Disciplina: HISTÓRIA, POLÍTÍCA INDÍGENA E INDIGENISMO
Discente: Paula Stolerman Araujo Resenha do texto: “O processo Civilizador - volume II” de Norbert Elias
Este volume do Processo Civilizador de Norbert Elias vem dar continuidade
ao que inicia como “uma História dos Costumes”, o subtítulo do primeiro volume, desdobrando-se neste outro livro como “Formação do Estado e Civilização”. Enquanto no primeiro livro o autor visa minuciosamente demonstrar como os comportamentos foram gradativamente levando ao reconhecimento dos indivíduos como uma determinada classe e assim constituindo uma rede de interesse que se articulava com o sistema de poder, neste segundo volume o autor busca desenvolver como este reconhecimento de um grupo diferenciado enquanto civilizado foi gradativamente solidificado com o estabelecimento do Estado, que passou a ser um componente ativo na moldura dos comportamentos de seus súditos e cidadãos. Para Elias, o processo que internaliza a civilidade nos indivíduos é provocado mediante uma racionalidade não planejada, e vem ocorrendo de forma diacrônica. No decorrer do tempo, as relações formadas pelos grupos se estabeleceram em uma ordem social, que passou a regular a manutenção de regras e comportamentos desejáveis. Para ele a racionalidade não planejada refere-se ao conjunto do processo, ao ser analisado, fazer sentido, sem que no entanto possa-se estabelecer uma vontade ativa de uma agente ou agentes do que viria a ser o Estado para garantir os desdobramentos desses acontecimentos. Assim, o autor traz a referência do volume anterior, para explicitar em que termos ocorre a dinâmica social, constituindo o que ele chamou de tecido social, composto pelo entrelaçamento de inúmeras teias e tramas de relações.
[...] planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas
isoladas constantemente se entrelaçam de modo amistoso ou hostil. Esse tecido básico, resultante de muitos planos e ações isolados, pode dar origem a mudanças e modelos que nenhuma pessoas isolada planejou ou criou. Dessa interdependência de pessoas surge uma ordem sui generis, uma ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem. É essa ordem de impulsos e anelos humanos entrelaçados, essa ordem social, que determina o curso da mudança histórica, e que subjaz ao processo civilizador. (ELIAS, 1993, p. 194) Os indivíduos em sociedade estão conectados e esta conexão cria uma dependência no sentido em que ações individuais repercutem na vida de outrem. Deste modo, cada um passa a ser representante do comportamento desejável e esperado pelos outros integrantes do grupos social/classe. Ademais, isso passou a gerar o monitoramento coletivo sobre os comportamentos e o indivíduo passou a reconhecer o autocontrole como mecanismo de regular os comportamentos adequados, a fim de garantir a coesão social. Elias nos indica que que a civilização vai sendo edificada por meio dos comportamentos internalizados, aprendidos desde a infância como o autocontrole corporal para determinados comportamentos, repercutindo na diferenciação social. O autor faz um diálogo com a psicologia pode-se dizer, pois ele busca nos processos sociais elementos que compõe a própria condição psíquica dos indivíduos. Dessa maneira, o autor indica que é constituída uma segunda natureza derivada justamente do autocontrole. No mundo social, o monopólio de força detido pelo grupo de poder estabelece espaços de pacificação e espaços onde a vontade dos poderosos é imposta. O monopólio dos meios de produção exercem força capaz de impor as normas de conduta desejáveis para os grupos aos quais este monopólio de poder se impõe e estes conjuntos de regras são aprendidos desde a infância, modulados pelo autocontrole percebido como desejável pelo grupo social submetido ao poder. Da mesma forma aos poderosos cabe a internalização do autocontrole condizente aos comportamentos desejáveis dentro de seu grupo. Para Elias esse processo não é indolor pois os sentimentos originados pelas coerções sociais não são neutralizados mas os indivíduos alteram seus comportamentos pela necessidade de encaixarem-se socialmente. Pela condição civilizadora ocorrem as alterações comportamentais e podem existir os indivíduos que não conseguem alcançar plenamente o ajustamento às condutas, tronando-se os desajustados, que se opõem a ordem social estabelecida. O autor afirma que no mundo ocidental o processo civilizador ocorreu de forma diferenciada, operando como teias de relações que impuseram o autocontrole em detrimento da ação mediada pelos impulsos mais íntimos de cada um. Nesse ponto parece que o pensamento de Elias faz encontro com o de Freud, tendo como marco sua obra “o mal estar da Civilização”. Os dois livros inclusive são de 1930 e o processo civilizador busca compreender como a individualidade é gradativamente substituída pelo agente social, representante de determinada classe e com uma função social a ser desempenhada. Para Elias, a sexualidade foi reprimida de maneira diferenciada, mas a internalização da civilização resultou em uma geral supressão dos impulsos sexuais. Isto fica evidenciado nas regras que determinam os comportamentos relacionados aos gêneros. Alguns comportamentos para meninas de alta classe eram completamente repreensíveis e impensáveis, no entanto não se pode estabelecer com certeza uma relação racional para esta escolha de conduta. Um elemento diferencial do Ocidente foi a imposição de instrumentos medidores do tempo e que alteraram assim drasticamente a relação com o sentido de produção, especialmente para as diferentes classes de trabalhadores e capitalistas, esta imposição o autor chamou de “ritmo”. Porém todos passaram a se orientar por medidas padronizadas de tempo e a separação do indivíduo sobre a natureza e seus fenômenos observáveis passou a distanciar o indivíduo cada vez mais desta.
Esse “ritmo” nada mais é que uma manifestação do grande número
de cadeias entrelaçadas de interdependência, abrangendo todas as funções sociais que os indivíduos têm que desempenhar, e da pressão competitiva que satura essa rede densamente povoada e que afeta, direta ou indiretamente, cada ato isolado da pessoa. (ELIAS, 1993, p. 207)
Estas cadeias entrelaçadas de relações sociais, muito mais intensificadas no
mundo ocidental também possibilitam uma certa diminuição dos contrastes entre as classes. Apesar de ainda haver uma visível diferenciação entre os comportamentos das mais altas classes e os estratos mais inferiorizados da sociedade, Elias afirma que a expansão da civilização do ocidente possibilitou uma certa homogeneização das supressões dos desejos, na medida em que os intercâmbios entre os agentes sociais ocorrem com maior intensidade, levando o mundo do trabalho a ser um elemento central para a padronização dos comportamentos. Uma importante mudança ocorrida pelo processo civilizador na sociedade ocidental foi iniciada com a sociedade de corte. Ali os modelos de conduta foram estabelecidos e normatizados, assim como internalizados como costumes e hábitos aceitáveis e recomendáveis. Em decorrência dessas normatizações criou-se nas classes de guerreiros/soldados e artesãos a possibilidade de assumirem este comportamento mais “polido” e aceitável pela corte para receberem algum tipo de reconhecimento e prestígio visto que o contato direto entre esses grupos de pessoas raramente ocorria. Com a expansão das relações comerciais e a pacificação gradual da Europa, a classe de guerreiros começou a perder força e o reconhecimento vindo das batalhas e conquistas territoriais e concomitantemente estava ocorrendo a exaltação de uma série de práticas que fomentavam a fixação dos proprietários de terras e os guerreiros não proprietários de terras, se voltavam cada vez mais para a vida na corte visto o desaparecimento de sua função como componente da organização social. Uma questão que Elias coloca no texto e que foi desdobrada depois por Bourdieu é que a classe guerreira não tinha um interesse puramente econômico para ingressar na corte porque poderia obter lucros muito maiores agregando-se a classe burguesa em formação e expansão. Ocorre que o prestígio de participar da nobreza era muito mais valioso e significativo para estes indivíduos. Ao ingressarem à corte iriam compartilhar o poder simbólico exercido pelo rei e todos os que compunham a corte, algo referenciado e almejado, legitimado pelo reconhecimento coletivo da vida social. O estabelecimento da corte absolutista trouxe o deslocamento da influencia exercida mediante a violência física para a influência exercida por meio do prestígio. Este poder de coerção que age no plano dos significados passou a ser buscado e uma teia de relações amistosas e trocas de favores era necessária para se alcançar o quantitativo de prestígio necessário a ponto de fazer suas opiniões audíveis aos mais poderosos politicamente e ao rei em máxima instância. Esse deslocamento da capacidade de agir e influenciar, Elias afirma que resultou em um indivíduo que foi exercitando a capacidade de simular sentimentos, manipular, impor-se comportamentos não naturais, domando seu gestual para assim alcançar a diferenciação exigida pela presença na corte. Dessa forma, as mudanças socias desencadeiam mudanças individuais, mantendo-se as estruturas pelas quais o processo ocorre. Isto ocorre de forma lenta e gradual, mas é por isso que a proposta metodológica de Norbert Elias consegui desenrolar-se por meio de estudos de períodos extensos de tempo, observando o material documental que expressa séculos de vida social na Europa. Norbert Elias elaborou uma obra extensa que visou explicar o processo pelo qual as transformações sociais implicaram nas mudanças comportamentais individuais e como as racionalidades foram construídas a partir de mecanismos que impuseram o Estado como elemento centralizador de poder econômico e também simbólico, impondo as normas sociais desejáveis mediante a imposição de violência física e simbólica.
BIBLIOGRAFIA:
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Volume 2: Formação do Estado e