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O Ensino de Línguas no Processo Educacional Brasileiro – Prof. Dr.

Sérgio Augusto Freire de Souza

A função da aprendizagem de línguas estrangeiras


na escola pública
MOITA LOPES, L.P. A função da aprendizagem de línguas estrangeiras na escola pública. In Oficina de lingüística
aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996.

Embora não se questione a aprendizagem de outras matérias do currículo, as LEs são freqüentemente
apontadas como desnecessárias na formação do aprendiz da escola pública. É comum se ouvirem afirmações do tipo:
"Já que ninguém aprende LEs na escola pública, o melhor que se faz é tirá-las do currículo"; "O aluno da escola pública
não precisa de saber LEs"; "Eles não aprendem português quanto mais inglês" (cf. capítulo 4) etc. Estas afirmações
são, na verdade, perigosas.
A primeira pode acarretar também a exclusão de todas as disciplinas do currículo, já que se pode argumentar
que, igualmente, não se aprende português, matemática, história etc. O que está implícito aqui é uma compreensão
de aprendizagem como produto que requereria que o aluno-aprendiz dominasse a LE ao final do segundo grau. Por
outro lado, ninguém exige o mesmo domínio de história ou de matemática, por exemplo. Da mesma forma que
ninguém termina o segundo grau sendo um historiador ou matemático, ninguém precisa, ao fim do segundo grau, ter
domínio completo de uma LE, o que quer que isso seja. Na verdade, ninguém conclui o segundo grau com o mesmo
nível de domínio de outras matérias que se exige das LEs. Uma noção de aprendizagem como processo parece estar
subjacente ao ensino das outras disciplinas do currículo. Embora seja inegável que, em geral, a qualidade do ensino de
LEs deixe a desejar, principalmente por não ser pensado a partir da função social da LE no Brasil, conforme vou
argumentar abaixo.
As outras duas afirmações acima são preconceituosas e parecem deixar implícito que o currículo deve ser
definido a partir da classe social do aluno que freqüenta a escola pública. Isso é particularmente curioso em um país
em que a aprendizagem de LE, notadamente do inglês, é cercada de prestígio social (cf. capítulos 3 e 4)
a necessidade do inglês surge, em parte, de valores sociais e de prestígio como
também de um desejo de imitar modelos culturais britânicos e americanos. O
conhecimento de uma língua estrangeira é visto como quase sinônimo de desen-
volvimento profissional e social, uma realização elegante e um símbolo de status
social (The ELT Profile on Brazil ... , The British Council, 1976:2)

Embora discorde fundamentalmente desta visão da necessidade da aprendizagem de inglês (cf. capítulo 3)
como "símbolo de status social", ela capta a atitude reinante no país em relação à aprendizagem de inglês. O que deve
ser ressaltado aqui é que parece estranho que, em tal contexto social, se argumente que a educação da escola pública
exclua um tipo de conhecimento tão valorizado na sociedade. A menos que se diga que este tipo de conhecimento
educacional é importante somente para a classe média, que tem recursos financeiros para freqüentar cursos de
línguas. Observe-se que ao mesmo tempo em que as LEs foram desvalorizadas nos currículos das escolas públicas, no
setor particular aumentou massivamente, nos últimos anos, o número de redes de cursos de LEs.
Por outro lado, embora as leis educacionais tenham facultado a inclusão de LEs no currículo do primeiro grau
e tornado obrigatória no segundo grau (cf. Lei 5.692/71), é bastante comum a inclusão de LEs no currículo das escolas
de primeiro grau, pelo menos nos grandes centros. Todavia, as LEs não são ensinadas adequadamente e para
aprendê-Ias, com um mínimo de proficiência, é necessário que se freqüente um curso particular. O fato é que as LEs
estão no currículo oficial, e é responsabilidade dos especialistas em LEs (professores e lingüistas aplicados) torná-Ias
possíveis de serem aprendidas no contexto da escola, de modo que setores da sociedade que não tenham acesso a
cursos de LEs possam aprendê-Ias. A ausência de acesso a este tipo de conhecimento no currículo da escola pública
colaboraria, ainda mais, na criação de um modelo de educação para as classes oprimidas, que excluiria um tipo de
conhecimento educacional supervalorizado socialmente (cf. Stenhouse, 1975: 19-20).
Em termos gerais, a única LE normalmente incluída no currículo das escolas brasileiras atualmente é o inglês.
Isso, é claro, representa uma grande perda cultural para não se mencionar o perigo de se ter toda a informação

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estrangeira filtrada no país através de uma única LE (cf. Ballalai, 1982: 1). Com o surgimento do Mercosul, o ensino de
espanhol começa a disputar com o francês o espaço de uma segunda LE. A preferência pelo inglês está obviamente
relacionada à importância inegável do inglês como uma língua internacional, o que se deve ao poder econômico da
Inglaterra e dos Estados Unidos na primeira e na segunda metades deste século. respectivamente, e à penetração do
inglês como a língua do novo imperialista (Estados Unidos) no Brasil neste século (cf. capítulo 3).
Apesar da grande ênfase colocada na aprendizagem de LE, notadamente do inglês, no país, a justificativa
social para a aprendizagem de LE no Brasil só recentemente tem preocupado aqueles envolvidos com o ensino. Uma
das dificuldades enfrentadas pelas LEs no currículo é justamente a de justificar socialmente sua presença. Ao contrário
do que os meios de comunicação de massa explicitam ao divulgar a importância de se aprender inglês no mundo
contemporâneo (cf. a grande quantidade de propaganda de vários cursos de inglês na televisão, por exemplo), só uma
pequena minoria da população terá a chance de usar inglês como meio de comunicação oral tanto dentro como fora
do país. Além disso, não há empregos (de intérpretes, recepcionistas etc.) suficientes no mercado brasileiro para os
quais o desempenho em habilidades orais em LE seja necessário. A pesquisa, na verdade, apontou que mesmo os
professores de inglês no Brasil raramente têm a chance de usar inglês tanto dentro de sala de aula quanto fora dela
(cf. Tílio, 1980: 279 e 431). Portanto, considerar o inglês no Brasil como um recurso para a comunicação oral parece
negar qualquer relevância social para a sua aprendizagem. Mesmo a classe média que normalmente freqüenta cursos
particulares de inglês durante 517 anos geralmente perde a fluência alcançada no curso depois que termina seus
estudos.
É claro que, para a classe média, aprender inglês pode ter uma relação com status social, como já indicado
acima, pouco importando o que se vá fazer, na verdade, com esse conhecimento na sociedade. É comum a classe
média, ao término do cursinho de inglês, continuar a freqüentar aulas de conversação para manter o acesso ao inglês
falado, já que a única habilidade lingüística que pode manter no Brasil é a da leitura, ainda assim para aqueles que
precisam ler literatura técnica em sua área de conhecimento ou que usam inglês em suas leituras de lazer. O fato é
que a única habilidade em LE que parece ser justificada socialmente, em geral, no Brasil é a da leitura. Além disso, os
únicos exames formais de LE, em nível de graduação e pós-graduação, envolvem nada mais que o domínio de
habilidades de leitura. A necessidade real que os alunos podem ter de usar inglês pode surgir quando estão fazendo
cursos universitários em certos campos acadêmicos que requerem a leitura de textos em inglês que não são
encontráveis em português. Alguns exames de seleção para programas de pós-graduação exigem conhecimento de
LEs específicas. Por exemplo, nas áreas de LA e lingüística, um dos exames a que os candidatos aos programas de pós-
graduação devem se submeter, obrigatoriamente, é o de competência em leitura em inglês, tendo em vista o fato de a
produção científica nestas áreas do conhecimento ser escrita, primordialmente, em inglês, mesmo por falantes não-
nativos de inglês. Portanto, a única justificativa social para a aprendizagem de LE no Brasil, especialmente do inglês,
tem a ver com o uso do inglês como um instrumento de leitura (cf. Celani, 1995). A leitura é a única habilidade que
atende às necessidades educacionais e que o aprendiz pode usar em seu próprio meio. É, assim, a única habilidade
que o aprendiz pode continuar a usar autonomamente ao término de seu curso de LE. Conforme Bruner (1977: 17)
aponta: "A aprendizagem não deve só nos conduzir a algum lugar, ela deve nos permitir prosseguir mais facilmente".
Note-se que trabalhos recentes na área de ensino de francês na escola pública também têm argumentado em favor
do foco no ensino da leitura (cf. Leite, 1991 e Putzinger, 1994).
Independentemente de objetivos educacionais mais gerais relacionados com a aprendizagem de LEs, tais
como a possibilidade de se tornar consciente do fenômeno da linguagem através do distanciamento da língua
materna que a aprendizagem de uma LE oferece e a possibilidade de entrar em contato, através da aprendizagem de
LEs, com aspectos de outras culturas que favoreçam a compreensão da sua própria etc., a aprendizagem da leitura em
LE colabora no desenvolvimento de uma habilidade que é central na escola (cf. Moita Lopes, 1993). Em outras pala-
vras, aprender a ler em LE ajuda no desenvolvimento da habilidade da leitura em língua materna, que é, na verdade, a
fonte de muitos problemas com os quais as crianças se defrontam na escola em todas as disciplinas (cf. Albuquerque,
1993).
Essa discussão sobre a situação do ensino de LE na escola pública aponta que os objetivos tradicionais do
ensino de LE (isto é, o foco nas chamadas quatro habilidades lingüísticas com ênfase nas habilidades orais) precisam
ser alterados já que não têm nenhuma justificativa social no contexto brasileiro, isto é, não são apropriados. Entendo
que uma disciplina escolar que não é justificável socialmente não pode demonstrar, para os professores, alunos e a
comunidade em geral, a necessidade de sua presença no currículo. Portanto, não deve causar surpresa o fato de os
professores de LEs gozarem de muito pouco prestígio nas escolas secundárias hoje em dia.

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Além disso, uma disciplina escolar que não tem justificativa social só pode cooperar com uma visão da
educação que tem como objetivo fazer os alunos se adequarem ao status quo. No meu entender, a educação deve dar
meios aos aprendizes de agirem sobre o mundo de modo a poder transformá-Io de acordo com os seus interesses (cf.
Freire, 1974).
Diga-se também que no contexto das escolas públicas brasileiras é irreal se advogar o foco nas chamadas
quatro habilidades lingüísticas, tendo em vista as condições existentes no meio de aprendizagem: carga horária
reduzida (duas aulas semanais de 50 minutos); um grande número de alunos por turma (média de 40 alunos por
turma); domínio reduzido das habilidades orais por parte da maioria dos professores; ausência de material instru-
cional extra além do livro e do giz etc. Nessas condições, o foco nas habilidades de leitura também parece ser mais
facilmente alcançável tendo em vista os seus objetivos limitados.
Dessa forma, a necessidade de um programa dc ensino de LE voltado para o ensino da leitura é derivada da
justificativa social do inglês no país e do fato de que um programa dc ensino centrado nas quatro habilidades
lingüísticas, concebidas como objetivos de ensino, é irrealizável no contexto da escola pública brasileira. Há, portanto,
duas considerações diferentes aqui: uma é uma questão de ideologia educacional e a outra é relacionada à realização
de objetivos.
Embora a redução de objetivos de ensino à habilidade da leitura tenha semelhanças com a maneira de se
planejar programas de ensino típica da área de Ensino de Língua Instrumental (ELI), a proposta para focalizar a leitura
na escola pública defendida aqui deve ser entendida como um programa de ensino geral de LE. A especificação de
objetivos é similar ao campo de ELI; contudo, em ELI a especificação é definida em termos do objetivo-alvo do apren-
diz, isto é, o tipo de conhecimento lingüístico ou habilidades que os aprendizes necessitarão em uma situação de uso
particular, em uma profissão etc. Na proposta de ensino centrada na leitura apresentada aqui, a especificidade é
definida em relação à função da LE em termos do contexto social geral do país no qual os alunos se encontram e das
condições de aprendizagem na escola. Ou seja, a especificidade está relacionada à situação existente que define o
ponto inicial para os aprendizes em vez da situação existente que representa o comportamento-alvo. Além disso, a
leitura aqui não tem o objetivo remedial de curto prazo dos cursos de ELI que normalmente são associados ao ensino
de uma habilidade particular para necessidades específicas. Na proposta de ensino dc leitura, a aprendizagem da LE é
vista como parte do processo educacional do aprendiz como um todo.
O ensino de LE desta perspectiva envolve o ensino de uma habilidade específica, mas tem um objetivo
educacional geral. Centra-se na aprendizagem de uma habilidade que é útil para os aprendizes, que podem continuar
a aprender em seu próprio meio, e que fornece a possibilidade de aumentar seus limites conceituais, já que, através
da leitura em uma LE, pode-se ser exposto a visões diferentes do mundo, de sua própria cultura e de si mesmo como
ser humano. Além, é claro, de colaborar no desenvolvimento da habilidade de ler em LM, como dito acima. Acrescen-
te-se também que a aprendizagem da leitura em LE fornece ao aprendiz uma base discursiva, através de seu
engajamento na negociação do significado via discurso escrito, que pode ser ampliada mais tarde através do discurso
oral, caso o aprendiz venha a precisar. Portanto, dois propósitos diferentes são considerados aqui: um utilitário e
outro educacional.
Ao dar conta desses dois objetivos, um programa de ensino de leitura para as escolas públicas fornece aos
alunos deste setor a possibilidade de acesso à única habilidade em LE que faz diferença, verdadeiramente, na
educação de aprendizes dos cursos de línguas particulares. Uma questão sociopolítica está implícita aqui, posto que
esta proposta de ensino de leitura em LE pode auxiliar no desenvolvimento da capacidade de letramento global do
aluno da escola pública, dando-lhe uma possibilidade a mais de lutar pela transformação social (cf. Freire, 1974).
Como planejar o ensino de leitura em LE é uma outra questão que os dois próximos capítulos procuram
começar a discutir ao focalizar um modelo teórico de leitura e aspectos pedagógicos desse modelo.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, E. Dificuldades de Leitura em Enunciados de Problemas de Matemática. Dissertação de mestrado.


UFRJ, 1993.
BALLALAI, R. "Línguas Estrangeiras e Ideologia". Centro Educacional de Niterói, mimeo, 1982.

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BRUNER, J. The Process of Education. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1977.
CELANI, M.A.A. "A Integração Político-econômica do Final do Milênio e o Ensino de Língua(s) Estrangeira(s) no 1° e 2°
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MOITA LOPES, L.P. Discourse Analysis and Syllabus Design: an Approach to the Teaching of Reading Comprehension.
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THE BRITISH COUNCIL. The ELT Profile on Brazil English Language Teaching /l1formation Centre, 1976.
TÍLIO, M.I. Teachers' and Pupils' Altitudes towards the Teaching of English in Brazil: a Case Study in Paraná. Tese de
doutoramento. Universidade de Londres, 1980.

Questões para sistematização


1. O autor inicia o texto falando de algumas afirmações sobre o ensino de línguas na escola pública e chamando
essas afirmações de perigosas. Que afirmações são essas e qual o perigo embutido nelas?

2. Moita Lopes afirma que é necessário que professores e lingüistas aplicados sejam responsáveis pelo ensino
da LE na escola pública. O que deve ser levado em consideração para exercer essa responsabilidade na sua
opinião?

3. O autor argumenta contra o ensino de línguas para comunicação oral e defende a ênfase na leitura. O que
sustenta sua argumentação?

4. Que razões o autor fornece para chamar de irreal o foco nas chamadas quatro habilidades na escola pública?

5. Por que a escolha da leitura como habilidade a ser trabalhada pode ser considerado uma tomada de posição
política?

6. Que critérios você hierarquizaria para determinar as LEs a serem incluídas no currículo das escolas do ensino
fundamental e do médio? Justifique.

7. Aprender a ler em LE pode ajudar na aprendizagem de leitura em LM. Discuta.

8. Qual a diferença entre ensino de língua instrumental e a proposta de ensino de leitura apresentada pelo
autor?

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