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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

FACULDADE DE DIREITO

DANIEL SEIXAS

CRITÉRIOS PARA APLICAÇÃO DE MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS NO


PROCESSO CIVIL:
UMA LEITURA DO ARTIGO 139, INCISO IV, DO CPC

SÃO PAULO
2019
DANIEL SEIXAS

CRITÉRIOS PARA APLICAÇÃO DE MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS NO


PROCESSO CIVIL:
UMA LEITURA DO ARTIGO 139, INCISO IV, DO CPC

Artigo científico apresentado no curso de graduação da


Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana
Mackenzie como requisito parcial de obtenção do título de
Bacharel em Direito.

ORIENTADORA: Prof ª. Dr ª. ANDREA BOARI CARACIOLA

SÃO PAULO
2019
DANIEL SEIXAS

CRITÉRIOS PARA APLICAÇÃO DE MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS NO


PROCESSO CIVIL:
UMA LEITURA DO ARTIGO 139, INCISO IV, DO CPC

Artigo científico apresentado no curso de graduação da


Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana
Mackenzie como requisito parcial de obtenção do título de
Bacharel em Direito.

Aprovação em: 25 de novembro de 2019.

BANCA EXAMINADORA:
Dedico este ensaio aos meus pais: graças ao estímulo
de vocês, pude desfrutar da instigante Faculdade de
Direito; com a energia que lhes é única, busquei
conduzir o curso tal como o faço com a vida!
RESUMO

Em razão da evidente saturação do Poder Judiciário e do cenário crítico de processos


executivos envolvendo a esfera civil, o Código de Processo Civil de 2015 tratou de estabelecer
mecanismos para promover a otimização do processo, com o intuito de tornar mais eficaz a
efetivação da tutela jurisdicional. Neste contexto, a cláusula geral inserida no artigo 139, IV,
do CPC, prevê a possibilidade de medidas executivas atípicas na obrigação de pagar quantia
certa, à exemplo da suspensão da CNH, da apreensão do passaporte e do bloqueio de cartões de
crédito. Por outro lado, tais medidas não devem ser aplicadas por mera arbitrariedade do juiz,
mas mediante análise casuística, subsidiariamente e após o esgotamento de meios típicos
executivos, por meio de decisão fundamentada, pela qual indicará as razões fáticas e jurídicas
razoáveis e proporcionais que o levaram a determinar a sua aplicação, a fim de promover a
devida tutela jurisdicional. Com efeito, o magistrado deve perseguir o equilíbrio e a ponderação,
compreendendo a dimensão de sua responsabilidade na concretização das medidas atípicas,
afastando-se, rigorosamente, de imposições meramente punitivistas, que superem o princípio
da patrimonialidade e atinja a pessoa do executado. Em suma, as medidas executivas atípicas
agregaram-se aos meios típicos de execução em ordem a permitir que o juiz, à luz das
circunstâncias do caso concreto, encontre a técnica mais adequada para proporcionar a efetiva
tutela do direito material violado.

Palavras-chave: Processo de execução. Medidas executivas atípicas. Artigo 139, IV,


CPC. Obrigação pecuniária. Inadimplemento.
ABSTRACT

Due to the evident saturation of the Judiciary and the critical scenario of execution
proceeding involving the civil sphere, the Civil Procedure Code sought to establish mechanisms
to promote process optimization, in order to making effective judicial protection more effective.
In this context, the general clause inserted in article 139, IV of the CPC provides the possibility
of atypical executive measures in the obligation to pay a sum certain, such as the suspension of
the driver’s licence, the seizure of the passport and the blocking of credit cards. On the other
hand, such measures should not be applied by simple arbitrariness of the judge, but a case-by-
case analysis, in the alternative and after the exhaustion of typical executive means, by fair
decision, which will indicate the reasonable and proportional factual and legal reasons that led
to its application in order to promote judicial protection. Indeed, the magistrate must pursue
balance and reflection, understanding the extent of his responsibility in the implementation of
atypical measures, rigorously moving away from merely punitivist impositions, which go
beyond the principle of patrimoniality and reach the person of the executed. In summary, the
atypical executive measures added to the typical means of enforcement in order to allow the
judge, in the light of the circumstances of the case, to find the most appropriate technique for
providing effective protection of the infringed material right.

Keywords: Execution proceeding. Atypical measures. Article 139, IV, CPC. Pecuniary
obligations. Default.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Série histórica da taxa de congestionamento ........................................................... 11


Figura 2: Percentual de casos pendentes de execução em relação ao estoque total de processos,
por tribunal ............................................................................................................................... 11
Figura 3: Taxa de congestionamento nas fases de conhecimento e execução, na primeira
instância, por tribunal ............................................................................................................... 12
Figura 4: Tendência de julgamento nas 25ª a 32ª Câmaras de Direito Privado do TJ-SP
envolvendo as medidas executivas atípicas do artigo 139, IV ................................................. 23
Figura 5: Tendência de julgamento nas 33ª a 36ª Câmaras de Direito Privado do TJ-SP
envolvendo as medidas executivas atípicas do artigo 139, IV ................................................. 23
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................8
1. CRISE DA EXECUÇÃO CIVIL E TENDÊNCIA DE OTIMIZAÇÃO DA TUTELA
JURISDICIONAL .................................................................................................................... 10
2. CLÁUSULAS GERAIS EXECUTIVAS, PRINCÍPIOS DA TIPICIDADE E
ATIPICIDADE E PODER-DEVER DO JUIZ NA EXECUÇÃO CIVIL ............................... 15
3. ARTIGO 139, IV, CPC: MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS NA EXECUÇÃO DE
OBRIGAÇÃO DE PAGAR QUANTIA CERTA .................................................................... 20
4. DIRETRIZES PARA CONCRETIZAÇÃO: APLICABILIDADE E LIMITES .............. 29
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................36
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................38
8

INTRODUÇÃO

A crise da efetivação da tutela jurisdicional não é novidade no Brasil: embora seja


notória a predisposição cultural do brasileiro de socorrer-se desde logo ao Poder Judiciário,
desconsiderando quaisquer meios alternativos de resolução de conflito, é evidente que a técnica
de julgamento do mérito dos casos e os mecanismos processuais disponíveis para assegurar o
cumprimento das decisões tiveram de evoluir acentuadamente para acompanhar o ritmo
frenético de ajuizamento de ações.
Neste contexto, ao menos à primeira vista, revela-se uma orientação jurisprudencial
fluindo no sentido de confrontar tal cenário, com respaldo do próprio Código de Processo Civil
de 2015, ao consolidar instrumentos processuais que objetivam a otimização da demanda, bem
como cláusulas gerais que concedem maior protagonismo às partes e ao magistrado, em face
do caso concreto.
As cláusulas gerais desenvolveram-se no âmbito do Direito Privado, cujos principais
exemplos são as cláusulas gerais da boa-fé objetiva e da função social do contrato. Não é de
hoje, contudo, que as cláusulas gerais têm ocupado espaço no Direito Processual, que também,
por sua vez, demanda normas flexíveis que permitam atender às especiais circunstâncias do
caso concreto, sob pena de frustração da atividade jurisdicional.
O objeto deste ensaio é debater a respeito de uma das cláusulas gerais mais
interessantes (e polêmicas) estabelecidas pelo Código de Processo Civil de 2015: o artigo 139,
inciso IV, cujo ponto de tensão permeia especialmente a fase executiva do processo, uma vez
que confere ao magistrado “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais
ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas
ações que tenham por objeto a prestação pecuniária”.
A despeito do dispositivo prever medidas indutivas, coercitivas, mandamentais e sub-
rogatórias visando a satisfação de qualquer espécie de obrigação, tratarei apenas da adoção de
medidas coercitivas atípicas na execução de pagar quantia certa, especialmente no que diz
respeito à viabilidade de suspensão da CNH, apreensão de passaporte e de bloqueio de cartões
de crédito, ao longo da fase de execução, afastando-me da preocupação em analisar
exaustivamente o dispositivo legal, a fim de centrar atenção em sua mais polêmica área de
abrangência.
Isso porque, no mundo real à margem dos autos, o credor não se importa se detém um
“título judicial” ou “extrajudicial” em seu benefício; mas quando efetivamente receberá o
pagamento que faz jus. E nestas hipóteses, com efeito, o processo civil não deve permanecer
9

inerte diante de eventual resistência do devedor, assistindo passivamente ao credor buscar


alternativas em um sistema mecânico engessado.
Por óbvio, contudo, o magistrado deve perseguir o equilíbrio e a ponderação,
compreendendo a dimensão de sua responsabilidade na concretização de tais medidas atípicas,
afastando-se, rigorosamente, de imposições meramente punitivistas, que superem o princípio
da patrimonialidade e atinja a pessoa do devedor, conforme será detalhadamente esclarecido ao
longo deste ensaio.
Expostas as breves considerações, a possibilidade de efetivação de tais medidas
coercitivas na execução de pagar quantia certa vem suscitando uma série de questionamentos
quanto à sua constitucionalidade e, por conseguinte, à sua efetiva aplicabilidade, importando se
o regime de liberdades fundamentais do indivíduo e o devido processo legal acolhem os meios
atípicos de execução e, se sim, em qual extensão.
10

1. CRISE DA EXECUÇÃO CIVIL E TENDÊNCIA DE OTIMIZAÇÃO DA


TUTELA JURISDICIONAL

O Código de Processo Civil de 2015 se preocupa, em muito, com a efetividade da


decisão judicial. O Código é expresso, neste sentido, o que se extrai da própria Constituição
Federal, de que as partes têm direito à resolução integral do mérito em prazo razoável,
incluindo, por óbvio, a atividade ou tutela satisfativa. 1
Traços necessários, haja vista o histórico da atividade jurisdicional brasileira, que
escancara a máxima jurídica envolvendo o contencioso do país: “ganhou, mas não levou!”, isto
é: mesmo após a obtenção de uma decisão judicial favorável, a parte não consegue exercer, de
fato, seus direitos.
Sobre essa problemática, a efetivação da tutela jurisdicional foi traduzida em números
pelo Conselho Nacional de Justiça, cujos dados do mais recente Relatório intitulado “Justiça
em Números de 2019” 2, demonstram que o Poder Judiciário contava com um acervo de 79
milhões de processos pendentes de baixa 3 ao final do ano de 2018, sendo que mais da metade
desses processos (54,2%) se referia à fase de execução. E mais, conforme o gráfico destacado
abaixo (Figura 1), a taxa de congestionamento 4 das execuções perfaz o patamar de 85,1%:

1
Artigo 4º, CPC: As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a
atividade satisfativa.
2
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório Justiça em Números 2019. Disponível em: www.cnj.jus.br.
Acesso em 24 de set. de 2019.
3
É oportuno esclarecer que, conforme o glossário da Resolução CNJ 76/2009, consideram-se baixados os
processos: remetidos para outros órgãos judiciais competentes, desde que vinculados a tribunais diferentes;
remetidos para as instâncias superiores ou inferiores; arquivados definitivamente; em que houve decisões que
transitaram em julgado e iniciou-se a liquidação, cumprimento ou execução. Computa-se apenas uma baixa por
processo e por fase/instância (conhecimento ou execução, 1º ou 2º grau). Os casos pendentes, por sua vez, são
todos aqueles que nunca receberam movimento de baixa, em cada uma das fases analisadas.
4
Indicador que mede o percentual de casos que permaneceram pendentes de solução ao final do ano-base, em
relação ao que tramitou (soma dos pendentes e dos baixados). Cumpre informar que, de todo o acervo, nem todos
os processos podem ser baixados no mesmo ano, devido a existência de prazos legais a serem cumpridos,
especialmente nos casos em que o processo ingressou no final do ano-base.
11

Figura 1: Série histórica da taxa de congestionamento

Fonte: Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em Números 2019. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2019/08/4668014df24cf825e7187383564e71a3.pdf.

Além disso, os dados do Relatório indicam alta taxa de congestionamento na fase de


execução, na primeira instância, por tribunal (Figura 2), revelando a razão crucial da crise da
tutela jurisdicional executiva: em diversos casos, o Judiciário esgotou os meios previstos em
lei, mas ainda assim não houve localização de patrimônio capaz de satisfazer o crédito,
permanecendo o processo pendente.

Figura 2: Percentual de casos pendentes de execução em relação ao estoque total de processos, por tribunal

Fonte: Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em Números 2019. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2019/08/4668014df24cf825e7187383564e71a3.pdf.
12

Em todos os segmentos de justiça, a taxa de congestionamento da fase de execução


supera a da fase de conhecimento, com uma diferença que chega a 23 pontos percentuais no
total e que varia bastante por tribunal. Aliás, a taxa de congestionamento do Poder Judiciário
sempre se manteve em patamares elevados, especialmente na fase de execução (Figura 3):

Figura 3: Taxa de congestionamento nas fases de conhecimento e execução, na primeira instância, por tribunal

Fonte: Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em Números 2019. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2019/08/4668014df24cf825e7187383564e71a3.pdf.

É bem verdade que os indicadores apresentados nesta edição do Relatório identificam


uma tendência de avanços, como o aumento do volume de processos decididos (baixados) e a
redução do estoque processual, ao passo que demonstram didaticamente quais gargalos
permanecem, à exemplo da morosidade na fase executiva.
Na tentativa de confrontar esse cenário, em atenção à solução efetiva do conflito, o
Código de Processo Civil de 2015 tratou de estabelecer normas para a otimização da demanda,
tais como a regra para sanar vícios no recurso (artigo 932, parágrafo único); para desconsiderar
o vício formal em recurso (artigo 1.029, § 3º); para concessão de prazo a fim de corrigir defeitos
(artigos 317 e 352); para concessão de prazo para emendar a inicial (artigo 321); concessão de
prazo para sanar o preparo (artigo 1.007); dentre outros.
Quanto à possibilidade de protesto de sentença (artigo 517), por exemplo, o Conselho
Nacional de Justiça publicou o Provimento nº 86/19, em 29/08/2019, tornando gratuito o
protesto de dívidas para os credores de todo o território brasileiro. Na prática, a medida permite
que pessoas físicas e jurídicas, incluindo instituições financeiras, levem seus títulos aos
cartórios e protestem sem custos o devedor inadimplente, que, por sua vez, no ato de pagamento
13

de sua dívida, deverá arcar com as despesas do protesto, incluindo taxas e emolumentos devidos
aos órgãos públicos. 5 6
E mais, embora o princípio da menor onerosidade ao devedor esteja previsto
expressamente no CPC, o parágrafo único do artigo 805 dispõe que, ao alegar ofensa ao referido
princípio, deve o executado indicar meios menos gravosos e mais eficazes, “sob pena de
manutenção dos atos executivos já determinados”.
Deste modo, o engajamento do novo Código refletiu na seara jurisdicional, sendo
observado nas recentes decisões da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, à qual
julgou, por unanimidade, que a desistência da execução por falta de bens penhoráveis afasta a
condenação do exequente em honorários advocatícios sucumbenciais. Com efeito, o relator do
recurso, Ministro Luís Felipe Salomão, enfatizou que a desistência foi por “total inutilidade”
da execução, “e não porque o autor tenha simplesmente se desinteressado de sua pretensão”. 7
Em seguida, o Ministro Marco Buzzi, assentando o entendimento introduzido pelo
Superior Tribunal de Justiça em 2018, permitiu a penhora de 25% incidente sobre a renda
salarial auferida por duas executadas, sob o fundamento de que a regra geral da
impenhorabilidade de salários, vencimentos e proventos, contida no artigo 833, IV, do CPC,
“pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à
dignidade do devedor e de sua família”. 8
Nesse sentido, a Terceira Turma do STJ, por unanimidade, decidiu que é cabível a
excepcional penhora de 30% de benefícios previdenciários, desde que se preserve a teoria do
mínimo existencial, sem prejuízo direto à subsistência do devedor ou de sua família, ao
consolidar a jurisprudência da Corte Superior, segundo a qual é possível, em situações
excepcionais, a mitigação da impenhorabilidade dos salários para a satisfação de crédito não
alimentar, devendo o julgador levar em consideração as peculiaridades do caso e se pautar nos
princípios da proporcionalidade e razoabilidade. 9
Relacionado à dinâmica que envolve o julgamento do mérito, dentre os dispositivos
previstos pelo CPC, positivou-se o inciso IV do artigo 139, que versa sobre os poderes do juiz
na efetivação da tutela executiva, ao dispor que “incumbe ao juiz determinar todas as medidas

5
Este provimento entra em vigor após decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação oficial.
6
ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL. CNJ publica Provimento 86 sobre
possibilidade de pagamento postergado de emolumentos no Protesto. Disponível em:
https://www.anoreg.org.br/site/2019/08/30/cnj-publica-provimento-86-sobre-possibilidade-de-pagamento-
postergado-de-emolumentos-no-protesto/. Acesso em: 31 de ago. de 2019.
7
STJ, Recurso Especial nº 1.675.741/PR, rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 11/06/2019.
8
STJ, Recurso Especial nº 1.818.716/SC, rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 19/06/2019.
9
STJ, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.386.524/MS, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze,
Terceira Turma, julgado em 25/03/2019.
14

indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o


cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação
pecuniária”.
Com efeito, embora transcorridos apenas três anos de vigência do novo Código, é
10
possível sugerir que o novo dispositivo aprimorou a técnica processual , notadamente ao
disponibilizar novos meios coercitivos em detrimento da engessada (e, talvez, ultrapassada)
lógica de localização de patrimônio passível de penhora em nome dos devedores.
Isso porque, conforme será demonstrado a seguir, o artigo carrega consigo uma
cláusula geral que deve incentivar o adimplemento do débito, sob pena de eventual suspensão
da carteira nacional de habilitação, apreensão de passaporte e de bloqueio de cartões de crédito,
medidas atípicas passíveis de aplicação, que aos poucos revelam-se importantes instrumentos
coercitivos em favor do regular andamento do processo executivo.

10
Segundo Cândido Rangel Dinamarco, por técnica processual, se deve considerar a predisposição ordenada de
meios destinados a obter certos resultados preestabelecidos, os quais, fundamentalmente, devem visar, no tocante
ao processo civil, à pacificação e à resolução de conflitos mediante a realização da justiça; não sendo demais
destacar como a técnica processual assume nuances particulares e próprias nos vários ordenamentos jurídicos ao
longo da história (espaço e tempo). (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol.
I. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 60-62).
15

2. CLÁUSULAS GERAIS EXECUTIVAS, PRINCÍPIOS DA TIPICIDADE E


ATIPICIDADE E PODER-DEVER DO JUIZ NA EXECUÇÃO CIVIL

De acordo com o entendimento doutrinário, as cláusulas gerais são uma espécie de


texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o
consequente (efeito jurídico) é indeterminado. Há, portanto, uma indeterminação legislativa em
ambos os extremos da estrutura lógica normativa. 11
Nessa toada, é possível afirmar que o legislador positivou as cláusulas gerais a fim de
reforçar o poder criativo da atividade jurisdicional. Deste modo, o magistrado passa a deter a
faculdade de intervir mais ativamente na construção do ordenamento jurídico, a partir da
resolução de litígios concretos que lhe são submetidos. Em outras palavras, as cláusulas gerais
servem para realização da justiça no caso concreto. 12
Dentre as diversas concepções destinadas às cláusulas gerais, a autora Judith Martins-
Costa contribuiu para sua correta sistematização, ao defini-las, didaticamente, como:

[...] uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem
de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’ ou ‘vaga’, caracterizando-se
pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo
a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista do caso
concreto, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o
reenvio para elementos cuja a concretização pode estar fora do sistema. 13

Neste aspecto, a mera previsão de cláusulas gerais afasta o princípio da tipicidade dos
meios executivos, segundo o qual os atos de execução seriam expressamente previstos em lei e
seriam invariáveis, ou seja: não poderiam ser adotadas providências outras, senão aquelas
expressamente ditadas pela lei ao juiz na condução do processo executivo, com esclarecem
Marcelo Abelha Rodrigues 14 e Marcelo de Lima Guerra. 15

11
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo:
RT, 1999, p. 303-306.
12
DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael
Alexandria de. Diretrizes para a concretização das cláusulas gerais executivas dos arts. 139, IV, 297 e 536, § 1º,
CPC. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord. geral). Medidas executivas atípicas. São Paulo: Editora Juspodvm,
2018, p. 345/346.
13
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, p. 303.
14
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de execução civil. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense Universitária,
2007, p. 23.
15
GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Editora RT, 1998, p. 29.
16

Com efeito, ao refletir sobre a problemática do não cumprimento das obrigações


executivas pecuniárias, o legislador dispôs medidas indutivas e coercitivas típicas para forçar o
obrigado a satisfazer o crédito. Essas medidas são utilizadas pelo juiz para tratar com a vontade
do devedor, cuja disposição se encontra, por exemplo, no artigo 517 (protestos de sentença) e
no artigo 782 (inscrição do nome do executado no cadastro de inadimplentes), ambos do CPC.
Contudo, Luiz Guilherme Marinoni acredita que o chamado princípio da tipicidade
dos meios executivos foi cedendo espaço ao chamado princípio da concentração dos poderes
de execução do juiz ou princípio da atipicidade. Senão vejamos:

[...] A falência do princípio da tipicidade dos meios executivos se deve à


premissa que lhe serve de fundamento. [...] Como é evidente, tal premissa, que
sugere a possibilidade de se pensar de maneira abstrata - ou apenas com base
em critérios processuais – a respeito da execução dos direitos, ignora que a
função judicial está cada vez mais ligada ao caso concreto. Ou seja, é
equivocado imaginar que a lei pode antever os meios de execução que serão
necessários diante dos casos concretos. A lei processual, se assim atuasse,
impediria o tratamento adequado daqueles casos que não se amoldam à
situação padrão por ela contemplada. [...] Se há direito ao meio executivo
capaz de dar efetividade ao direito material, e essa efetividade depende das
circunstâncias do caso concreto, não é possível aceitar a ideia de que o juiz
somente pode admitir o uso dos meios executivos previamente estabelecidos
em lei. Nessa dimensão, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva
exige que o juiz tenha poder para determinar a medida executiva adequada,
afastando o princípio da tipicidade e consagrando o princípio da concentração
dos poderes de execução do juiz. 16

Progressista, ao menos sob este ponto de vista, o Código de Processo Civil de 2015
carrega previsões expressas que garantem a atipicidade dos meios executivos na efetivação das
obrigações em geral. O princípio da atipicidade, nesse liame, decorre de três enunciados
normativos do diploma processual civil brasileiro: o artigo 297, o § 1º do artigo 536 e, por fim,
o artigo 139, IV, objeto deste estudo e o dispositivo que ensejou acentuada divergência
doutrinária e jurisprudencial desde a entrada em vigor do novo Código.
Em apertada síntese, as cláusulas gerais processuais dos referidos artigos embasam o
princípio da atipicidade dos meios executivos. O artigo 139, IV, ao impor que o magistrado
determinará medidas de diversas naturezas para assegurar o cumprimento de ordem judicial
(sendo inclusive ordem de pagamento), o artigo 297, dispondo sobre a possibilidade de utilizar
medidas adequadas para efetivação de tutela provisória, e o artigo 536, § 1º, ao impor que o

16
MARINONI, Luiz Guilherme. Controle do poder executivo do juiz. Execução civil: estudos em homenagem ao
Professor Paulo Furtado, JUS, 2004, novembro. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5974/controle-do-
poder-executivo-do-juiz. Acesso em: 15 de maio de 2019.
17

juiz poderá empregar as medidas típicas e outras que julgar necessário, autorizam o
17
estabelecimento de medidas atípicas, de coerção direta ou indireta , sendo certo que, na
coerção indireta, as medidas executivas não possuem o condão de satisfazer a obrigação
inadimplida, operando apenas, e tão somente, sobre a vontade do devedor executado.
Em conformidade, a Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrighi,
quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.788.950 – MT de sua relatoria, em 23/04/2019,
destacou que:

[...] o legislador optou, desse modo, por abandonar o princípio até então
vigente (ao menos para as hipóteses envolvendo obrigação de pagar quantia),
da tipicidade das formas executivas, conferindo maior elasticidade ao
desenvolvimento do processo satisfativo, de acordo com as circunstâncias de
cada caso e com as exigências necessárias à tutela do direto material.

A atipicidade dos meios executivos, portanto, defere ao juiz o poder-dever para


determinar medidas de apoio tendentes a assegurar o cumprimento de ordem judicial,
independentemente do objeto da ação processual. 18
Sem dúvida, as cláusulas gerais inseridas no Código de Processo Civil de 2015
conferem ao juiz o poder de efetivação de medidas executivas tanto “típicas”, quanto “atípicas”,
ou seja, medidas que não estão previstas em legislação anterior e que, se aplicadas corretamente,
corroboram não como um fim em si mesmas, mas um meio alternativo para o cumprimento
forçado das obrigações uma vez inadimplidas. Isso não significa afirmar, todavia, que qualquer
modalidade executiva possa ser adotada de forma indiscriminada, independentemente de
balizas ou meios de controle efetivos.
Daí o embargo que impõe parte dos operadores do Direito, motivo pelo qual, inclusive,
o Partido dos Trabalhadores (PT) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo
Tribunal Federal 19, com pedido de medida cautelar, contra o artigo 139, inciso IV, do CPC, sob
o fundamento de que “se o artigo 139, inciso IV, da lei processual, veicula a chamada
atipicidade dos atos executivos, mirando maior efetividade, é certo que da leitura daquela norma
devem naturalmente ser excluídos atos executivos que afrontem a Constituição Federal”, em

17
CAETANO, Marcelo Miranda. A atipicidade dos meios executivos – coadjuvante com ares de estrela principal
-, o art. 139, IV, CPC e o resguardo ao escopo social do processo. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord.). Diretrizes
para concretização das cláusulas gerais executivas dos arts. 139, IV, 297 e 536, § 1º, do CPC. São Paulo: RT,
2017, p. 227-272.
18
ALVIM, Angélica Arruda (Coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p.
214.
19
Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo PT, processo nº 5941, em trâmite perante o STF, cuja
relatoria pertence ao Ministro Luiz Fux.
18

alusão às decisões judiciais que determinaram a suspensão de passaporte e carteira nacional de


habilitação de devedores, cuja discussão a este respeito será melhor delineada no tópico
seguinte.
É bem verdade, também, que a própria Escola Nacional de Formação e
Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) anteviu um “poder geral de efetivação” outorgado
aos julgadores, ao editar o Enunciado 48:

Enunciado 48. O art. 139, IV, do CPC/2015 traduz um poder geral de


efetivação, permitindo a aplicação de medidas atípicas para garantir o
cumprimento de qualquer ordem judicial, inclusive no âmbito do
cumprimento de sentença e no processo de execução baseado em títulos
extrajudiciais.

Não obstante esses posicionamentos, Fábio Lima Quintas sintetizou brilhantemente o


intuito do legislador ao conferir ao juiz o poder de efetivação das ordens de pagamento por
meio das cláusulas gerais, em artigo a respeito do artigo 139, IV, do CPC:

[...] Em verdade, a adequada compreensão e aplicação desse propalado poder


geral de efetivação não pode depender apenas da criatividade das partes e dos
magistrados a respeito das possibilidades semânticas compreendidas na
expressão “medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias
necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial”. Esse texto deve
dialogar com outros referenciais normativos, para fixar os contornos da
responsabilidade patrimonial e pessoal do devedor e das razões para tanto.
Sendo ínsita ao ordenamento jurídico a ideia de coerência e integridade, cabe
conferir unidade e harmonia aos modos de exercício do poder estatal de
execução, sobretudo no contexto de que “o poder geral de efetivação” passa a
atribuir ao intérprete papel relevante nessa tarefa. 20

Em outras palavras, o poder de efetivação das ordens de pagamento corrobora com o


habitual papel do juiz no processo de execução, sobretudo para que adote “mesmo que de ofício,
as providências que julgar indispensáveis para que se outorgue a quem tem direito a tutela
jurisdicional reclamada”. 21
Na realidade, como bem expôs a Ministra Nancy Andrighi, o processo civil
contemporâneo ingressou numa “nova ordem processual”, na qual o juiz, de fato, possui
“atribuições ativas” na condução do processo, senão vejamos:

20
QUINTAS, Fábio Lima. É preciso equilibrar meios de coerção ao executar obrigações pecuniárias. CONJUR,
2017, fevereiro. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-fev-18/observatorio-constitucional-preciso-
equilibrar-meios-coercao-executar-obrigacoes-pecuniarias#author. Acesso em: 08 de maio de 2019.
21
ZAVASCKI, Teori, Processo de Execução - Parte Geral. São Paulo: RT, 2004, p. 73.
19

[...] De fato, nessa nova ordem processual, o juiz tem atribuições ativas para a
concretização da razoável duração do processo, a entrega do direito executado
àquela parte cuja titularidade é reconhecida no título executivo e a garantia do
devido processo legal para exequente e o executado, pois deve resolver de
forma plena o conflito de interesses. 22

Nesse sentido, como bem explica o autor Fabiano Carvalho:

A direção do processo deve ser exercida pelo juiz porque ele é o sujeito
imparcial – e não desinteressado! – no processo a quem o ordenamento
jurídico confia o exercício da função jurisdicional. O juiz, enquanto agente do
Estado, deve ter o interesse na adequada prestação da tutela jurisdicional. (...).
Para que isso ocorra, preocupa-se o CPC em colocar à disposição do juiz uma
série de poderes e deveres, muitos deles dispostos no art. 139 do CPC/2015.
Os poderes conferidos ao juiz não o colocam em uma posição de superioridade
ou subordinação relativamente aos outros sujeitos do processo, tão pouco em
relação aos advogados e membros do Ministério Público. 23

Sendo assim, pelo princípio da tipicidade dos meios executivos, a escolha da medida
executiva é definida pela lei. No que diz respeito ao princípio da atipicidade dos meios
executivos, porém, faz-se necessário investigar quais são os parâmetros de controle da escolha
fundamentada pelo juiz, que, diga-se de passagem, não é tarefa fácil. Isso porque, um conjunto
de postulados e princípios regem a atuação do órgão julgador, estabelecendo balizas para a
eleição da medida executiva correta.
Com efeito, não se afasta a constitucionalidade das cláusulas gerais executivas, mas
os poderes do juiz são sensivelmente menores em comparação aos do legislador, de forma que,
deliberadamente e sem cumprir requisitos prévios no caso concreto, ele não tem legitimidade
para forçar o adimplemento de obrigações patrimoniais utilizando medidas atípicas que
envolvam a restrição de direitos não-patrimoniais do devedor. Na realidade, o dispositivo do
artigo 139, IV, do CPC estruturou um rol de deveres-poderes pelo qual o juiz se valerá para
dirigir o processo.
Expostas as breves considerações, este ensaio se limitará à discussão doutrinária
jurisprudencial que permeia a aplicação de medidas executivas atípicas especificamente na
execução de obrigação de pagar quantia certa.

22
STJ, Habeas Corpus nº 99.606 – SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 13/11/2018.
23
CARVALHO, Fabiano. Código de Processo Civil anotado. Coord. CRUZ E TUCCI, José Rogério; et. all. São
Paulo: Editora RZ, 2016, p. 11/12.
20

3. ARTIGO 139, IV, CPC: MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS NA


EXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE PAGAR QUANTIA CERTA

Em verdade, o Código de Processo Civil de 2015, a fim de garantir maior celeridade e


efetividade ao processo, positivou regra segundo a qual incumbe ao juiz “determinar todas as
medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o
cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação
pecuniária”.
Trata-se das chamadas medidas executivas atípicas, aludidas no inciso IV do artigo
139, que conferem poder ao julgador para a adoção de meios necessários à satisfação da
obrigação não delineados previamente no diploma legal. Com efeito, a presente discussão
envolve especialmente as medidas de suspensão de CNH, apreensão de passaporte e bloqueio
de cartões de crédito do inadimplente executado.
Não se olvida que a doutrina ainda não está pacificada sobre o tema. Para alguns
autores, inclusive, toda e qualquer restrição que não incida exclusivamente sobre o patrimônio
do devedor será inconstitucional, apesar de o STJ asseverar que a suspensão da Carteira
Nacional de Habilitação, da qual decorre a restrição do direito de dirigir veículo automotor, não
configura ofensa direta e imediata à liberdade de locomoção do indivíduo. 24
Em que pese isso, segundo Araken de Assis, caso a possibilidade de suspensão da
CNH e apreensão de passaporte fossem medidas típicas, certamente seriam objeto de
repreensão pelo STF. Senão vejamos:

[...] A existência de dívidas insatisfeitas, ou a execução forçada infrutífera de


créditos, não constitui pretexto hábil para constranger o obrigado e o
executado através de medidas que, caso previstas expressis verbis, incorreriam
em grave violação ao princípio estruturante da dignidade da pessoa humana e
dificilmente subsistiriam incólumes ao controle concentrado de
constitucionalidade pelo STF. 25

Para o autor, essas medidas atípicas são direta ou indiretamente inconstitucionais.


Indiretamente que seja, recolher a CNH ou o passaporte interferem no direito de ir, vir e ficar.
E, diretamente, as medidas objetivam premir o executado por meio não legalmente prefixado e

24
Nesse sentido: STJ, Habeas Corpus nº 411.519 - SP, rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, disponibilizado
no DJe em 03/10/2017; Recurso ordinário em Habeas Corpus nº 97.876 - SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta
Turma, disponibilizado no DJE em 09/08/2018.
25
ASSIS, Araken de. Cabimento e adequação dos meios executórios “atípicos”. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie
(Coord. geral). Medidas executivas atípicas. São Paulo: Editora Juspodvm, 2018, p. 111/133.
21

sem devida correlação instrumental com a finalidade da atividade executiva, ferindo, e por dois
motivos autônomos, o artigo 5º, LIV, da Constituição Federal.
José Amaury Maia Nunes e Guilherme Pupe Nóbrega argumentam que as medidas
violam direitos fundamentais, pois atingem a liberdade de locomoção do devedor. No entender
desses autores, só se admite a sobreposição desses direitos mediante ponderação. 26
Nesse sentido, Eduardo Talamini afirma que a aplicação das medidas coercitivas
atípicas é tarefa complexa, uma vez que ela deve, a um só tempo, coagir o devedor a pagar e
respeitar o disposto no artigo 8º do Código de Processo Civil. 27
Para Scarpinella Bueno, as medidas executivas atípicas não podem ressurgir contra a
pessoa do devedor, mas tão somente contra seu patrimônio28. Fernanda Tartuce, em entrevista,
afirma que a suspensão de CNH, a apreensão do passaporte e o cancelamento dos cartões de
crédito são iniciativas que acabam atingindo a pessoa do devedor e conclui ser essencial que
elas sejam proporcionais e subsidiárias. 29
Bianca Mendes Pereira Richter e Natália Diniz da Silva sustentam que as decisões que
determinam a apreensão da CNH e passaporte limitam a liberdade de locomoção do executado
e não se harmonizam com as regras do Pacto de São José da Costa Rica, tampouco com a
posição do STF, que proíbe a prisão do devedor civil, com base no controle de
convencionalidade. Desta forma, tais decisões além de afrontarem os princípios próprios da
execução 30, também afrontam a Constituição Federal. 31

26
NUNES, Jorge Amaury Maia; NÓBREGA, Guilherme Pupe. Reflexões sobre a atipicidade das técnicas
executivas e o artigo 139, IV, do CPC de 2015. Migalhas, 2016, agosto. Disponível em
https://www.migalhas.com.br/ProcessoeProcedimento/106,MI243746,21048-
Reflexoes+sobre+a+atipicidade+das+tecnicas+executivas+e+o+artigo+139. Acesso em: 05 de jun. de 2019.
27
TALAMINI, Eduardo. Medidas judiciais coercitivas e proporcionalidade: a propósito do bloqueio do whatsapp
por 48 horas. Migalhas, 2015, dezembro. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI231699,61044-
Medidas+judiciais+coercitivas+e+proporcionalidade+a+proposito+do. Acesso em: 04 de jun. de 2019.
28
BUENO, Cassio Scarpinella. Cumprimento da sentença e processo de execução: ensaio sobre o cumprimento
das sentenças condenatórias. Disponível em: http://www.scarpinellabueno.com/images/textos-pdf/008.pdf.
Acesso em: 04 de set. de 2019.
29
INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. O polêmico inciso IV do artigo 139 do CPC e suas
difusas interpretações. 2016. Disponível em:
http://www.ibdfam.org.br/noticias/6096/O+pol%C3%AAmico+inciso+IV+do+artigo+139+do+CPC+e+suas+dif
usas+interpreta%C3%A7%C3%B5es#.V8gGuqKh0X4.twitter. Acesso em: 04 de jun. de 2019.
30
Para as autoras, os princípios da execução violados são os da menor onerosidade, da especificidade da execução,
do contraditório e da responsabilidade patrimonial.
31
RICHTER, Bianca Mendes Pereira; SILVA, Natália Diniz. Controle de Convencionalidade: Temas
aprofundados. 1. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. v. 1. 720, p. 17.
22

Em síntese, os autores contrários à aplicação de medidas coercitivas, indutivas ou sub-


rogatórias atípicas, asseveram que tais medidas violam direitos e preceitos fundamentais,
expressos no artigo 5º, incisos II, XV e LIV, da Constituição Federal. 32
Neste cenário, a doutrina processualista divide-se quanto à legalidade dessas medidas,
principalmente em razão do disposto no artigo 8º do CPC 33, outra cláusula geral que determina
ao juiz que atenda aos fins sociais, às exigências do bem comum e à dignidade humana,
observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência; e se
seriam sempre medidas punitivas e aplicadas sem lastro legal, ou seriam medidas executivas
coercitivas permitidas em função do princípio da atipicidade dos meios executivos.
Outrossim, ao analisar a jurisprudência envolvendo o artigo 139, inciso IV, do CPC,
identifica-se que os principais fundamentos para o indeferimento das diversas medidas
coercitivas pleiteadas envolvem a dignidade da pessoa humana, o direito de ir e vir, a ausência
de compatibilidade entre tais medidas e a satisfação do crédito executado, havendo caráter
meramente punitivo da pessoa dos executados, bem como a violação ao princípio da
patrimonialidade da execução 34.
Inclusive, de acordo com o Anuário da Justiça de São Paulo, lançado pela Revista
Consultor Jurídico em 11/09/2019, referente ao respectivo ano, apenas duas das doze Câmaras
de Direito Privado aplicaram o artigo 139, inciso IV, CPC, em seus julgamentos. Isso porque,
para a maioria dos integrantes da subseção, a extensão desta cláusula geral não é, de fato,
ilimitada.

32
Artigo 5º, CF: inciso II: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
inciso XV: é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da
lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; inciso LIV: ninguém será privado da liberdade ou de seus
bens sem o devido processo legal;
33
Artigo 8º, CPC: Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem
comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a
razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
34
Segundo Humberto Theodoro Jr., “é corrente, e correta, a afirmação de que a execução é sempre real, e nunca
pessoal, em razão de serem os bens do executado os responsáveis materiais pela satisfação do direito do
exequente.” Daniel Amorim Assumpção Neves complementa: “é nesse sentido, inclusive, o art. 391 do Código
Civil e o art. 789 do Novo Código de Processo Civil, que consagram de forma expressa o princípio da
patrimonialidade na execução.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução. 19. Ed. São Paulo:
Leud, 1999, p. 64; DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord. geral). Medidas executivas atípicas. São Paulo: Editora
Juspodvm, 2018, p. 633.)
23

Figura 4: Tendência de julgamento nas 25ª a 32ª Câmaras de Direito Privado do TJ-SP envolvendo as medidas
executivas atípicas do artigo 139, IV

Fonte: Anuário da Justiça de São Paulo 2019. 10 ed. Disponível em: Revista Consultor Jurídico, publicada em 11/09/2019.

Figura 5: Tendência de julgamento nas 33ª a 36ª Câmaras de Direito Privado do TJ-SP envolvendo as medidas
executivas atípicas do artigo 139, IV

Fonte: Anuário da Justiça de São Paulo 2019. 10. ed. Disponível em: Revista Consultor Jurídico, publicada em 11/09/2019.

Para o desembargador Andrade Neto da 30ª Câmara, “o juiz se submete ao império da


lei e por ela tem seus poderes limitados, sendo absolutamente incompatível com a Constituição
qualquer interpretação que o autorize a exercer poderes de modo ilimitado” 35, referindo-se à
suposta plenitude de poderes concedidas ao juiz pelo dispositivo jurídico.
Por outro lado, em que pese a tramitação da Ação Direta de Inconstitucionalidade
perante o Supremo Tribunal Federal, ao menos por ora, a previsão é constitucional e consiste
em meio hábil a resolver a problemática da efetivação da tutela jurisdicional.
Também cientes da crise do sistema judiciário brasileiro, os autores favoráveis à
aplicação do artigo 139, IV, do CPC, não o fazem de maneira indiscriminada, pelo contrário,
aduzem que as medidas executivas atípicas devem servir de meio instrumental de coerção,
visando, pura e simplesmente, incentivar a satisfação da obrigação pecuniária.
De acordo com Marcelo Abelha Rodrigues, preliminarmente à discussão principal, há
de se assentar a distinção de medidas punitivas e medidas coercitivas, senão vejamos:

[...] É preciso ter muito clara a percepção de que o que define uma medida
processual como coercitiva ou punitiva é a sua finalidade imediata
[inegável que como toda e qualquer sanção punitiva, há, sempre, embutida

35
CREPALDI, Thiago. Conheça as tendências do TJ-SP em casos de dívidas e penhora de bens. CONJUR,
setembro, 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-09/conheca-tendencias-tj-sp-casos-dividas-
penhoras?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook. Acesso em: 10 de set. de 2019.
24

e inerente uma função coercitiva decorrente do risco da punição, mas este


não é o fim primeiro da regra do artigo 77, §2º], ou seja, se ela serve de
instrumento para se obter um resultado a realizar ou se ela serve para punir
uma conduta já realizada. Não é propriamente o seu nome, de onde emana
ou o destinatário da medida processual que identificam se é coercitiva ou
punitiva a medida processual. Frise-se, é a sua função, sua finalidade.
Tomando como exemplo a “multa processual”, esta ora pode ser uma
medida coercitiva (art. 537 do CPC), ora uma medida processual punitiva
(art. 774, parágrafo único, do CPC), sendo ambas emanadas de um ato de
ofício do juiz, ambas com natureza processual e ambas podem ser
destinadas ao mesmo sujeito do processo. 36

Para a plena compreensão, importante também se faz distinguir a natureza jurídica dos
institutos das medidas executivas indiretas de coerção psicológica e das sanções civis de
natureza material, de modo a afastar eventual violação ao princípio da patrimonialidade da
execução, conforme ensinamentos da Ministra do STJ, Nancy Andrighi, em acórdão
recentemente proferido:

[...] Não se pode confundir a natureza jurídica das medidas de coerção


psicológica, que são apenas medidas executivas indiretas, com sanções civis
de natureza material, essas sim capazes de ofender a garantia da
patrimonialidade, por configurarem punições em face do não pagamento da
dívida.
A diferença mais notável entre os dois institutos acima enunciados é a de que,
na execução de caráter pessoal e punitivo, as medidas executivas sobre o corpo
ou a liberdade do executado tem como característica substituírem a dívida
patrimonial inadimplida, nela sub-rogando-se, circunstância que não se
verifica quando se trata da adoção de meios de execução indiretos. 37

Neste sentido, Daniel Amorim Assumpção Neves, contribui para esta discussão ao
pontuar que “a sanção civil é decorrência natural e inexorável do descumprimento de uma
obrigação, sendo instituto de direito material e por ele regulamentado”, ao passo que para ele,
“as medidas coercitivas são aplicadas pelo juiz, a depender das circunstâncias do caso concreto,
não em decorrência do inadimplemento da obrigação, mas em razão do descumprimento da
decisão judicial que determinou o cumprimento da obrigação exequenda”. 38

36
RODRIGUES, Marcelo Abelha. O que fazer quando o executado é um cafajeste. Migalhas, 2016, setembro.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI245946,51045-
O+que+fazer+quando+o+executado+e+um+cafajeste+Apreensao+de+passaporte. Acesso em: 17 de jun. de 2019.
37
STJ, Recurso Especial nº 1.782.418 – RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/04/2019.
38
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Medidas executivas coercitivas atípicas na execução de obrigação de
pagar quantia certa – art. 139, IV, do novo CPC. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord. geral). Medidas executivas
atípicas. São Paulo: Editora Juspodvm, 2018, p. 628-666.
25

Ainda segundo o autor, “a adoção de medidas executivas coercitivas que recaiam sobre
a pessoa do executado não significa que seu corpo passa a responder por suas dívidas”, uma
vez que, na verdade, “são apenas medidas executivas que pressionam psicologicamente o
devedor para que esse se convença de que o melhor a fazer é cumprir voluntariamente a
obrigação” 39
, aduzindo, coerentemente, que as medidas atípicas em questão são meios
coercitivos, e não punitivos.
Luiz Dellore, por sua vez, entende que não há violação à Constituição Federal,
afirmando que tais medidas são cabíveis diante da previsão existente no artigo 139, IV, do CPC,
exceto a suspensão da CNH do motorista profissional. 40
Guilherme Sarri Carreira e Vinicius Caldas da Gama e Abreu condicionam a aplicação
das medidas atípicas ao caso concreto em que foram esgotados os meios típicos de localização
de bens passíveis à penhora e em face de “devedor ostentação” 41, vez que apenas nesta hipótese
tais medidas não teriam caráter punitivo. 42
O professor e desembargador da 34ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, Luiz
Guilherme da Costa Wagner, posiciona-se firmemente em relação à viabilidade da adoção de
medidas executivas atípicas que retirem o devedor de uma “zona de conforto”:

É cômoda a posição do devedor. Não paga, não apresenta bens e quando


ameaçado de ser retirado de sua zona de conforto, esperneia buscando agarrar-
se em legislação que, a seu juízo, lhe ampara. Se é verdade que os direitos
fundamentais são prestigiados em nossa legislação, não é menos verdade que
também a lei pretendeu garantir aos jurisdicionados a eficácia das decisões
judiciais. 43

Já o professor Fredie Didier Jr. foi além: para ele, as medidas atípicas podem ser
dirigidas ao executado, a terceiro ou, em determinados casos, ao próprio exequente. O autor
sustenta que o juiz deve aplicá-las de maneira adequada de modo que se alcance o resultado

39
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Medidas executivas coercitivas atípicas na execução de obrigação de
pagar quantia certa: Art. 139, IV, do novo CPC. São Paulo: Revista de Processo n. 264, p. 107-150.
40
DELLORE, Luiz. Atipicidade das medidas executivas já é realidade. JOTA, 2017, abril. Disponível em:
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/novo-cpc/ncpc-atipicidade-de-medidas-executivas-ja-e-
realidade-17042017. Acesso em: 17 de jun. de 2019.
41
Expressão utilizada por Thiago Rodovalho, para se referir à situação em que, no caso concreto, não se localiza
bens em nome do devedor, porque blindados por complexas operações societárias e em paraísos fiscais, mas que
na vida real esbanja luxo, pois frequenta bons e caros restaurantes e desfila em carros importados.
42
CARREIRA, Guilherme Sarri; ABREU, Vinicius Caldas da Gama e. Dos poderes do juiz na execução por
quantia certa: da utilização das medidas inominadas. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord. geral). Medidas
executivas atípicas. São Paulo: Editora Juspodvm, 2018, p. 242-273.
43
CREPALDI, Thiago. Conheça as tendências do TJ-SP em casos de dívidas e penhora de bens. CONJUR,
setembro, 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-09/conheca-tendencias-tj-sp-casos-dividas-
penhoras?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook. Acesso em: 10 de set. de 2019.
26

pretendido, ao que denomina “critério da adequação”; ainda, deve causar a menor restrição
possível ao executado, respeitando ao “critério da necessidade”; bem como, a medida atípica
deve servir de meio para solução que melhor atenda aos interesses em conflito, ponderando-se
as vantagens e as desvantagens que ela produz, de acordo com o “critério da
proporcionalidade”. Não obstante tais critérios, a decisão que aplica a medida atípica deve ser
devidamente fundamentada, com observância do contraditório, ainda que diferido. 44
O entendimento doutrinário supra acabou repercutindo na seara jurisdicional, tendo
sido amplamente divulgado nas recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça 45, de relatoria
da brilhante Ministra Nancy Andrighi, passando a indicar posicionamento favorável à aplicação
do artigo 139, IV, do CPC, mediante o cumprimento de uma série de critérios a serem
observados no caso concreto, os quais serão detalhadamente expostos no capítulo seguinte.
Nesta senda, revendo seu posicionamento anterior, a fim de alinhar-se ao entendimento
recente traçado pelo STJ, o Desembargador Carlos Henrique Miguel Trevisan, ao analisar o
pedido de bloqueio do passaporte, fez um raciocínio contrário, sob a ótica do credor:

[...] Analisando-se especificamente o pedido de suspensão do passaporte, o


não pagamento do débito poderá, eventualmente, impedir o credor de realizar
uma viagem para o exterior, tendo ele, a partir daí, limitado o seu direito de ir
e vir pela inércia do devedor. [...] Enquanto o devedor pode despender
recursos financeiros com viagens para o exterior, muitas vezes voltadas ao
mero deleite e lazer, o credor deve permanecer aguardando se em algum
momento o devedor se recordará do débito em aberto. 46

Deste ponto de vista, a suspensão do passaporte e o bloqueio dos cartões de crédito


“são medidas que poderão acarretar a preservação de patrimônio, na medida em que dificultarão
a assunção de despesas não essenciais”, o que poderia contribuir para eventual celebração de
acordo com o credor, ou mesmo a integral satisfação do crédito. Em outras palavras, o
magistrado entende que na ausência de bens penhoráveis, “será do dia a dia que o devedor terá
de obter fundos para o pagamento de suas dívidas”.

44
DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael
Alexandria de. Diretrizes para a concretização das cláusulas gerais executivas dos arts. 139, IV, 297 e 536, § 1º,
CPC. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord. geral). Medidas executivas atípicas. São Paulo: Editora Juspodvm,
2018, p. 308/347.
45
No mesmo sentido: STJ, Recurso Especial nº 1.788.950 – MT, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma,
julgado em 23/04/2019; STJ, Recurso Especial nº 1.782.418 – RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma,
julgado em 23/04/2019.
46
TJ-SP, Agravo de Instrumento 2050212-30.2019.8.26.0000, rel. Des. Carlos Henrique Miguel Trevisan, 29ª
Câmara de Direito Privado, julgado em 03/05/2019.
27

Deste modo, dispensa-se maior esforço argumentativo, para concluir que o devedor
efetivamente preocupado com o pagamento de sua dívida, sequer sentirá algum efeito negativo
com as medidas coercitivas impostas, já que não pretende realizar gastos vultosos com viagens
ao exterior ou compras não essenciais por meio de cartão de crédito sem antes efetuar o
pagamento do crédito exequendo.
Inclusive, importante frisar que não se tratam de mecanismos destinados aos devedores
que não têm mais condições para honrar qualquer compromisso financeiro ou os que passam
por dificuldades financeiras momentâneas e podem atrasar alguns pagamentos, mas, sim,
àqueles chamados “devedores profissionais”, que são capazes de blindar seu patrimônio contra
os credores com o único objetivo de não serem obrigados a pagar os débitos. 47
Em última análise, exarada ao longo de seu voto, Trevisan fez a seguinte reflexão:

[...] Por outro lado, aquele que se furta ao cumprimento da obrigação,


ocultando bens e desdenhando do credor, deve ser atingido pela atuação do
Estado com a imposição das indigitadas providências - ainda que não se possa
garantir a sua efetividade - como forma de se tentar proporcionar ao credor a
efetividade da jurisdição, com a devida pacificação social.

Em outra decisão recente, conforme bem ponderou o Desembargador Melo Colombi,


da 14ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP:

[...] A intenção da lei não é prejudicar o devedor; o intuito é retirá-lo da inércia,


pois lhe é muito cômodo esperar que o exequente busque por todos os meios
satisfazer seu crédito, enquanto aquele aguarda placidamente pela prescrição
intercorrente, mantendo intacto seu estilo de vida. O dever de cooperação não
é obtido, como deveria ser num mundo ideal, por meio de atitude honrada de
o devedor se empenhar em cumprir com sua obrigação. Infelizmente, apenas
quando ele é atingido de alguma forma em seus direitos é que entende que
precisa buscar um meio de pagar seu débito; que não pode se esquivar de seus
deveres. 48

Nesse sentido, ressalta-se que o intuito é imprimir um certo grau de desconforto ao


devedor, que o recordará de que tem um compromisso a saldar com seu credor, de maneira que
a aplicação das medidas funcionará como um estímulo para a quitação de seus débitos, sendo
útil, portanto, ao escopo do processo executivo.

47
ALMEIDA, Marília. Justiça decide tomar de devedor passaporte, CNH e cartões. Seu dinheiro. Revista Exame,
2016, setembro. Disponível em: https://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/justica-decide-tomar-passaporte-cnh-e-
cartoes-de-devedor/. Acesso em: 01 de ago. de 2019.
48
TJ-SP, Agravo de Instrumento nº 2182708-57.2018.8.26.0000, rel. Des. Melo Colombi, 14ª Câmara de Direito
Privado, julgado em 11/10/2018.
28

De uma maneira geral, portanto, o fato é que as medidas executivas atípicas, objeto do
presente ensaio, são (até o presente momento) constitucionais e vêm sendo aplicadas pelo
Superior Tribunal de Justiça e pelos tribunais estaduais, razão pela qual passarei a definir os
requisitos e os limites para sua devida aplicação no caso concreto, conforme o atual
entendimento doutrinário e jurisprudencial.
29

4. DIRETRIZES PARA CONCRETIZAÇÃO: APLICABILIDADE E LIMITES

Antes de se adentrar efetivamente ao tópico, importante repisar a discussão acerca da


natureza jurídica das medidas executivas atípicas, aludidas no artigo 139, IV, do CPC; isto é, a
razão pela qual são medidas coercitivas indiretas, e não sansões punitivas aleatórias. Como
supracitado, Marcelo Abelha Rodrigues didaticamente definiu tais institutos entre àquelas que
servem de instrumento para se obter um resultado ou estas que servem para punir uma conduta
já realizada.
Aliás, como destacado, a diferença mais notável entre os dois institutos é a de que, na
execução de caráter pessoal e punitivo, as medidas executivas sobre o corpo ou a liberdade do
executado tem como característica substituírem a dívida patrimonial inadimplida, nela sub-
rogando-se, circunstância que não se verifica quando se trata da adoção de meios de execução
indiretos, que somente pressionam psicologicamente o devedor para que se convença de que o
melhor a fazer é cumprir voluntariamente a obrigação.
Sem dúvidas, será maior o empenho do juiz em justificar as soluções atípicas que
adotou no caso concreto, uma vez que deverá esclarecer em que medida os meios típicos de
execução não surtiram efeitos e as razões pelas quais as imposições que aplica são eficazes,
suficientes e proporcionais frente às circunstâncias. Em todo caso, por certo, a busca pelo
cumprimento das decisões judiciais, em especial na fase executória, não pode se dar sob o
sacrifício de direitos fundamentais. 49
Como bem aponta Daniel Amorim Assumpção, essas medidas só podem ser aplicadas
subsidiariamente aos meios típicos, mediante o exercício do contraditório prévio (artigo 9º do
CPC) e por decisão fundamentada (artigo 93, IX, da CF; artigo 489, § 1º, incisos I e II, do CPC).
Neste sentido, parcela considerável da doutrina também indica que ocorra o esgotamento dos
meios tipicamente previstos para pretender a satisfação do crédito, nas palavras de Marcus
Vinicius Rios Gonçalves:

[...] A imposição de meios coercitivos, como a multa, nas obrigações por


quantia, deverá ser de aplicação excepcional ou subsidiária, quando os meios
de sub-rogação não foram eficazes. Se o devedor tiver bens, o cumprimento
da obrigação continuará sendo feito, primacialmente, com o arresto e a
penhora deles para oportuna expropriação e pagamento do credor. Apenas nos
casos em que os meios de sub-rogação não se mostrarem eficazes, porque o

49
Trecho extraído da manifestação da Procuradoria Geral da República, nos autos da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 5941, ajuizada perante o STF pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
30

devedor oculta maliciosamente os bens ou causa embaraços ou dificuldades à


sua constrição, o juiz poderá valer-se dos meios de coerção. 50

Aliás, o Fórum Permanente de Processualistas Civis se posicionou a este respeito, em


seus Enunciados nº 12 e nº 396, a ratificar que as medidas atípicas poderiam ser aplicadas de
ofício, mas consideradas apenas subsidiariamente às típicas, observado, em todo caso, o
contraditório prévia:

Enunciado 12. A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas


é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de
título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de
forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório,
ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II.
Enunciado 396. As medidas do inciso IV do art. 139 podem ser determinadas
de ofício, observado o art. 8º.

Em linhas gerias, o magistrado agora conta com outras medidas de apoio à execução,
sendo certo que, para viabilizar a aplicação do dispositivo, serão verificados a existência de
indícios de que o devedor possua patrimônio apto a cumprir a obrigação a ele imposta; o
esgotamento dos meios típicos de cumprimento da sentença e execução; sendo-o aplicado por
meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese
concreta; com observância do contraditório prévio substancial e do princípio da
proporcionalidade.
Segundo a recente jurisprudência e parcela respeitável da doutrina, portanto,
respeitando-se esse contexto, o magistrado está autorizado a adotar medidas que entenda
adequadas, necessárias e razoáveis para efetivar tutela do direito do credor em face de devedor
que, demonstrando possuir patrimônio apto a saldar o débito em cobrança, intente frustrar sem
razão o processo executivo.
É bem verdade que, muitas vezes, o exaurimento dos meios executivos relacionados
no Código significa que o devedor não dispõe de patrimônio com o qual pagar a dívida. Então,
não restará muito o que fazer ao credor. Outras vezes, no entanto, a busca persistente de bens
do devedor não descortina patrimônio sujeito à execução, mas o comportamento social do
executado evidencia o descolamento desse dado com a realidade: sinais de solvência em redes

50
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2016,
p. 289-290.
31

sociais ou no trânsito público em oposição à indisponibilidade patrimonial dentro das paredes


do processo. 51
Frise-se, uma vez mais, que a existência de indícios mínimos que sugiram que o
executado possui bens aptos a satisfazer a dívida é premissa que decorre como imperativo
lógico, pois não haveria razão apta a justificar a imposição de medidas de pressão na hipótese
de restar provada a inexistência de patrimônio hábil a cobrir o débito.
Com efeito, não há razoabilidade ou proporcionalidade em incumbir tais medidas ao
executado que momentânea e verdadeiramente não possui fundos para satisfazer a dívida
contraída, ao menos não sem comprometer sua dignidade e dos demais que dele dependem. Até
mesmo por isso, a Ministra Nancy Andrighi sustentou o entendimento de que os meios
executivos atípicos não devem ser utilizados em face de devedores que não apresentem sinais
de ocultação patrimonial. 52
Em relação às medidas atípicas abordadas neste ensaio, conforme se observa a respeito
da apreensão do passaporte, o Superior Tribunal de Justiça tem compreendido que a medida
não é, em si, ilegal, sendo que o definidor de sua aplicação é a adequação ao caso concreto,
mediante atendimento aos critérios acima estabelecidos.
Assim, o casuísmo deve estar presente nas decisões que vierem a analisar tais pedidos.
Os meios atípicos são inegavelmente importantes ferramentas, que buscam suprir insuficiências
do sistema tradicional de execução quanto à satisfação do crédito, mas desde que parâmetros
sejam fielmente observados, dentre os quais o respeito ao contraditório prévio, a fundamentação
da decisão, a proporcionalidade da medida e o esgotamento dos meios típicos. 53
Foi seguindo este raciocínio, que o Desembargador Marcos Ramos da 30ª Câmara de
Direito Privado do TJ-SP determinou o bloqueio de cartões de crédito até o efetivo
cumprimento da obrigação de pagar quantia certa, senão vejamos:

[...] A impossibilidade de uso de cartões de crédito, ademais, não fere a


dignidade da pessoa humana, mormente porque o executado poderá efetivar o
pagamento de suas despesas de outras formas, como por meio de papel moeda,
cartões de débito, boletos bancários, dentre outras, mas tal restrição poderá lhe
impor incômodos ou dificuldades que porventura estimularão o pagamento do

51
STJ, Habeas Corpus nº 478.963, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 14/05/2019.
52
STJ, Recurso Especial nº 1.782.418 – RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/04/2019;
no mesmo sentido: STJ, Recurso Especial nº 1.788.950 – MT, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado
em 23/04/2019.
53
PEIXOTO, Marco Aurélio; BECKER, Rodrigo. Impossibilidade de adoção de medidas atípicas contra
devedores sem sinais de ocultação patrimonial. JOTA, 2019, junho. Disponível em:
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/impossibilidade-de-adocao-de-
medidas-atipicas-contra-devedores-sem-sinais-de-ocultacao-patrimonial-13062019#sdfootnote5anc. Acesso: em
03 de ago. de 2019.
32

débito exequendo. Importa ressaltar que o cancelamento dos cartões de crédito


se assemelha a outras práticas de restrição ao crédito já há muito instituídas
em nosso país, como, por exemplo, a inscrição do nome do devedor em órgãos
de proteção ao crédito como SERASA e SPC. Constitui, portanto, apenas mais
uma forma de limitar a concessão de crédito ao devedor inadimplente, além
de eventualmente impor dificuldades de pagamento. Adequada à hipótese,
portanto, a medida coercitiva fundamentada no art. 139, IV, do novo Código
de Processo Civil. 54

O entendimento não é absoluto, todavia: a Corte Superior definiu, por maioria de


votos, que não cabem as medidas executivas atípicas no âmbito de execução fiscal. O relator,
Ministro Napoleão Maia Filho, da Primeira Turma, entendeu por bem que “são excessivas
medidas atípicas aflitivas pessoais, tais como a suspensão de passaporte e da licença para
dirigir”, ressaltando-se que, no caso concreto, o executado já sofria constrição de 30% de seu
salário para saldar a dívida. 55
Em outro caso emblemático, o Juízo da 4ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo
condicionou a realização de shows do músico Frank Aguiar à autorização judicial, visando
possibilitar a penhora de parte da arrecadação prevista nos contratos a fim de satisfazer dívida
contraída pelo artista. 56 Após a alegação de impedimento do exercício de sua profissão, o TJ-
SP concedeu efeito suspensivo ao agravo de instrumento interposto, para suspender a medida
atípica aplicada até posterior julgamento do recurso. 57
Já na tutela do meio ambiente, o STJ confirmou serem cabíveis as medidas de
execução atípicas, ratificando o entendimento do TJ-RS ao manter a apreensão do passaporte
do ex-jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho e seu irmão e empresário, Roberto de Assis
Moreira.
Evasivos há mais de oito anos, o relator Ministro Francisco Falcão bem asseverou que
“o comportamento processual até aqui adotado é claramente sintomático de que a persistência
no caminho executivo típico não alcançará sucesso, razão pela qual existe justo motivo para o
emprego de medida coercitiva atípica”, sendo “conveniente registrar que os pacientes dispõem

54
TJ-SP, Agravo de Instrumento nº 2185700-59.2016.8.26.0000, rel. Des. Marcos Ramos, 30ª Câmara de Direito
Privado, julgado em 28/06/2017.
55
STJ, Habeas Corpus nº 453.870, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em
25/06/2019.
56
Decisão proferida nos autos do cumprimento de sentença, processo nº 0114264-90.2001.8.26.0100, pela 4ª Vara
Cível, em 14/06/2019. No mesmo sentido: TJSP, Agravo de Instrumento nº 2178221-78.2017.8.26.0000, rel. Des.
Adilson de Araújo, julgado em 05/12/2017.
57
TJ-SP, Agravo de instrumento nº 2136647-07.2019.8.26.0000, rel. Des. Christine Santini, 1ª Câmara de Direito
Privado, decisão proferida em 25/06/2019.
33

de patrimônio de sobra para depositar o numerário devido nos autos do cumprimento de


sentença e, com isso, tornarem desnecessária a medida coercitiva pendente”. 58
Nessa linha, o ex-jogador de futebol Denílson busca a satisfação do crédito que possui
direito em face do cantor Belo, no valor de 4,7 milhões de reais, desde 2004, quando deu início
à fase de execução. O processo tramita em segredo de justiça, contudo, segundo informações
da UOL 59, no ano passado, o TJ-SP determinou o bloqueio de cachês de apresentação de Belo
pelo país, mas os valores não cobriram a dívida. Sem a efetiva tutela, o Tribunal deferiu a
penhora dos direitos autorais de Belo. Após o bloqueio dos direitos autorais, o Tribunal intimou
a empresa Apple a fornecer dados das receitas provenientes da distribuição (streaming) e
execução das músicas do cantor nas mídias ligadas à empresa.
Insta salientar que, bem como ocorreu no caso Ronaldinho 60 , o STF também não
conheceu do habeas corpus impetrado contra a apreensão do passaporte do deputado federal
Luís Miranda (DEM-DF), medida aplicada pelo TJ-DF devido ao não pagamento de dívida
judicial. De acordo com a jurisprudência da Suprema Corte, o remédio constitucional não é o
meio adequado para a impugnação e a revisão de decisões judiciais cíveis, ainda que, por via
reflexa, a liberdade de locomoção da parte seja afetada. 61
Por certo, medidas atípicas eventualmente determinadas à margem e arrepio da
Constituição Federal, ou mesmo se constituir em um ilícito civil, penal, internacional, tais como
a impossibilidade de exercer a profissão, a privação de sono, a proibição de frequentar
determinados locais e qualquer imposição que implicaria ao devedor responder com seu próprio
corpo jamais devem ser sequer cogitadas, tampouco porque serviriam de instrumento coercitivo
para pagamento do débito, sob pena de incorrer em violação aos direitos fundamentais do
indivíduo.
Explica-se, com base no caso que foi amplamente divulgado pela mídia, em que um
juiz do Distrito Federal determinou o uso de técnicas de privação de sono dos ocupantes, com
utilização de “instrumentos sonoros contínuos”, medidas que supostamente corroborariam para
a efetivação da sua decisão, que determinava a desocupação de uma escola. Nesta ocasião, o
juiz proibiu a entrada de alimentos no local, determinou o corte de fornecimento de água,

58
STJ, Habeas Corpus nº 478.963, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 14/05/2019.
59
THADEU, Bruno (Ed.). Justiça penhora direito autoral de Belo em ação de Denílson e intima Apple. UOL,
2019. Disponível em: https://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2019/07/23/justica-penhora-direito-
autoral-de-belo-em-acao-de-denilson-e-intima-apple.htm. Acesso em: 04 de ago. 2019.
60
STF, Recurso Ordinário em Habeas Corpus, nº 173.332, Rel. Min. Rosa Weber, liminar julgada em 28/08/2019;
61
Nesse sentido: HC nº 81.814 AgR, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJe 14/06/2002; HC nº 82.880
AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJe de 16/05/2003; HC nº 155.981, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de
03/05/2018 e HC nº 99.369 AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, DJe de 16/10/2009.
34

energia e gás e proibiu o acesso à escola de parentes e conhecidos dos ocupantes, até o efetivo
cumprimento da decisão.
Contudo, de acordo com o Protocolo de Istambul, privação de sono e restrição de
acesso à água são técnicas de tortura. A tortura é crime inafiançável e insuscetível de graça e
anistia (artigo 5º, XLIII, CF). Nas palavras de Fredie Didier Júnior: “sendo uma prática
criminosa, por definição, não pode ser uma prática lícita, nem mesmo, e muito menos, sob o
abrigo de uma cláusula geral processual”. 62
É bem verdade que, ao longo da história, o devedor respondia com sua vida pelo
pagamento da dívida, isso porque a obrigação era personalíssima e resultante do vínculo
obrigacional existente entre devedor e credor. 63 Conforme bem pontuado pelas professoras
Bianca Mendes Pereira Richter e Natália Diniz da Silva, com o desenvolvimento do Direito,
essa odiosa forma de cumprimento das obrigações foi afastada, contudo, ainda restam alguns
resquícios desse vínculo histórico, tais como a prisão do depositário infiel (sabiamente afastada
pelo STF) e a prisão do devedor de alimentos. 64
Com efeito, os limites para efetivá-las são definidos de acordo com o caso concreto e
subsidiariamente, após esgotados os meios típicos de satisfação do crédito. Deste modo,
eventual suspensão da CNH, apreensão de passaporte e bloqueio de cartões de crédito devem
ser aplicadas de forma coerente e proporcional. Em outras palavras, tratar genericamente tais
medidas como autorizadas pelo artigo 139, IV, do CPC, beira à irresponsabilidade e à
insegurança jurídica. 65
Ao que me parece, a intenção do legislador ao inserir o dispositivo foi exclusivamente
uma: conceber novos instrumentos de coerção aos protagonistas do processo a fim de que
dediquem-se a romper com esquemas de blindagem de patrimônio notoriamente conhecidos,
que burlam e fraudam o processo executivo e a expectativa de recebimento do crédito pelo
exequente, muitas vezes praticado por devedores profissionais cujo poder aquisitivo é evidente,
mas que deixam de quitar o débito por mero capricho e orgulho.

62
DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael
Alexandria de. Diretrizes para a concretização das cláusulas gerais executivas dos arts. 139, IV, 297 e 536, § 1º,
CPC. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord. geral). Medidas executivas atípicas. São Paulo: Editora Juspodvm,
2018, p. 345/346.
63
AZEVEDO, Luiz Carlos de; CRUZ E TUCCI, José Rogério. Lições de processo civil canônico: história e direito
vigente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
64
RICHTER, Bianca Mendes Pereira; SILVA, Natália Diniz. Controle de Convencionalidade - Temas
aprofundados. 1. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. v. 1. 720, p. 9.
65
PEIXOTO, Marco Aurélio; BECKER, Rodrigo. Impossibilidade de adoção de medidas atípicas contra
devedores sem sinais de ocultação patrimonial. JOTA, 2019, junho. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-
e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/impossibilidade-de-adocao-de-medidas-atipicas-contra-devedores-
sem-sinais-de-ocultacao-patrimonial-13062019#sdfootnote5anc. Acesso em: 03 de ago. 2019.
35

Sendo assim, conforme exposto à luz da legislação, da doutrina e da jurisprudência


atual, as medidas executivas previstas no inciso IV do artigo 139, do CPC não devem se dar às
custas de mera arbitrariedade do julgador. Pelo contrário, o juiz deve fazê-lo mediante análise
casuística, subsidiariamente e após os meios típicos executivos, por meio de decisão
fundamentada, pela qual indicará as razões fáticas e jurídicas razoáveis e proporcionais que o
levaram a determinar a sua aplicação, a fim de promover a devida tutela jurisdicional.
36

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em razão da evidente saturação do Poder Judiciário e do cenário crítico de processos


executivos envolvendo a esfera civil, ao menos à primeira vista, os mecanismos estabelecidos
pelo Código de Processo Civil de 2015 vêm sendo aplicados ao longo destes últimos anos pelo
Superior Tribunal de Justiça, que passou a posicionar-se com rigor para otimização do processo
e efetivação da tutela jurisdicional, adotando posições consideradas polêmicas como a
mitigação da regra geral de impenhorabilidade de salários, ou mesmo afastando a sucumbência
na hipótese de desistência da execução por falta de bens penhoráveis.
Nessa baila, as cláusulas gerais inseridas no artigo 139, IV, do CPC, preveem a
possibilidade de medidas executivas atípicas, à exemplo da suspensão da CNH, da apreensão
do passaporte e do bloqueio de cartões de crédito, medidas às quais os tribunais têm tratado
como coercitivas indiretas, e não sanções meramente punitivas, a considerar o caso concreto,
conforme ensinamentos de parcela respeitável da doutrina.
Afinal de contas, como bem sustentou o Ministro Francisco Falcão, o credor de quantia
não deseja um papel que reconheça o seu direito, e sim o crédito reconhecido no papel. Contudo,
nem sempre o catálogo de providências executivas predispostas pelo legislador tem a
capacidade de assegurar essa transformação da realidade com que sonha o credor. 66
A despeito de entendimentos diversos, se assim não o fosse, o processo civil
permaneceria inerte diante da resistência do devedor, assistindo ao credor buscar alternativas
em um sistema mecânico engessado.
Por conseguinte, descumpriria com o seu dever de efetividade, não obstante as
circunstâncias da realidade indicassem a necessidade de persistir. E ao final, em tom sarcástico,
presentearia o credor com a resposta "não foi possível", embora o devedor seguisse explorando
os prazeres da vida em todas as suas possibilidades.
De fato, sem prejuízo da contumaz discussão nos meios acadêmicos, ao menos o que
se nota é a construção de jurisprudência que propicie a efetivação dos meios atípicos, se
respeitados os critérios e as circunstâncias casuísticas amplamente discutidos ao longo deste
ensaio, sob pena de violação aos direitos fundamentais do indivíduo executado.
Com efeito, o magistrado deve perseguir o equilíbrio e a ponderação, compreendendo
a dimensão de sua responsabilidade na concretização das medidas atípicas, afastando-se,

66
STJ, Habeas Corpus nº 478.963, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 14/05/2019.
37

rigorosamente, de imposições meramente punitivistas, que superem o princípio da


patrimonialidade e atinja a pessoa do executado.
Em suma, as medidas executivas atípicas agregaram-se aos meios típicos de execução
em ordem a permitir que o juiz, à luz das circunstâncias do caso concreto, encontre a técnica
mais adequada para proporcionar a efetiva tutela do direito material violado. 67
Sem dúvidas, mesmo após o julgamento da Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade em trâmite no Supremo Tribunal Federal contra o dispositivo, a discussão
envolvendo a aplicabilidade e os limites da cláusula geral contida no artigo 139, IV, do Código
de Processo Civil continuará movimentando os meios acadêmicos e a prática forense, sendo
certo que este ensaio serve como forma despretensiosa de corroborar com o debate.

67
STJ, Habeas Corpus nº 478.963, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 14/05/2019.
38

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