicante, com os inerentes desgosto e dor (fixada esta em
3/7);
2.ª - Pela presente Revista, pretende a A. que lhe seja, de novo,
atribuídos aqueles € 100.000,00, porque sofrera um dano existencial...;
3.ª - Mas igual ou maior dano existencial sofreram os jovens acima
referidos, a quem as indicadas Relação e Supremo atribuíram quantias
inferiores aos € 40.000,00;
4.ª - Impõe a justiça que as compensações, por tais danos se situem,
tendo em atenção os danos, mas também o país em que vive-mos e o
tratamento de casos análogos (equidade);
5.ª - No caso está provado que a A., aos 40 anos, era obesa, pesando
80 kg e medindo 1,50 m de altura, hipertensa e com tendência para
artroses;
6.ª - De tais limitações ou “handycaps”, atinentes à pessoa da A., que
lhe dificultam a mobilidade e lhe aumentam o peso, agravando a
imobilidade e esta o peso, nenhuma culpa ou responsabilidade cabe ao
cirurgião: não decorrem adequadamente daquelas intervenções;
7.ª - Pelo que tal redução para € 40.000,00 está mais que justificada,
mostrando-se até, comparativamente, generosa;
8.ª - Considerando, neste tocante, intangível o acórdão em revista, é de
manter em não mais de € 40.000,00 o “quantum compensatório” a
pagar à A. pelos danos não patrimoniais, por aplicação do disposto no
art.º 496.º CC.
14. O Exm.º Relator da Relação, no despacho exarado a fls. 1295,
declarou retificar o dispositivo do acórdão recorrido, no sentido de nele
passar a constar também como ré habilitada CC. 
 
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - Delimitação do objeto dos recursos

Antes de mais, importa reter que, tratando-se de ação proposta em


2007, na qual as decisões impugnadas foram proferidas em 12/11/2015
(na 1.ª instância) e em 30/05/2016 (na Relação), é aplicável o regime
recursal do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, nos termos
do art.º 7.º, n.º 1, desta Lei, ressalvados o regime da dupla conforme.  
Como é sabido, no que aqui releva, o objeto do recurso é definido em
função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos
artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.
Dentro desses parâmetros, o objeto dos presentes recursos incide sobre
as seguintes questões:

A - No âmbito da revista interposta pela A., a questão do valor


indemnizatório a título de danos não patrimoniais, pretendendo a
Recorrente que seja elevado para € 100.000,00;

B – No âmbito da revista interposta pelas habilitadas em


representação do 1.º R., a questão da responsabilidade imputada ao
1.º R., fundada em erro de interpretação e aplicação do art.º 800.º
do CC;

C – Em sede de revista interposta pela 2.ª R.:


a) - A questão da natureza da responsabilidade civil pelos atos
médicos em causa, relativamente à qual a Recorrente sustenta que
não deve ser qualificada como relação jusprivatista, já que se trata
de responsabilidade civil extracontratual segundo o regime então
previsto no Dec-Lei n.º 48.051, de 21-11-1967;  
b) – Subsidiariamente, para o caso de se considerar que a
responsabilidade é de natureza contratual, a questão de saber se
estamos perante uma obrigação de meios e se, por isso, incumbia à
A. provar a ilicitude dos atos médicos praticados pelo 1.º R.,
entendendo a Recorrente que tal prova não foi feita; 
c) – Ainda subsidiariamente, a questão do montante
indemnizatório a título de dano patrimonial decorrente da
incapacidade da A., com a pretensão de que seja reduzido para €
40.000,00;
d) – E também a questão do montante indemnizatório a título de
danos não patrimoniais, com a pretensão de que seja reduzido para
€ 30.000,00. 
    
      Por razões metodológicas, tais questões serão apreciadas pela
seguinte ordem:
i) – Em primeira linha, a questão da natureza pública ou privada
da relação jurídica em que se inscrevem os atos médicos em
referência;
ii) – Em segundo lugar, as questões respeitantes à natureza da
obrigação em causa e ao ónus de prova da ilicitude e da culpa
quanto aos atos médicos praticados pelo 1.º R., bem como a questão
da sua imputação ao 1.º R. e/ou à 2.ª R.;
iii) – Por fim, as questões relativas aos montantes indemnizatórios,
quer a título de dano patrimonial decorrente da incapacidade
sofrida pela A., quer em sede de danos não patrimoniais.

III - Fundamentação   
1. Factualidade dada como provada

Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:


1.1. O hospital da 2.ª Ré tem atendimento permanente, com serviço de
urgência e de múltiplas valências médico-cirúrgicas – alínea G) dos
factos assentes;
1.2. O pessoal médico e de enfermagem que labora no hospital da 2.ª R.
fá-lo em regime liberal de prestação de serviços, como profissionais
liberais, sendo tecnicamente autónomo e independente no exercício das
suas funções – resposta ao art.º 43.º da base instrutória;
1.3. A 2.ª R. não superintende na atividade técnica dos médicos e
enfermeiros que prestam serviço no hospital, não interferindo no seu
aspeto técnico-profissional – resposta ao art.º 44.º da base instrutória;
1.4. A Santa Casa da Misericórdia Hospital celebrou com a Companhia
de Seguros II, S.A., Sociedade Aberta, um contrato de seguro,
transferindo para esta o risco de serviços médico-cirúrgicos relativo aos
prestadores de tais serviços pelos danos decorrentes de lesões corporais
e/ou materiais causados a clientes e terceiros até ao valor de €
500.000,00, nos termos da respetiva apólice n.º 82… e que se
encontrava em vigor – alínea E) dos factos assentes;
1.5. Em meados de 2001, à A. foi detetada uma lesão da cabeça
femoral direita e encaminhada por outro médico, para o 1.º R., para os
Serviços de Ortopedia do Hospital da Santa Casa da Misericórdia com
um problema de “necrose asséptica”, mais concretamente: sofria de
“necrose avascular” da cabeça femoral – alínea G) dos factos assentes
e resposta ao art.º 50.º da base instrutória;
1.6. Tal situação é geradora de dores intensas, do tipo esquémico,
causadoras de grande incapacidade – resposta ao art.º 51.º da base
instrutória;
1.7. A A. foi encaminhada por um médico que propunha uma “cirurgia
descompressiva da anca” – resposta ao art.º 52.º da base instrutória;
1.8. Apesar do referido em 1.6, a A. executava todas as tarefas da casa,
como cozinhar, lavar, brunir e limpar – resposta ao art.º 21.º da base
instrutória;
1.9. Ainda prestava serviço como empregada doméstica, auferindo €
2,49 à hora – resposta ao art.º 22.º da base instrutória;
1.10. E trabalhava por mês oitenta horas – resposta ao art.º 23.º da
base instrutória;
1.11. A A. efetuou diversas consultas onerosas com o Dr. BB, pagas ao
Hospital da 2.ª Ré – alínea B) dos factos assentes;
1.12. No âmbito das consultas referidas foi à A. diagnosticada uma
“osteonecrose” numa fase precoce da cabeça femoral direita – resposta
ao art.º 1.º da base instrutória;
1.13. Em consequência do diagnóstico efetuado, foi sujeita a
intervenção cirúrgica, em 03/09/2001, executada e orientada pelo
Senhor Dr. BB, aqui 1.º R. – alínea C) dos factos assentes e fls. 754;
1.14. Foi utilizada uma técnica denominada “mielectomia”, que era
pouco usada na altura – resposta ao art.º 3.º da base instrutória;
1.15. Tal cirurgia permitiria revascularizar a zona da cabeça femoral
necrosada – resposta ao art.º 55.º da base instrutória;
1.16. E adiaria a necessidade de uma “prótese da anca” – resposta ao
art.º 56.º da base instrutória;
1.17. A operação referida em 1.13 e em 1.14 é referida como uma das
técnicas cirúrgicas conservadoras da anca, alternativas à artroplastia
total da anca, que deve ser realizada nos primeiros estádios da necrose
avascular, desde que a cabeça femoral não tenha perdido a sua
esfericidade e morfologia, visando a preservação dessa estrutura
anatómica e tentar melhorar a sua vascularização – resposta ao art.º 2.º
da base instrutória;
1.18. Durante a aludida técnica cirúrgica de revascularização
endomedular referida em 1.13, 1.14 e 1.17, devido ao instrumento de
colheita ter lesionado parcialmente o tronco externo do ciático, em
consequência da dificuldade de acesso, e como consequência desse ato
a A. sofreu paralisia do ciático à direita – resposta ao art.º 4.º da base
instrutória;
1.19. Na intervenção cirúrgica referida em 1.13, é atingido o nervo
ciático e ocorre uma lesão do tronco externo do referido nervo –
fls.754.
1.20. E a A. passou a ter dores intensas – resposta ao art.º 5.º da base
instrutória;
1.21. Ao longo dos três anos subsequentes ao ato referido em 1.13, a A.
foi assistida pelo 1.º R. e pelos serviços da 2.ª R. – resposta ao art.º 6.º
da base instrutória;
1.22. Após três anos, como o problema da anca (necrose) da A. não
estava solucionado, esta foi aconselhada a submeter-se a nova
intervenção cirúrgica para aplicação duma prótese total da anca –
resposta aos artigos 7.º e 59.º da base instrutória;
1.23. Em 22/03/2004, foi a A. sujeita a nova intervenção cirúrgica no
mesmo Hospital de prótese total da anca, também executada e
orientada pelo Senhor Dr. BB – alínea D) dos factos assentes e fls. 754;
1.24. Na intervenção referida em 1.23 foi efetuada prótese total da anca
direita – resposta ao art.º 8.º da base instrutória;  
1.25. Nesta última cirurgia, o Senhor Dr. BB provocou um
alongamento de + - 24 mm do membro operado para compensar o
desequilíbrio mecânico proporcionado pela paralisia do nervo ciático,
tendo o aludido membro operado ficado com um alongamento de cerca
de 24 mm – resposta ao art.º 14.º da base instrutória e fls. 754;
1.26. E teve alta hospitalar em 27/03/2004 – resposta ao art.º 9.º da
base instrutória;
1.27. A A. assinou os termos de responsabilidade médica para ambas as
operações – alínea H) dos factos assentes e resposta ao art.º 45.º da
base instrutória;
1.28. O 1.º R. prestou os serviços referidos, tendo chefiado as equipas
cirúrgicas em ambas as operações, nas instalações da 2.ª R., com o
conhecimento e consentimento desta, mediante pagamento da A. –
alínea F) dos factos assentes;
1.29. Todos os atos médicos foram executados sob ordem e direção do
1.º R. – alínea I) dos factos assentes;
1.30. A A., em 2004, tinha 48 anos – resposta ao art.º 20.º da base
instrutória;
1.31. Atualmente, pelo menos, desde julho de 2010, apresenta uma
dismetria positiva de 1,5 cms do MID e tem uma prótese total da anca
direita sem aparentes reações – resposta ao art.º 15.º da base
instrutória;
1.32. O pé direito ficou pendente, que a A. não consegue levantar –
resposta ao art.º 16.º da base instrutória;
1.33. Em consequência do referido em 1.25 e do referido em 1.18 a A.
ficou com grande dificuldade em deslocar-se de um local para o outro,
carecendo sempre de ajuda de duas canadianas, apresentando marcha
claudicante, com recurso a canadianas – resposta aos artigos 10.º e 12.º
da base instrutória;
1.34. Ficou incapacitada para o trabalho, nada conseguindo executar –
resposta ao art.º 11.º da base instrutória;
1.35. Não consegue cozinhar, brunir, lavar ou fazer as camas – resposta
ao art.º 13.º da base instrutória;
1.36. Não consegue sair de casa sozinha – resposta ao art.º 17.º da base
instrutória;
1.37. Não consegue calçar-se sozinha – resposta ao art.º 18.º da base
instrutória;
1.38. A vida de casa passou a ser efetuada pelo marido e filho –
resposta ao art.º 19.º da base instrutória;
1.39. Nunca mais trabalhou, nem pode – resposta ao art.º 24.º da base
instrutória;
1.40. Deixou de fazer as camas e arrumar a casa – resposta ao art.º 25.º
da base instrutória;
1.41. Viu-se obrigada a não ter mais animais em casa – resposta ao
art.º 26.º da base instrutória;
1.42. A A. sente-se uma inválida – resposta ao art.º 27.º da base
instrutória;
1.43. Sofre por não poder caminhar, nem deslocar-se sozinha – resposta
ao art.º 30.º da base instrutória;
1.44. Sofre por saber que será uma inválida para o resto da vida –
resposta ao art.º 31.º da base instrutória;
1.45. A A. trabalhava de sol a sol todos os dias – resposta ao art.º 32.º
da base instrutória;
1.46. Era uma mulher cheia de vida e força e demonstrava alegria em
viver – resposta ao art.º 33.º da base instrutória;
1.47. Em consultas médicas pagou a A. ao Hospital € 545,00 – resposta
ao art.º 34.º da base instrutória;
1.48. Em fisioterapia despendeu € 250,00 – resposta ao art.º 35.º da
base instrutória;
1.49. As lesões que a A. padece resultaram do referido em 1.18 e 1.25 –
resposta aos artigos 36.º e 37.º da base instrutória;
1.50. Na colocação de qualquer prótese, não deve haver dismetrias nem
positivas nem negativas, tendo a estabilidade da mesma mais a ver com
problemas de colocação dos componentes do que com eventuais
dismetrias de compensação; em casos de instabilidade potencial é
sempre preferível deixar uma dismetria positiva, a qual não se destina a
compensar o desequilíbrio mecânico proporcionado pela paralisia do
ciático – resposta aos artigos 38.º e 41.º da base instrutória;
1.51. A A. é pessoa obesa, pesando, na altura, mais de 80 Kgs, e
medindo metro e meio de altura – resposta ao art.º 48.º da base
instrutória;
1.52. Era hipertensa e com tendências para artroses – resposta ao art.º
49.º da base instrutória;
1.53. Os estudos mais recentes prevêem que, em 5% de casos de
avascularização/necrose da anca e no respetivo "replacement"
(aplicação de prótese), não se consegue êxito total – resposta ao art.º
67.º da base instrutória;
1.54. O 1.º R. deixou à A. a perna operada com mais 2,4 cms – resposta
ao art.º 69.º da base instrutória;
1.55. São os dois atos cirúrgicos referidos em 1.13 e 1.23 a causa da
incapacidade de que a A. padece - fls. 755.
2. Factos dados como não provados

Vem dado como não provado o seguinte:


2.1. A operação referida em 1.13 (correspondente à alínea C dos
Factos Assentes) seja referida como muito simples e sem riscos;
2.2. A técnica denominada mielectomia fosse pouco usada na altura,
por não ser eficaz;
2.3. A intervenção cirúrgica a que, após três anos a A. foi aconselhada a
submeter-se, fosse a intervenção medicamente adequada a corrigir as
consequências do ato cirúrgico referido em 1.13 (correspondente à
alínea C dos Factos Assentes);
2.4. O limite da perna intervencionada tenha ficado com mais 3,5 cm;
2.5. Apresente um atrofiamento do membro inferior direito, à custa da
prótese da anca de 3,5 cm;
2.6. A A. não possa dormir para o lado direito;
2.7. A vida sexual da A. tenha desaparecido;
2.8. A A. sofra por ver que o marido e o filho têm que a substituir na
vida da casa;
2.9. Não tenham sido usadas as cirurgias aconselháveis;
2.10. A prótese de uma anca fosse ao tempo e seja hoje um processo
simples e quase sem risco;
2.11. Não seja possível que gere a incapacidade total de uma pessoa;
2.12. A A. tenha sido tratada com pleno conhecimento dos riscos que
corria;
2.13. Em ambas as operações, o 1.º R. tenha usado as técnicas
cirúrgicas mais adequadas;
2.14. Os resultados das intervenções se tenham devido, exclusivamente,
a fatores pessoais, atinentes à pessoa da A.;
2.15. O exame radiológico e o estádio de evolução da doença, a par da
sua obesidade mórbida, com a consequente sobrecarga mecânica,
impusesse uma urgente “mielectomia”;
2.16. Inviabilizasse qualquer outra alternativa disponível na ocasião,
nomeadamente, o recurso a osteotomias;
2.17. Tenha sido explicado pelo 1.º R. à A., os riscos associados à sua
particular situação, antes de cada uma das operações;
2.18. Feita a 1.ª cirurgia, a A. tenha verificado um alívio sintomático;
2.19. A 2.ª intervenção tenha sido bem sucedida e sem complicações
pós-operatórias;
2.20. A A. tem sido monitorizada, revelando uma evolução favorável,
estando controladas as eventuais complicações de médio prazo,
sobretudo, de natureza mecânica;
2.21. Estas se prendam com a sobrecarga ponderal violenta, a que a
prótese está a ser submetida (estimada em cerca de 250 Kg por cada
ciclo de marcha), o que impõe uma regular vigilância imagiológica,
sobretudo nos primeiros 5 anos pós-operatórios;
2.22. Atualmente, a A. apresente uma evolução lenta, mas favorável, da
sua lesão;
2.23. Tenha sido conseguido uma percentagem de êxito em ambas as
intervenções, e que a mesma esteja dentro do previsto nos parâmetros
internacionais;
2.24. No caso da A., era impossível, para qualquer cirurgião, devolver-
lhe a plena capacidade de trabalho, ou a completa ausência de
limitações e sofrimento;
2.25. Estaria mais incapacitada e sofredora se não tivesse sido
submetida às operações;
2.26. Se continuar a ser monitorizada e a seguir a terapêutica adequada,
o seu estado, melhorará;
2.27. As boas técnicas ditem que em casos, como o da A., de obesidade
mórbida, o operador deve deixar a perna operada (c/ prótese) levemente
mais comprida;
2.28. A A. se ficasse sem aquele “alongamento” de 2,4 cm, com a sua
obesidade acentuada, ficaria com a mesma perna mais curta que a
outra.

3. Do mérito do recurso

3.1. Enquadramento preliminar

Com a presente ação, a A. pretende ser indemnizada por danos


patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de sequelas por ela sofridas
em consequência, em síntese, de duas operações cirúrgicas realizadas
pelo 1.º R., na qualidade de médico ortopedista ao serviço da 2.ª R.,
imputando tal responsabilidade, a título de culpa, àquele R..
Nessa base, pediu a condenação solidária dos referidos R.R. na
indemnização global € 225.795,00, acrescido de juros de mora desde a
citação, compreendendo as parcelas de € 150.000,00, por dano
patrimonial decorrente da incapacidade sofrida, de € 75.000,00, a título
de danos não patrimoniais, de € 545,00 por despesas com consultas
médicas e de € 250,00 com tratamentos de fisioterapia.
A 2.ª R. provocou a intervenção principal da Companhia de Seguros
GG, S.A., por ter transferido para esta a responsabilidade civil
emergente da sua atividade de prestação de serviços médico-cirúrgicos,
o que foi assim admitido, embora impugnado pela chamada.

Em 1.ª instância, a ação foi julgada parcialmente procedente, sendo


condenada a Seguradora, como interveniente principal, a pagar à A. a
indemnização total de € 186.849,40, compreendendo, além do mais, a
parcela de € 86.054,40 por dano patrimonial decorrente da
incapacidade sofrida pela A. e de € 100.000,00 a título de danos não
patrimoniais, acrescidas de juros de mora a contar da data da sentença.
E foi considerado, por consequência disso, prejudicado o pedido
formulado contra o 1.º R. e a 2.ª R..

No âmbitos dos recursos interpostos pela Seguradora Interveniente, o


Tribunal da Relação revogou a decisão que admitiu aquela como
interveniente principal considerando-a antes como parte acessória e,
julgando a ação parcialmente procedente, condenou as habilitadas, em
representação do 1.º R., e a 2.ª R. a pagar à A. a indemnização total de
€ 126.849,40, compreendendo, além do mais, a parcela de € 86.045,40
por dano patrimonial decorrente da incapacidade sofrida pela A. – tal
como fora arbitrada em 1.ª instância – e a parcela de € 40.000,00 – em
vez dos € 100.000,00 fixados pela 1.ª instância -, a título de danos não
patrimoniais.

Todavia, vem a 2.ª R. questionar, no respetivo recurso de revista, a


natureza da responsabilidade civil pelo atos médicos praticados pelo 1.º
R. e a prova da sua ilicitude e culpa para efeitos de responsabilizar a 2.ª
R. nos termos do art.º 800.º, n.º 1, do CC, bem como os montantes
indemnizatórios arbitrados quer a título do dano patrimonial decorrente
da incapacidade sofrida pela A. quer a título de danos não patrimoniais,
pugnando, em primeira linha, pela sua absolvição do pedido e,
subsidiariamente, pela redução dos montantes indemnizatórios para €
40.000,00 pelo dano patrimonial relativo à incapacidade e para €
30.000,00 pelos danos não patrimoniais.
Também as habilitadas em representação do 1.º R. pedem revista no
sentido de, em face ao contrato de prestação de serviço médico
celebrado entre a A. e a 2.ª R., só esta ser responsabilizada nos termos
do artigo 800.º do CC ou então tal responsabilidade ser repartida na
proporção de metade para cada uma das partes rés.    
Por seu lado, a A. pede revista no sentido de ser elevado de € 40.000,00
para € 100.000,00 o valor indemnizatório a título de danos não
patrimoniais. 

3.2. Quanto à qualificação da relação jurídica em que se inscrevem


os atos médicos em causa

A Recorrente/2.ª R., Santa Casa da Misericórdia do …, começou por


questionar a natureza da relação jurídica em que se integram os atos
médico-cirúrgicos de que resultaram as sequelas da A., sustentando que
se reconduzem ao domínio da responsabilidade civil extracontratual
regulado pelo Dec.-Lei n.º 48.051, de 21-11-1967, hoje substituído pela
Lei n.º 67/2007, de 31-12, porquanto:
- A Recorrente é uma Instituição Particular de Solidariedade Social
(IPSS) a atuar na área da saúde, tanto desenvolvendo atividade privada
como intervindo no perímetro do Serviço Nacional de Saúde (SNS),
realizando atividade cirúrgica que este Serviço lhe defere por não estar
dotado de toda a capacidade logística e de recursos humanos para o
efeito;
- É assim que a R. intervém atualmente através dos mecanismos do
denominado SIGIC como era ainda ao tempo dos factos aqui em causa,
conjuntura em que os doentes se dirigiam ao hospital da Recorrente
munidos de um documento de referência designado P1 que lhes
concedia a possibilidade de se submeterem a cirurgia pagando uma
“comparticipação do preço” que o SNS abonava ao hospital;
- No hospital público e naqueles do perímetro da Administração da
Saúde, como no chamado sector social, dos hospitais detidos por IPSS,
se prestam cuidados de saúde por atribuição pública e por dever
jurídico em sentido restrito, não havendo preço nem qualquer
componente económica nessa relação, em que os intervenientes não se
conhecem senão no momento da prestação de cuidados de saúde;
- Tanto nos hospitais públicos ou do sector social como nos hospitais
privados, há pagamentos, com a diferença de que naqueles o
pagamento se traduz numa taxa - à época, uma comparticipação -,
enquanto que nos hospitais privados o pagamento constitui um pré-
ço;       
- Assim, dos documentos da “comparticipação” da A. em cada uma das
cirurgias em referência e demais prova documental e testemunhal
apresentada (Dr. JJ) se pode concluir não estarmos perante um contrato
de prestação de serviço de natureza privada civil, não tendo sido
demonstrado qualquer outro elemento de facto em contrário;
- A relação em causa foi, pois, de intervenção do Hospital da 2.ª
R./Recorrente, a benefício da A., com pagamento por parte do SNS;
- Daí resulta, portanto, a aplicabilidade daquele domínio de
responsabilidade civil extracontratual, para cujo contencioso é, de
resto, competente a jurisdição administrativa, e não o regime do
contrato de prestação de serviço civil em que se estribou o acórdão
recorrido.
Em suma, pretende aquela Recorrente que a relação jurídica firmada
entre a A. e a 2.ª R., no âmbito da qual se inscrevem os atos médicos
em causa - tida pelas instâncias como relação emergente de um contrato
de prestação de serviço médico de natureza privatistico-civil -, seja
reconduzida ao quadro da responsabilidade civil extracontratual
previsto e regulado no indicado Dec.-Lei n.º 48.051, por considerar
que, no caso, a 2.ª R. interveio no perímetro da sua articulação com o
SNS. E chega mesmo ao ponto de considerar que seria a jurisdição
administrativa a materialmente competente para julgar o presente
litígio.

Sucede que a 2.ª R. nem tão pouco suscitou tal questão na sua
contestação, na qual, sob os respetivos artigos 1.º a 10.º, neste
particular, se limitou a referir que “o seu hospital tem atendimento
permanente com serviços de urgência e de múltiplas valências” e que o
pessoal médico e de enfermagem labora ali em regime liberal de
prestação de serviço, como profissionais liberais.
No entanto, a mesma R. refere agora que, em sede de alegações orais,
teria sublinhado perante o tribunal da 1.ª instância “que o relevo não se
encontra na circunstância de um hospital ser da administração indireta
do Estado, mas da qualidade da relação estabelecida, de estar ou não
sob a interferência e encargos do SNS (…)”.
Porém, face à qualificação dada pela 1.ª instância, aquela R. não
apresentou contra-alegações no recurso de apelação interposto pela
Interveniente de Seguros GG, S.A., através das quais lhe seria
porventura lícito suscitar a ampliação do objeto do recurso, a título
subsidiário, nos ter-mos do artigo 636.º, n.º 2, do CPC, nomeadamente
sobre a matéria de facto pertinente. 

Ora, da matéria de facto fixada pelas instâncias, no respeitante à


referida questão, apenas consta o seguinte:  
i) - O hospital da 2.ª Ré tem atendimento permanente, com serviço de
urgência e de múltiplas valências médico-cirúrgicas – ponto 1.1. da
factualidade provada;  
ii) - O pessoal médico e de enfermagem que labora no hospital da 2.ª R.
fá-lo em regime liberal de prestação de serviços, como profissionais
liberais, sendo tecnicamente autónomo e independente no exercício das
suas funções – ponto 1.2 da factualidade provada;
iii) - A 2.ª R. não superintende na atividade técnica dos médicos e
enfermeiros que prestam serviço no hospital, não interferindo no seu
aspeto técnico-profissional – ponto 1.3. da factualidade provada;  
iv) - A Santa Casa da Misericórdia Hospital celebrou com a Companhia
de Seguros II, S.A., Sociedade Aberta, um contrato de seguro,
transferindo para esta o risco de serviços médico-cirúrgicos relativo aos
prestadores de tais serviços pelos danos decorrentes de lesões corporais
e/ou materiais causados a clientes e terceiros até ao valor de €
500.000,00, nos termos da respetiva apólice n.º 8249586 e que se
encontrava em vigor – ponto 1.4 da factualidade provada;  
v) - Em meados de 2001, à A. foi detetada uma lesão da cabeça femoral
direita e encaminhada por outro médico, para o 1.º R., para os serviços
de Ortopedia do Hospital da Santa Casa da Misericórdia com um
problema de “necrose asséptica”, mais concretamente: sofria de
“necrose avascular” da cabeça femoral – ponto 1.5 da factualidade
provada;
vi) - A A. foi encaminhada por um médico que propunha uma “cirurgia
descompressiva da anca” – ponto 1.7 da factualidade provada;  
vii) - A A. efetuou diversas consultas onerosas com o Dr. BB, pagas ao
Hospital da 2.ª Ré – – ponto 1.11 da factualidade provada;
viii) - No âmbito das consultas referidas, foi à A. diagnosticada uma
“osteonecrose” numa fase precoce da cabeça femoral direita – ponto
1.12 da factualidade provada;
ix) - Em consequência do diagnóstico efetuado, foi sujeita a
intervenção cirúrgica, em 03/09/2001, executada e orientada pelo
Senhor Dr. BB, aqui 1.º R. – ponto 1.13 da factualidade provada;  
x) - Ao longo dos três anos subsequentes ao ato referido em 1.13, a A.
foi assistida pelo 1.º R. e pelos serviços da 2.ª R. – ponto 1.21 da
factualidade provada;  
xi) - O 1.º R. prestou os serviços referidos, tendo chefiado as equipas
cirúrgicas em ambas as operações, nas instalações da 2.ª R., com o
conhecimento e consentimento desta, mediante pagamento da A. –
ponto 1.28 da factualidade provada;
xii) - Todos os atos médicos foram executados sob ordem e direção do
1.º R. – – ponto 1.29 da factualidade provada;  
xiii) - Em consultas médicas pagou a A. ao Hospital € 545,00 – ponto
1.47 da factualidade provada;  
      Significa isto que a 2.ª R. não alegou, oportunamente, nem muito
menos logrou provar factos tendentes a demonstrar que os atos médicos
em causa foram realizados no quadro da sua articulação com o SNS,
sendo que, segundo ela própria afirma, como instituição particular de
solidariedade social, atua na área da saúde, tanto desenvolvendo
atividade privada como intervindo no perímetro daquele SNS.
      Nestas circunstâncias, além de estarmos perante uma questão nova,
não colocada em termos formalmente regulares e oportunos perante as
instâncias, nem sequer da factualidade provada consta matéria que
permita a este tribunal de revista equacionar a qualificação jurídica ora
pretendida pela 2.ª R. ou questionar, oficiosamente, a competência
material dos tribunais judiciais para conhecer do presente pleito. Para
tal, mostra-se manifestamente insuficiente a pretendida caracterização
dos pagamentos da A. à 2.ª R. como “comparticipações” ao SNS.
       Termos em que se tem como adquirida a qualificação dada
pelas instâncias no sentido de que os atos médicos em causa foram
realizados no quadro de uma relação jurídica de prestação de
serviços de saúde de natureza privatístico-civil entre a A e a 2.ª R..
        
3.3. Quanto ao título de responsabilidade civil imputada à 2.ª R. e
às habilitadas em representação do 1.º R.
         
     Em face da factualidade provada, a 1.ª instância considerou, em
síntese, que os atos médicos em causa foram prestados no âmbito de
um contrato privado civil de prestação de serviços médicos, celebrado
entre a A. e a 2.ª R., tendo concluído pela imputação dos danos, a título
de culpa efetiva, por erro médico do 1.º R., pelos quais seria
responsável a 2.ª R. ao abrigo do art.º 800.º, n.º 1, do CC, mas que,
tendo ela transferido a sua responsabilidade para a Interveniente
Seguradora, só se impunha a condenação desta nas indemnizações
devidas à A., julgando, por isso, prejudicado o pedido formulado contra
o 1.º R. e 2.ª R..
     Por sua vez, o Tribunal da Relação, nos recursos interpostos pela
referida Seguradora, considerou esta apenas como interveniente
acessória e, nessa decorrência, reapreciando as responsabilidades
imputadas ao 1.º R. e à 2.ª R., concluiu que as sequelas sofridas pela A.
eram imputáveis, a título de culpa presumida, a ambos aqueles R.R., na
base do que condenou as habilitadas do 1.º R. e a 2.ª R. a pagar à A. as
respetivas indemnizações.
     
Perante tal condenação, a 2.ª R. pede revista, além do já referido no
ponto precedente, sustentando, no essencial, que:
- estamos perante uma obrigação de meios, em relação à qual a ilicitude
da ação médica nunca se presume, incumbindo ao lesado o ónus de
realizar a sua demonstração através de meios de prova idónea, v.g. pela
fixação das leges artis, para se confrontar as seguidas no caso dos autos
com as legalmente exigíveis;
- A culpa médica não pode ser estabelecida senão na falta de cuidado
geral e de diligência na ação, sendo de afastar qualquer sentido culposo
quando ocorrem efeitos inesperados, adversos mas inelutáveis para os
agentes médicos.
       Por seu lado, as habilitadas em representação do 1.º R. pedem
também revista, sustentando que só a 2.ª R. deverá responder nos
termos do artigo 800.º do CC ou, quando muito, ser a responsabilidade
repartida na proporção de metade para aquelas habilitadas e metade
para a 2.ª R..
       Não vem, pois, aqui posta em causa a eliminação da condenação da
Interveniente Seguradora.   

       Vejamos.

      Assente que está a natureza jus-privatística da relação jurídica em


que se inscrevem os atos médicos em causa, importa ainda proceder à
sua caracterização em termos de determinar quais os institutos de
responsabilidade civil aplicável.
     Na linha do enquadramento jurídico avançado pelas instâncias,
convém reter que a prestação de serviços de saúde, no sector privado,
se pode reconduzir a uma diversificada tipologia de fontes jurídicas,
consoante o perfil de cada caso concreto.  
      Assim, há casos em que as prestações dos cuidados de saúde são
realizadas sem a prévia ou concomitante negociação entre o prestador
do serviço e o paciente, não se gerando, por isso, qualquer vínculo
negocial. Daí que a ocorrência de lesão do paciente, no quadro da
realização dessa prestação, deva ser equacionada em sede de
responsabilidade civil extracontratual ou delitual, nos termos dos
artigos 483.º e seguintes do CC.
      Já quando a prestação do serviço de saúde tiver sido objeto, de
algum modo, de negociação entre o prestador de serviço (médico ou
instituição prestadora de cuidados de saúde) e o paciente, impõe-se
reconduzir o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso da
obrigação assumida pelo prestador ao instituto da responsabilidade
contratual, nos termos dos artigos 798.º e seguintes do CC, sem
prejuízo de eventual concurso deste título de responsabilidade com a
responsabilidade delitual.
      Com efeito, é hoje pacificamente aceite, na doutrina e na
jurisprudência, que a prestação de cuidados de saúde, mormente de
serviços médicos, pode ser objeto de regulação por via contratual, entre
o paciente e o profissional de saúde (v.g. médico) ou uma instituição
prestadora de serviços de saúde, na esfera do princípio da autonomia
privada proclamado no artigo 405.º do CC, ainda que com as limitações
e imposições à liberdade de celebração e de estipulação decorrentes das
normas legais imperativas, das normas deontológicas e de certos
costumes e usos respeitantes ao exercício das profissões de saúde, ou
inerentes à natureza indisponível do bem jurídico envolvido, como é o
complexo psico-somático do paciente, tutelado pelos direitos de
personalidade[1].
      Nessa base, a relação jurídica de matriz convencional entre o
médico e o paciente tem vindo a ser configurada, à luz do nosso
ordenamento legal, como um contrato social e nominalmente típico, de
natureza civil, consensual, subsumível ao tipo de contrato de prestação
de serviço previsto no artigo 1154.º do CC, em regra oneroso, podendo
ainda ser perspetivado como contrato de consumo[2].
       E no âmbito mais complexo das variadas prestações de serviços de
saúde, no domínio do sector privado, como se destaca no acórdão do
STJ, de 28/01/2016, proferido no processo n.º 136/12.5TVLSB.L1.S1,
[3], a doutrina mais recente[4] tem vindo a avançar com a seguinte
tipologia:
 i) – a modalidade de contrato total, traduzido num misto (combinado)
que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se
junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e
paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de
compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de
empreitada (confecção de alimentos);
 ii) – a variante de contrato total com escolha de médico (contrato
médico adicional), consistente num contrato total mas com a
especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a
determinadas prestações);
 iii) – a modalidade de contrato dividido, nos termos do qual a clínica
apenas assume as obrigações decorrentes do internamento
(hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto que o serviço
médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (actos
médicos).     
 
   Pode ainda, noutra variante, a instituição prestadora dos serviços de
saúde só assumir as obrigações correspondentes ao contrato de
prestação de serviços médicos, portanto sem internamento.[5]       
     Nesse quadro, enquanto que, tanto no dito contrato total como nesta
última variante, é a instituição prestadora do serviço quem responde
integralmente perante o paciente credor, na variante com escolha de
médico, este poderá também responder em sede do contrato médico
adicional e, na modalidade de contrato dividido, responderão, em
princípio, a instituição prestadora e o médico, na órbita das respetivas
obrigações assim assumidas.     
        
      No caso dos autos, no que aqui releva, dos factos provados colhe-se
o quadro já transcrito no ponto precedente, de que se respiga o
seguinte:
i) - O hospital da 2.ª Ré tem atendimento permanente, com serviço de
urgência e de múltiplas valências médico-cirúrgicas – ponto 1.1 da
factualidade provada;
ii) - O pessoal médico e de enfermagem que labora no hospital da 2.ª R.
fá-lo em regime liberal de prestação de serviços, como profissionais
liberais, sendo tecnicamente autónomo e independente no exercício das
suas funções – ponto 1.2 da factualidade provada;  
iii) - A 2.ª R. não superintende na atividade técnica dos médicos e
enfermeiros que prestam serviço no hospital, não interferindo no seu
aspeto técnico-profissional – ponto 1.3 da factualidade provada;  
iv) - A Santa Casa da Misericórdia Hospital celebrou com a Companhia
de Seguros II, S.A., Sociedade Aberta, um contrato de seguro,
transferindo para esta o risco de serviços médico-cirúrgicos relativo aos
prestadores de tais serviços pelos danos decorrentes de lesões corporais
e/ou materiais causados a clientes e terceiros até ao valor de €
500.000,00, nos termos da respetiva apólice n.º 82… e que se
encontrava em vigor – ponto 1.4 da factualidade provada;
v) - A A. foi encaminhada por um médico que propunha uma “cirurgia
descompressiva da anca” – ponto 1.7 da factualidade provada;
vi) - A A. efetuou diversas consultas onerosas com o Dr. BB, pagas ao
Hospital da 2.ª Ré – ponto 1.11 da factualidade provada;  
vii) - Em consequência do diagnóstico efetuado, foi sujeita a
intervenção cirúrgica, em 03/09/2001, executada e orientada pelo
Senhor Dr. BB, aqui 1.º R. – ponto 1.13 da factualidade provada;
viii) - Ao longo dos três anos subsequentes ao ato referido em 1.13, a
A. foi assistida pelo 1.º R. e pelos serviços da 2.ª R. – ponto 1.21 da
factualidade provada;
ix) - O 1.º R. prestou os serviços referidos, tendo chefiado as equipas
cirúrgicas em ambas as operações, nas instalações da 2.ª R., com o
conhecimento e consentimento desta, mediante pagamento da A. –
ponto 1.28 da factualidade provada;
x) - Todos os atos médicos foram executados sob ordem e direção do
1.º R. – ponto 1.29 da factualidade provada;  
xi) - Em consultas médicas pagou a A. ao Hospital € 545,00 – ponto
1.47 da factualidade provada.

       Em face deste acervo factual, como concluíram as instâncias, os


serviços médicos-cirúrgicos prestados pelo 1.º R. à A. ocorreram no
âmbito de uma relação contratual, de natureza privatística, firmada
entre a mesma A. e a 2.ª R., nos termos da qual o 1.º R. interveio como
médico ortopedista enquanto “auxiliar” no cumprimento da obrigação,
em regime de prestação liberal, ao serviço da 2.ª R.. Desse acervo não
se divisa, porém, qualquer elemento que permita configurar uma réstia
de vinculação contratual entre a A. e o 1.º R. a título de escolha de
médico nem muito menos de contrato dividido. O que se constata é que
o 1.º R. interveio dentro da sua esfera de autonomia e direção técnico-
profissional, no quadro das funções que lhe estavam atribuídas pela 2.ª
R., cujo desempenho esta disponibilizou, por via contratual, à A..
Estamos, pois, perante um contrato de prestação de serviços de saúde
total, que integrava os serviços médicos de assistência e de cirurgia e os
serviços de internamento conexos, mediante o correspetivo pagamento
pela A. à 2.ª R.
Nessa conformidade, a 2.ª R. é responsável perante a A., nos termos do
artigo 800.º, n.º 1, do CC, pelos atos do 1.º R. na execução das
prestações médicas convencionadas, como se tais atos fossem
praticados por aquela devedora.    
Assim sendo, a responsabilidade da 2.ª R. por esses atos deve ser
aferida em função dos ditames que ao 1.º R. cumpria observar na
realização da prestação médica à A. ao serviço daquela R..
Por outro lado, não existindo, como não existia, qualquer vinculação
contratual entre a A. e o 1.º R., não é lícito àquela reclamar deste,
enquanto auxiliar no cumprimento da 2.ª R., indemnização pelos
prejuízos causados na realização das prestações em referência, só sendo
lícito fazê-lo perante a 2.ª R. como devedora[6].
Só lhe será lícito reclamar indemnização do 1.º R., se tiver ocorrido,
concomitantemente, por parte dele, facto ilícito relevante a título de
responsabilidade extracontratual. E, neste caso, nem sequer a 2.ª R.
responderia pelos danos decorrentes do facto ilícito imputável ao 1.º R.
nos termos do art.º 500.º do CC, uma vez que dos factos provados não
resulta qualquer relação de comissão entre ambos.

Vejamos então em que termos responderá a 2.ª R. pelas sequelas


causadas à A. no âmbito das duas intervenções cirúrgicas efetuadas
pelo 1.º R..
A propósito da problemática envolvente, muito se tem discutido sobre a
natureza das obrigações inerentes à prática de atos médicos.
De um modo geral, tem-se entendido que o resultado correspondente ao
fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não
deve ser considerado como a cura da patologia que estiver em causa,
mas sim como o tratamento adequado dessa patologia mediante a
observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte
médicas (leges artis), posto que a prática da medicina encerra, em
regra, uma natureza complexa e aleatória derivada da própria
complexidade dos sistemas psico-somáticos humanos, a par do estado e
desenvolvimento dos conhecimentos científicos e técnicos
disponíveis[7]. Nessa medida, a obrigação de prestação do ato médico
configura-se como uma obrigação de meios, por parte do médico, na
obtenção do tratamento adequado.
Ora, no campo da responsabilidade contratual emergente de uma
obrigação de meios, coloca-se a questão da distinção entre a vertente da
ilicitude e a vertente da culpa, mormente para efeitos de repartição do
ónus de prova, à luz das regras constantes dos artigos 342.º, n.º 1, 798.º
e 799.º do CC.
Assim, é comumente entendido pela doutrina e jurisprudência que, no
quadro de uma típica obrigação de resultado, incumbe ao credor lesado
provar a ocorrência desse resultado como facto constitutivo que é da
obrigação de indemnizar (art.º 342.º, n.º 1, e 798.º do CPC), face ao que
se presume a culpa do devedor lesante, sobre quem recai o ónus de
ilidir tal presunção legal, nos termos do artigo 799.º do CC.
Já no domínio das obrigações de meios, tem-se entendido que impende
sobre o credor lesado (o paciente) provar não só a falta de verificação
do resultado pretendido, mas também a falta de cumprimento do dever
objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente requerido pelas
leges artis, como pressuposto de ilicitude, incumbindo, por seu turno,
ao devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a
fim de ilidir a presunção da culpa[8].

Segundo o ensinamento de Almeida Costa[9], as obrigações de meios,


que ocorrem com mais frequência no domínio das obrigações de
prestação de facto positivo, em particular nas que se prendem com
atividades profissionais liberais:
“(…) são aquelas em que o devedor apenas se compromete a
desenvolver, prudente e diligentemente, certa atividade para a obtenção
de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se
produza” …. “Daí que o devedor fique exonerado na hipótese de o
cumprimento requerer uma diligência maior do que a prometida, e que
tanto a impossibilidade objectiva como a subjectiva não imputáveis ao
devedor o liberem (artigos 790.º e 791.º)”.
E, conforme observa Carneiro da Frada, nas obrigações de meios, há
que fazer a distinção entre a finalidade da obrigação, dirigida ao
resultado pretendido, e o conteúdo estruturante do próprio dever
objetivo de diligência ou de cuidado, sendo que a falta de cumprimento
da obrigação ou o seu cumprimento defeituoso se aferem não pelo
respetivo escopo, mas sim em função do teor daquele dever[10]. Tal
distinção torna-se, pois, essencial para equacionar a distribuição do
ónus probatório sobre os pressupostos da responsabilidade civil
emergente da falta de cumprimento ou do cumprimento defeituoso no
quadro de uma obrigação de meios, nomeadamente em sede do
disposto no artigo 799.º, n.º 1, do CC.
Quando a obrigação é de meios ou de diligência, segundo Carneiro da
Frada[11]:
“… é então ao devedor que compete identificar e fazer provar a
exigibilidade de tais meios ou da diligência (objectivamente) devida. A
presunção de culpa tende portanto a confinar-se à mera censurabilidade
pessoal do devedor. Por outras palavras, se a falta de cumprimento
carece de ser positivamente demonstrada pelo credor lesado, esta
exigência traduz-se aqui, em termos práticos, na demonstração da
ilicitude da conduta do devedor.
Tudo isso comporta a formulação do art.º 799.º, n.º 1, do CC. Nas
obrigações de meios, (…) dada a ausência de um resultado devido, não
é suficiente que o credor demonstre a falta de verificação do resultado.
Ele tem sempre de individualizar uma concreta falta de cumprimento
(ilícita). Dada a índole da obrigação, carece de demonstrar que os
meios não foram empregues pelo devedor ou que a diligência
prometida com vista a um resultado não foi observada.”   
     Por sua vez, Antunes Varela, embora critique a tese que de que a
violação do dever objectivo de cuidado exigível se coloque no plano da
ilicitude, considerando que “não é essa, manifestamente, a concepção
de ilicitude no direito civil português”[12], o certo é que, ao tratar do
tema da “presunção de culpa”, na órbita da responsabilidade contratual,
acaba por considerar que “nas obrigações de meios não bastará (…) a
prova da não obtenção do resultado previsto com a prestação, para se
considerar provado o não cumprimento.” E, tomando como exemplos
as profissões de médico e de advogado, acrescenta que “é necessário
provar que o médico ou o advogado não realizaram os actos em que
normalmente se traduziria uma assistência ou um patrocínio diligente,
de acordo com as normas deontológicas aplicáveis ao exercício da
profissão”[13].
    De acordo com esta orientação doutrinária, por exemplo, o acórdão
do STJ, de 11/07/2006, proferido no processo n.º 06A1503[14],
considerou que:
“É de meios, não de resultado, a obrigação a que o cirurgião se vincula
perante a doente com quem contrata a realização duma cirurgia à
glande tiróide (tiroidectomia) em determinado hospital”.
     Todavia, ante a frequente onerosidade da prova para o paciente
sobre a inobservância das leges artis, por parte do médico, têm vindo a
ser consideradas outras soluções, entre as quais a que tem procurado
distinguir a atividade médica de carácter mais geral, aleatório ou
complexo, e as atividades médicas especializadas em que a margem de
risco seja ínfima. Nessa base, tem sido considerado que, nestes tipos de
atividade, a obrigação do médico se poderá traduzir numa obrigação de
resultado, fazendo recair sobre ele o ónus de provar, no plano da culpa,
que a ocorrência desse resultado não decorre de falta de cuidado ou
imperícia, nomeadamente por inobservância das leges artis.
     Nesta linha, podemos citar os seguintes acórdãos do STJ:
 - o acórdão de 15/12/2011, proferido no processo n.º 209/06.
3TVPRT.P1.S1[15], no qual se observa que “(…) casos há em que  o
médico está vinculado a obter um resultado concreto, constituindo
exemplo de escola a cirurgia estética de embelezamento (mas já não a
cirurgia estética reconstrutiva geralmente considerada como exemplo
cirúrgico de obrigação de meios), a par da execução das manobras
próprias de parto, no campo da odontologia, por exemplo, a simples
extracção de um dente ou colocação de um implante, a ainda nas áreas
de vasectomia e exames laboratoriais”;
 - o acórdão de 07/10/2010, proferido no processo n.º 1364/05.
5TBBCL.G1[16], em que se considerou que:
“Em regra, a obrigação do médico é uma obrigação de meios (ou de
pura diligência), cabendo, assim, ao lesado fazer a demonstração em
juízo de que a conduta (acto ou omissão) do prestador obrigado não foi
conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto,
virem propiciar a produção do almejado resultado.
   Já se se tratar de médico especialista (v.g. um médico obstetra) sobre
o qual recai um específico dever do emprego da técnica adequada, se
torna compreensível a inversão do ónus da prova, por se tratar de uma
obrigação de resultado – devendo o mesmo ser civilmente
responsabilizado pela simples constatação de que a finalidade proposta
não foi alcançada (prova do incumprimento), o que tem por base uma
presunção da censurabilidade ético-jurídica da sua conduta.”
  - mais recentemente, o acórdão de 26/04/2016, proferido no processo
n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1[17], em que se considerou que “(…) no
contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos com colocação de
prótese, o médico assume uma obrigação de resultado quanto à
elaboração da prótese adequada à anatomia do paciente, e uma
obrigação de meios quanto à aplicação da mesma no organismo do
paciente segundo as leges artis.”
          
Seja como for, afigura-se que uma tal ponderação – obrigação de meios
/ obrigação de resultado - não deve ser feita de forma apriorística em
função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas sim de
forma casuística centrada no exato contexto e contornos de cada
situação, sem prejuízo do apelo a alguns factores indiciários, sabido
como é que o carácter aleatório e complexo dos atos médicos
dependem de diversas condicionantes que nem sempre se revelam na
tipologia de determinada especialidade.[18]     

No caso vertente, no que aqui releva, do universo factual constante dos


pontos 1.5 a 1.7, 1.11 a 1.26, 1.29 a 1.34, 1.49, 1.50 e 1.53 a 1.55 da
factualidade provada decorre, desde logo, que as lesões que a A.
padece, mormente a sua situação de incapacidade, resultaram das duas
intervenções cirúrgicas referidas nos pontos 1.18 e 1.25, mais
precisamente:
i) - da intervenção cirúrgica realizada em 03/09/2001, no decurso da
qual ocorreu a lesão parcial do tronco externo do ciático pelo
instrumento de colheita, em virtude da dificuldade de acesso à zona a
intervencionar, e de que resultou a paralisia daquele nervo à direita;
ii) - da intervenção cirúrgica realizada, cerca de três anos depois, em
22/03/2004, através da qual foi implantada uma prótese total da anca
direita da A., com um alongamento de mais ou menos 24 mm do
membro operado para compensar o desequilíbrio mecânico
proporcionado pela paralisia do nervo ciático resultante daquela
primeira intervenção.
Relativamente à primeira intervenção, apura-se que o 1.º R., depois de
ter diagnosticado à A. “osteonecrose”, numa fase precoce, da cabeça
femoral direita, orientou a execução daquela intervenção cirúrgica para
permitir revascularizar a zona da cabeça femoral necrosada, de modo a
adiar a necessidade de uma “prótese da anca”. Nessa intervenção, foi
utilizada uma técnica denominada “mielectomia”, que era pouco usada
na altura mas que era referida como uma das técnicas cirúrgicas
conservadoras da anca, alternativas à artroplastia total da anca, a ser
realizada nos primeiros estádios da necrose avascular, desde que a
cabeça femoral não tivesse perdido a sua esfericidade e morfologia.
Desse modo, visava-se preservar essa estrutura anatómica e tentar
melhorar a sua vascularização.
Todavia, no decurso da referida intervenção cirúrgica, foi atingido o
nervo ciático com lesão parcial do tronco externo do referido nervo,
provocada pelo instrumento de colheita, ante a emergência de
dificuldade de acesso à zona a intervencionar, resultando daí a paralisia
do ciático da A., à direita.
Ora, no quadro da execução normal daquela intervenção cirúrgica, não
era de esperar que fosse atingido o nervo ciático, uma vez que este se
localiza numa zona distinta da cabeça femoral onde iria incidir a
colheita de tecido necrosado, embora se situasse em zona adjacente. Ou
seja, não estamos numa situação em que esteja em causa o adequado
tratamento da própria zona intervencionada, melhor dizendo, no plano
da execução da obrigação de meios tendente à revascularização da zona
da cabeça femoral necrosada. O que se verificou foi que, perante a
emergência de dificuldade de acesso a essa zona, ocorreu um dano
colateral sobre um tecido adjacente que não era suposto ser atingido
numa execução normal daquela intervenção e que derivou do
manuseamento do instrumento de colheita. Foi, pois, essa lesão que
provocou a paralisia do nervo ciático, originando a incapacidade
sofrida pela A..
A este propósito, importa ter presente que o 1.º R., na execução do
cumprimento da obrigação ao serviço da 2.ª R., estava, além do mais,
também adstrito ao dever de proteção na salvaguarda da integridade
física da paciente, coberta pela tutela da personalidade nos termos
previstos no artigo 70.º, n.º 1, do CC, dever esse que aqui se encontra
estreitamente conexionado com o cumprimento da obrigação contratual
da 2.ª R. por via da execução do ato médico-cirúrgico empreendido
pelo 1.º R..
Nessa medida, o reforço daquele dever de prestar por virtude do
referido dever de proteção permite configurar a indicada lesão do nervo
ciático como ato ilícito, violador da integridade física da A., ocorrido
em sede da própria execução do cumprimento da obrigação contratual
assumida pela 2.ª R., o que constitui base jurídica suficiente para
concluir, face aos factos provados, pela prova da ilicitude do ato
médico-cirúrgico em foco em ter-mos de responsabilidade contratual.
Não se trata, portanto, de uma presunção de ilicitude como sustenta a
2.ª R./Recorrente.
Porém, não obstante isso, não se provou que, no quadro da dificuldade
de acesso então surgida, o erro médico em referência se devesse a
negligência ou imperícia do 1.º R..
Não se ignora que a 1.ª instância concluiu pela culpa efetiva daquele
R., considerando que a intervenção cirúrgica fora levada a cabo sem
que o mesmo R. tivesse “valorado devidamente a dificuldade de acesso,
insistindo temerariamente na utilização do instrumento de colheita”,
quando seria recomendável que, em caso de frustração da primeira
tentativa, se procedesse, quando muito, a mais uma tentativa, mudando
depois o ponto de introdução do instrumento de colheita.
Todavia, tal como bem ajuizou a Relação, dos factos provados não se
colhem elementos que suportem uma tal conclusão. Com efeito, da
factualidade provada não consta a mínima caracterização do tipo de
dificuldade de acesso ocorrida, nem sequer se a lesão teve lugar no
decurso de sucessivas insistências por parte do 1.º R., o que significa
que tais conjeturas não têm base factual que permita emitir, sem mais,
um juízo de censura sobre eventual descuido ou imperícia daquele R..

Quanto à 2.ª intervenção relativa à implantação da prótese, o que se


verifica é que o alongamento em mais ou menos 24 mm do membro
operado se destinou a compensar o desequilíbrio mecânico
proporcionado pela paralisia do nervo ciático atingido na primeira
intervenção.
Assim, muito embora não se tenha provado que a 2.ª intervenção
cirúrgica - implantação da prótese -, fosse medicamente adequada a
corrigir as consequências da primeira intervenção, nem que as boas
técnicas ditem que em casos, como o da A., de obesidade mórbida, o
operador deva deixar a perna operada (c/ prótese) levemente mais
comprida, o certo é que o alongamento do membro operado no âmbito
da 2.ª intervenção, visou precisamente compensar o desequilíbrio
mecânico decorrente da paralisia do nervo ciático provocada pela lesão
ocorrida na primeira intervenção. Significa isto que tal alongamento é
ainda um efeito derivado daquela lesão imputável ao facto ilícito em
que se traduziu o sobredito erro médico, em relação ao qual, como foi
dito, não se apura a culpa efetiva do 1.º R..

De igual modo, não se poderá concluir pela culpa presumida do mesmo


R. em sede de responsabilidade extracontratual, nos termos do n.º 2 do
artigo 493.º do CC, já que não existem elementos para reputar, sem
mais, as referidas intervenções cirúrgicas como atividade perigosa pela
sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados.
Com efeito, provou-se que foi utilizada uma técnica denominada
“mielectomia” que era pouco usada na altura (ponto 1.14 dos factos
provados), mas não se provou essa técnica fosse então pouco usada por
não ser eficaz (ponto 22. dos factos não provados). Por outro lado,
ficou provado que, segundo os estudos mais recentes, em 5% de casos
de avascularização/ necrose da anca e no respetivo "replacement"
(aplicação de prótese), não se consegue êxito total (ponto 1.53), embora
não se tenha provado que a operação seja referida como simples e sem
riscos (ponto 2.1 dos factos não provados).
De qualquer modo, em face destes elementos e do que demais não foi
provado, não se mostra lícito inferir um grau de aleatoriedade ou de
complexidade das intervenções em causa, em particular da primeira,
que indicie atividade perigosa, na perspetiva da lesão ocorrida, para os
efeitos de aplicação do citado normativo. 
 
Em suma, diversamente do considerado pela Relação, conclui-se pela
responsabilidade apenas da 2.ª R. quanto às lesões sofridas pela A.
pelas intervenções cirúrgicas do 1.º R., a título de culpa presumida, nos
termos conjugados dos artigos 799.º, n.º 1, e 800.º, n.º 1, do CC.          
        
3.4. Quanto ao montante indemnizatório a título de dano
patrimonial decorrente da incapacidade sofrida pela A.

    Neste capítulo, a A. pediu que lhe fosse fixada, pela incapacidade


total sofrida, uma indemnização no valor de € 150.000,00.
    A 1.ª instância fixou essa indemnização em € 86.054,40, no que foi
confirmada pelo Tribunal da Relação com base nas seguintes
considerações:
«Pensamos ser entendimento pacífico que na fixação do montante
indemnizatório pela perda da capacidade de ganho resultante da
Incapacidade, se deve ter em consideração, para além do grau de
incapacidade, o salário do lesado, o tempo provável de vida activa do
lesado, a sua idade bem como as suas despesas pessoais e no caso
concreto o esforço suplementar que lhe vai ser exigido, com as
inerentes dores, contrariedades e pior qualidade de vida.
A Autora viu os seus rendimentos diminuídos em função e na
proporção daquela incapacidade pelo que a indemnização a atribuir
deve representar um capital produtor de rendimentos que consiga cobrir
a diferença entre a situação anterior e a actual, sendo certo que o
mesmo deve estar esgotado no final da vida activa da lesada por forma
a evitar-se um injusto enriquecimento da lesada à custa do lesante.
Nesta hipótese, para alcançar aquela justa indemnização o tribunal não
deve estar limitado pelo uso de fórmulas matemáticas, sendo certo que
existem várias fórmulas, igualmente válidas para a determinação do
justo montante.
As fórmulas matemáticas devem servir essencialmente como
instrumento de trabalho e não como critérios de determinação rígidos,
pois teremos sempre de nos socorrer das regras da equidade.
Pensamos ser entendimento pacífico que se na fixação deste montante
indemnizatório, para alcançar esta justa indemnização o tribunal não
deve estar limitado pelo uso de fórmulas matemáticas, também não
pode nem deve estar limitado por quaisquer tabelas.
As fórmulas matemáticas e as tabelas devem servir essencialmente
como instrumento de trabalho e não como critérios de determinação
rígidos, pois teremos sempre de nos socorrer das regras da equidade.
No caso concreto a autora ficou incapacitada para o trabalho sendo
certo que auferia por mês 199,20 euros.
Ponderando que a Autora tinha, em 2004, 48 anos, tendo portanto ainda
vários e longos anos de actividade pela frente, anos estes de trabalho
que serão de maior penosidade numa fase da vida em que a capacidade
física já é menor.
Atendendo a que as dores a vão acompanhar durante toda a vida, o que
se reflecte num esforço acrescido.
Ponderando ainda que o autor era saudável, e que certamente esta
diminuição de capacidades também se reflecte na sua vida diária,
entendemos que a quantia de € 86.054,40 para a indemnização dos
danos patrimoniais futuros/dano biológico sofridos pela autora
alcançada pela decisão recorrida se mostra muito mais equilibrada e
justa do que o montante de 60.000 Euros defendido pela Recorrente.
Lembre-se que a taxa de juro bancário se encontra a níveis muito
baixos (e não se perspectiva a sua subida), sendo difícil encontrar taxas
de juro superior a 1,5% para os depósitos a prazo.»
Em contraponto, sustenta a 2.ª R./Recorrente, no essencial, que o dano
patrimonial de uma cidadã trabalhadora auferindo uma remuneração
mensal de € 199,20 não pode razoavelmente atingir o montante
estabelecido no acórdão recorrido, o qual corresponde ao montante que
a A. auferiria até ao seu 108 anos de vida (por corresponderem, sem
redução financeira, a mais 60 anos de vida) o que se mostra irrazoável e
desproporcionado. E conclui que o valor fixado deverá ser reduzido de
€ 86.054,40 para € 40.000,00.
Antes de mais, importa ter presente que a determinação de
indemnizações, mesmo em sede de danos patrimoniais, quando se
baseia em juízos de equidade assentes numa ponderação casuística, à
luz das regras da experiência comum, não se reconduzem,
rigorosamente, a questões de direito ou à aplicação de critérios
normativos estritos para que está vocacionado o tribunal de revista[19].
No entanto, ainda assim, caberá a este tribunal sindicar os limites de
discricionariedade das instâncias, no recurso à equidade, mormente na
busca da uniformização possível dos critérios jurisprudenciais, de
modo a garantir o respeito pelo princípio da igualdade dos cidadãos
perante a lei, nos termos proclamados no n.º 1 do artigo 13.º da
Constituição e conforme o disposto no n.º 3 do artigo 8.º do CC.
Como se assumiu no acórdão do STJ, de 21/01/2016, proferido no
processo n.º 1021/11.3TBABT.E1.S1[20]:
«Não poderá deixar se ter-se em consideração que tal juízo de equidade
das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério
normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades
do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma
questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico das
instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não
tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela
norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o
critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos
critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser
adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em
consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da
necessidade de adopção de critérios jurisprudenciais minimamente
uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade.»       

   Ora, a indemnização aqui em foco visa reparar a perda de rendimento


da A. decorrente da incapacidade sofrida, a qual não se circunscreve à
perda do rendimento obtido no seu desempenho profissional,
compreendendo ainda o leque dos danos patrimoniais resultantes das
sequelas sofridas, incluindo outras perdas ou diminuição da capacidade
do lesado para o exercício de atividades económicas, como tal
suscetíveis de avaliação pecuniária, na esfera do que tem vindo a ser
designado como vertente patrimonial do “dano biológico”.
Como é sabido, os nossos tribunais, em particular a jurisprudência do
STJ, têm vindo a reconhecer o dano biológico como dano patrimonial,
na vertente de lucros cessantes, na medida em que respeita a
incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de
trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento, uma vez que a
força de trabalho humano sempre é fonte de rendimentos, sendo que tal
incapacidade obriga a um maior esforço para manter o nível de
rendimento anteriormente produzido. E que, em sede de rendimentos
frustrados, a indemnização deverá ser arbitrada equitativamente, de
modo a corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado
deixou de poder produzir, atenta a sua expetativa média de vida[21].    
Portanto, mesmo nos casos em que o lesado não exerça uma atividade
profissional remunerada, em sede do dito dano biológico, deverá
atender-se à atividade que ele desempenhava ou podia desempenhar
com tarefas de índole económica propiciadoras de rendimento, no
quadro do seu modo de vida, e que fique afetada em virtude das
sequelas derivadas das lesões sofridas.

No caso vertente, dos factos provados resulta que a A., então com 48
anos de idade, não só ficou totalmente incapacitada para o exercício da
atividade profissional que desempenhava antes das lesões sofridas,
como também igualmente incapacitada para o exercício de atividades
similares e até para a execução quotidiana das lides domésticas, num
quadro expetável de vida ativa que se poderá prolongar para além dos
70 anos de idade.
Sucede que as instâncias, fixaram a indemnização em apreço no valor
de € 86.054,40, atendendo a fatores objetivos respeitantes ao
rendimento que a A. auferia, a título profissional, antes da lesão, ao
nível de incapacidade verificada (incapacidade total) e à expetativa da
vida ativa, ponderando ainda tal valor em termos de equidade.  
Ora, o rendimento anual proporcionado por aquele capital, às módicas
taxas de juro hoje praticadas ou mesmo a taxas de capitalização da
ordem dos 2% ou 3%, não se mostra, de modo algum, desconforme
com o o rendimento que a A. auferia no seu exercício profissional, para
além de ter ainda de cobrir a perda de rendimento na execução das
demais tarefas, mormente as domésticas, que também deixou de poder
desempenhar.
 
Em suma, tem-se tal indemnização por conforme aos parâmetros que
vêm sendo adotados pela jurisprudência e, no que toca à equidade, não
se revela que destoe dos critérios de ponderação em relação a situações
de similar gravidade.             
Termos em que o acórdão recorrido não merece censura neste
particular.

3.5. Quanto ao montante indemnizatório a título de danos não


patrimoniais

Nesta parte, a A. estimou, inicialmente, uma compensação no valor de


€ 75.000,00, a título de danos não patrimoniais.
No entanto, a 1.ª instância arbitrou essa indemnização em €
100.000,00, que o Tribunal da Relação reduziu para € 40.000,00.
Sustenta agora a 2.ª R. que tal indemnização se deve ficar pelos €
30.000,00, enquanto que a A. pede que seja elevada para € 100.000,00.
Como é hoje reconhecido pela larga maioria da doutrina e da
jurisprudência, a responsabilidade civil contratual compreende também
a compensação por danos não patrimoniais, nos termos
subsidiariamente, aplicáveis do artigo 496º, nº 1, do CC, segundo o
qual:
  Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não
patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Por sua vez, o n.º 3 do mesmo normativo determina que o montante de
indemnização seja fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em
atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste
e do lesado e as demais circunstâncias do caso, nos termos estatuídos
no art.º 494.° do referido Código. Nessa ponderação há que seguir um
juízo de equidade pautado pelas regras da boa prudência, do bom senso
prático, da justa medida das coisas e de uma criteriosa ponderação das
realidades da vida.
Com efeito, ante a imaterialidade dos interesses em jogo, a
indemnização dos danos não patrimoniais não pode ter por escopo a
sua reparação eco­nómica. Visa, fundamentalmente, compensar o lesado
pelo dano sofrido, em termos de lhes proporcionar uma quantia
pecuniária que permita satisfazer interesses que apaguem ou atenuem o
sofrimento causado pela lesão.
Nessa perspetiva, tal indemnização não deverá confinar-se a uma di­‐
mensão puramente simbólica, mas assumir uma expressão significativa
com relevo no quadro de vida do lesado.
Todavia, no critério a adotar, não se devem perder de vista os padrões
indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, procurando - até
por uma questão de justiça relativa - uma aplicação tendencialmente
uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3
do artigo 8.º do CC, por forma a evitar exacerbações subjetivas.
No caso concreto, dos factos provados colhe-se que, em virtude das
lesões sofridas, a A., que então contava cerca de 48 anos e que dantes
era uma mulher cheia de vida e força e demonstrava alegria em viver:
 i) - A A., com a lesão do tronco externo do nervo ciático ocorrida na
1.ª intervenção, passou a ter dores intensas – pontos 1.19 e 1.20 dos
factos provados;
ii) - Atualmente, pelo menos, desde julho de 2010, apresenta uma
dismetria positiva de 1,5 cms do MID e tem uma prótese total da anca
direita sem aparentes reações – ponto 1.31;
iii) - O pé direito ficou pendente, que a A. não consegue levantar –
ponto 1.32;  
iv) - Fiou com grande dificuldade em deslocar-se de um local para o
outro, carecendo sempre de ajuda de duas canadianas, apresentando
marcha claudicante, com recurso a canadianas – ponto 1.33;
v) - Ficou incapacitada para o trabalho, nada conseguindo executar –
ponto 1.34;
vi) - Não consegue cozinhar, brunir, lavar ou fazer as camas – ponto
1.35;  
vii) - Não consegue sair de casa sozinha – ponto 1.36;
viii) - Não consegue calçar-se sozinha – ponto 1.37;
ix) - A vida de casa passou a ser efetuada pelo marido e filho – ponto
1.38;
x) - Nunca mais trabalhou, nem pode – ponto 1.39;  
xi) - Deixou de fazer as camas e arrumar a casa – ponto 1.40;
xii) - Viu-se obrigada a não ter mais animais em casa – ponto 1.41;
xiii) - A A. sente-se uma inválida – ponto 1.42;  
xiv) - Sofre por não poder caminhar, nem deslocar-se sozinha – ponto
1.43;
xv) - Sofre por saber que será uma inválida para o resto da vida –
 ponto 1.44.
Torna-se sempre difícil comparar casos concretos, dada a grande
variedade de fatores, podendo, quando muito, apelar-se a padrões de
gravidade.
No caso dos autos, não se afigura que a situação da A. atinja,
globalmente, o patamar adotado pela 1.ª instância, mesmo atendendo à
exemplificação de casos ali dada. Mas também parece baixo o nível
tido em conta pelo Tribunal da Relação.
Assim, tendo em conta a idade com que a A. sofreu a lesão, a natureza
física das sequelas persistentes, a sua incapacidade total para o
exercicio da atividade profissional ou de qualquer outra atividade
similar, bem como para as tarefas domésticas, a sua reduzida
mobilidade e o efeito psicológico que tudo isso acarreta para a sua
auto-estima e qualidade de vida, tem-se por ajustada uma indemnização
no valor de € 60.000,00 (sessenta mil euros). O facto de se tratar de
pessoa obesa e com tendência para hipertensão não deve ser tido como
atenuante; bem pelo contrário, tais predisposições podem ainda ser
agravadas pelo quadro psico-somático em referência.

     Uma nota final para referir que os juros de mora devidos sobre o
montante indemnizatório agora fixado contar-se-ão desde a data do
acórdão recorrido, uma vez que se trata de mera correção do valor ali
arbitrado.   
IV - Decisão

Pelo exposto, acorda-se em: 


A – Conceder a revista às habilitadas em representação do 1.º réu,
revogando o acórdão recorrido nessa parte e, em sua substituição,
absolvendo aquelas do pedido; 
B – Negar a revista à 2.ª ré Santa Casa da Misericórdia do …;
C – Conceder parcialmente revista à autora AA, alterando a
decisão recorrida no sentido de condenar a 2.ª ré a pagar àquela, a
título de danos não patrimoniais, a quantia de € 60.000,00 (sessenta
mil euros), mantendo-se as demais quantias indemnizatórias já
arbitradas pelas instâncias, ficando aquela ré condenada no
pagamento do total de € 146.849,40 (cento e quarenta e seis mil,
oitocentos e quarenta e nove euros e quarenta cêntimos), acrescido
dos juros de mora, à taxa anual de 4%, a contar das datas
determinadas no acórdão recorrido.     
    As custas da ação e do recurso, ficam a cargo da A. na proporção
do respetivo decaimento, sem prejuízo da dispensa do seu
pagamento em virtude do apoio judiciário de que beneficia. A 2.ª
R. está isenta de custas nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do
anterior CCJ, em vigor à data da propositura da ação,
correspondente ao atual artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do RCP.
Lisboa, 23 de março de 2017
Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)
Maria da Graça Trigo
                                      
Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria 

___________________

[1] A este propósito, vide, entre muitos outros, António Henriques Gaspar, A responsabilidade civil
do médico, CJ Ano III (1979), Tomo 1, pp. 335 e segs. (340-342); André Gonçalo Dias Pereira, in
Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra – Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 1.ª Edição, 2015, pp. 667-674.
[2] Vide, António Henriques Gaspar, A responsabilidade civil do médico, CJ Ano III (1979), Tomo
1, p. 543; Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica …, Scientia Iurida, XXXIII,
Janeiro-Abril 1984, p. 107; Carlos Ferreira de Almeida, Os Contratos Civis de Prestação de
Serviço Médico, in Direito de Saúde e da Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, p. 88; André Gonçalo
Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, pp. 670-673.  
[3] Relatado pela aqui 1.ª adjunta Juíza Cons. Maria da Graça Trigo, acessível ma Imternet,
http://www. dgsi.pt/jstj.
[4] Vide André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, pp.
684, no desenvolvimento da proposta de Carlos Ferreira de Almeida, in Os Contratos Civis de
Prestação de Serviço Médico, in Direito de Saúde e da Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, pp 75 e
seguintes.  

[5] VideNuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde, in
Responsabilidade Civil dos Médicos, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Centro
de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 11, 1.ª Edição, 2005, pp. 132.

[6] A este propósito, vide Vaz Serra, Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos
Representantes Legais ou dos Substitutos, in BMJ n.º 72, pag. 286; Ribeiro de Faria, Direito das
Obrigações, Vol. II, Almedina, 1990, pp. 410-411.
[7] Vide, entre outros, António Henriques Gaspar, A responsabilidade civil do médico, CJ Ano III
(1979), Tomo 1, p. 543; André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade
Médica, 1.ª Edição, 2015, p.p  708 e seguintes.
[8] Vide, a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 05-02-2013, relatado pelo Juiz Conselheiro
Alves Velho, no processo 2035/05.8TVLSB.L1.S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[9] Direito das Obrigações, 11ª Edição, Almedina, pags. 1039 e seguintes.
[10] In Direito Civil/Responsabilidade Civil – O Método do Caso, Almedina, 2006, pag. 81/82.
[11] Ob. cit. pag. 81.
[12] Das Obrigações em Geral, Vol. 1.º, Almedina, 10.ª Edição, 2006, pag. 584 e 585.
[13] Das Obrigações em Geral, Vol .2.º, Almedina, 7.ª Edição, pag. 101.
[14] Relatado pelo Juiz Cons. Nuno Cameira, disponível na Internet – http://www.dsgi.pt/jstj.
[15] Relatado pelo Juiz Cons. Gregório Silva Jesus, disponível na Internet – http://www.dsgi.pt/jstj. 
[16] Relatado pelo Juiz Cons. Ferreira de Almeida, disponível na Internet – http://www.dsgi.pt/jstj. 
[17] Relatado pelo Juiz Cons. Silva Salazar, disponível na Internet – http://www.dsgi.pt/jstj. 

[18] A
este propósito, vide André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e
Responsabilidade Médica, 1.ª Edição, 2015, p.p 717 e segs.; Nuno Manuel Pinto Oliveira,
Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde, ob. cit., pp.214-215.

[19] Veja-se,a este propósito, a título exemplificativo, o acórdão do STJ, de 04/06/2015, relatado
por Maria dos Prazeres Beleza, no processo n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, em que outros acórdãos
anteriores do mesmo Tribunal, acessível na Internet http://www.dgsi.pt/jstj
[20] Relatado por Lopes do Rego, acessível na Internet http://www.dgsi.pt/jstj
[21] Entre muitos outros, vide, a título de exemplo, o ac. do STJ, de 7-6-2011, relatado pelo Exm.º
Juiz Cons. Granja da Fonseca, no âmbito do processo 160/2002.P1.S1, publicado na Internet,
http://www.dgsi.pt/jstj.

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