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EXPLOSÃO CULTURAL

INTERFACES DOS ESTUDOS


(DE LÍNGUA E LINGUAGENS)
EM CONTEXTOS E AMBIENTES
COMPLEXOS

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Conselho Editorial Educação Nacional
Prof. Dr. Afrânio Mendes Catani – USP
Prof. Dra. Anita Helena Schlesener – UFPR/UTP
Profa. Dra. Dirce Djanira Pacheco Zan – Unicamp
Profa. Dra. Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira – Unicamp
Prof. Dr. Elton Luiz Nardi – Unoesc
Prof. Dr. João dos Reis da Silva Junior – UFSCar
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Prof. Dr. Lindomar Boneti – PUC / PR
Prof. Dr. Lucidio Bianchetti – UFSC
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Prof. Dr. Renato Dagnino – Unicamp
Prof. Dr. Sidney Reinaldo da Silva – UTP / IFPR
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Prof. Dr. Antonio Cachapuz – Universidade de Aveiro
Prof. Dr. Antonio Teodoro – Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Profa. Dra. Maria del Carmen L. López – Facultad de Ciencias de La Educación/Granada
Profa. Dra. Fatima Antunes – Universidade do Minho
Profa. Dra. María Rosa Misuraca – Universidad Nacional de Luján
Profa. Dra. Silvina Larripa – Universidad Nacional de La Plata
Profa. Dra. Silvina Gvirtz – Universidad Nacional de La Plata

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Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi
Denise Silva
Carlos Vinicius da Silva Figueiredo
Mario Cezar Silva Leite
(organizadores)

EXPLOSÃO CULTURAL

INTERFACES DOS ESTUDOS


(DE LÍNGUA E LINGUAGENS)
EM CONTEXTOS E AMBIENTES
COMPLEXOS

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Explosão cultural : interfaces dos estudos (de língua e linguagens)
em contextos e ambientes complexos / organização Gicelma da
Fonseca Chacarosqui Torchi...[et al.]. – 1. ed. – Campinas, SP :
Mercado de Letras, 2022.

Outros organizadores : Denise Silva, Carlos Vinicius da Silva


Figueiredo, Mario Cezar Silva Leite.
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-7591-634-6

1. Línguas e linguagem I. Torchi, Gicelma da Fonseca Chacarosqui.


II. Silva, Denise. III. Figueiredo, Carlos Vinicius da Silva. IV. Leite,
Mario Cezar Silva.

22-117910 CDD-407
Índices para catálogo sistemático:
1. Línguas e linguagem : Estudo e ensino 407

capa e gerência editorial: Vande Rotta Gomide


preparação dos originais: Editora Mercado de Letras
diagramação: DPG Editora
revisão final dos autores
bibliotecária: Aline Graziele Benitez – CRB-1/3129

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:


© MERCADO DE LETRAS®
V.R. GOMIDE ME
Rua João da Cruz e Souza, 53
Telefax: (19) 3241-7514 – CEP 13070-116
Campinas SP Brasil
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1a edição
2 0 2 2
IMPRESSÃO DIGITAL
IMPRESSO NO BRASIL

Esta obra está protegida pela Lei 9610/98.


É proibida sua reprodução parcial ou total
sem a autorização prévia do Editor. O infrator
estará sujeito às penalidades previstas na Lei.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO
Marlene Durigan

APRESENTAÇÃO

“NÃO FOI ISSO QUE EU QUIS DIZER”: UMA ANÁLISE DO


DISCURSO DO PARLAMENTAR JAIR BOLSONARO SOBRE OS
QUILOMBOLAS
Alexandra Aparecida de Araújo Figueiredo, Marcelo Nicomedes
dos Reis Silva Filho, Maria Roseli Castilho Garbossa

INTERFACES SEMIÓTICAS INTERCULTURAIS DA TRADIÇÃO


DO BANHO DE SÃO JOÃO DE CORUMBÁ
Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi, Mario Cezar Leite

APLICAÇÃO DA INTERCULTURALIDADE NA INTEGRAÇÃO DE


IMIGRANTES VENEZUELANOS NA CIDADE DE DOURADOS-
MS
Francielle Vascotto Folle, Cesar Augusto Silva da Silva

O ESTADO DE NEPANTLA POR GLORIA EVANGELINA


ANZALDÚA
Carlos Vinícius da Silva Figueiredo, Vera Lucia Harabagi Hanna

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PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA ESCRITA EM UM
CONTEXTO DE EDUCAÇÃO DIFERENCIADA: VIVÊNCIAS
DO PROJETO MAGISTÉRIO EXTRATIVISTA TERRA DO MEIO,
ALTAMIRA, PARÁ
Marcelo Pires Días, Ronaldo Henrique Santana, Raquel Lopes

USOS DE LINGUAGENS A PARTIR DE GÊNEROS –


DESCREVENDO PERCURSOS DA ABAYOMI – NO ENSINO
REMOTO – CONTEXTO PANDÊMICO
Daniele Cristina Avelino Feitosa, Adélia Maria Evangelista

CULTURA ESCOLAR: ESPAÇOS, TEMPOS E CURRÍCULO DE


UMA “ESCOLA DAS ÁGUAS” DO PANTANAL
Rogério Zaim-de-Melo, Marcia Regina do Nascimento Sambugari,
Washington Cesar Shoiti Nozu, Mônica de Carvalho Magalhães
Kassar

TRILHAS DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA EM LÍNGUA


PORTUGUESA PARA O ENSINO REMOTO EM CONTEXTO
PANDÊMICO
Lidiane Martins, Adélia Maria Evangelista Azevedo

OS CASOS MARI FERRER E JOÃO BETO: O PAPEL DAS


METANARRATIVAS COMO JUSTIFICATIVA PARA VIOLÊNCIAS
Marlucia Mendes da Rocha, Renata de Melo Gomes

ELABORAÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO TRANSDISCIPLINAR


PARA O ENSINO DA ÁREA DE LINGUAGENS
Ademar Vilhalva, Adriana Sales, Denise Silva

HISTÓRIA INDÍGENA NO CEARÁ-BR: UM RESGATE DA


CULTURA, LÍNGUA E IDENTIDADE
Daniel Valério Martins, Ruan Rocha Mesquita, Daiane Oliveira da
Silveira

SOBRE OS ORGANIZADORES E OS AUTORES

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PREFÁCIO

Aposentada há quase 13 anos, o convite para prefaciar um


livro organizado por alguns de meus alunos (não vou dizer “ex-
alunos”, porque seria um contrassenso; nem vou dividir o indivisível
em “os”, “as” e “es”, porque sempre preferi reconhecer a identidade
na diferença, respeitar as diferenças e defender a equidade)
apresentou-se-me como uma adorável e honrosa surpresa.
Aceita (sem titubeios) a proposta, viriam, aliados à honra e
ao prazer, os desafios e o peso da responsabilidade... Afinal, eram
11 capítulos, distribuídos em cerca de 200 páginas e com temáticas
diversas, bem afinadas com o instigante título da “coletânea”,
a sugerir, por um lado, o trabalho dos organizadores na recolha
cuidadosa de “produtos” da explosão e, por outro, o efeito de
multiplicidade constitutivo da significação da palavra “cultura” e
seus correlatos. Primeiras impressões de um “artefato” (no sentido
etimológico e nos demais efeitos que a palavra possa suscitar) visto
de fora ... 
O percurso de leitura – e não pode ser outra a palavra, porque
começa no Ceará, passa por espaços diversos de Mato Grosso do
Sul, pelo Pará, pela Venezuela, pelo “Nepantla”, e termina (?) em
Goiás ou em um espaço insólito – suscitaria, no entanto, outras
“impressões”, a começar pela metáfora da explosão, que, para além
do figurativo, aguça “o olho do espírito” (se a memória não me falha,

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a expressão é de Merleau-Ponty). Desmanche? Ruínas? Dispersão?
O movimento para dentro do livro vai mostrar, todavia, que ali
tudo são referências do multifacetado mundo real das culturas e de
questões sociais que ali se inscrevem. Culturas diversas, sim, mas
interseccionadas, porque seus artefatos e práticas são produzidos,
mediados, (trans)formados em tradição e, em muitos casos,
transculturados, por seres humanos. 
Também se integram e se alinham os 11 capítulos, em que
tudo é devidamente contextualizado, pondo à mostra, ao mesmo
tempo, a singularidade de cada “caso” descrito/analisado, a extensão
do conceito de cultura, o equilíbrio entre os temas discutidos
(culturas e questões indígenas e étnico-raciais, tradições culturais,
o dizer e o dito, exclusão/inclusão de imigrantes, o entrelugar,
práticas educativas em contextos diversos, a dicotomia urbano-rural
no âmbito do ensino, a pandemia e o ensino remoto, questões de
gênero como construção social) – e a unidade da obra. Teria sido
aleatória a escolha do número 11? Os que estudam a simbologia dos
números responderiam negativamente…
Assim, embora a metáfora sobre a qual se assenta o título
seja o ponto de partida, o resultado é um efeito de contiguidade,
de estreita e profícua relação entre as partes e entre estas e o todo.
É assim que percebo o livro. Agora, caro leitor, o desafio é seu!
A obra está à espera de outros olhares e de outros movimentos ou
percursos... 

Marlene Durigan
Três Lagoas, janeiro de 2022.

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APRESENTAÇÃO

Principiando

No princípio era o verbo.


(João 1:1-4)

E podemos dizer, com propriedades: e no princípio eram


“signos”. Como é bom sermos pesquisadores de linguagens e termos
a bonança de entender que todos os fenômenos do mundo, reais ou
não, se configuram por signos.  Fica mais fácil ter a responsabilidade
de organizar uma coletânea escrita com o título: Explosão cultural:
interfaces dos estudos (de língua e linguagens) em contextos e
ambientes complexos. Ter a compreensão de que os signos estão
no lugar de algo e que não são exatamente, ou completamente
essa coisa, apenas a substitui ou intenta substituir. De que esses
signos são arbitrários e por sua vez, ideológicos. Assim, os sentidos
também são sígnicos e, atuam singularmente na mente interpretante.
Crer que o processamento dos signos/códigos, e de suas ações
sígnicas, ou de sentido, só é possível dentro de um determinado
espaço cultural, ou dentro de uma determinada “semiosfera”, faz
com que a leitura do mundo seja muito mais ampla.
Desta forma, ler o mundo é recodificar e quando recodificamos,
imprimimos neste ato sígnico nossa digital subjetividade, construída

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na individualidade e no contexto social. Portanto, fazer história,
diacrônica ou sincronicamente é descrever fatos/fenômenos por
meio de signos. Fatos esses construídos por sujeitos culturais que ao
arquitetá-los também se edificam no processo.
E isso é dialético, ou ao menos deveria ser. Partindo da
ideia de que a dialética busca, não interpretar, mas refletir acerca
da realidade, e que esse pressuposto é dialógico e nem por isso
pacífico. O método dialético nos estimula a revermos o passado
à luz do que está ocorrendo no presente e refletirmos sobre qual
mundo queremos e a lutarmos pelo, e por quem, acreditamos.
É claro que precisamos evocar a provisoriedade das certezas,
caso contrário, a dialética estaria negando a si própria. Mas, ser
uma criatura de linguagem faz com que respeitemos as máximas
filosóficas, afinal “tudo que é sólido se desmancha no ar”, no entanto,
fazemos com que as mesmas dialoguem com a literatura poética
niilista: “Confesso: não tenho nenhuma esperança.  Os cegos falam
de uma saída. Eu, porém, vejo. Quando os erros já foram usados
e abusados, senta-se à nossa frente, para nos fazer companhia, o
Nada” (Brecht).
Para Borges (1982), a história é um rio interminável que
“pasa y queda”, que a tudo conduz no seu movimento eterno. A
leitura não é nova, obviamente vem da tradição grega, de Heráclito
(citado por Borges). A ideia de que o mundo contemporâneo se
constitui pelo fluxo de passagem, de que tudo o que é sólido se
dissolve no ar e de que vivemos a constante crise dos referenciais
de verdade, herdados pela tradição das luzes, é um traço marcante
das poéticas da atualidade que traduzem os movimentos constantes
e fragmentados − próprios dos modos de conhecimento estéticos
da América Latina − o caráter de incerteza e transitoriedade das
coisas, prefiguradas por niillismos, ilogismos, metamorfoses,
antipassadismos, despersonalizações, sugestões, fragmentações,
figurativismos, oxímoros e metáforas palimpsésticas, que buscam
romper a unidade do discurso, dissolvendo os limites espaciais e
temporais.

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Enfim, nossos escritores/ autores, colegas que corroboram na
construção desse volume da obra Explosão Cultural, estão sempre à
margem do rio de Heráclito, força propulsora de suas pesquisas. Esta
obra é a tentativa de lançar-nos nas malhas dessa saudável poética
de incertezas, dos interrogantes, do salto no vazio eloquente das
verdades colocadas em cheque por pesquisadores que se movem na
fronteira, nas ruínas das próprias línguas. Afinal, reflexões são como
poéticas, inquietadoras, paradoxais, que têm desconcertado os que
se debruçam sobre elas dando-lhes uma sensação de vertigem que
somente grandes pensadores e/ou grandes artistas podem provocar e
que reflete o arejamento do título Explosão Cultural, que é emprestado
de um conceito de Iuri Lotman (Cultura y explosión, 1999).
Para Lótman, teórico que homenageamos com essa obra, e
que esse ano de 2022 completaria 100 anos, “O texto não se apresenta
como a realização de uma mensagem em uma só linguagem, mas
como um complexo dispositivo que se compõe de vários códigos,
capaz de transformar as mensagens recebidas e gerar novas
mensagens” (Lotman 2003, online). Desta forma, o texto funciona
como trama, como rede, como tecido, é gerador de sentidos e inclui
um emissor, um receptor e múltiplos sistemas semióticos. É isso
que causa o que Lótman vai chamar de “tensão” e que para o autor
apesar de dialógico, não é pacifico e sim “explosivo”, ou seja,
resistência de forças infligidas por um espaço distinto de sentidos e
que gera indeterminação dos mesmos

O valor do diálogo não está nas partes que se intersecciona,


mas na transmissão de informação entre as partes que não se
interseccionam. (...) quanto mais difícil e mais inadequada a
tradução de uma parte não interseccionada do espaço à língua
da outra, mais preciosa se torna, nas relações informacionais e
sociais, o fato da comunicação paradoxal. (Lotman 1999, p. 17)

A explosão transporta a noção de “transgressão possível”,


de procedimento atípico, é o momento em que o sentido tensiona a

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previsibilidade, brota na criação de algo que não estava apontado.
Desta forma, é na não intersecção, ou na interseção tensionada que
vai nascer o novo, o autêntico, os espaços de criação, como o que
acontece com as pesquisas que aqui se colocam nesta obra.
Observa-se assim, que a semiotização, ou a semiose propele
animações e mutações nos princípios que envolve, se concretiza com
mais vigor nas fronteiras da “semiosfera” (universo das linguagens)
e do mesmo modo nas partes não intersecionadas do modelo de
comunicação proposto por Lotman. Por conseguinte, a semiose, ou
seja, a ação inteligente do signo, capaz de gerar outro(s) signo(s),
igualmente se encontra na base do problema semiótico. Isso impede
que a semiótica seja vista por um viés identitário, pois não cabe a ela
dizer qual “é” o sentido de algo, mas oferecer uma epistemologia
capaz de dar condições para discriminar o espaço de relações
que envolvem o devir das linguagens e dos sentidos na cultura.
Portanto, pelo viés intersemiótico de leitura que apresentamos em
cada capítulo dessa obra e na leitura da composição dos mesmos,
apreendemos o cruzamento de aspectos que fundamentam as
pesquisas evidenciadas nesse volume, quanto às diferenças e
similitudes, motivadas por identidades que se realizam em espaços
culturais diversos, através de óticas distintas.
Os capítulos assim se apresentam: Alexandra Figueiredo,
Marcelo Filho e Maria Garbossa com o capítulo “‘Não foi isso
que eu quis dizer’: uma Análise do Discurso do parlamentar Jair
Bolsonaro sobre os quilombolas”, analisam o discurso proferido,
no dia 03 de abril de 2017, pelo então deputado federal e pré-
candidato à presidência da república, Jair Messias Bolsonaro com
o intuito de averiguar se esse é ou não preconceituoso em relação
aos quilombolas; Na sequência, o capítulo “Interfaces semióticas
interculturais da tradição do Banho de São João de Corumbá” de
autoria de Gicelma Chacarosqui e Mario Cezar Leite mostrando
os mecanismos semióticos que fazem do Banho de São João de
Corumbá Mato Grosso do Sul, uma representação cultural barroca
ou neobarroco; Francielle Vascotto Folle e Cesar Augusto da Silva

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com o “Aplicação da interculturalidade na integração de imigrantes
venezuelanos na cidade de Dourados-MS” discorrem sobre o perfil
migratório de venezuelanos em Dourados, observamos a influência
da globalização nesse movimento decorrente de uma crise
econômica causada pela falência na política venezuelana; o capítulo
intitulado “O Estado de Nepantla por Gloria Evangelina Anzaldúa”,
de Carlos Figueiredo e Vera Hanna, tece ponderações sobre o projeto
intelectual de Glória Anzaldúa, contribuindo para reflexões sobre
criatividade, construção da identidade fronteiriça e os desafios de se
viver nas sombras; Por sua vez, o capítulo “Processo de apropriação
da escrita em um contexto de educação diferenciada: vivências do
Projeto Magistério Extrativista Terra do Meio, Altamira, Pará”,
de autoria de Marcelo Pires Dias, Ronaldo Henrique Santana e
Raquel Lopes apresenta análise de produções textuais de alunos
do “Projeto de Formação de Professores Extrativistas da Terra
do Meio”, projeto proposto pela Universidade Federal do Pará/
Campus Universitário de Altamira e Escola de Aplicação – UFPA;
Daniele Cristina A. Feitosa e Adélia Maria Evangelista discorrem
sobre a Pandemia do coronavírus e a suspensão total das aulas
presenciais, que ocasionou uma interrupção impactante para toda
a comunidade estudantil do mundo, do Brasil e para residentes/
estagiários de Letras – UEMS – Unidade de Jardim-MS no capítulo
“Usos de linguagens a partir de gêneros– descrevendo percursos
da Abayomi – no ensino remoto – contexto pandêmico”; Lidiane
Martins e Adélia Maria Evangelista Azevedo são as autoras do
capítulo “Trilhas da sequência didática em Língua Portuguesa para
o ensino remoto em contexto pandêmico” em que pensam o ensino
de Língua Portuguesa e seus inúmeros desafios. para as aulas em
contexto de pandemia; Marlucia Mendes da Rocha e Renata de
Melo Gomes no capítulo Os casos Mari Ferrer e João Beto: o papel
das metanarrativas como justificativa para violências” irão analisar
o poder disciplinar (Foucault 2005), baseado em “verdades”/
metanarrativas que visam contribuir para a manutenção do status
quo. Ademar Vilhalva, Adriana Sales e Denise Silva, por sua vez
irão refletir sobre a proposta de material didático como objetivo
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de apoio aos professores e alunos nas escolas indígenas no que se
refere ao ensino transdisciplinar na área de linguagens no capítulo
“Elaboração de material didático transdisciplinar para o ensino da
área de linguagens”; por fim, com o capítulo “História Indígena no
Ceará – BR: um resgate da cultura, língua e identidade” os autores
Daniel Valério Martins, Ruan Rocha Mesquita e Daiane Oliveira da
Silveira fecham a obra com uma pertinente reflexão sobre conceitos
de identidade associando-os às comunidades indígenas do Ceará:
Pitaguary, Tapeba, Kanindé, Jenipapo-Kanindé e Anacê.
A articulação desses aspectos presentes nas pesquisas, que
ora vos apresentamos, proporcionou um conjunto integracionista
que promoveu a atualização de conhecimentos sobre semiótica,
literatura, artes, ensino e estudos culturais, bem como pode levar
a renovação de conhecimentos sobre o corpus proposto, através de
novas ideias e questionamentos. Mergulhemos no rio caudaloso da
leitura.
Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi
Denise Silva
Carlos Vinicius da Silva Figueiredo
Mario Cezar Silva Leite

Referências

LOTMANN, Yuri M. Cultura y explosión. Barcelona: Editora


Gedisa, 1999.
________. “La semiótica de la cultura y el concepto de texto.”
Entretextos, nº 2, Granada, nov. 2003. Disponível em:
http://www.ugr.es/~mcaceres/entretextos.htm. Acesso em:
jan/2022.

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“NÃO FOI ISSO QUE EU QUIS DIZER”: UMA
ANÁLISE DO DISCURSO DO PARLAMENTAR
JAIR BOLSONARO SOBRE OS QUILOMBOLAS

Alexandra Aparecida de Araújo Figueiredo


Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho
Maria Roseli Castilho Garbossa

O presente texto tem como objetivo analisar o discurso


proferido, no dia 03 de abril de 2017, pelo então deputado federal
e pré-candidato à presidência da república, Jair Messias Bolsonaro,
no Clube Hebraica no Rio de Janeiro, especialmente no que diz
respeito à comunidade quilombola. Ficou evidenciada, em sua fala,
a concepção preconceituosa e estereotipada acerca dessa minoria
social bem como a forma abusiva de seu discurso, visto que partiu
de um parlamentar. As análises estão fundamentadas pela Análise
de Discurso de orientação francesa com estudos de Pêcheux (2010,
2012, 2014) e Orlandi (2007), dentre outros. Para uma melhor
organização e procedimento do gesto analítico, trabalhamos com
sequências discursivas da matéria Bolsonaro é acusado de racismo
por frase em palestra na Hebraica, publicada em 06/04/2017,
em O Globo e da Ação Civil Pública expedida pela Juíza Federal
Elizabeth Mendes da 26 ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio
de Janeiro.

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Para a análise, alguns conceitos da Análise de Discurso de
orientação francesa foram mobilizados, especialmente os de sujeito
e de formação discursiva. Assim, como dito acima, a materialidade
em análise é composta pela declaração do parlamentar feita em uma
palestra no Clube Hebraica. Naquela ocasião, o então deputado
federal, hoje presidente do Brasil, disse:

SD1: Fui num quilombo em Eldorado Paulista, olha, o


afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas... Não fazem
nada, eu acho que nem pra procriador servem mais. Mais de
R$ 1 bilhão por ano é gastado com eles. (O Globo, 06/04/2017,
destaques nossos)

O discurso em questão gerou toda sorte de reações e


comentários, inclusive acusações de racismo. No entanto, em 2019,
o parlamentar, então presidente, foi inocentado da acusação de
racismo sob a alegação de ter usado “apenas piadas e bom humor”,
e que seu discurso havia sido interpretado “de forma tendenciosa,
com intuito de prejudicar sua imagem e a de sua família”, ou seja,
não foi aquilo que ele quis dizer. Abaixo, a materialidade discursiva
que se encontra na já citada Ação Civil Pública.

[...] não tem preconceito com relação à raça, aos imigrantes,


ao público LGBT, aos índios, mulheres, em nada do que está
sendo acusado nessa demanda e que em todas as opiniões
colacionadas pelo demandante, como ofensivas aos grupos em
questão, notoriamente palestrou se utilizando de ‘piadas e bom
humor’, não podendo ser responsabilizado pelo tom jocoso de
suas palavras. (O Estadão 2017)

Esse acontecimento não foi um fato isolado na discursividade


do atual Presidente, sua biografia é marcada por diversos fatos que
envolvem toda sorte de falas carregadas de teor pejorativo e que
atacam minorias como mulheres, gays, negros e indígenas. Da

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mesma forma, considerando que somos uma sociedade que ainda
reverbera discursos dos tempos coloniais e que este fator ainda é
uma ferida aberta na nação, tal discurso não pode ser analisado
como um fato isolado e principalmente os efeitos de sentido que
esse dito no momento histórico atual pode emergir.
Vale lembrar que as condições de produção no ato do
pronunciamento sugeriam ser propícias para a reverberação de
discursos de ódio, pois era um momento de transição política em
que todas as ações de inclusão voltadas à população marginalizada
estavam sendo questionadas. Era, e é, um terreno fértil para a
proliferação do ódio daquilo que sequer se compreendeu no passado,
e por isso se tenta a todo modo manter à margem, fora da ordem do
discurso social.
Do mesmo modo, ratificando a proposta de contradição
como base da Análise do Discurso, é relevante acentuar que a
referida palestra aconteceu num clube frequentado por Judeus,
sujeitos atravessados historicamente por um passado marcado pelo
holocausto e discriminação pelo ditador Adolf Hitler na Alemanha
nazista. É a contradição como sustentação silenciada pelo processo
do funcionamento ideológico que visa imprimir a ideia de
neutralidade e transparência da linguagem.
Para pensar, não apenas o acontecimento discursivo,
mas também a posição dos sujeitos inscritos nesta trama atual,
carregado de sentidos constituídos historicamente, é relevante
compreender que a partir da perspectiva da Análise do Discurso não
há possibilidade do sujeito ser origem de seus dizeres e seus efeitos
de sentido, visto sua inscrição em determinada formação discursiva,
pois “as palavras recebem seus sentidos da formação discursiva na
qual são produzidos” (Pêcheux e Gadet 2012, p. 308).
Logo, em uma sociedade em que a desigualdade provoca um
abismo social entre os sujeitos, cada um acredita que sabe o seu
papel, e o que pode e deve ser dito, isso de forma inconsciente.
Nesse funcionamento, tanto o sujeito quanto o seu discurso são
atravessados por tais determinações. O processo enunciativo não

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ocorre de maneira consciente, o sujeito não percebe a presença de
um dito em outro lugar em seu discurso e que esse dito antes está
presente na produção de sentidos de seu dizer. Todo esse complexo
é parte constituinte das formações discursivas, pois

o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na


transparência do sentido que nela se forma, a objetividade
material contraditória do interdiscurso, que determina essa
formação discursiva como tal, objetividade material essa que
reside no fato de que ‘algo fala’ (ça parle) sempre ‘antes, em
outro lugar e independentemente’. (Pêcheux 2014, p. 162,
destaques do autor)

Dessa forma, o indivíduo é interpelado pela ideologia que


o assujeita por meio das formações discursivas, criando a ilusão
de ser origem de seu dizer (esquecimento 1) e mestre dos sentidos
produzidos (esquecimento 2). Nesse funcionamento, o sujeito é
constituído a partir da articulação entre ideologia e inconsciente.
Isso implica em perceber que o sujeito é assujeitado à linguagem e
que esse processo não se configura fora do ideológico, ou seja, fora
de uma exterioridade a ela. Uma linguagem atravessada por uma
complexa relação entre língua, sujeito e ideologia que se materializa
no discurso. Linguagem passiva de interpretações e efeitos de
sentidos numa articulação sempre incompleta, pois os sentidos
podem ser sempre outros a depender de seu atravessamento sócio-
histórico-ideológico. É no movimento de um tensionamento entre
esses elementos que produzem o efeito de opacidade e transparência
da língua que constitui o discurso e, por conseguinte, o sujeito.

O discurso e seus efeitos de sentido: o que de fato foi dito

As palavras são um material plástico,


que se presta a todo tipo de coisas.
(Freud 1969, p. 41)

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As palavras produzem efeitos de sentido dependendo da
posição social daqueles que as empregam situados em dadas
condições de produção. Elas, as palavras, são afetadas pela
ideologia, funcionando como se fossem transparentes e tivessem um
sentido que ficasse evidente para todos os sujeitos. Sua plasticidade
pode ser ratificada ao compreendermos que “todo enunciado
é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si
mesmo, deslocar-se discursivamente de seu sentido para derivar
para outro” (Pêcheux 1990, p. 53). Nessa direção, os significantes
“arrobas” e “procriar” (SD1), entendidos como, respectivamente,
uma unidade de medida de peso para alimentos e animais, e o ato
de gerar filhotes, no discurso corrente adquirem outros significados
ao serem atribuídos ao sujeito negro, mas não desvinculados dos
relacionados aos animais irracionais visto que ao compará-los aos
animais como bois, cavalos e porcos, tais conceitos deslocados de
seus contextos iniciais, têm como objetivo manter a desigualdade
entre negros e brancos, ou seja, determinar condutas e lugares
para cada um na sociedade. Tais dizeres remetem a uma formação
discursiva colonial. Naquelas condições de produção, negros eram
trazidos da África para o Brasil e vendidos como se fossem animais,
sendo mais, ou menos, valorizados dependendo do resultado de suas
arrobas e condições de procriação. Vejamos como eventos desse
tipo são descritos por Prado (2007):

Na África havia diferença entre os termos cativo e escravo.


Os cativos eram aqueles africanos trazidos pelos pombeiros
ou por outros intermediários até o litoral africano, onde eram
negociados com os traficantes encarregados de sua venda no
mercado dos países ou regiões compradoras de escravos. No
litoral os negros eram comprados e depois ferrados. Somente
após terem sido adquiridos, marcados e batizados eram
considerados escravos. (Prado apud Moura 2007, p. 95)

O autor explica que a condição de degradação do negro frente


aos brancos era tamanha que os negros eram considerados seres sem

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alma. Para serem colocados na condição de escravos precisavam ser
convertidos à fé cristã e ferrados, assim poderiam ser considerados
semelhantes, mas não iguais. Eram tidos como peças e negociados
de várias formas, uma delas, conforme já dito, era por arrobas, como
bovinos, suínos e outros animais.
A não transparência da língua, o fato de o sentido não estar
colado nas palavras e a não percepção consciente do sujeito de todos
os elementos no funcionamento do processo discursivo não isenta
o sujeito da responsabilidade de assumir o que diz. É nessa direção
que propomos refletir sobre o grau de responsabilidade daquilo
que é dito pelo parlamentar e, principalmente, sobre os efeitos de
sentido produzidos pelo seu discurso. Fato que merece ainda mais
atenção quando esse discurso é proferido por uma figura pública,
por um representante político que foi democraticamente escolhido
para representar a população e, supostamente, trabalhar pelo bem
comum da sociedade.
Os efeitos de sentido são produzidos pelo discurso porque,
conforme assevera Orlandi (2007, p. 21), “a linguagem serve para
comunicar e para não comunicar. As relações de linguagem são
relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e
variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito de sentidos
entre interlocutores.”
Assim, todo discurso mantém uma relação com um já
dito numa espécie de memória, não psicológica, mas discursiva,
pois “torna possível a toda formação discursiva fazer circular
formulações anteriores, já enunciadas” (Brandão 2002, p. 76). É
isso que ocorre no discurso aqui em questão, visto que ao dizer que
o “afrodescendente mais leve de lá pesava sete arrobas”, o sujeito
remete ao discurso vigente durante o período da escravidão em
que os negros eram vendidos junto aos animais em feiras, assim a
mesma medida era utilizada para ambos. Igualmente, ao dizer que
“não serve nem para procriar”, remete aos discursos de criadores
de gado, pois um animal para ser lucrativo precisa procriar, caso
contrário, vai para o abate.

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O fato de discursos desta magnitude serem vistos como
apenas uma “piada de bom humor”, permite-nos compreender a
banalização da violência que foi a escravidão da população negra.
Mais do que ausência de empatia ou sensibilidade, o dito abre espaço
para que práticas escravistas sejam naturalizadas na atualidade.
As piadas, em situação de racismo, reforçam identidades já
estereotipadas, impondo uma simplificação e generalização, ou seja,
o fato de reduzir o outro em animal permite que essas características
sejam estendidas a todos os seus semelhantes. Desse modo, todos
os seus “iguais” serão representados a partir desse simulacro, logo,
discursos como: o negro é burro, preguiçoso, malandro, entre outros,
são estendidos a todos os negros. Não há individualidade do sujeito
negro, e isso implica numa prática de autoafirmação constante para
provar que, apesar de ser subalternamente racializado, é merecedor
de estar (ou não) em determinado lugar.
Os ecos discursivos presentes nas piadas racistas buscam o
silenciamento de um outro dizer, não permitindo que na ordem do
discurso social os ditos sobre o negro ocupem outros campos de
sentidos distintos da inferioridade, da incapacidade, do não belo,
do não humano. Ainda é possível inferir a existência de embates
na relação de poder/saber,1 pois se na atualidade ainda ocorre
a elaboração de discursos racistas é pelo fato de os negros terem
resistido a toda imposição a eles destinada.
É preciso ressaltar a relevância do autor de tal discurso, uma
vez que o imaginário constituído sobre um chefe de Estado é que
diante de sua posição-sujeito, seu discurso seja visto como verdade
e, torne-se então um discurso autorizado podendo ser reproduzido
sem nenhuma pena. Nesse sentido, ao comparar o negro com um
animal, afirmando que o “afrodescendente mais leve de lá pesava
sete arrobas”, reforça-se e retoma-se o dito antes a partir de um
imaginário sobre o sujeito negro, que não tem alma, é um animal e,

1. Em remissão a Michel Foucault em sua obra A arqueologia do saber,


publicada na França em 1969.

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por isso, deve permanecer na linha do não ser, pois é lá que habita
a não humanidade.
Como forma de esquecimento de um passado que mantém
seus resquícios muito claros e efetivos no presente, o sujeito não
percebe o quão perigoso é o seu dizer. Assim, ele enuncia na ilusão
de ser origem de seu discurso sem considerar os ditos antes em
algum lugar sobre o mesmo tema. Do mesmo modo, afetado pela
ideologia, ele acredita ter controle sobre a produção de sentidos
de seu dizer, o que implica na afirmação de que ele “não tem
preconceito, usara apenas uma piada e bom humor”. Contudo,
cabe pontuar que “as piadas funcionam como o lugar onde as leis
(morais, éticas...) que regem a sociedade são suspensas” (Possenti
1998, p. 36). Logo, aquilo que é recalcado ou não pode ser dito em
qualquer ambiente, constitui-se como objeto de piadas, sendo, esta,
uma maneira de se dizer verdades sem ser responsabilizado, afinal,
fora apenas uma brincadeira.
Nesse movimento, o que é reprimido socialmente tem no
gênero piada um escape, porém, tais manifestações ideológicas
precisam de condições de produção específicas para serem
expressas. Nessa perspectiva, é possível inferir que se o discurso
“o afrodescendente mais leve de lá pesava sete arrobas” produziu
sentidos no momento do pronunciamento do parlamentar, é porque
encontrou sustentação para isso, ou, conforme corrobora Freud
(1969), para que discursos dessa categoria alcance seu objetivo é
preciso que seja produzido entre os paroquianos, ou seja, sujeitos
que partilham do mesmo discurso e que compreendam além daquilo
que foi dito. Isso corrobora a ideia de que o racismo é uma prática
vigente e partilhada na sociedade sendo, principalmente, uma prática
chancelada pelo governo e isso, de modo automático, autoriza os
demais cidadãos à reprodução da mesma prática.
É preciso pontuar a constituição do sujeito como um ser
dividido, falado também pelo inconsciente e, desse modo, o
discurso do parlamentar é o que Freud (1969) indica como sendo
um dito espirituoso, ou chiste, que nada mais é que informações do
inconsciente.

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O chiste, por ter em sua constituição fragmentos de
satisfação, possui a função de formar laços sociais, pois convoca
outros sujeitos a participar, formando paróquias de grupos que
fortalecem os argumentos. Está sempre invocando o que é sufocado
pela sociedade, tem sempre um propósito, ou como afirma Freud
(1969), é tendencioso e estúpido. No caso do chiste racista, seu
propósito é a agressividade e a inferiorização do outro.
Assim sendo, a prática do racismo apoia-se na hostilidade do
chiste, proporcionando ao racista o prazer por meio da agressividade.
Ao enunciar, diante de uma plateia, que o “afrodescendente mais
leve de lá pesava sete arrobas”, seu discurso agressivo ganha
validação ao provocar o riso coletivo, pois o papel da terceira pessoa
na caracterização do chiste é fundamental.
Utilizar-se do humor agressivo é uma forma de trabalhar as
opressões, reproduzir a dominação, ratificar a subalternidade do
negro sem ter que responder por tamanha estupidez, pois se trata
apenas de uma piada. Contudo, considerando que para a psicanálise
o real está naquilo que manca e para a Análise do Discurso o sujeito
só aparece por meio do inconsciente, ou seja, “só há causa naquilo
que falha” (Pêcheux 2009, p. 277), o parlamentar é aquilo que
seu inconsciente diz e isso ratifica o fato de a palavra se prestar a
qualquer tipo de coisa.

Foi “apenas uma piada de bom humor”: não foi isso que
“eu” quis dizer

Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as


pessoas falarem e de seus discursos proliferarem
indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?
(Foucault 1970)

Considerando que o sujeito constitui e é constituído pela e na


linguagem, e, principalmente o abismo social existente no país neste

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momento, é possível responder a questão de que nos fala Foucault
(1970), na epígrafe que abre esta seção, afirmando que: o perigo está
na naturalização de uma política de morte que tem cor (Mbembe
2011); o perigo está no aumento dos números de feminicídios entre
as mulheres negras (IPEA – Atlas da Violência 2019); o perigo
está no encarceramento em massa da população negra (Miranda
2019); o perigo está na diferença salarial entre brancos e negros
(Santos 2019); o perigo está na não representatividade negra em
posições sociais de destaque (Borges 2019); o perigo está na ilusão
de existência de uma democracia racial (Ferreira 2019); o perigo
está no racismo estrutural que sustenta as instituições e determinam
os lugares sociais (Almeida 2018); o perigo está no não acerto
com a história de violência a que os negros foram/são submetidos.
Esses são apenas alguns fatos que comprovam a periculosidade da
proliferação sem fim de discursos que promovem o racismo e o ódio.
Diante de tantos perigos pelos quais os negros passaram ao
longo da história, e ainda passam, é no mínimo revoltante presenciar
um discurso racista e apologista ao ódio vindo de um representante
político, que teria, supostamente, na posição social que ocupa, a
função de trabalhar em prol do bem-estar da população. O artigo
3º da Constituição Federal, em seu inciso IV, preconiza como um
dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil
“promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Brasil
1988).
No entanto, o discurso, ora em voga, fere a lei máxima do
país, pois produz efeitos de sentido de que o negro não é merecedor
do bem que a população teria o direito de usufruir, dentre eles,
o direito de viver em uma sociedade “sem preconceitos [...] e
quaisquer outras formas de discriminação”. No entanto, o deputado,
em sua defesa, afirma que o seu pronunciamento “foi apenas uma
piada de bom humor”, ignorando o perigo que os efeitos de sentido
produzidos pelo seu discurso racista possam causar à população
negra, já tão maltratada ao longo da história.

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Ao produzir tais efeitos de sentido sobre o negro em relação
ao branco, o deputado, de seu lugar social, se apropria de um
discurso de poder, já que fala do lugar de um representante eleito
democraticamente. Fato que pode ser comprovado ao provocar risos
de parte de sua plateia, pois conforme Barthes (2004),

o poder é também um objeto ideológico, [...] e está presente


nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente
no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas
opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas
informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo
nos impulsos liberadores que tentam contestá-lo: chamo de
discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por
conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe. (Barthes
2010, p. 11, destaques nossos)

Para o autor, o poder está diluído em todo e qualquer


discurso, está nas falas, na forma como ele é produzido e, também,
na manipulação e distorção dos sentidos. De uma forma simplória,
podemos afirmar que o poder está presente na tentativa (e não só)
do deputado em se desvencilhar dos sentidos produzidos pelo seu
discurso e, assim, ser inocentado no processo recebido por racismo.
Para isso, ele se justifica afirmando que o que proferiu foram
“apenas piadas de humor” e que seu discurso fora interpretado “de
forma tendenciosa, com o intuito de prejudicar a sua imagem e a de
sua família”. Em resumo: há uma tentativa de controlar e distorcer
os sentidos produzidos pelo seu discurso, pois não fora aquilo que
ele quis dizer.
Diante da sua absolvição no processo de racismo, podemos
nos remeter mais uma vez aos perigos questionados por Foucault
na epígrafe que abre esta seção sobre a proliferação dos discursos,
no caso em questão, de um discurso pejorativo e discriminatório
que promove e perpetua o racismo e o ódio. De um Estado que se
omite frente aos cenários de violência, ignorando um dos princípios
fundamentais por ele defendido: o de “promover o bem a todos sem

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quaisquer formas de discriminação”. Eis onde mora um dos perigos,
o perigo do não acerto com a história de violência a que os negros
continuam sendo submetidos.
Os efeitos de sentidos produzidos, mesmo diante do “não
foi isso que ‘eu’ quis dizer”, pelo discurso do deputado, remetem
ao período da escravidão e apontam para a perpetuação de sentidos
que contribuem para a permanência de uma relação de poder que
determina os lugares sociais que cada um pode ocupar: ao senhorio,
o poder, a riqueza, o status; ao escravo a subserviência, a violência,
a indiferença.
Ao afirmar “foi apenas uma piada de bom humor... não foi
isso que ‘eu’ quis dizer”, o sujeito, na posição social de deputado,
não é capaz de perceber que “o que ele não quis dizer” (mas disse),
não parte dele, mas do que a sociedade, via inculcação ideológica,
impõe, ao mesmo tempo que o conduz (inconscientemente) a pensar
que seus dizeres e ações são originados por si mesmo. Quando, na
verdade, ele é apenas o porta-voz da formação discursiva capitalista
de um “cidadão de bem” que se identifica com os discursos
pejorativos e racistas que circulam sobre o negro, mesmo que em
forma de piadas, de forma a contribuir para a manutenção dos
sentidos de inferioridade em relação ao branco. Eis o sujeito que
não diz, mas é dito.
A língua e a história se ligam pelo equívoco como o lugar
dos deslizes dos sentidos funcionando sob o efeito da ideologia.
Assim, o discurso do deputado federal se constrói em condições
de produção de uma sociedade capitalista, discriminatória e
excludente. Os efeitos de sentidos produzidos pelo político sob a
desculpa (e a absolvição) de que foi “apenas” uma “piada de bom
humor” ratificam a discriminação e faz proliferar e circular perigos
que buscam de várias maneiras reproduzir modelos de corpos, de
cabelo, de comportamento e de competência, perpetuando os perigos
de uma sociedade que mata mulheres negras, encarcera a população
negra, limita a representatividade dos negros em posições sociais
de destaque e promove e aumenta a diferença social entre brancos

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e negros. Em suma: autoriza e perpetua, parafraseando Ferreira
(2019), o perigo da violência racial velada e mascarada pela ilusão
da existência de uma democracia racial.
Para Pêcheux e Fuchs (2010), a evidência do sentido é um
efeito ideológico que apaga a historicidade de sua construção para
o sujeito que, subjetivado, acredita estar na fonte do dizer. Por isso,
também, a afirmação do deputado “foi apenas uma piada de bom
humor... não foi isso que ‘eu’ quis dizer”, como se tivesse controle
do discurso que profere e dos sentidos que ele produz.
Possenti (2010), assevera que para que as piadas produzam
sentidos é necessário que o interlocutor partilhe de alguns
conhecimentos prévios já que a língua funciona sempre em relação
a um contexto culturalmente relevante e que cada texto requer uma
relação com outros textos.
Dessa forma, ainda segundo o autor, as piadas funcionam por
explorar concepções que já circulam na sociedade, como os efeitos
de sentido produzidos pelo discurso do então deputado federal Jair
Bolsonaro de que ao negro não cabe outro lugar social que não seja
o da inferioridade, do não belo e do não humano.

Engraçado pra quem?

Uma das essências do escape do inconsciente é o chiste. Para


Freud (1969), os chistes contêm indícios de impulsos reprimidos,
pensamentos ou desejos cuja expressão é reprimida pela prática
social. Esses impulsos podem vir à tona por meio dos chistes, piadas,
trocadilhos em que o que deveria ser encarado com seriedade torna-
se “apenas uma brincadeirinha”.
Contudo é preciso entender que o duplo atravessamento do
sujeito ocorre por meio da ideologia e do inconsciente. Não podemos
desconsiderar que a fala do então deputado, além de ser da ordem do
chiste, retoma uma memória colonial que atribui aos povos indígenas
e quilombolas a alcunha de preguiçosos. O risível faz emergir outros

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dizeres; a lógica do branco e conquistador tem de prevalecer, ou
seja, se a terra não é explorada à sua exaustão pelas atividades que
promovem a devastação da terra em busca dos altos lucros de maneira
predatória, as atividades não são consideradas importantes.
Ao lermos “não fazem nada, eu acho que nem pra procriador
servem mais” (SD1) podemos colocar em equivalência semântica
outros dizeres como “pra que o índio e o negro querem tanta terra,
não produzem nada” ou “a terra tem de ser dada pra quem pode
fazê-la render impostos para o Estado”.
Em “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”,
o discurso de “só come e não faz nada”, “só servem pra mamar
nas tetas do estado” são retomados em forma de paráfrases. Pela
substituição que ocorre por meio do efeito metafórico, tais dizeres
fazem funcionar os esquecimentos, neste caso, o esquecimento
número 2 que é da ordem da enunciação. É por meio desse
esquecimento que entendemos que este tipo de formulação não é
aceito em nossos tempos, porém, comum, nos tempos coloniais.
Em suma, o que notamos é um deslizamento de sentido que
apresenta um discurso antigo, que produz o risível, e, por meio do
chiste, no caso aqui, uma piada, vem abalar as séries já existentes
desta cadeia discursiva. Apesar deste enunciado não ser mais aceito
socialmente, sua repetição por meio de outras formas de enunciação
faz com que, em alguns espaços, ele seja aceito como natural.

Breves considerações (não) finais

A esfera política foi e é uma arena de disputa de poder. É


lugar de propagação de concepções onde os discursos públicos dos
políticos tomam, geralmente, grande repercussão. E, no campo do
Estado de Direito, esses discursos são protegidos pela instituição
jurídica. Tal prática se dá sob a alegação de que é preciso manter a
democracia através da pluralidade e manifestação do pensamento.

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No entanto, é fundamental considerar que todo discurso traz
em seu funcionamento a ideologia que o movimenta, tanto o é, que
Pêcheux iniciou seus estudos com a análise dos discursos políticos.
Para Pêcheux (2010) o funcionamento da língua está imbricado com
o histórico. Logo, é necessário remeter o discurso às suas condições
de produção.
Quando nos propusemos a analisar o discurso do parlamentar
Jair Messias Bolsonaro acerca dos sujeitos quilombolas, entendíamos
que o cenário vivido pelos brasileiros era (e é) conturbado. Tínhamos
um deputado federal e candidato à presidência que se dizia de
direita: cidadão de bem, defensor da família e dos bons costumes e
que colocava deus como senhor daquilo que dizia e, supostamente,
praticava.
Contudo, nossas análises apontaram para um vetor
completamente distinto daquele que era enunciado pelo sujeito.
O deputado, ao enunciar, demonstrava atitudes desconectadas da
agenda política que dizia adotar. Sustentado por um discurso de
revolta, utilizava, não raras as vezes, um tom grosseiro e jocoso
para se referir àqueles que não se alinhavam com a sua posição, que
se identificavam como sendo defensores das minorias e/ou sujeitos
que pertencessem a este grupo.
O discurso de ódio, aqui analisado, tinha como principal alvo
os quilombolas, povo remanescente da libertação dos escravos e
do abandono do poder público exercido há anos e que até hoje não
recebeu a devida reparação.
Entendemos que o discurso do sujeito deputado foi ao
encontro de algumas memórias que ainda reverberam hoje em
diversos países e, especificamente, no Brasil. Um discurso alinhado
com pautas polêmicas e que buscam aumentar as tensões entre
a classe trabalhadora e a classe dominante. O sujeito deputado
torna-se porta-voz da formação discursiva que o domina e,
nesse movimento, vulnerável aos escapes que são da ordem do
inconsciente demonstra, via discurso, o seu alinhamento com uma
formação discursiva conservadora, misógina, xenofóbica e racista.

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Desculpar-se não redime tal sujeito do feito, pelo contrário,
demonstra de que lugar ele enuncia e a que ideologias está filiado.
O ataque aos quilombolas é apenas um fio desse emaranhado de
discursos de ódio transvestido de um discurso sobre deus e a família.
Considerando que, segundo Orlandi (2007, p. 67), “as
palavras refletem sentidos de discursos já realizados, imaginados
ou possíveis [e que] desse modo [...] a história se faz presente
na língua”, presenciaremos, certamente, novos deslizes e
deslocamentos oriundos desse período em que vivemos. Dentre
tantos acontecimentos, o espectro de um Jesus que empunha um
fuzil e que pessoas são associadas a gado e medidas por arrobas em
uma sociedade capitalista e excludente em que a carne mais barata
é a carne negra.2

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2. Verso da canção lançada por Seu Jorge e Elza Soares em abril de 2002.

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INTERFACES SEMIÓTICAS INTERCULTURAIS
DA TRADIÇÃO DO BANHO DE SÃO JOÃO
DE CORUMBÁ

Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi


Mario Cezar Leite

Introdução

De tanto caminar, aprendí que no soy de ningún lugar, soy


de la frontera. Un lugar donde los pájaros vuelan libres y
sueltos por el aire, cantando un idioma que todos entienden.
(Severo 2012, p. 7)

Este paper mostra os mecanismos semióticos que fazem


do Banho de São João de Corumbá,1 Mato Grosso do Sul, uma

1. Segundo o Ministério do Turismo a festa […] remonta às origens de Corumbá


e, pela sua singularidade, foi incorporada ao Patrimônio Imaterial Mato
Grosso do Sul. O evento torna-se ainda mais especial por estar inserido na
capital do Pantanal, Corumbá, a maior região alagada do planeta, Patrimônio
Natural da Humanidade reconhecido pela Unesco como reserva da biosfera.
O tradicional Banho de São João de Corumbá e Ladário recebeu o título de

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representação cultural barroca ou neobarroco (Sarduy 1998) e, ainda,
como o barroco se configura nessa manifestação cultural. Refletimos
como o neobarroco se expressa na cultura contemporânea, não como
um regresso ao Barroco do séc. XVII, mas como uma categoria
estética e transcultural que representa a sublevação, discordância
em relação ao centro, ao Logos absoluto, à razão imposta pelo
império europeu aos outros continentes, desta forma decolonial. A
América Latina dispõe de um farto material advindo de diversas
culturas. Aqui equacionamos com maior desenvoltura do que os
europeus, elementos heterogêneos e alógenos. Enquanto na Europa
a carnavalização é a contracultura, aquela é a própria cultura. A
mistura de elementos díspares está na base do barroco, na base da
cultura latinoamericana e assim na base da cultura popular.
O Banho de São João de Corumbá2 é um evento popular
centenário e singular que acontece na cidade de Corumbá (MS),
geralmente entre os dias 20 e 23 de junho, quando diversos festeiros
vão em procissão até o rio Paraguai com andores que ostentam uma
imagem de São João e, ao chegar ao Rio Paraguai, banham o santo
em suas águas. A semiosferasul-mato-grossense da qual faz parte
Corumbá, município da Região Centro-Oeste do Brasil, situado no
estado de Mato Grosso do Sul, é um dos locus heptafronteiriços3

Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil. O resultado do processo, iniciado


em 2012 pela Prefeitura de Corumbá, foi anunciado durante a 95ª reunião
do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que foi transmitida pela internet
no canal do IPHAN no Youtube, do dia 19/05/2021. Acesso em: 20/05/2021.
2. Em 2020 o mais tradicional São João de Mato Grosso do Sul também
foi cancelado devido à pandemia de covid-19. Apesar disso, o banho da
imagem do santo no rio Paraguai foi mantido, obedecendo a uma série de
regras de biossegurança.
3. Locus heptafronteiriço, em Mato Grosso do Sul, refere-se aos sete limites
territoriais geográficos que hoje são característicos do estado: duas
fronteiras internacionais de Mato Grosso do Sul; Paraguai e Bolívia e, as
cinco fronteiras nacionais-estaduais que o estado mantém com estados
vizinhos – Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Paraná e Goiás. O texto

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do Brasil, pois está localizado na fronteira do Brasil com a Bolívia,
que, em 1778, foi fundado para a marcação territorial das colônias
portuguesas. Corumbá tem uma posição privilegiada à margen
direita do rio Paraguai permitindo o pleno transporte fluvial, bem
como a ligação com o coração político e administrativo do país.
Essa possibilidade de desenvolvimento econômico é notória, desde
o Brasil Colônia, porque naquela época o único meio de transporte
de grandes cargas que ligava o litoral do Rio de Janeiro com o sul
do Mato Grosso era o fluvial:

[...] conhecida como a ‘Capital do Pantanal’ não por acaso, foi,


desde o século XVIII, o grande porto das embarcações fluviais.
Lugar onde aportaram os soldados invasores de Solano Lopes
em 1865, durante a Guerra com o Paraguai, cujo resultado
foi a destruição da cidade, o saque, o abandono, a miséria e
as epidemias. Mas também foi o grande porto da navegação
da Bacia do Prata. Esta serviu, a partir de 1857 até o início
do século XX, de canal comunicador entre os moradores do
pantanal e o mundo. (Sigrist 2008, p. 63)

Através dessas características – alto desenvolvimento


econômico, posição geográfica privilegiada e elevada influência
estrangeira – a cidade tornou-se um espaço propício para a vinda e
mistura de culturas distintas. Essa conclusão fica mais clara quando
lemos a obra Mestiçagem, em que os autores (Laplantine e Nouss,
s/d) citam as cidades mediterrâneas que apresentam aspectos de
mercado e centro urbano como espaços favoráveis para o encontro
e mistura de povos distintos:

“Análise semiótica das configurações dramáticas da tradição do ‘Banho de


São João’ de Corumbá – MS” capítulo de livro que Gicelma da Fonseca
Chacarosqui Torchi e Wilson Leguizamon Baruki publicaram em 2013
no libro Literatura interseções transversões de Paulo Sérgio Nolasco dos
Santos e Leoné Astride Barzotto (orgs.) Dourados: Ed. UFGD, é gênese, ou
seja, serve em vários momentos de base para ese trabalho.

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É nomeadamente, a partir dos mercados e das praças públicas,
por excelência os lugares onde se efetuam as trocas, lugares da
aceitação ou da recusa, que, não apenas os povos se cruzam, mas
se encontram e misturam. A mestiçagem é sobretudo urbana
e as grandes cidades mediterrâneas exerceram, cada uma à
sua maneira, o papel de mediadoras entre horizontes culturais
extremamente diversificados. (Laplantine e Nouss s/d, p. 17)

Para Iúri Lotman (1922-1993), um dos principais


representantes da “Semiótica da Cultura”, o termo semiosfera, por
analogia ao termo biosfera, é usado para designar o funcionamento
dos sistemas de significações de diversos tipos e níveis de
organização. Trata-se de um espaço semiótico, dentro do qual
se realizam os processos comunicativos e a produção de novas
informações. É impossível haver semiosefora da semiosfera. O
conceito de semiosfera corresponde, portanto, à conexão de sistemas
e geração de novos textos. Trata-se de um espaço que possibilita
a realização dos processos comunicativos e a produção de novas
informações, funcionando como um conjunto de diferentes textos
e linguagens. Podemos afirmar então que estudar a semiosfera é
investigar o fenômeno da semiose cultural, ou seja:

[...] assim como biosfera designa a esfera de vida do planeta


[...] a semiosfera designa o espaço cultural habitado pelos
signos. Fora dele, no entender de Lótman, nem os processos
de comunicação, nem o desenvolvimento de códigos e de
linguagens em diferentes domínios da cultura seriam possíveis.
Nesse sentido, semiosfera é o conceito que se constituiu para
nomear e definir a dinâmica dos encontros entre diferentes
culturas [...] (Machado 2007, p. 16)

Além de propor a percepção das relações entre sistemas


sígnicos, a semiosfera norteia a reflexão a respeito da imprevisibilidade
das conexões entre os diversos sistemas de signos compartilhados ou
em permanente interação que podem se aproximar ou se distanciar

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em um dado espaço cultural. No caso aqui da semiosferasul-mato-
grossense e suas sub-semiosferas dentro dessa semiosfera, ou
como semiosfera interna em processo de diálogo. A ideia de que
os encontros culturais “são dialógicos e geradores de renovação dos
sistemas de signos foi a principal responsável pelo questionamento
que levou Iúri Lotman a investigar as relações entre sistemas de
signos no espaço da semiosfera (...)”. E esse dialogismo nem sempre
é pacífico, pode ser também conflituoso, ou seja, num processo de
dinamismo e é esse movimento constante e acelerado que:

[...] está na base dos sistemas culturais sul-mato-grossenses e


que pode ser compreendido como manifestação da linguagem
deste estado pois se constitui como sistemas de signos que,
mesmo marcados pela diversidade, apresentam-se inter-
relacionados num mesmo espaço cultural, estabelecem entre
si diferentes diálogos, e o que seria visto como choque cultural
e transforma-se em um encontro gerador de novos signos.
(Chacarosqui-Torchi 2014, p. 59)

A semiosfera é, portanto, “o espaço que possibilita a


realização de processos comunicativos e a produção de novas
informações, funcionando como um conjunto de diferentes textos e
linguagens” (Pícolo 2010, p. 6).

Contexto histórico do Banho de São João

Foi num contexto histórico muito semelhante como citado


por Laplantine e Nouss (s/d) de horizontes culturais extremamente
diversificados (s/d) que, no final do século XIX, que a festividade do
“Banho de São João” teve início na cidade de Corumbá, Mato Grosso
do Sul. Porém, para que a nova cultura fosse efetivamente agregada à
região pantaneira, ocorreram algumas adaptações no ritual de origem

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europeia, pois o espaço e a estrutura sociocultural eram totalmente
distintos da Europa. A festividade originou-se da comemoração do
‘solstício de verão’ que acontece no hemisfério norte, época do ano
em que o dia dura mais que a noite e é comemorada a chegada do
verão. Durante esse fenômeno vários povos realizavam os rituais
de fertilidade, quando o sol se eleva, marcando o solstício de verão
do hemisfério Norte. Na Bolívia, país de fronteira com Corumbá,
índios aimará celebraram seu ano novo, que coincide com o solstício
de inverno do hemisfério Sul. Esse aspecto renovador e festivo
enquadrou-se perfeitamente ao período junino brasileiro que culmina
com o período de vazante do rio Paraguai, e como o transporte
fluvial é de grande importância para população corumbaense, os
períodos de cheia assemelham-se com o ‘solstício’ que acontece no
hemisfério norte. É notório que o “Banho de São João” realizado
na cidade de Corumbá-MS apresenta características e significados
singulares equiparados ao costume europeu. E isso está relacionado
ao meio onde a tradição é perpetuada. Em relação à influência de
estrangeiros,4 Pinheiro descreve:

É também necessário entender que as migrações de forma ou as


configurações de sentido que se auto-organizam na cultura não
se transferem de modo direto ou transparente para os sistemas
já organizados e codificados, como os jornais, rádios, cinema,
etc. O passado da cultura, através de coágulos e desvios, que
se vão lentamente condensando, reorganizam e atualizam os
modos de produção do futuro. (Pinheiro 2009, p. 22)

Essa manifestação já apresentava em seus primeiros


parâmetros o aspecto mestiço, pois a louvação do São João Batista no
dia 24 de junho foi a única maneira com a qual a Igreja católica pôde
contornar uma festividade de caráter profana que já existia na cultura
europeia. Tal mistura – do profano e sagrado –, que a Igreja adequou

4. Disponível em: https://www.e-dublin.com.br/festas-populares-celebram-


sao-joao-na-europa/.

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naquela época, nos permite concluir que essa festividade junina está
intrinsecamente ligada às características mestiças. E como se deu
essa mistura do profano e do sagrado? Analisando as duas vertentes,
notamos a semelhança de conceitos e de características que se
complementam na medida em que são equiparadas. A festividade
que acontecia antes mesmo da intervenção da Igreja católica estava
relacionada à estação do ano, chamada de ‘solstício’, sendo o início
do verão no mês de junho no hemisfério norte. Como a primavera
precede o verão, é no mês de junho que acontecem as colheitas
na Europa. Para comemorar essa época de fertilidade e colheita,
eram realizadas várias festas e rituais nos povoados que viviam do
trabalho agrário “[...] no hemisfério norte, era a época do ano em
que diversos povos – celtas, bretões, bascos, sardenhos, egípcios,
persas, sírios, sumérios – faziam rituais de invocação de fertilidade
para estimular o crescimento da vegetação, promover a fartura nas
colheitas e trazer chuvas” (Rangel 2008, p. 15).
No calendário católico, durante o mês de junho é comemorado
o dia de três santos: Santo Antônio, São João Batista e São Pedro,
respectivamente nos dias 13, 24 e 29. E como o ‘solstício’ começa
entre os dias 21 e 24 de junho, o São João foi escolhido pela Igreja
como o santo representativo desse período. Segundo Rangel (2008),
foram vários os motivos que contribuíram para que isso fosse
possível, um deles é a data de seu nascimento (dia 24 de junho) que
coincide com o início do ‘solstício’, o outro é a sua importância na
história cristã, pois, de acordo com estudos bíblicos, João é filho
de Isabel que é prima de Maria, mãe de Jesus. Como João nasceu
antes que Jesus, ele foi delegado na função de preparar os fiéis para
a chegada de Jesus Cristo. Essa ideia fica clara, pois segundo o que
está escrito no livro das palavras do profeta Isaías, que diz: “Voz
do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai
as suas veredas” (Lucas, 3:4), João Batista, para cumprir com que
foi designado por Deus, começa a realizar o batismo, purificando
aqueles que eram pecadores confessos. E dentre essas pessoas,
Jesus Cristo também foi batizado por João no rio Jordão. E como a

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Igreja temia a disseminação dos rituais profanos na Europa, buscou
as semelhanças entre a história de São João Batista e a simbologia
dos rituais profanos de fertilidade, e fez por bem mesclar essas duas
vertentes dualistas. O símbolo da água carrega vários sentidos no
decorrer da história humana. Mas nessa festividade em específico
a água tem como função o batismo. A imersão na água simboliza a
regressão ao pré-formal, a reintegração no mundo indiferenciado da
pré-existência, equivale a uma dissolução das formas. “O contato
com a água comporta sempre uma regeneração: por um lado porque
a dissolução é seguida de um ‘novo nascimento’, por outro lado
porque a imersão fertiliza o potencial da vida” (Eliade s/d, p. 147).
Tal caráter renovador da água culmina muito bem com os rituais de
fertilidade realizados nos antigos povos ibéricos. “[...] a origem da
vida e o elemento da regeneração corporal e espiritual, o símbolo
da fertilidade, da pureza, da sabedoria, da graça e da virtude.
Fluida, sua tendência é a dissolução; mas, homogênea também,
ela é igualmente o símbolo da coesão, da coagulação” (Chevalier e
Gheerbrant 1988, p. 15).
Em Corumbá, a tradição de banhar o santo teve início
na segunda metade do século XIX, período em que as grandes
embarcações vindas da Europa traziam imigrantes e especiarias de
luxo. O ritual da lavagem foi implantado pelos que acreditavam na
crença de renovação agregada ao Santo

Havia tantas procissões e andores do santo, quantos fossem


os festeiros. Tratava-se de pessoas que cumpriam promessas.
Todas as procissões acabavam se encontrando na ladeira central,
de acesso ao porto e ao rio Paraguai, pois a cidade situa-se
numa barranca, aproximadamente trinta metros acima do nível
do rio. O banho do santo constitui-se numa das particularidades
dos festejos de São João em Corumbá. Conforme Frederico
A. G. Fernandes, essa prática veio da tradição dos árabes: “O
santo é lavado no Rio Paraguai, no intuito de renovar suas
forças e abençoar tudo o que se relaciona com as águas e com
o homem”. (Souza 2004, p. 333)

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Ainda segundo Souza (2004), o “Banho de São João”5 teve
um desenvolvimento muito rápido na cidade. Como era um período
próspero economicamente, e grande parte da população era formada
por italianos, portugueses, bolivianos, paraguaios e sírio-libaneses,
os quais, em nossa análise, contribuíram para a formação da cultura
mestiça da região. O acréscimo e a criação de novas tradições não
sofreram muitas barreiras conservadoras, visto que a identidade
local já era indeterminada antes mesmo da sua origem, devido à
sua formação fronteiriça. Sobre essa característica, Pinheiro (2009)
afirma:

O caráter multiplicante, ramificante e fragmentário da cultura


se dá aqui por uma proliferação dos processos civilizatórios
fronteiriços junto a um grande enfraquecimento das noções
binárias de centro e periferia (o que nos obriga a uma revisão e
reconfiguração lógico-conceptual), não por uma glorificação da
velocidade a partir do paradigma eurocêntrico de modernidade
levado a cabo pelas tecnociências. (p. 15)

Esse caráter multiplicante é evidente na tradição do “Banho


de São João”, pois são vistos vários signos culturais que não são
próprios da região (as cores, os cheiros, os sabores) e, assim, “Por
extensão, é possível pensar que o popular é constituído por processos
híbridos e complexos, usando como signos de identificação
elementos procedentes de diversas classes e nações” (Canclini 2003,
p. 220). A tradição popular bem como a cultura no seu todo não

5. O Arraial do Banho de São João começa a ser pensado no final de um ano


para outro, e a ser preparado de fato, após o carnaval. O evento conta com
concurso de quadrilhas, decoração típica, barracas com venda de comidas,
bebidas e artesanato e ainda shows musicais. Os cururueiros e suas violas
de cocho, outro Patrimônio Imaterial de Mato Grosso do Sul, dão o toque
musical à festa, que também recebe influência da cultura boliviana. Tradições
do São João brasileiro como as quadrilhas juninas e comidas típicas fazem
parte do arraial de Corumbá. Disponível em: http://www.ipatrimonio.org/
corumba-festa-de-sao-joao. Acesso em: 23/03/ 2020

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apresenta uma limitação nítida, pois é natural que um costume no
processo de adaptação englobe características de outras culturas. E
isso é possível devido à troca e contato de etnias distintas no mesmo
espaço. Portanto, fica claro o processo de mestiçagem, ou seja:

A mestiçagem é uma invenção nascida da viagem e do encontro


[...] Muitas vezes a multiplicidade de populações reunidas
numa mesma cidade não cria nada que se lhe assemelhe. O
processo de mestiçagem só começa quando o facto de pertencer
a esas cidades-mundo (Cosmópolis) serve melhor a definição
de identidade do que a nacionalidade em si. (Laplantine e
Nouss s/d, p. 18)

Além dos comerciantes europeus, Corumbá-MS recebeu


vários migrantes brasileiros que em sua maioria eram militares
transferidos, “Efetivos do Exército e da Marinha também contribuíram
para a formação de sua população” (Souza 2004, p. 332) os quais
traziam a cultura e os costumes da cidade de origem, bem como se
juntavam aos rituais corumbaenses. Tal aspecto confirma o processo
mestiço na região. Porque, ao praticarem o ritual de lavagem
do santo, acrescentavam elementos de sua cultura de origem na
tentativa de uma reafirmação de identidade de raiz. O interessante
é que tal prática, ao ser repetida nos anos seguintes, ganhava espaço
e importância na cultura, ou seja: “O objeto mestiço é um mosaico
móvel que surge a partir da mobilização das diferenças, mas elas
se anulam. Nesse Encontro nada é perdido e as características dos
elementos são transformadas” (Pinheiro 2009, p. 35).

Características barrocos/mestiças decoloniais do ritual

Dentre as várias características do “Banho de São João”,


a alegria é um fator fortemente presente. Por mais que a tradição

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seja de caráter sacro/ profano, o aspecto profano tende a ser mais
evidente na festividade. Prova disso são as vestimentas coloridas, o
ritmo acelerado, os movimentos alegres, a decoração do Porto Geral
com diversas cores e a promessa de um futuro casamento, os andores
dos santos decorados, características que realçam o caráter profano
da festividade. Observa Canclini (2008) que o popular não é vivido
pelos sujeitos populares como complacência melancólica para com
as tradições. Muitas práticas rituais subalternas, aparentemente
consagradas à ordem tradicional, transgridem-na humoristicamente.
“Talvez uma antologia da documentação dispersa sobre humor ritual
na América Latina tornasse evidente que os povos recorrem ao riso
para ter um trato menos angustiante com seu passado” (Canclini
2008, p. 221).
A terminação “cultura popular” tem tido explanações e usos
distintos ao longo dos últimos dois séculos, provocando alterações
que vão do estrado das ciências sociais às artes, perpassando pela
comunicação, filosofia, política, educação, estudos culturais e
tantas outras áreas dedicadas a estudar as atividades humanas. A
noção de “cultura popular” que empregamos neste paper se refere
a compreensão desta como importante ferramenta de luta de povos
e comunidades que

se utilizam de sua ancestralidade, sua língua materna,


suas tradições, memórias, mitos, celebrações, danças,
cantos, ritos e sobretudo de seu imaginário como forma de
resistência a processos de dominação política, econômica e
ideológica, também, como define Homi Bhabha (2008), a
uma prática desconfortável, perturbadora, de sobrevivência
e suplementaridade - entre a arte e a política, o passado e o
presente, o público e o privado. (ABIB 2019, p. 4)

Trabalhamos com conceito semiótico de Cultura enquanto


“informação codificada”, pois otrabalho fundamental da cultura
consiste em organizar de forma estrutural o mundo que rodeia o

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homem. As informações da natureza e dos fenômenos históricos
e ambientais vão determinando consciência no grupo social e se
transformam de “Não-cultura” (informação não processada) em
“cultura” (dados em sistema de organização).
Portanto, pensar o Banho de São João como texto de cultura,
codificada por um grupo social específico, de forma singular, da
américa latina, é importante para a determinação de sua identidade,
e uma forma de reafirmar o saber, o poder e o fazer desse povo.
Creio que é projetar o conhecimento produzido pelas margens
externas do sistema mundial colonial moderno de forma decolonial.
O Pensamento Decolonial6 granjeia ênfase, especialmente na
América Latina, Caribe e África por serem espaços epistemológicos
além de políticos predispostos a reflexão de formas de superação
do eurocentrismo. Tal pressuposto é desencadeador do poder/saber/
ser dos povos colonizados, subjugados historicamente pela ideação
colonial que destruiu culturas, memórias e identidades.
Refletir sobre a cultura enquanto informação codificada
de um povo de forma decolonial prescinde de um processo
de interculturalidade, que para Catherine Walsh (2012) é
uma ferramenta pedagógica que questiona a racionalização, a
subalternização a inferiorização e os “patrones do poder”.7 Segundo
a autora, o processo intercultural viabiliza maneiras distintas de ser,

6. O ponto de vista decolonial se constitui em um importante movimento de


renovação epistemológica para a reestruturação crítica e utópica das ciências
sociais na América Latina no século XXI. O mesmo vem sendo fortalecido
a partir do final da década de 1990 com a formação do Grupo Modernidade/
Colonialidade (M/C), formado por diversos intelectuais latinoamericanos
situados em diversas universidades das Américas (Ballestrin 2013)
7. Esse diálogo torna possível romper com o monotopia da verdade única,
incluindo nela o aparente relativismo que postula a retórica da pós-
modernidade, enquanto continua a falar da mesma lógica; pelo contrário,
exige interação produtiva com perspectivas “Outros”, os emergentes
da diferença colonial que é tecida como consequência do poder colonial
(Palermo 2013, p. 244, tradução minha). Cadernos de estudos culturais,
Campo Grande, vol. 5, pp. 237-254, jan/jun. 2013.

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viver e busca o desenvolvimento e criação de compreensão que não
só articulem e façam dialogar com as diferenças em um marco de
legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito. Portanto,
também alimentam, por sua vez, a criação de modos outros de
pensar, ser, estar, aprender, ensinar e viver, que cruzam fronteiras.
Desta forma, pensar o banho de São João de Corumbá a partir
de uma semiose decolonial é refletir como as ações sígnicas (de
semiose, ou seja, produção de significado) das fronteiras do Brasil
se manifestam como espaço epistemológico, além de político, que
se colocam como forma de superação da modernidade eurocêntrica.
Não é de forma alguma uma negação dessa modernidade, mas uma
forma de reafirmar a luta para colocar “em primeiro plano a força
e a criatividade de saberes subalternizados” (Mignolo 2005, p. 30).
E o saber do povo, brasileiro, sul-mato-grossense, eclode no ritual
do banho de São João, de forma democrática, alegre, colorida,
totalmente mestiça e intercultural, pois mistura ritmos, cores
sabores e crenças como a mistura do cristianismo e catolicismo com
as religiões de matrizes africanas, como o umbandismo e, por isso,
celebra-se a presença do João, católico, e de Xangô Festividade.

Levantamento do mastro e os banquetes

No dia 23 de junho, no período da manhã, é realizada a


procissão até a igreja, onde é feita a missa em louvação a São João
Batista. Ao término da missa, todos retornam em procissão até a casa
do Festeiro, onde é levantado o mastro e servido o café da manhã.
O levantamento do mastro muitas vezes é realizado durante a noite,
pós lavagem do Santo, todavia existem festeiros que levantam
o mastro logo após a missa da manhã. De acordo com o festeiro
Alfredo Ferraz, o mastro erguido em frente à casa não só representa
simbolicamente o nascimento de São João Batista, mas também
comunica a todos que nesta casa reside uma família de festeiros.

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O ritual do “Banho de São João” é dividido em etapas, em
que o contraste do profano e o sagrado ficam bem nítidos.
No dia 23 de junho é levantado o mastro com a imagem do
Santo juntamente com a reza. Durante o dia são finalizados os
preparativos para a noite do Festejo. “Os festeiros contratam
músicos que formam o conjunto para acompanhar o cortejo [...]
as casas são decoradas segundo as possibilidades financeiras do
grupo e, muitas vezes, usam vestimentas próprias para ocasião,
popularmente chamadas de roupa caipira. (Sigrist 2008, p. 52)

Antes e depois da descida da ladeira Cunha e Cruz8 é feita


uma reunião na casa dos festeiros, onde é servido um banquete.9
Dentre os pratos principais desse momento, temos o chamado
“sarravulho” ou “sarrabulho”, que é uma comida extremamente
típica da região, feita à base de miúdos do boi e vinho, o prato
apresenta uma aparência muito semelhante à nossa famosa feijoada,
segundo Tasso:

É um prato à base de miúdos, original da região do Douro,


em Portugal. Lá ele é denominado de Sarrabulho. No entanto,
em Corumbá (MS) ganhou mais ingredientes e teve pequenas
mudanças na receita, sem contar que nesse processo de
adaptação de Portugal para a fronteira noroeste de Mato Grosso
do Sul, consolidou- se uma grafia com V, tornando-se por aqui
Sarravulho. (Tasso 2009)

8. A ladeira Cunha e Cruz é um dos principais acessos para o Porto Geral e ao


rio Paraguai.
9. É preciso deixar claro que a Festa é uma festa ecumênica e democrática
incluindo a representação de religiões afrodescendentes. No entanto, ainda
esse aspecto da pesquisa. Desta forma, para a religião católica como se sabe,
o Banquete exprime um rito comunal e, mais precisamente, o da Eucaristia.
Por extensão, é o símbolo da Comunhão dos Santos, ou seja, da beatitude
celeste através da partilha da mesma graça e da mesma vida. De modo geral,
é um símbolo de participação numa sociedade, num projeto, numa festa
(Chevalier e Gheerbrant 1988, p. 120).

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Muitos que praticam o ritual do “Banho de São João”10 vêem
a lavagem do santo como uma espécie de renovação de energias,
bem como para comemorar o nascimento de São João Batista. E
esse aspecto é reforçado pela função do banquete na festividade,
pois notamos que esse momento é caracterizado pela comemoração
em conjunto, onde as pessoas ficam reunidas no mesmo espaço com
música, dança e muita alegria. “O triunfo do banquete é universal, é
o triunfo da vida sobre a morte [...] é equivalente da concepção e do
nascimento. O corpo vitorioso absorve o corpo vencido e se renova”
(Bakhtin 1999, p. 247).

A musicalidade

A linguagem musical desde as manifestações rituais mais


primitivas é utilizada para ilustrar a manifestação de crenças,
para a construção de identidades, sendo considerada um produto
de atividade humana universal, inquestionável é a sua existência e
importância em qualquer sociedade; é ao mesmo tempo diversificada
e de tradução difícil, quando interpretada fora de seu contexto ou de
seu meio cultural. A música no contexto da manifestação folclórica
do “Banho de São João” é um importante catalisador de ideias e
de elemento delineador de configurações dramáticas representadas
na prática por um grupo de instrumentos tal qual uma fanfarra.
A visão da antropologia (Pinto 2001) aponta que a presença da

10. Para os festeiros católicos a parte religiosa, entre outros rituais, tem
novenário em família e mastro da bandeira. Os mais de 100 “festeiros”
de Corumbá capricham na decoração dos andores e altares domésticos.
Seguindo a tradição, as mulheres cuidam dos quitutes juninos e os homens
preparam a fogueira. A grande procissão de São João é precedida de
pequenas procissões em torno das casas e em volta da fogueira. Algumas
famílias mantêm o banho caseiro onde a imagem de São João é batizada em
tanques e cisternas (Fonte Ministério do Turismo).

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música nas diversas atividades sociais e os significados múltiplos
que decorrem desta interação constitui importante plano de análise.
Pois, sendo assim, a Música não seria compreendida apenas pelos
seus elementos estéticos, mas como uma forma de comunicação
semelhante a qualquer tipo de linguagem possuindo a própria
significação. Ao analisarmos a música no contexto do “Banho
de São João”, entendemos que ela não apenas impulsiona, mas
determina diversos aspectos dessa manifestação popular. Pode-se
observar claramente esse fato ao identificarmos as modificações em
seu andamento, em um primeiro momento musical um instrumento
de sopro nos apresenta melodia monótona em compasso ternário,
valsando tal qual uma cantiga de ninar ou ainda, como quem embala
uma criança:

Deus te salve São João


Batista sagrado
O seu nascimento
Nós Temos que alegrar (2x)

O instrumento de sopro é acompanhado por uma batida


de percussão também de caráter monótono e sem grandes efeitos
percussivos. Após diversos compassos, nesse mesmo motivo
melódico e rítmico de caráter circular e monótono, pode-se observar
a ruptura brusca do instrumento de sopro apresentando um novo
tema musical incisivo e alegre. Esse novo tema oferecido não guarda
semelhança alguma com o tema musical anterior, ao contrário, nos
dá a sensação de um começo de folia de carnaval, numa alusão
clara da existência de uma dicotomia rítmica e melódica que ilustra
dois aspectos diferentes do “Banho de São João”. O seu caráter de
manifestação sacra, representado na música monótona em compasso
ternário, nos remeteria a uma lembrança da santíssima trindade e
o profano, por sua vez, é alegre motivo musical apresentado em
compasso binário, popularmente utilizado nas músicas compostas
para as tradicionais fanfarras e bandas escolares. Assim, durante

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toda procissão, os dois momentos, sagrado e profano, são repetidos.
No interlúdio do sagrado, é o momento em que as pessoas cantam
trechos da vida de São João Batista, juntamente com o instrumental
de caráter monótono.

(Momento Sacro)
Deus te salve São João
Batista sagrado
O seu nascimento
Nós Temos que alegrar (2x)
Confesso
(Momento Sacro)
Se São João soubesse
Que hoje era seu dia
Descia do céu à terra
Comprazer e alegria (2x)
(Momento Sacro)
João batiza Cristos
Cristo batiza João
Ambos foram batizados
No Rio de Jordão (2x)

No intervalo de cada trecho ocorre o momento profano, que


é a folia carnavalesca, apenas ao som de instrumentos de sopro.
Conclui-se que o elemento musical dessa manifestação popular é de
importância singular, pois é através da estrutura rítmica e melódica
das canções apresentadas no cortejo que o público presente vivencia
o sagrado e o profano representados simbolicamente pela divisão
musical dos compassos ternário (sacro) e o compasso binário
(profano).
Este centro descentrado de variação é um acontecimento
singular, afinal, como afirmam Laplantine e Nouss, a colagem,
a variação, a música e a identidade cultural é um movimento de
interação constante, “resultado de misturas e intersecções, feito de
memórias e cruzamentos, mas, sobretudo de esquecimentos” (s/d,
p. 77), por sua vez mestiço.

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A parte performática

Tudo começa na casa dos festeiros,11 as rezas, ornamentação


do andor e o encontro da comunidade do bairro. A maioria dos que
participam contribuem de alguma forma, seja com dinheiro, com
comidas, bebidas ou mão de obra. A iniciativa de união do povo
para os serviços voluntários em benefício aos preparativos da festa
é extremamente forte. Assim percebemos que o sentido comunal é
essencial na tradição, pois a crença, a celebração, a confraternização
de uma comunidade, são motivos que fortalecem a união e a
perpetuação do ritual. Esse conceito fica claro na obra de Carlson
(2009), que afirma:

Huizinga, ao considerar as funções culturais do jogo, mostra-


se como sendo primeiramente conservadoras, fornecendo, por
meio do aprofundamento da experiência comunal e da exibição
lúdica dos valores e das crenças comunais, um fortalecimento
máximo das suposições culturais. De fato, Huizinga considera,
como uma característica básica do jogo, o desenvolvimento e
o reforço de um Espírito ou uma Consciência de comunidade,
e sugere que seus efeitos sempre continuam para além da
experiência momentânea do jogo. (Carlson 2009, p. 38)

Após a reunião na casa do festeiro, a procissão é organizada.


O andor do Santo é carregado na frente por quatro pessoas, estas que
ao decorrer da procissão são periodicamente substituídas, em uma
espécie de revezamento. Essa troca é muito importante, pois alguns
grupos caminham até 6 km durante o cortejo. Além da distância,
muitos que estão na procissão querem carregar o santo no intuito de

11. A Fundação da Cultura e do Patrimônio Histórico de Corumbá nos informou


que tem cadastrados mais de 100 festeiros de São João, os quais são
certificados como agentes culturais, pois todos os anos ajudam a tradição a
não se perder.

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fazerem promessas ou louvação. Alguns festeiros contratam bandas
particulares para o acompanhamento de todo trajeto. Como são mais
de cem andores que descem a ladeira Cunha e Cruz, e a maioria não
possui uma banda particular, em pontos estratégicos permanecem as
bandas contratadas pela Prefeitura, que ficam em cima de pequenos
palanques, para acompanhar a descida dos andores. Quando uma
procissão se aproxima, a banda começa a tocar a melodia monótona,
caracterizando o momento sacro da procissão. Depois da primeira
estrofe, a banda intercala com a batida rápida e carnavalesca: “Os
participantes cantam, pulam animadamente durante o trecho de
marcha carnavalesca e vão caminhando durante o trecho do hino
sacro, repetindo-se indefinidamente essas alternâncias” (Sigrist
2008, p. 53). Na ladeira, normalmente acontece o encontro de
dois andores, pois os primeiros que descem, sobem pelo mesmo
caminho. E quando isso ocorre, os condutores flexionam os joelhos
três vezes, numa espécie de cumprimento, em seguida, os mesmos
bradam “viva São João!”. A ladeira fica toda iluminada com
centenas de velas, na maioria das procissões as pessoas carregam
pequenas lanternas que simulam velas à longa distância. A letra da
música, a alternância de batida e movimento, o encontro de andores,
o espaço que vai da casa do festeiro até o porto geral, as centenas
de velas, são elementos que configuram e definem essa tradição
como performática. A letra da ladainha contada serve como roteiro,
texto; o instrumental, a melodia, como trilha sonora, que marca
os momentos específicos da performance; o encontro de andores,
pequena alternância que acontece fora da partitura da música;
o público que assiste das calçadas, e os que acabam entrando na
procissão; as velas como iluminação, as vestimentas feitas com
retalhos como figurino; e o caráter pós-dramático presente na
utilização de recursos tecnológicos (como as lanternas em que as
velas foram substituídas pelo led) são características que confirmam
a dramaticidade do ritual. Todavia, mesmo que não houvesse tais
elementos, o ritual já se configura como uma prática dramática do
homem, pois, “pode-se considerar a teatralidade algo intrínseco ao
ser humano na medida em que o teatro tem origem em rituais como
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danças tribais, ritos religiosos ou cerimônias públicas ou ainda
na tendência humana particularmente infantil, de experimentar
o mundo por meio do jogo, do lúdico” (Pascolati apud Bonnici e
Zolin 2009, p. 94).
Notamos também que a performance que se dá no “Banho
de São João” é uma prática lúdica que permite o fortalecimento
dos valores e crenças. E durante a descida da ladeira Cunha e Cruz
percebemos vários jogos – cada jogo envolve uma crendice –,
como, por exemplo: passar de baixo do andor sete vezes no intuito
de conseguir futuro casamento; andar sem calçado carregando
o andor para atrair dinheiro; mulheres descalças descem, como
promessa para engravidarem, etc. São várias as crenças e simpatias
que envolvem o ritual. O jogo aqui é também elemento dramático
fundamental na perpetuação da tradição, haja vista que:

Joga-se até que se chegue a um fim. Enquanto está decorrendo


tudo é movimento, mudança, alternância, sucessão, associação,
separação. E há, diretamente ligado a sua limitação no tempo,
uma outra característica interessante do jogo, a de se fixar
imediatamente como fenômeno cultural. Mesmo depois de o
jogo ter chegado ao fim permanece como uma criação nova
do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória. É
transmitido, torna-se tradição. (Huizinga 1971, p. 11)

Durante a procissão, todos os integrantes do ritual assumem


postura diferenciada do cotidiano, prova disto são as vestimentas
coloridas (muitos grupos de festeiros usam até uniforme), e ações
que são quase que incomuns na sociedade. Para que isso seja
possível, é feito um acordo comum entre todos os que participam da
festividade, no qual é determinado um espaço e tempo definidos para
cada momento específico da procissão. Assim, ao iniciar o trajeto
nesse espaço e tempo isolados – até mesmo limitado – todos os
que acompanham ou assistem tornam-se performers, representando
em tempo real ações que são previamente marcadas, mas que são
fadadas a constantes alterações.

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Aspectos barrocos e/ou neobarrocos

Hoje, terceiro milênio da Era Cristã, numa época marcada


pela perspectiva de enormes avanços científicos, tecnológicos,
culturais e sociais, volta à tona a discussão sobre a estética barroca,
mas sob novo enfoque. A multiplicidade de nosso mundo, com
tudo se partindo em inúmeros fragmentos, plenos de significados,
mas, apesar disso, carregados de uma instabilidade e de uma
mutabilidade que lhes é inerente, tem levado muitos teóricos a
reconhecer, em nossos dias, algumas características do barroco
sob nova roupagem e, por isso mesmo, transmutadas no conceito
de neobarroco. Mas sejam elas quais forem, barroco e neobarroco
são “claves culturais que conferem não mais um selo aristocrático
à cultura do continente, mas incitam agendas, programas e projetos
que preenchem a alteridade latino-americana, instalando-a como
pulsão crítica e criadora, na razão universal” (Miltom in: Figueiredo
2005, p. 81,) desta forma decolonial, pois, legitima a subalternização
do conhecimento. É o louvor de reflexões já consagradas por
Alejo Carpentier, Lezama Lima e Severo Sarduy, os nomes mais
respeitados no que diz respeito à revisão crítica desta estética e que
sedimentam as reflexões sobre as multiplicidades que constroem a
mestiçagem na América-Latina.
A cultura popular do Banho de São João expressa a dúvida
existencial através do lúdico, fazendo encontrarem-se os contrários
que labirínticamente se suplementam em espirais de gozo,
libertando-se dos círculos do racional, próprios do estilo barroco.
O excesso e o exagero, a abundância e o desperdício caracterizam
essa linguagem que exprime a festa dos sentidos, os sem limites,
o prazer e o erotismo, o barroco estão presentificados na estrutura
plástica da Festa, na alegria e alegoria dos motivos da decoração, na
profusão de fogueiras espalhadas pela cidade, no exagero estético
da composição dos andores, no banquete de saravulho, totalmente
gratuito servido durante a comemoração, nas inúmeras lanternas

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que iluminam a procissão demonstrando a o quanto os fiéis estão
preparados para a transformação espiritual, nas casas que deixam de
ser território privados e são abertas para receber democraticamente
quem quiser participar da festa/ celebração. Afinal, na estética
barroca, qualquer componente procura extravasar seus limites,
tendendo para o encontro com um outro, numa dinâmica constante
de descentramento, expansão e mutação. Pois é o barroco, uma
estética da metamorfose, da mestiçagem das formas (Laplantine
e Nouss s/d). Isto fica claro na performance musical do Ritual,
quando a música deixa de existir apenas para glorificar o Santo, de
forma solene e litúrgica, e passa a ter uma função expressiva ou de
celebração carnavalesca num sincretismo entre as formas ‘pagãs’
(africanas, indígenas) e as formas ‘cristãs’ (européias), funcionando
com demonstração do estágio intermediário entre o mal e o bem,
entre o pecado e a virtude, num processo de trânsito cultural e/ ou
intercultural.
Desta forma, o barroco que percebemos na composição do
Ritual do Banho de São João de Corumbá transcende os séculos
XVI e XVII, pois é mais que um estilo de época é uma estratégia.
Affonso Romano de Sant’Anna acredita que precisamos reformular
nosso conceito de barroco, pois “ele é um assombroso encontro
entre a razão e a emoção” (2000, p. 19). Para Severo Sarduy é
o barroco moderno, o neobarroco que reflete estruturalmente
uma discordância, oferecem as imagens de um universo móvel e
descentrado, no entanto harmônico, ou seja,

A ruptura da homogeneidade, a ausência de um logos absoluto,


a carência em vez do fundamento com episteme. Neobarroco
do desequilíbrio, reflexo estrutural de um desejo que não
pode alcançar seu objeto parcial ele se transformou em objeto
perdido. O percurso - real ou verbal – já não franqueia apenas
divisões inumeráveis: visa um fim que constantemente lhe
escapa, e o seu trajeto é dividido por essa mesma ausência
em torno da qual ele se desloca. Neobarroco: reflexo
necessariamente pulverizado de um saber que sabe não se

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encontrar já “tranqüilamente” fechado sobre si mesmo. Arte da
deposição e da discussão. (Sarduy 1998, p. 97)

Ou seja, o neobarroco funciona como uma reciclagem do


barroco histórico feita nos dias atuais. Severo Sarduy (1979), em
seu ensaio O barroco e o neobarroco, aponta três mecanismos
de artificialização que são a base da teoria neobarroca, a saber:
substituição, troca do objeto-foco por um outro que faz referência
àquele; proliferação, a multiplicação de metonímias do objeto-
foco através da repetição de termos e mesmo sequências de
significantes; e condensação, fusão de dois dos termos de uma
cadeia de significantes, de cujo choque resulta um terceiro termo
que resume semanticamente os dois primeiros. Tendo como base
tais afirmações, fica mais fácil chamar de neobarroco- de colonial
uma manifestação popular como o Banho de São João. Sendo o
barroco uma estratégia que introduz a paisagem exterior no interior
– produz violações mútuas da esfera cultural. Um barroco que “[...]
representa subversão, discordância em relação ao centro, ao Logus
absoluto, à razão imposta pela Europa aos continentes periféricos,
como a América Latina e a África. Por essa razão, “sempre esteve
relacionado à literatura e à cultura dos países saídos do colonialismo”
(cf. Vasconcelos 1989, p. 7).
Segundo Affonso Ávila (1971), a dúvida existencial se
expressa pela consciência da ludicidade, fundindo os contrários que
labirínticamente se suplementam em espirais de gozo, libertando-
se dos círculos redutores do racional. O jogo neobarroco afirma-
se como instrumento de rebeldia, em que a emoção predomina,
rompendo com o equilíbrio clássico. O excesso e o exagero, a
abundância e o desperdício caracterizam a linguagem neobarroca,
cuja extroversão busca o sem limites, o prazer, o erotismo. Para
Walter Benjamin (1984), o barroco é a alegoria do desengano. É
espelho deformado. Através do estilhaçamento semântico e fônico,
faz o riso contracenar com a melancolia e com o vazio. É preciso ler
o alegórico que se expressa pela ludicidade da linguagem do Banho

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de São João como texto de cultura. O nó e o labirinto são imagens
recorrentes no barroco histórico, assim como a descrição de casos
– ou histórias – em que a agudeza e perspicácia do espírito humano
conseguiu vencê-los e restabelecer a ordem nas coisas-do-mundo.
Para Calabrese (1987, p. 146), “onde quer que ressurja o espírito da
perda em si, da argúcia, da agudeza, aí reencontramos pontualmente
labirintos”. O nó e o labirinto são complexidades que trazem em
si a existência de uma linearidade, de um conjunto, ou mesmo de
várias linearidades e vários conjuntos: o nó é uma dobra ou redobra
de uma linha – ou mesmo várias – e o labirinto, um emaranhado
de percursos, dos quais apenas um leva à saída, ou à solução do
problema. Para resolvê-los e desemaranhar o nó e também sair do
labirinto é preciso encará-los com a ambiguidade de quem observa
a globalidade do sistema em questão e ainda o microcosmo do nó
ou do labirinto.
Há uma proliferação dos textos pertencentes à criação
labiríntica na representação cultural do Banho de São João de
Corumbá, os pontos de referências plurais, turvam-se, misturam-
se e ocultam-se na semântica barroco-mestiça da Festa/Ritual. O
sagrado e o profano, a liturgia, o rítmo lento e o rápido, a cultura
cristã e a umbanda, a noite que vira dia, a imprecisão da vida na
precisão da fé, o drama e a contenção na semântica dos corpos, o
público e o privado, a cidade e o rio, o Brasil e a Europa. A mescla
de códigos (o verbal oral, a linguagem musical, a dramaturgia
da linguagem dos corpos, a imagem plástica da ambientação, a
fotografia, as artes gráficas, as artes visuais) fazem do Banho de
São João um conjunto de sistema semiótico modelizante, ou seja,
uma linguagem cultural atravessada por diversas linguagens que se
cruzam de forma intercultural rizomática.
Pensando os conceitos de interculturalidade, em suas duas
acepções (funcional e crítica) acreditamos que ser interessante
chamar a interculturalidade fronteiriça de interculturalidade crítica
rizomática, pois o rizoma representa no nosso entendimento
os processos intrínsecos no âmbito das questões identitários e

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dos direitos políticos e culturais que emergem (muitas vezes
de forma insurgente) nas zonas de fronteira e que gritam por
uma atenção especial. Desta forma a interculturalidade12 crítica
rizomática.13 Rizoma é um modelo descritivo ou epistemológico
na teoria filosófica de Gilles Deleuzee Félix Guattari. A noção de
rizoma foi adotada da estrutura de algumas plantas cujos brotos
podem ramificar-se em qualquer ponto, assim como engrossar e
transformar-se em um bulbo ou tubérculo; o rizoma da botânica,
que tanto pode funcionar como raiz, talo ou ramo, independente de
sua localização na figura da planta, servindo para exemplificar um
sistema epistemológico onde não há raízes – ou seja, proposições ou
afirmações mais fundamentais do que outras – que se ramifiquem
segundo dicotomias estritas.

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no


meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação,
mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o
verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e...
e... e...” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e
desenraizar o verbo ser. (Deleuze e Guattari 1995, p. 35)

O pensamento rizomático é movente e se abre, germina em


todas as direções. Este entrecruzamento de códigos como textos
de cultura que se recodificam, mesmo sem perder os traços que
os distinguem, geram novos textos que compõem o texto cultural
desse ritual. Desta forma, como texto de cultura a Festa/ Ritual

12. Da dualidade de origem se desenvolvem, duas concepções ou atitudes sobre


a interculturalidade, a Interculturalidade Funcional e a Interculturalidade
Crítica, segundo Catherine Walsh, integrante do grupo Modernidade/
Colonialidade. A Primeira concepção denominada como Interculturalidade.
13. Conceito desenvolvido no texto “Interculturalidade crítica rizomática
e línguas de fronteira no Mato Grosso do Sul – Brasil”, publicado na
revista Línguas e Instrumentos Linguísticos com o DOI:10.20396/lil.
v24i48.8667918.

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de São João de Corumbá se edifica como encontro de signos de
várias esferas e tempos distintos (a cada ano o Ritual se renova
incorporando novos elementos como as lanternas que os festeiros
levam durante a procissão que deixam de usar velas e passam a usar
luzes de led), em um espaço de fronteira, em um espaço de semiose
barroco –mestiça decolonial. Portanto, a mescla de códigos, a inter
e a intratextualidade, intrínsecos do processo de produção cultural
mestiça, que como tatuagem, participam do processo de criação,
funcionando como textos culturais emaranhados, num processo de
semiose pluritópica.

Considerações em metamorfose

De acordo com Pinheiro (2009), as culturas que se


fundamentam apenas com textos criados por elas próprias, em
sua maioria se caracterizam por um desenvolvimento gradual e
retardatário; ao contrário, as que são saturadas periodicamente por
textos provenientes de outras tradições tendem a um desenvolvimento
acelerado. É importante salientar que todo sistema cultural é aberto,
sendo capaz de trocar informações com o ambiente, negociar e
transformar. Tais aspectos são essenciais na tradição do “Banho de
São João”, pois a perpetuação da tradição só é possível devido à
troca, à adaptação de novas tendências de cada período histórico.
O Jogo dramático que perpassa toda a manifestação do Banho de
São João é circunscrito pela música, ora profana, ora religiosa. É a
música que dá o tom da manifestação por excelência, “embriaguez
dionisíaca é, na sua essência tecida por metamorfoses contínuas nas
e pelas quais as individualidades podem encontrar-se e ultrapassar-
se” (Laplantine e Nouss s/d, p. 95). O elemento musical dessa
manifestação popular é de importância singular, pois é através da
estrutura rítmica e melódica das canções apresentadas no cortejo
que o público presente vivencia o sagrado e o profano representados

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simbolicamente pela divisão musical do compasso ternário (sacro)
e o compasso binário (profano). Conclui-se, portanto, que o “Banho
de São João” é um ritual dramático, devido ao deslocamento dos
corpos em um espaço e tempo previamente definidos, onde o homem
assume a forma de elemento performático, pois a “arte performance
considera a materialidade do corpo, dos objetos, dos conceitos e
transita para a teatralização, assumindo uma potência dramática,
dionisíaca e cênica” (Pavis 1947, p. 240).
A ancestralidade, a memória, a oralidade e a ritualidade
encarnada nessa, desenvolvidas ao longo dos anos na fronteira
Brasil/Bolívia, às margens do Rio Paraguai, constituem um acervo
de humanidade registrado através de sua execução, que determinam
formas simbólicas de ser e estar no mundo. A esse profundo acervo
de humanidade e amplo manancial de saberes e práticas, é que
aqui denominamos “culturas populares decoloniais”. É importante
salientar que o “Banho de São João” tem importância singular na
cultura sul-mato-grossense, visto que é carregado de elementos que
são próprios desta e de outras regiões, num processo de misturas.
Assim concluímos que é irrefutável a sua característica mestiça,
pois além dos elementos que foram agregados em Corumbá, a sua
origem já apresentava o caráter mestiço devido à intervenção do
sagrado pela Igreja Católica nos rituais profanos de fertilidade dos
camponeses. Cabe salientar ainda que o “Banho de São João” é uma
manifestação singular, única, como esta não existe outra no mundo,
e como afirmam Laplantine e Nouss (s/d) toda mestiçagem é única,
particular, não possui regras e traça seu próprio futuro.

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APLICAÇÃO DA INTERCULTURALIDADE NA
INTEGRAÇÃO DE IMIGRANTES VENEZUELANOS
NA CIDADE DE DOURADOS-MS

Francielle Vascotto Folle


Cesar Augusto Silva da Silva

Introdução

A Venezuela durante boa parte do século XX era atrativa e


chegou a ser um local de recebimento de imigrantes. Não obstante,
na segunda década do século XXI teve seu perfil migratório
totalmente revertido por conta de uma crise econômica causada
pela falência na política venezuelana, onde podemos observar a
influência da globalização nesse movimento e também o fluxo de
venezuelanos (Araújo 2018, p. 350).
No início, esses imigrantes eram apenas econômicos
e estariam decepcionados com a gestão política, buscando na
imigração uma vida melhor, o que para a sociedade venezuelana da
década de 1990 não era bem visto.
É necessário pontuar também que, em decorrência da
globalização, os estados liberais, como é o caso do Brasil,

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entenderam a necessidade de promover a inclusão como uma
forma de controle social, controlando as informações e o mercado,
garantindo aos indivíduos a economia, a saúde e a educação,
criando o sentimento de possibilidade de mudança de status, e de
condição de vida, pois este é o jogo do mercado, onde o Homo O
economicus e a sociedade civil para Foucault formam um mesmo
conjunto de tecnologias de governamentalidade (Veiga-Neto e
Lopes 2007).
Neste ponto, definir o que é a globalização é um desafio,
uma vez que, ela pode ser analisada por diversas frentes sejam
elas provenientes da economia, como a formação de uma “nova
economia mundial” que é pautada pela transnacionalização dos
meios de produção e o surgimento de multinacionais (Santos e
Santos 1997, p. 14).
Já para área dos estudos sociais, políticos e culturais, ela
representará, de forma mais sensível, conjuntos de fenômenos e
relações globais que modificarão as sociedades e que apresentará
especificações para cada Estado, ou seja, não sendo um único
movimento de globalização, mas diversos, isto é, globalizações, que
terão elementos diferentes conforme cada cultura, porém buscando
um objetivo geral (Santos 1997, p. 14).
Desta forma, Boaventura (1997, p. 14), propõe uma
definição mais ampla para esse fenômeno, como um processo que
será definido conforme a condição ou entidade local que contará
com uma influência global nessa sociedade, permitindo a criação de
meios para distinguir qual condição social é local ou global (rival).
É importante pontuar que, essa definição trará algumas
implicações, sendo a primeira referente à análise das condições
gerais do sistema ocidental, neste momento desconsiderando as
questões locais, já a segunda irá buscar compreender a localização e
as questões existentes nela, para assim compor a observação analítica
da globalização local para assim demonstrar quais são os elementos
que cooperaram para sua realização e sucesso (Santos 1997).

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Portanto, para apresentar que a integração social seja uma
prática política de governamentalidade, é preciso argumentar a
educação que transforma as pessoas para operarem na lógica da
inclusão.
Então para entender a inclusão como um conjunto de proteção
em que os indivíduos olhem para si e para outros em utilizar uma
referência de fronteiras que delimitam o lugar normal e anormal,
do incluído e do excluído. São práticas educacionais diluídas na
população (Veiga-Neto e Lopes 2007).
As interações sociais e internacionais advindas da
globalização estão cada vez mais intensas, permitindo e a formação
de outros dois processos, o primeiro pode ser definido através do
cosmopolitismo que apresenta uma análise das formas de dominação
que passam a interagir com os grupos sociais mais vulneráveis
ou abertos para o contato, sendo subordinados à oportunidade de
se organizarem transnacionalmente para a defesa de “interesses
comuns” que parecem ser os mesmos. E o segundo o patrimônio
comum da humanidade (Santos 1997).
O cosmopolitismo pode ser observado em atividades voltadas
aos diálogos e organizações Sul-Sul, em organizações voltadas aos
trabalhadores, redes de filantropia transnacional Norte-Sul.
Entre outros exemplos, que tenham como preocupação
a proteção de um patrimônio comum da humanidade, que na
maioria das vezes está sob constante ataque por parte de países
hegemônicos. Sendo então esse processo, que é decorrente da
globalização necessário para a formação de um conjunto de lutas
transfronteiriças (Santos 1997).
E é nesse ponto que devemos apresentar a necessidade
distinguir a globalização em duas, a primeira é a de cima-para-baixo
(hegemônica), que é voltada para uma análise mais industrial e de
dominação cultural, e a segunda a globalização de baixo-para-cima
(contra hegemônica), onde observamos a presença do cosmopolitismo
e do patrimônio comum da humanidade (Santos 1997).

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Sendo, portanto, utilizada também uma análise da
globalização, por meio das óticas neoliberais, atendendo aos
conceitos do imperialismo, neocolonialismo, geocultura, sistema-
mundo, o papel dos povos nas Relações Internacionais para
compreender a nova dinâmica dos fluxos migratórios internacionais,
em especial a diáspora venezuelana (Romero e Mijares 2016).
Nesse sentido Bolaños (2019, p. 56) analisa o simbolismo
único presente na formulação do significado de diáspora que está
ligado ao conceito de movimento e transformação das ausências
e presenças que envolvem os imigrantes e que deve ser analisado
como um dos grandes temas do estudo atual sobre cultura:

Diáspora sintetiza múltiples viajes en un viaje emblemático,


simbólico, de significados en movimiento, nunca estable ni
unívoco, de presencias y ausencias, de inmersión y vuelo, de 57
intervalos. Siendo diáspora uno de los grandes temas de cultura
contemporánea en debate, aparece estrechamente vinculada a
la categoría, aun más abarcadora, de identidad. (p. 56)

Analisar o dinamismo das migrações venezuelanas não


é apenas catalogar as problemáticas e desafios que este grande
número de imigrantes trará ao Estado brasileiro, mas serve para
demonstrar que isto poderá ser a criação de oportunidades para o
desenvolvimento econômico e social do Brasil.
Principalmente dos estados que estão recebendo os fluxos,
entretanto, observou-se a tentativa por parte do Estado de inviabilizar
a integração local que seria a alternativa duradoura proposta,
optando-se pela interiorização deste grupo que primeiramente foram
reconhecidos como acolhidos humanitários temporários, mas essa
definição para o ACNUR não seria a mais adequada aos imigrantes
venezuelanos, pois eles são refugiados que se deslocam devido a
grave e generalizada crise econômica.

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Caso dos venezuelanos

O Estado venezuelano foi marcado por crises institucionais


com a existência de uma luta interna pelo controle do Estado,
ultrapassando o interesse social da população (Neves 2010). Mas, foi
com a ascensão de Nicolás Maduro em 2014, que venceu eleições de
maneira um tanto quanto questionáveis, tendo em vista a disparidade
de votos e a não presença de observadores internacionais, teve
início a uma crise institucional que abalou a forma que o mundo via
a democracia venezuelana (Levitsky e Ziblatt 2018).
Porém, foi um desajuste econômico vivido a partir de 2014,
quando a principal fonte econômica venezuelana foi atingida,
tornou-se o estopim para a instalação da crise na economia, criando
o aumento considerável da inflação, vez que a balança econômica
não conseguiu suportar a queda do valor do petróleo. A taxa
inflacionária subiria a cada dia, atingindo valores jamais esperados,
tornando o peso venezuelano desvalorizado de tal forma que a Bolsa
de Valores da Venezuela não conseguiria mais competir frente às
demais (Smilde 2019).
Assim, neste estado de caos econômico que a crise se instalou,
tornando-se uma crise socioeconômica e migratória, sendo a única
saída para grande parte da população o deslocamento massivo para
os países vizinhos. Ou seja, inicialmente migravam para a Colômbia,
que hoje é o maior destino da diáspora venezuelana, porém alguns
tiveram que buscar uma rota para o Brasil, adentrando o território
pelo estado de Roraima (IPEA 2018).
Desta forma, o Brasil foi o quinto maior acolhedor dos
venezuelanos que se deslocaram desde 2015, abrigando, até
dezembro de 2019, mais de 260.000 refugiados, solicitantes de asilo e
imigrantes temporários. Foi através da fronteira do estado de Roraima
que a maioria deles adentrou o país, sendo, portanto, a principal porta
de entrada de venezuelanos no Brasil (ACNUR 2020).

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Diante desse quadro, o Governo Federal, com o apoio do
ACNUR, de outras agências da ONU e de mais de 100 organizações
da sociedade civil, estabeleceu a Operação Acolhida com o intuito
de prestar apoio e assistência humanitária a esses imigrantes
venezuelanos. A Operação Acolhida foi iniciada em abril de 2018,
por meio de três eixos programáticos: 1. Ordenamento de fronteira;
2. Acolhimento; e 3. “Interiorização”, que é a realocação voluntária
de venezuelanos de Roraima para outras cidades para melhores
perspectivas econômicas (ACNUR 2020).
Por meio disso, foi estabelecida em 1º de março de 2018, a
Força Tarefa Logística Humanitária pelo Estado-Maior Conjunto
das Forças Armadas, para que ocorresse por meio do Exército
Brasileiro (Silva e Silva 2019), já experiente nessa modalidade de
operação em decorrência da sua atuação no Haiti e Angola.
Esta operação foi denominada Operação Acolhida que
tem como missão a cooperação com o Governo Federal, o Alto
Comissariado e da agência da ONU, essas OIM e ACNU. Portanto,
com a criação dessa operação, passou-se a acontecer os processos
de interiorização desses imigrantes para as unidades federativas
com o intuito de auxiliar que eles obtivessem melhores condições
de subsistência.
Um dos estados federativos escolhidos para recepcionar
os venezuelanos foi Mato Grosso do Sul, em especial a cidade
de Dourados, que recebeu a maior parte desse grupo, que ocorreu
principalmente em decorrência da oferta de empregos apresentada
pela sociedade civil, Exército brasileiro e pela iniciativa privada.
A justificativa da escolha de Dourados como destino, encontra-
se na quantidade de vagas que a Empresa Seara Alimentos Ltda.,
empregadora local, do ramo de frigorífico, pertencente ao Grupo
JBS S.A. (Silva 2020).
A empresa contatou a liderança da Operação Acolhida para
apresentar o interesse de contratar venezuelanos que desejavam ser
interiorizados de forma voluntária para a cidade. Foi nesse momento
que a sociedade civil passou a atuar na Operação Acolhida (Silva 2019).

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A sociedade civil que se organizou para atender e auxiliar
esse fluxo eram formados inicialmente pela Caritas Diocesana
de Dourados, Igreja Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias
(Mórmons) e Igreja Metodista, que se uniram e criaram o “Projeto
Acolhida”.
Para a interiorização de Dourados-MS foram criadas etapas,
ou seja, se estabeleceu 5 etapas ou grupos de envio a fim de organizar
e amortizar as levas para que ocorresse a absorção desse grupo na
sociedade, possibilitando que a integração social deles fosse mais
efetiva e natural.
De forma geral as cinco etapas apresentam os mesmos
procedimentos, desta forma seguem o padrão de deslocamento
semelhante, saindo de Roraima pelo aeroporto de Boa Vista em
aviões da FAB ou em voos comerciais fretados pela OIM com
destino ao aeroporto de Campo Grande, sempre com a presença de
um representante da OIM ou do ACNUR e militares das Forças
Armadas (Silva 2020). Diante disso, iremos analisar esse contato
intercultural no próximo tópico, apontando elementos e práticas
a serem aplicadas para propiciar uma integração positiva aos
venezuelanos.

A integração social sob a ótica de interculturalidade nas


escolas

Segundo Walsh (2005, p. 45), a interculturalidade pode


ser analisada por diferentes óticas, podendo ser visualizada desde
operações econômicas, contatos sociais e até em intercâmbios
culturais:

A interculturalidad es distinta cuando se refiere a complejas


relaciones, negociaciones e intercambios culturales de múltiples
vías. Busca desarrollar una interrelación equitativa entre

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pueblos, personas, conocimientos, y prácticas culturalmente
diferentes, una interacción que parte del conflicto inherente
en las asimetrías sociales, económicas, políticas y de poder.
(Walsh 2005, p. 45)

Portanto, a análise sob a ótica da interculturalidade promoverá


uma visão ampla, dinâmica e flexível da integração social de
imigrantes, principalmente em sua inserção escolar (Dantas 2012,
p. 110).
Pois, adaptar-se culturalmente a uma nova cultura diversa é
um processo, que na maioria das vezes é doloroso, para compreender
a dinâmica desta adaptação foram criados alguns modelos que
tem como objetivo estabelecer o tempo e processo necessário
para a pessoa assimilar os pontos de diferença de sua cultura com
a nova a ser aprendida, estabelecendo as estratégias necessárias
para superação dos desafios e uma construção construtiva de
enfrentamento (Ward 2004).
Neste ponto são estabelecidos por Ward (2004), três modelos
de adaptação, que são decorrentes do fenômeno da aculturação, que
acontece em uma pessoa que é exposta por um longo período de
tempo a uma cultura diferente de sua natural.
Desta forma, três são os momentos-processos de adaptação:
o primeiro é o do Estresse e Enfrentamento; o segundo é o da
Aprendizagem e o terceiro é o de Identificação Social (Ward 2004).
O primeiro processo do Estresse e Enfrentamento é focado nas
questões afetivas que envolvem a adaptação cultural capazes para
superar o choque cultural advindo do contato com o novo cultural
capaz de superar o choque cultural advindo do contato com o novo.
Bridges (2004, p.  22), afirma que alguma fase pode ser
predominante no processo de adaptação cultural através da
intercultura, porém ele argumenta que ao processo de adaptação
de imigrantes as três fases irão aparecer ao longo do tempo,
sendo independente da situação migratória da pessoa, o quanto o

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ambiente que o acolhe seja positivo, visto que a pessoa passará
necessariamente pelo processo de adaptação.
Neste ponto, três estratégias a serem seguidas pelas pessoas
que servem como apoio aos imigrantes que estão se adaptando à
cultura, estratégias estas que podem ser usadas pela escola que
pretende trabalhar com o viés da interculturalidade: primeiramente
demonstrar preocupação pelos sentimentos e pensamentos da
pessoa, segundo comunicar-se claramente sobre os pontos que irão
acontecer e os aspectos da própria cultura, e por último tentar se
conectar o estudante através do compartilhamento de experiências
(Bridges 2004, p. 23).
Neste ponto, utiliza-se a experiência vivida nas escolas
interculturais de fronteiras (PEIF), onde foi desenvolvido um
programa com o intuito de integrar as populações das fronteiras
do estado de Mato Grosso do Sul, que são com dois países latino-
americanos, Paraguai e Bolívia, levando em consideração a dinâmica
desta região, onde segundo o censo de 2013, eram encontradas quase
14 mil escolas em três níveis de educação, e mais de 2 milhões de
estudantes. E nestas escolas pode ser visualizada uma diversidade
cultural e linguística (Chacarosqui-Torchi e Silva 2014).
Durante a vigência deste programa, uma das escolas
atendida, a escola estadual João Brembatti Calvaso em Ponta Porã,
composta com mais de 80% de estudantes paraguaios, pode ser visto
uma boa integração dos estudantes por meio do ensino intercultural
(Chacarosqui-Torchi e Silva 2014).
Vale pontuar que segundo Dusseu (2016, p. 68), o diálogo
intercultural não pode ser visto apenas como um contato entre
culturas que se encontram de forma antagônica ou apologista,
que buscam pontuar valores pertencentes a cada grupo, mas sim
o dialogo crítico, que envolve inicialmente pessoas de sua própria
cultura, que estão inseridos dentro da mesma “fronteira” cultural e
com os mesmos aspectos decorrentes da “modernidade”.
Que terão a tarefa de entender quais são seus reais
pressupostos e elementos culturais para que após essa visualização

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possam enfrentar as dinâmicas que envolverão o contato com o
outro, sempre com a premissa que ele não é nosso inimigo, mas sim
um novo integrante desse ciclo social (Dussel 2016, p. 68).
Observa-se que o imigrante montará seus pensamentos ao
modo que sua visão de mundo se ajusta para acomodar novos e
velhos valores culturais, normas e comportamentos, resultando em
uma nova identidade cultural.
Desta maneira, podemos afirmar que toda formação cultural
é um processo que está em permanente construção, desconstrução e
reconstrução, que pode ser acelerada por conta dos deslocamentos
imigratórios, os quais permitirão a existência (constante) de contatos
interculturais dinâmicos (Dantas 2012, p. 114).
Evitar que ocorra uma aculturação completa é ajudar
que seja mantida a identificação social do imigrante, que é uma
estrutura cognitiva, a qual consiste no modo em que o indivíduo se
vê diante a sociedade e como é visto por seu grupo, formando assim
estereótipos e até permitindo que exista uma discriminação quanto
à sua identidade cultural.
Porém, vale frisar que, os povos e culturas ao redor do
mundo, que apesar das diferenças existentes, nunca estiveram
isolados de forma integral, existindo, ainda que em um mínimo
grau, trocas culturais, que são necessárias para as evoluções sociais
entre as sociedades.
Lembrando que explorar a cooperação entre os grupos permite
a formação de relacionamentos saudáveis que permitirão o diálogo
e compartilhamento de elementos socioculturais diversos que irão
permear uma transformação social, educacional, cultural e econômica
consistente que impactará de forma positiva na realidade da sociedade
que está aplicando a abordagem intercultural (Romo 2004).
A educação intercultural apresenta formação sul-americana
tradicionalmente aplicada aos grupos indígenas como “educação
indígena” e que pode ser facilmente aplicada em toda América
Latina para diferentes nichos, como, por exemplo, aos imigrantes ou

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refugiados que se encontram acolhidos em outra sociedade latino-
americana, como é o caso dos grupos de venezuelanos que é o alvo
principal de análise deste trabalho (Romo 2004).
Para a concretização de uma educação intercultural, três
atores principais deverão participar ativamente, quais sejam: o
Estado, os imigrantes e a sociedade civil organizada. O Estado será
responsável pela criação de políticas públicas e por repassar verbas
para as escolas colocarem em prática projetos de interculturalidade.
Os imigrantes serão impactados pelas atividades interculturais
(neste caso alunos e seus familiares) e por último a sociedade civil,
pois, conforme já abordado, é o terceiro setor que impulsionará o
Estado para a criação das políticas públicas (Romo 2004).

Aplicação dos conceitos interculturais voltados para a


integração dos venezuelanos no Estado de Mato Grosso do Sul

A imigração pode influir diretamente na identidade cultural


nacional, uma vez que os imigrantes são pessoas que apresentarão
bagagem com suas referências culturais pautadas em suas
experiências sociais e pessoais que foram forjadas desde o seu
nascimento e deslocamento de seu país de origem (Hall 2006).
Referências essas que serão reconstruídas no processo
de integração social dos imigrantes (Hall 2005). O imigrante
enfrentará um processo de readaptação de sua identidade, dinâmico,
envolvendo a sua percepção de quem é, a qual grupo pertence,
quais são seus dilemas, ideais, crenças. Processo esse também que
servirá para seu amadurecimento consciente que observará o local
e a sociedade onde está inserido no momento, onde o outro será seu
novo referencial cultural (Oliveira 2012, pp. 86-87).
Diante isso, é pontual apresentar que a análise da aplicação
dos conceitos interculturais de venezuelanos para fins desse
trabalho realizados por meio da observação in loco, por nossa parte,

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das aulas de português ministradas a esse grupo que aconteciam
nas dependências da igreja Católica Rainha dos Apóstolos, que foi
cedida por meio da Cáritas de Dourados para o Projeto Acolhida,
com o intuito de facilitar o básico do idioma português e também
desenvolver alguns elementos culturais da cidade de Dourados-MS
e do próprio estado do Mato Grosso do Sul.
O material utilizado era a apostila “pode entrar” que
foi compilada pelo Curso Popular Mafalda com apoio do Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e da
Caritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP), como objetivo de
apresentar o português de uma forma clara e simples para imigrantes
adultos.
As aulas eram ministradas conforme a temática de português
como língua de acolhimento proposta pelo professor João Fábio
Sanches, que já é referência nessa temática por conta do curso
Português para Estrangeiros e com vasta experiência como
coordenador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Português para
Estrangeiros da UEMS, trabalhando diretamente com imigrantes
na cidade de Campo Grande-MS, respeitando as competências
sociolinguísticas dos alunos.
Sendo utilizado o apoio do computador, uma vez que
utilizamos também vídeos do curso português do Brasil, e de
músicas brasileiras, as quais os imigrantes além de ouvirem tinham
a oportunidade de opinar e apresentarem músicas venezuelanas que
achassem parecidas.
As aulas ocorriam aos sábados à tarde, das 15 às 17h, horário
em que a maioria dos imigrantes teria para descanso conforme
apresentado pelo Departamento de Recursos Humanos da empresa
Seara Alimentos Ltda. Foi utilizado o método expositivo e, no qual
os imigrantes receberam cadernos, disponibilizados pela Caritas e
pela Cátedra Sergio Vieira de Mello/ ACNUR-UFGD.
Utilizamos dos modelos de interculturalidade durante
as aulas, sendo o principal utilizado, o método DIVA e tal

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desenvolvidos pela AFS/Brasil, com o intuito de fazer com que os
imigrantes apresentassem saídas para as situações que poderiam
ocorrer durante sua estadia no Brasil.
Portanto, na primeira semana de aula, no início de julho,
apenas duas pessoas estiveram presentes na aula, ambos eram da
primeira “fase” da interiorização, estando a quase 4 meses na cidade
e trabalhavam na Seara Alimentos Ltda., eles eram um casal jovem
e sem filhos. Nesta aula, verificamos que eles já apresentavam
domínio básico da língua portuguesa, porém não compreendiam
os elementos culturais brasileiros e tinham dúvidas sobre questões
documentais e de saúde pública.
Na Primeira semana, foram aplicadas as aulas 1 a 3 da
apostila, exibidos alguns vídeos que apresentavam a temática
cultural brasileira como o samba, carnaval, sertanejo e como
estávamos no mês de julho foi apresentado sobre a festa junina e
demais comemorações dessa época.
Eles puderam através do método DIVA, discorrer como
eram as comemorações venezuelanas, como comidas típicas e
quais familiaridades eles encontravam com o Brasil, como meio de
estabelecer um diálogo intercultural.
Esse método ou ferramenta conhecida como DIVA, foi
desenvolvida para ajudar os indivíduos a considerarem perspectivas
múltiplas que poderão aparecer em situações interculturais
desconhecidas até estranhas em um primeiro momento ou ainda
diante circunstâncias ambíguas, onde os alunos deverão Descrever,
Interpretar, Verificar, Avaliar as situações em que estão sendo
expostas (AFS 2020).
Portanto o DIVA. foi projetado para ajudar as pessoas a:
1. Aprender a suspender o julgamento de valor temporariamente e
verificar as percepções antes de fazer uma avaliação ou ação final;
2. Navegar em situações em que eles encontram algo ou alguém
diferente na vida cotidiana para ter interações mais eficazes,
apropriadas e significativas com os outros (AFS 2020).

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Foi combinado que a próxima aula seria prática, onde eles
iriam experimentar como ocorriam as comemorações juninas na
Praça de Dourados, devendo conversar sobre suas impressões sobre
a festa. Então ir até um evento que apresenta a cultura da sociedade
acolhedora de forma mais perceptível, proporciona ao imigrante
vislumbrar como são os comportamentos e os relacionamentos
sociais.
Uma vez que para eles, a mudança para outra cultura (ou
sociedade) colocou em dúvida o seu modo de ser, de pensar, de ver
o mundo e de se relacionar com o próximo, trazendo à tona qual
é sua real identidade. Depois desse questionamento, o imigrante
passa a analisar como os locais se comportam e quais os pontos de
conversão cultural entre eles, permitindo a ele compreender agora
como uma pessoa inserida nessa sociedade (Dantas 2012, p. 115).
Levamos então eles, juntamente com a presença da Fátima
que era uma das voluntárias da Caritas à praça, e passamos alguns
momentos fazendo a observação intercultural. No final eles puderam
comer arepas venezuelanas e tomar tizana que é uma bebida
típica da Venezuela, isso com o intuito de despertar a consciência
intercultural que é possível que as duas culturas convivam de forma
harmoniosa numa sociedade de acolhimento.
Após a aula prática, esse casal foi em mais duas aulas, porém
por decorrência de buscarem melhores condições econômicas e
uma melhor oportunidade de emprego, eles se mudaram para uma
cidade próxima para trabalharem no comércio, pois tinham intuito
de constituírem uma família no Brasil.
Na outra semana, os voluntários da Caritas trouxeram
dois homens para a aula, que iriam receber por meio da reunião
familiar suas esposas e filhos, os quais haviam buscado apoio para a
aquisição de colchões e roupas. Eles eram cunhados, e suas esposas
eram irmãs.
Aplicamos novamente o método DIVA com eles e
ainda realizamos a atividade na qual eles teriam que encenar o
atendimento na Polícia Federal, onde teriam que dialogar com as

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voluntárias da Cáritas que estavam presentes, solicitando a emissão
e/ou a renovação do visto, a atividade foi positiva. Verificamos que
os dois já compreendiam muito bem o português e já conseguiam
estabelecer um diálogo claro no idioma, assim como tinham
conhecimento sobre questões documentais no país.
O conhecimento prévio de português deles foi adquirido
durante o tempo em que estiveram em Boa Vista-RR, pois tiveram
aulas de português e de questões culturais por meio da OIM. Eles
também apresentaram cartilha que continha palavras básicas para a
sobrevivência no Brasil, a qual também foi entregue pela agência.
Como eles haviam sido interiorizados após o primeiro casal, foi
visível a diferença da atuação da OIM nessa etapa de interiorização,
sendo possível aferir as mudanças positivas realizadas.
O que será responsável pela formação da perspectiva da
amplitude da língua, pois em grandes civilizações a linguagem será
responsável por manter as dinâmicas sociais dos indivíduos, desde
questões banais e cotidianas que fazem parte da cultura popular ou
de massa até a comunicação por meio da cultura erudita e científica
e literária.
Neste ponto, como esses imigrantes já haviam recebido um
prévio ensino de português por parte da OIM e estavam empregados,
ou seja, já estavam em contato diário com nacionais, diferentemente
do que ocorreu com o primeiro casal, suas identidades sociais já
estavam modificadas o que consequentemente influía em seu
domínio da língua.
Após a reunião familiar dos dois homens que haviam
comparecido na aula anterior, um deles trouxe sua esposa e filhos
para acompanharem as aulas, como já dito, os homens já estavam
há dois meses em Dourados, eram empregados da Seara Alimentos
Ltda., apresentando pequeno domínio oral da língua portuguesa.
Sendo que o segundo, só teria a reunião familiar na semana seguinte.
É interessante ressaltar que quando uma pessoa se desloca de
seu país de origem e passa a morar em outro país e em outra cultura,

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ela sofrerá uma espécie de ruptura de seu quadro de referências
socioculturais envolvendo seus sentimentos e entendimento sobre
seu local de pertencimento.
Essa ruptura ocorre ao imigrante, pois o ato de imigrar traz
consequências de grande magnitude para suas vidas, que envolvem
múltiplas perdas, como familiares que não o acompanharam,
amigos, a profissão, os ambientes físicos (locais conhecidos)
que irão mudar em sua ausência, uma vez que, sua saída não irá
“paralisar” o decurso de tempo em seu local de origem restando
apenas às memórias sociais, as normas sociais que o imigrante terá
que ajustar em seu novo lar.
A pessoa necessita se adaptar à nova cultura, aprendendo os
novos códigos sociais, pois seus modos e forma de agir aprendidos
em sua cultura de origem não corresponderão ao entorno da nova
sociedade acolhedora. Então, o imigrante passa a ser muito além
de um simples espectador de sua integração social, mas sim o
ator principal para que isso ocorra, pois, todos os dias necessitará
aprender mais sobre a cultura do local onde está morando e também
sobre quem ele realmente é. Lembrando, que a escola é um local
ideal para aplicar essa visão intercultural.
Na outra semana, ocorreu um remanejamento dos turnos dos
esposos, esses pararam de ir às aulas, porém as esposas encontraram
nas aulas uma oportunidade para se distraírem e aprenderem mais
sobre a cultura do Brasil e seu idioma, elas acreditavam que é
importante saber a língua que seus filhos estarão aprendendo na
escola para que pudessem comunicar-se com as professoras dos
mesmos.
Foi requerido para as alunas que realizassem uma redação
reflexiva, que é uma ferramenta de interculturalidade desenvolvida
pelo AFS para ajudar o estudante imigrante a analisar sua experiência
e quais pontos ele acredita que são compatíveis com sua cultura e qual
gostaria de mudar. Ela deve apresentar suas preocupações, expectativas,
pois essa ferramenta irá proporcionar para o imigrante a se visualizar
não apenas como um espectador no processo de integração social, mas
sim um agente de mudanças culturais (AFS 2015).
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Na semana seguinte, essa família teve mais uma reunião
familiar, que dessa vez trouxe a mãe das duas mulheres, duas irmãs,
sendo uma delas grávida, e o esposo da gestante. Elas já estavam
ensinando de forma autônoma o que já haviam aprendido para sua
família e esposos e cooperaram durante toda a aula tirando dúvidas
dos recém-chegados.
Elas nos surpreenderam ao trazer mais uma redação reflexiva
sobre a semana, onde contavam como havia sido reencontrar os
familiares, assim como foi à recepção na igreja, e que haviam nos
encontrado na recepção. Contando também que haviam feito uma
festa com direito a bolo com as cores da Venezuela e arepas.
Elas sempre pediam que fossem confeccionadas tarefas
para que pudessem fazer durante a semana, assim como desafios
interculturais a fim de colocarem em prática o que estavam
aprendendo. É interessante asseverar que o desenvolvimento de
atividades extralinguísticas para imigrantes que acompanhem e
complementem o ato de falar, ou até sua substituição, será positiva
para eles, pois poderá influenciar e fortalecer sua competência para
transmitir e interpretar as mensagens que estão sendo transmitidas
(Coseriu 1992).
Portanto, aplicamos a atividade de redação reflexiva, onde
elas escreveram em língua portuguesa, tudo o que aprenderam
quando realizaram uma compra no supermercado, apresentando as
diferenças e igualdades que elas vieram com a Venezuela, assim
como fizeram um prato típico brasileiro e um venezuelano.
Como era o feriado da independência do Brasil, foi
apresentado também através de um vídeo, a história do país, o que
segundo elas foi muito próxima à história da Venezuela, pois se
tirasse a parte do reino seria igual, discorremos oralmente sobre
como é comemorada a independência na Venezuela.
É interessante apresentar também que, o conceito de imigrar
pode estar relacionado também a uma ideia de transgressão, ou seja,
quando o imigrante sai de seu local de origem se emancipará de sua
identidade cultural originária e passará a formar uma nova a partir

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de suas ideologias e dos elementos culturais externos da sociedade
de acolhimento (Capaverde 2019, p. 24).
Esse movimento pode ser visto como uma abertura que
permitirá o desenvolvimento da sensibilidade imigratória onde os
indivíduos passam a ter uma melhor percepção de sua realidade
versus a realidade do outro (Bernd 2014, p. 348).
Conforme Woodward (2000, p. 76), a imigração é produtora
de identidades plurais que quando entram em contato podem ser
contestadas e esse processo será marcado por desigualdades no
seu desenvolvimento, uma vez que, as diferenças são facilmente
visualizadas quando confrontadas as diferentes identidades
(Woodward 2000).
Portanto, as diferenças depois de visualizadas e confrontadas
são responsáveis em formar uma identidade plural, essa formação
poderá ocorrer através de dois meios, o primeiro a partir de
sistemas simbólicos de representação e o segundo ocorre por meio
da exclusão social. Então esse processo ocorre por meio de relações
sociais marcadas pela diferença, simbólica, social e cultural que
são preestabelecidas de forma classificatória (Woodward 2000,
pp. 39-40).
Na última aula ministrada para esse núcleo familiar, pois na
semana subsequente, todas as mulheres estariam já trabalhando, uma
na Seara Alimentos Ltda., uma em um restaurante e a outra em um
salão de beleza. Todas já estavam apresentando o nivelamento acima
de A2 em Língua Portuguesa, pois já conseguiam se comunicar em
língua portuguesa, compreender elementos culturais brasileiros,
bem como entendiam como acessavam os serviços públicos no país.
Elas realizaram o simulado da prova de proveniência de
português, atingindo pontuação compatível com o nível A2, porém,
não quiseram se inscrever para a realização oficial da prova por
conta de suas atividades laborais se iniciaram na semana seguinte.
Os filhos estavam matriculados na escola com apoio do atendimento
da Cátedra; eles também buscaram com nosso apoio jurídico a
revalidação de títulos acadêmicos e a habilitação brasileira.

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Como referido sobre a matrícula realizada para os filhos das
venezuelanas que frequentavam as aulas, é interessante expor que
um grande número de venezuelanos interiorizados estava na faixa
etária escolar obrigatória. Ou seja, crianças e adolescentes, sendo
necessária a realização de atendimentos com o intuito de realizar
suas matrículas escolares, tendo em vista, a dificuldade do sistema
de matrículas municipal e estadual, pois além de ser realizado
de forma digital, era necessário responder diversas perguntas,
sendo todas em língua portuguesa e sem que fosse ofertada pelo
site a possibilidade de a página ser traduzida de forma precisa em
espanhol.
Mesmo sendo digitais, os sistemas de matrículas são muito
pesados para os aparelhos celulares, e tão pouco é apresentada uma
versão em aplicativo, portanto, é quase impossível ao imigrante
venezuelano que não tem acesso a um computador realizar a matrícula,
precisando assim do atendimento proporcionado pela Cátedra.
Também não foi disponibilizado um mapa que apresentasse
as escolas do município, a fim de facilitar a escolha das escolas
pretendida ou tão pouca uma indicação de qual bairro está localizada
a escola, tornando ainda mais difícil a realização das matrículas
escolares.
Outro ponto que impede a autonomia dos imigrantes para a
realização da matrícula, está no sistema de matrículas do município,
quando exige a numeração do tênis das crianças em apresentar, a
numeração dos Estados Unidos, Brasil e América Latina, o que
dificultou ainda mais aos pais que não estão ainda habituados com
a numeração brasileira.
Dentro das perguntas apresentadas no endereço eletrônico, é
visível a falta de coerência com a atual legislação migratória, pois é
ainda é apresentada a palavra estrangeiro, ou criança estrangeira ao
invés de imigrante ou criança imigrante. O tempo gasto em média
para a realização de cada matrícula foi de aproximadamente 20
minutos, pois as plataformas para a realização das matrículas eram
pesadas e lentas.

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Foram matriculados e colocados nas escolas municipais e
estaduais aproximadamente 20 crianças em dezembro de 2019 e
janeiro de 2020, e mais 10 durante o ano de 2020. Apesar de ser um
número grande de colocações, ainda não é o ideal.
Uma vez que, muitos pais imigrantes não buscaram o
atendimento por diversos motivos, mas os principais são: por
desconhecerem a obrigatoriedade legal de matricularem seus
filhos no Brasil; por acreditarem que não precisam ou não podem
matricular seus filhos durante o período da pandemia; não sabiam
dos atendimentos, ou se sabiam, sabiam se sentiram envergonhados
em buscar o atendimento e; por não conseguirem comunicar-se em
português nas escolas, no momento da confirmação da matrícula
presencial ou por não conseguirem conversar com os professores.

Considerações finais

Foi possível visualizar que os imigrantes que tiveram acesso


ao ensino da língua portuguesa puderam ser mais autônomos,
buscando sempre ajuda e explicação sobre os sistemas brasileiros,
eles conseguem ter acesso mais facilitado aos serviços e órgãos
públicos e também permanecem mais tempo em seus empregos ou
não permanecem muito tempo desempregados.
Eles conseguiram compreender alguns elementos culturais
de forma mais clara e puderam reconhecer as diferenças de sua
cultura originária e ainda estabelecer pontos de interligação cultural
por meio das atividades interculturais aplicadas.
É interessante que o contato entre venezuelanos e a comunidade
sul-mato-grossense seja promovido através de atividades e programas
de interculturalidade consciente, nas quais fosse valorizado o debate e
a conversa entre culturas, a fim de cooperar junto com as comunidades
imigrantes para superação dos choques culturais.

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Permitindo assim que o imigrante consiga atingir sua
autonomia e restabeleça sua vida. Como a experiência aplicada se
deu em um ambiente escolar/aprendizagem verificou ser um local
que propicia o contato cultural e o debate, assim como já ocorreu
nas escolas interculturais de fronteira para os paraguaios.
Portanto, existindo um ambiente de contato cultural direito
para ambos os atores, que utilizou da troca intercultural para existir,
pois ao mesmo tempo em que os venezuelanos aprenderam sobre
as festas típicas brasileiras (como por exemplo, que roupa utilizar,
quais comidas são consumidas tradicionalmente, as relações
interpessoais que ocorriam diante seus olhos), a sociedade civil que
ora ensinava ora aprendia sobre a Venezuela, suas comidas típicas,
seus modos e cultura.
Esse contato permite também para ambos enxergar que o
outro está tão próximo, é parecido, familiar e que suas diferenças
não podem ser meios de estranhamento ou exclusão, mas sim de
aprendizagem e inclusão que irá enriquecer nosso dia a dia por
meio da interculturalidade que é produto desses contatos, nos
aproximando, pois afinal, somos todos seres humanos.
Portanto, promover uma educação intercultural não é apenas
cooperar com uma adaptação linguística para a compreensão da
língua portuguesa, mas sim possibilitar que o imigrante encontre
um ambiente e espaço aberto para sua integração social calcada
na reflexão de múltiplos significados a respeito dos fluxos e
cristalizações e jogos de poder implicados na sociedade.
Desta maneira, é possível afirmar que a utilização de uma
ótica intercultural para a análise da integração social de imigrantes
venezuelanos interiorizados na cidade de Dourados-MS é necessária
para a criação de políticas públicas voltadas para a assistência desse
grupo específico, que precisará superar as diferenças culturais
existentes de forma saudável, passando a aprender e ensinar sobre o
que é ser um imigrante e ao mesmo tempo fazer parte da sociedade
douradense.

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É possível afirmar que o estado do Mato Grosso do Sul, em
especial a cidade de Dourados, apresenta a estrutura compatível para
a promoção da integração social destes venezuelanos interiorizados,
ou seja, existindo um sistema refúgio para o apoio aos imigrantes e
cooperação entre a sociedade civil e o governo, apresentando desde
as estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais que envolvem
a integração social.
Analisamos e comparamos em nossos estudos como a
dinâmica das Escolas Interculturais de Fronteiras poderia ser
adotada para a formação de um novo programa voltado para os
grupos de venezuelanos, uma vez que, essas escolas apresentaram
grande sucesso durante sua vigência.
Verificamos que existe a possibilidade de utilizar as
atividades e as políticas aplicadas na PEIF para esse novo grupo,
pois foi desenvolvida neste programa a integração das populações
das fronteiras do estado de Mato Grosso do Sul, que são com
dois países latino-americanos, Paraguai e Bolívia, levando em
consideração a dinâmica desta região, onde segundo o censo de
2013, eram encontradas quase 14 mil escolas em três níveis de
educação, e mais de 2 milhões de estudantes. E nestas escolas pode
ser visualizada uma diversidade cultural e linguística (Chacarosqui-
Torchi e Silva 2014, p. 34).
Lembrando sempre que o imigrante está apto para um novo
começo, onde ela está mais aberta para aceitar a interculturalidade,
pois seus sentimentos estariam mais estáveis, fase onde é capaz de
abraçar uma nova informação cultural, é neste ponto que a escola
deverá apresentar a abertura para o contato intercultural, onde as
informações das culturas conflitantes devem ser dispostas através
do ensino da intercultura.
A inserção da metodologia de trabalho da observação
participante, ou seja, permitiu a visualização da problematização do
tema de forma mais próxima, trazendo em si a relação com o que é
comum ao grupo analisado e o que ele vivencia em seu campo de
trabalho e vida, substituindo os tradicionais modelos de transmissão
do conhecimento.

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Essa observação ocorreu em dois momentos distintos,
primeiramente durante as aulas ministradas para imigrantes
aos sábados, onde adotamos em nossa experiência o método
ou ferramenta conhecida como DIVA, para compreender as
perspectivas múltiplas que poderiam aparecer nas situações
interculturais (Descrever Interpretar, Verificar, Avaliar as situações
em que estão sendo expostas).
O segundo momento aconteceu durante os atendimentos
realizados aos imigrantes, para regularização migratória e
colocação nas redes estaduais e municipais de ensino, usamos de
diálogos com intervenções breves e pontuais que são suficientes
para o preenchimento da ficha de atendimento, buscando sempre
compreender e respeitar a cultura do indivíduo e estabelecendo
conversas interculturais que acolhem.
É o processo de ensinar aprendendo ou aprender ensinando,
ou seja, permitir a troca harmoniosa dos elementos interculturais,
revirando as antigas “certezas” e exigindo melhor capacitação dos
chamados a serem “professores” no processo, que neste trabalho
acreditamos que esse papel cabe à sociedade civil, que é e sempre
será o maior ator para a integração social de imigrantes.

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O ESTADO DE NEPANTLA POR GLORIA
EVANGELINA ANZALDÚA

Carlos Vinícius da Silva Figueiredo


Vera Lucia Harabagi Hanna

Nepantla is kind of an elaboration of Borderlands. I use


nepantla to talk about the creative act, I use it to talk
about the construction of identity.1
(Anzaldúa apud Keating 2000, p. 176)
A epígrafe retirada do livro Interviews/Entrevistas (2000),
editado por AnaLouise Keating, materializa nossa reflexão sobre o
projeto intelectual de Anzaldúa, contribuindo para reflexões sobre
criatividade, construção da identidade fronteiriça e os desafios de se
viver nas sombras.
Inicialmente, o livro em questão Interview/Entrevistas
é composto por entrevistas realizadas com Anzaldúa, com a
participação de diferentes pesquisadores. Nele, Anzaldúa passa a

1. Tradução livre: Nepantla é uma espécie de elaboração de Borderlands. Eu


uso Nepantla para falar sobre o ato criativo, eu o uso para falar sobre a
construção da identidade, para descrever uma função da mente. [...] Com
Nepantla a conexão com o mundo espiritual é mais pronunciada como
é a conexão com o mundo após a morte, a espaços psíquicos. Tem uma
ressonância mais sobrenatural, psíquica, espiritual e indígena.

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ser a narradora/entrevistada que elenca pensamentos e conceitos
de acordo com os temas escolhidos, e esses temas abordam desde
questões de gênero ao processo de escrita da autora. A análise deste
artigo se atém ao conceito de nepantla e sua importância para a
produção e reflexão do livro Borderlands/La Frontera (1987).
Ao afirmar que “Nepantla is kind of an elaboration
of Borderlands”, Anzaldúa sinaliza a conexão dos conceitos
Nepantla/Borderlands. Nesse sentido, constata-se que a produção
de Borderlands está atravessada pela amplitude de Nepantla,
inicialmente por sua conexão com espiritual, supernatural e herança
indígena que são observadas durante toda a narrativa de Borderlands
e, por extensão, também são tematizados nos poemas.
Segundo Anzaldúa, o conceito de Nepantla amplia o conceito
de “Borderlands”2. Em uma das entrevistas realizada por AnaLouise
Keating, ao ser questionada sobre a metáfora de “Borderlands”,
Anzaldúa afirma que:

Sí. But I find people using metaphors such as “Borderlands” in


a more limited sense than I had meant it, so to expand on the
psychic and emotional borderlands I’m now using “nepantla”.
With nepantla the connection to the spirit world is more
pronounced as is the connection to the world after death, to
psychic spaces. It has a more spiritual, psychic supernatural,
and indigenous resonance. (Anzaldúa apud Keating 2000,
p. 176)3

2. É oportuno rememorar o que Anzaldúa aponta ao diferenciar o conceito


de Borderlands com b (minúsculo) ou B (maiúsculo). Segundo a autora:
“Borderlands with a small b is the actual southwest borderlands or any
other borderlands between two cultures, but when I use the capital B it’s
a metaphor for processes of many things: psychological, physical, mental”
(Anzaldúa apud Keating 2000, p. 176).
3. Tradução livre: Sim. Mas eu encontro pessoas usando metáforas como
“Borderlands” em um sentido mais limitado do que eu tinha pensado, então para
expandir as fronteiras psíquica e emocional eu estou usando agora “nepantla”.
Com nepantla a conexão com o mundo espiritual é mais pronunciada, a exemplo

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Nepantla é uma palavra de origem Nahuat que significa em
situação de “entre-lugar”, contexto no qual os Astecas se viram, no
século XVI, entre a sabedoria dos anciãos e a contínua colonização
espanhola. Para Anzaldúa, “Nepantla is a Nahuatl term meaning ‘el
lugar entre medio’, el lugar entre medio de todos los lugares, the
space in-between” (Anzaldúa apud Keating 2000, p. 238).
Ainda segundo Anzaldúa, nepantla é uma maneira de ler o
mundo. Em entrevista concedida a Karin Ikas (2012), a escritora
chicanaafirma que: “Nepantla is a stage that women and men, and
whoever is willing to change into a new person and further grow
and develop, go through.” Nesse sentido, o conceito é articulado
como um processo de escrita, é um dos estágios da escrita, o estágio
no qual você tem todas as ideias, todas as imagens, sentenças e
parágrafos, e onde você tenta organizar tudo em um texto, uma
história ou qualquer coisa que seja caótica, conclui a autora.
Ao definir Nepantla como entre-lugar, Anzaldúa possibilita
trazer para o debate as contribuições de Mignolo sobre o tema.
Segundo Walter Mignolo em seu texto “Introduction: from cross-
genealogies and subaltern knowledges to Nepantla”, tal conceito
pode ser entendido da seguinte forma:

The Nepantla notion, from the sixteenth to the twentieth


century, inscribed and continues to inscribe in the history of
the modern colonial world the changing borders of colonial
expansion, the double side of modernity/coloniality. […]
Nepantla, finally and as the story of its emergence indicates,
links the geohistorical with the epistemic with the subjective,
knowledge with ethnicity, sexuality, gender, and nationality in
power relations.4 (Mignolo apud Moreiras 2000, p. 2)

da conexão com o mundo após a morte, aos espaços psíquicos. Ele tem uma
ressonância mais espiritual, psíquico, sobrenatural e indígena.
4. Tradução livre: A noção de Nepantla, a partir do século XVI ao século
XX, se inscreve e continua a se inscrever na história do mundo moderno
colonial nas alterações das fronteiras de expansão colonial, a dupla face

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Mignolo afirma que o entre-lugar instaurado em Nepantla
não é o lugar feliz no meio, mas se refere a uma questão geral de
conhecimento e poder. O tipo das relações de poder, inscritos em
Nepantla, são as relações de poder que selam a modernidade e o
que está inerente a ela, nominada, colonialidade.5 Nesse sentido,
contribui para a discussão o que Anzaldúa afirma em uma de suas
entrevistas: “I describe our struggle as anticolonial because the
dominant culture is still colonizing our minds by giving us all these
identities that we didn’t choose!”6 (Anzaldúa apud Keating 2000,
p. 238). Observa-se, nas palavras de Anzaldúa, a necessidade de
lutar contra esta colonialidade apontada por Mignolo, mesmo que
essa limiaridade de entre-lugares seja uma linha tênue, Anzaldúa
procura mostrar em Borderlands que se trata de um processo de
transição entre os lugares e que os seres podem com o tempo
atravessá-los e entenderem sobre sua formação e cultura.
Segundo Keating (2005), ao analisar o conceito de Nepantla
pela perspectiva de Anzaldúa: “in-between space-indicates
temporal, spatial, psychic, and/or intelectual point(s) of liminality
and potencial transformation”7 (Keating 2005, p. 1). Continuando
com as reflexões da pesquisadora estadunidense:

da modernidade/colonialidade. [...] Nepantla, finalmente, como a história


de seu surgimento indica, vincula o geohistórico com o epistêmico do
subjetivo, o conhecimento com a etnia, sexualidade, gênero e nacionalidade
nas relações de poder.
5. As reflexões propostas por Walter Mignolo utilizadas neste fragmento
foram retiradas da revista Nepantla: views from the South, publicada pela
Duke University no ano 2000, como parte das ações organizadas pelo Grupo
Latino-Americano de estudos da subalternidade.
6. Tradução livre: Eu descrevo nossa luta como anticolonial porque a cultura
dominante ainda está colonizando nossas mentes, dando-nos todas essas
identidades que não escolhemos.
7. Tradução livre: o espaço do entre-lugar refere-se a temporal, espacial,
psíquico e / ou ponto de intelectual (s) de liminaridade e transformação
potencial.

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Some people who experience these nepantla states become what
Anzaldúa calls “nepantleras”: mediators, “in-betweeners”,
“those who facilitate passages between worlds”, “(Un)natural
bridges”. “Nepantlera” is a word Anzaldúa coined to describe
threshold people: those who live within and among multiple
worlds, and develop what Anzaldúa describes […] as a
“perspective from the cracks”.8 (Keating 2005, pp. 1-2)

De acordo com Keating (2005), Anzaldúa foi uma


nepantlera, “Ella era una nepantlera”, por toda sua vida Anzaldúa
se movimentou, mesmo que por muitas vezes de forma conflituosa,
por e entre mundos diversos, a exemplo da política, pessoal e
profissional. A exemplo de como se definia “Chicana tejana
feminist-dyke-patlachepoet, fictionwriter, and cultural theorist”,
Anzaldúa participou de mundos divergentes/distintos, contudo, não
se fixou em algum em específico. Acrescente-se que ela também
conviveu com o mundo da academia, arte e publicidade, espaços
privados da família, espíritos e amigos, também às comunidades
Chican@s, Latin@s, feministas, queer, U.S. women of colors,
ativistas espirituais e outras ações sociais progressistas.
Destaca-se, também, que Anzaldúa se abriu para múltiplos
riscos e feridas em potencial, a exemplo de isolação, segregação,
desentendimentos, rejeição e acusação de deslealdade. Nesse
sentido, Keating (2005) afirma que, já em “La Prieta”, a primeira
auto-história de Anzaldúa, ela reconhece as diferentes formas de
alienação que enfrentou em suas interações com os Mexicanos
Americanos e Chicanos, outras pessoas de cor, feministas, lésbicas

8. Tradução livre: Algumas pessoas que experimentam esses estados de


Nepantla se tornamo que Anzaldúa chama de “nepantleras”: mediadores,
“in-betweeners”, “aqueles que facilitam passagens entre mundos” (“Pontes
não naturais”). “Nepantlera” é uma palavra cunhada por Anzaldúa
para descrever pessoas em limiares: aqueles que vivem dentro e entre
vários mundos, e desenvolvem o que Anzaldúa descreve [...] como uma
“perspectiva a partir das rachaduras”.

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e homens gays, mesmo que recusasse a romper seus laços com
qualquer um desses grupos.9
O engajamento intelectual e de vida, sob a perspectiva
social de sua escrita, materializou a figura da nepantlera em Gloria
Anzaldúa, relação essa intrínseca a seus atos e produção. Ainda em
uma das entrevistas realizadas, Anzaldúa enfatiza:

I am a Wind-swayed bridge, a crossroads inhabited by


whirlwind. Gloria the facilitator, Gloria the mediator, straddling
the walls between abysses. “Your allegiance is to La Raza,
the Chicano movement,” say the members of my race. “Your
allegiance is to the Third World,” say my Black and Asian
friends. “Your allegiance is to your gender, to women,” say the
feminists. Then there’s my allegiance to the Gay movement, to
the socialist revolution, to the New Age, to magic and occult.
And there’s my affinity to literature, to the world of the artist.
What am I? A third world lesbian feminist with Marxist and
mystic learnings. They would chop me up into little fragments
and tag each piece with a label.10 (Keating 2005, pp. 2-3)

9. “La Prieta”, her early autohistoria, she acknowledges the many forms of
alienation she has experienced in her interactions with Mexican Americans
and Chicanos, other people of colors, feminists, lesbians, and gay men, yet
refuses to sever her ties with any of these groups (Keating 2005, p. 2).
10. Tradução livre: Eu sou uma ponte balançada pelo vento, uma encruzilhada
habitada por turbilhão. Gloria, a facilitadora, Glória, a mediadora, estendida
sobre as paredes entre abismos. “Sua lealdade é para La Raza, o movimento
Chicano”, dizem os membros da minha raça. “Sua lealdade é para o Terceiro
Mundo”, dizem meus amigos negros e asiáticos. “Sua fidelidade é ao seu
gênero, às mulheres”, dizem as feministas. Então há minha fidelidade ao
movimento Gay, à revolução socialista, à Nova Era, à magia e ao oculto. E
há minha afinidade com a literatura, com o mundo do artista. O que eu sou?
Uma feminista lésbica do terceiro mundo com aprendizagens marxistas
e místicas. Eles iriam cortar-me em pequenos fragmentos e marcar cada
pedaço comum rótulo.

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Como se pode observar, todos esses diferentes mundos se
fizeram presentes na formação de Anzaldúa e, por extensão, estão
presentes em sua escrita e perspectivas teóricas. Observa-se, nessa
entrevista, um “eu” em extrema tensão com os diferentes “eus”
que Anzaldúa se obriga a compreender e atender em sua produção.
Contudo, entende-se aqui que não se trata de um conflito identitário,
mas, sim, uma grande participação em diferentes grupos que, ao longo
da vida, fizeram parte da construção da escritora chicana nepantlera
lésbica Gloria Anzaldúa. Destaca-se, dessa passagem, a construção
que Anzaldúa faz ao seu respeito, referindo-se como “A third world
lesbian feminist with Marxist and mystic learning.” Tal definição nos
diz muito sobre o contexto e posicionamento crítico da escritora, pois,
ao mencionar ser uma lésbica de terceiro mundo, deixa de lado o fato
de ter nascido no lado norte da fronteira e ter, em seus documentos,
a nacionalidade americana. Soma-se a essa informação a união
dos pensamentos marxistas com sua herança indígena, fortemente
presente em sua escrita. Nesse sentido, para Keating:

Her movements entre mundos influenced the projects she


adopted, the theories she develop inclusionary multicultural
alliances for social justice. Her words challenge readers to
reexamine and perhaps change our perspectives; her words
invite us to adopt broader, larger, deeper modes of seeing and
responding.11 (Keating 2005, p. 2)

Corroboram, com essa discussão, as palavras de Zulma Y.


Méndez em seu texto “Gloria y yo: Writing silence and the search
for the fronteriza voice”, ao apresentar de forma biográfica a auto-
história de Anzaldúa, constituindo-se na história de muitos outros,

11. Tradução livre: Seus movimentos entre mundos influenciaram os projetos


que ela adotou, as teorias que desenvolve alianças multiculturais inclusivas
para a justiça social. Suas palavras desafiam os leitores a reexaminar e
talvez a mudar nossas perspectivas; Suas palavras nos convidam a adotar
modos mais amplos, mais amplos e mais profundos de ver e responder.

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pois cumpriu seu papel de mediadora, de facilitadora, de uma
verdadeira nepantlera:

We know Gloria. We know of her travel. Her coming


and goings, her crossings back and forth. Weknowshe’s a
borderwoman del otro lado: texana-mexicana y maricona. Ni
de aquí ni de allá: “A veces no soy nada ni nadie pero hasta
cuando no lo soy, lo soy.” Like ours, hers is la tierra de nadie.
And it could be that we are nobody but she helped us see how
in being nadie we are somebody, and we are together, and our
nadieness keeps us together, and together we are somebody,
we are Juárez y yo, we are frontera.12 (Méndez apud Keating
2005, p. 15)

O texto de Méndez retrata o quanto Anzaldúa representou os


sujeitos que habitam a fronteira. A união representada pelo conceito
de ser “nadie” denota o sentimento subalterno dos habitantes da
fronteira. Contudo, ao pensar que todos são “nadie”, todos possuem
algo em comum, e essa ação em comum se torna a grande força que
os une, que os mantém juntos e os fazem fortes para continuar a
luta e constituírem a identidade da fronteira. Não obstante, analisa-
se que, ao contrastar a biografia de Anzaldúa com sua herança
mexicana-americana, a exemplo do que é apresentado por Méndez,
“We know she’s a border woman del otro lado texana-mexicana
maricona”,13 Anzaldúa sempre se dispôs a dialogar com os dois

12. Tradução livre: Conhecemos a Glória. Sabemos de sua viagem. Seu ir e vir,
seus cruzamentos para frente e para trás. Sabemos que ela é uma mulher da
fronteira, do outro lado: texana-mexicana e lésbica. Nem daqui nem de lá:
“Às vezes eu não sou nada e ninguém, mas mesmo quando eu não sou, eu
sou.” Como o nosso, o dela é a terra de ninguém. E pode ser que nós sejamos
ninguém, mas ela nos ajudou a ver que quando não somos nada, somos
alguém, e estamos juntos, e o nosso nada nos mantém juntos, e juntos somos
alguém, nós somos Juárez e eu, nós somos a fronteira.
13. Tradução livre: Sabemos que ela é uma mulher da fronteira, do outro lado:
texana-mexicana e lésbica.

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lados da fronteira, mesmo sabendo/sofrendo com a rotulação
por ter nascido “del otro lado”. Como apresentado, Anzaldúa se
posicionou simultaneamente dentro e fora de muitos grupos e tinha
grande resistência a rotulações, estereótipos e divisões arbitrárias,
pois buscava sempre a criação de alianças e espaços de inovação
onde as conexões pudessem acontecer.
Afirma-se, dessa forma, que Anzaldúa foi uma nepantlera.
E, enquanto nepantlera, ela foi uma espécie única de trabalhadora
visionária da cultura que auxiliava na travessia entre mundos diversos.
Essa travessia expôs as rachaduras que compõem um mundo não
homogêneo e facilmente dominado. Segundo Keating (2006):

Nepantleras are threshold people: they move within and


among multiple, often conflicting, worlds and refuse to align
themselves exclusively with any single individual, group, or
belief system. This refusal is not easy; nepantleras must be
willing to open themselves to personal risks and potential
woundings which include, but are not limited to, self-division,
isolation, misunderstanding, rejection, and accusations
of disloyalty. Yet the risk-taking has its own rewards, for
nepantleras use their movements among divergent worlds to
develop innovative, potentially transformative perspectives.
They respect the differences within and among the diverse
groups and, simultaneously, posit commonalities.14 (Keating
2006, p. 6)

14. Tradução livre: Nepantleras são pessoas que estão no limite: elas se movem
dentro e entre mundos múltiplos, conflitantes, muitas vezes se recusam a
se alinhar a um único grupo ou sistema de crenças. Esta recusa não é fácil;
nepantlaras devem estar dispostas a abrir-se a riscos e potenciais ferimentos
que incluem, mas não estão limitados, a auto divisão, o isolamento, a
incompreensão, a rejeição e acusações de deslealdade. No entanto, a tomada
de riscos tem suas próprias recompensas para as nepantleras, o movimento
entre mundos divergentes permite a criação de produtos inovadores,
perspectivas potencialmente transformadoras. Elas respeitam as diferenças
dentro e entre os diversos grupos e, simultaneamente, postulam os comuns.

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Diante disso, continuando o diálogo com Keating (2006),
viver entre duas culturas resulta em ver o mundo de duas maneiras,
primeiro pela perspectiva de uma cultura e, depois, pela perspectiva
da outra, criando um entre-lugar que não se adequa às limitações
e divisões postas pela contemporaneidade. Na esteira de Anzaldúa
(2006), a partir do entre-lugar de nepantla, pode-se ver além da
ficção da monocultura, do mito da superioridade das raças brancas.
E, talvez, se possa ver além do mito da ética cultural da inferioridade
das mulheres.
Observa-se, nesse sentido, que Nepantla-como processo,
limiaridade e mudança, ocorre durante muitos estágios de transição
na vida e pode ser usado para descrever uma variedade de conceitos
relacionados a identidade e epistemologia, a exemplo de quando
Anzaldúa associa nepantla a identidade, como pode ser observado
no livro Interviews/Entrevistas. Segundo Anzaldúa:

I see the mestiza as a geography of selves-of different bordering


countries-who stands at the threshold of two or more worlds
and negotiates the cracks between the worlds. La artista is the
mediator between various communities in the “normal” worlds
and nepantla in the “other” worlds.15 (Anzaldúa apud Keating
2000, p. 268)

Acrescente-se a esse pensamento de entre-mundos, a


situação da mulher que foi forjada para se entender como adorno
nesse mundo “normal”, conforme apontado pela autora chicana. O
estado de nepantla obriga as nepantleras a se movimentarem entre
as culturas por questões de sobrevivência e, também, de adaptação
de suas identidades no mundo comandado pelo poder masculino. Ao
evidenciar essas rachaduras que brotam desse roçar entre mundos,

15. Tradução livre: Eu vejo a mestiça como uma geografia de diferentes eus de
países que fazem fronteira no limiar de dois ou mais mundos e negocia as
rachaduras entre eles. O artista é o mediador entre várias comunidades em
um mundo “normal” e a Nepantla nos “outros” mundos.

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Anzaldúa evidencia, ou melhor, expõe os outros mundos que não
àqueles pensados pela hegemonia branca; trazendo ao debate os
outros seres que transitam por esses lugares.
Ainda segundo Anzaldúa:

Those of us who live skirting otros mundos, other groups, in


this in-between state I call nepantla have a unique perspective.
We notice the breaches in feminism, the rifts in Raza studies,
the breaks in our disciplines, the splits in this country. These
cracks show the flaws in our cultures, the faults in our pictures
of reality. The perspective from cracks gives us different ways
of defining the self, of defining group identity.16 (Anzaldúa
apud Keating 2005, p. 1)

As rachaduras “cracks”, evidenciadas no fragmento do


texto de Anzaldúa, revelam a dificuldade de se estabelecer espaços
homogêneos. Nesse sentido, observa-se que a formação de uma
identidade cultural fronteiriça se dá em meio às diversas rachaduras
que conformam uma infinidade de experiências, apropriações e
trocas entre os seres que compõem a fronteira. A metáfora utilizada
por Anzaldúa nos faz refletir sobre o quanto a multiplicidade de
ideias e diferenças nos faz mais fortes, pois, por essa perspectiva,
somos integrantes de um grande sistema composto por muitas
rachaduras.
Sendo assim, entende-se que as diferentes culturas estão
expostas nessas rachaduras, originando os entre-lugares que
compõem a identidade cultural dos seres fronteiriços. Assim sendo,

16. Tradução livre: Aqueles de nós que vivem contornando outros mundos,
outros grupos, neste estado intermediário eu chamo Nepantla tem uma
perspectiva única. Notamos as brechas no feminismo, as fendas em estudos
de Raça, as quebras nas nossas disciplinas, as divisões no país. Estas fissuras
mostram as falhas em nossas culturas, as falhas em nossos quadros da
realidade. A perspectiva a partir das rachaduras nos dá diferentes formas de
definir o eu, de definir a identidade de grupo.

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assevera-se que o livro Borderlands se configura como uma narrativa
de vozes que representam as rachaduras expostas por Anzaldúa.
Rachaduras essas que dentro da perspectiva do dominante não são
fáceis de serem vistas; contudo, para os seres subalternos que às
compõem se tornam abismos com o passar do tempo.
Contribui, para esse diálogo, a afirmação de Hawley
(2001), segundo o pesquisador ao se referir ao engajamento de
Anzaldúa, constata-se que sua questão pedagógica perene está no
contra-conhecimento, ação, essa, que possibilita o repensar, ou
seja, enxergar as rachaduras. Para o autor: “Counterknowledge
encourages self-reflection and awereness, enabling students to be
open and welcoming to new ideas. There must be an opening, a
gate, a ‘rajadura-a crack between worlds’, where interfaces occur,
she theorizes”17 (Hawley 2001, p. 30).
Infere-se, também, nessa metáfora, que uma base lisa e
sem desníveis expõe uma superfície fácil de ser controlada. Ou
seja, ao contrastar com uma base composta por sinuosidades e
espaços, observa-se uma condição que exigirá diferentes formas
de atuação para atendê-la ou dominá-la. Nesse sentido, ao ler a
obra Borderlands/La Frontera conscientes da representação dessas
rachaduras como componentes da identidade do povo chicano,
contraposta à identidade estadunidense, entende-se o quanto
Anzaldúa buscava expor essa fragilidade.
Na esteira do que foi proposto por Hawley (2001), concorda-
se que a identificação das rachaduras também pode ser lida como
movimento que abre espaço para outras ideias, concepções e teorias
nascidas na contemporaneidade. O que nos chama a atenção é a
capacidade da Anzaldúa produzir teoria a partir de uma visão
simples da vida onde os (des)encontros acontecem.

17. Tradução livre: O contra conhecimento incentiva a autorreflexão e a


consciência, permitindo que estudantes estejam abertos e acolham novas
ideias. Deve haver uma abertura, uma porta, uma rachadura entre mundos’,
onde ocorrem as interfaces, ela teoriza.

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Para materializar o discutido até aqui, recorre-se aos
arquivos de Anzaldúa no momento em que ela discute o conceito de
mestiçagem e nepantla:

Figura 1

NEPANTLA. Fonte: Benson Latin American Collection, University of Texas


Libraries, the University of Texas at Austin. Gloria Evangelina Anzaldúa Papers
1942-2004.

Observa-se, na imagem, a referência de Anzaldúa acerca


dos aspectos multiculturais que se formam entre uma cultura ou
entre várias outras, dentro de um próprio grupo. A mistura que se
configura dentro dos espaços das rachaduras destaca as relações
entre os grupos que trocam posições para a formação de uma “nova”
cultura. Segundo Anzaldúa:

With the nepantla paradigm I try to theorize unarticulated


dimensions of the experience of mestizas living in between
overlapping and layered spaces of different cultures and social
and geographic locations, of events and realities-psychological,
sociological, political, spiritual, historical, creative, imagined. I
see the mestiza as a geography of selves-of different bordering
countries-who stands at the threshold of two or more worlds

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and negotiates the cracks between the worlds.18 (Anzaldúa
2000, p. 268)

Ressalta-se a ampliação da discussão de Anzaldúa quando ela


aponta que suas reflexões podem contemplar as diferentes fronteiras
de outros países, estabelecendo uma composição contextual de
dimensões diversas para a representação do “eu”, irrestrito às
barreiras postas pelas fronteiras, mas que leva em consideração as
experiências que compõem a vida das pessoas.
Soma-se a esse tema a seguinte afirmação de Anzaldúa,
encontrada em seus arquivos: “Nepantla challenges the notion of what
is reality, what is history, what is art, what are legitimate contents for
artwork, what is culture. It throws into question definitions of culture
and of art and the master narratives supporting art”.19 Essa afirmação
nos desafia a refletir sobre a realidade e todo o conceito de verdade
que nos é estabelecido pelo poder hegemônico, dentro do contexto
onde as relações de poder estão subsidiadas pelo capital e pelo poder
masculino. O texto oportuniza o debate sobre a legitimidade daquilo
que é apresentado como cultura e identidade, temas que são tomados
como “verdades” imutáveis. Ao ampliar a discussão para a formação
da identidade, apresenta-se um dos arquivos produzidos por Anzaldúa
para consubstanciar nossa análise.

18. Tradução livre: Com o paradigma nepantla, tento teorizar as dimensões


não articuladas da experiência de mestizas entre espaços sobrepostos e
em camadas de diferentes culturas e localizações sociais e geográficas,
de eventos e realidades psicológicas, sociológicas, políticas, espirituais,
históricas, criativas, imaginadas. Vejo a mestiza como uma geografia de si
mesmos - de países fronteiriços diferentes - que está no limiar de dois ou
mais mundos e negocia as fendas entre os mundos.
19. Tradução livre: Nepantla desafia a noção do que é a realidade, o que é
história, o que é arte, o que são conteúdos legítimos para a obra, o que
é cultura. Ele questiona as definições de cultura e da arte, das narrativas
mestras que dão suporte a arte. Fonte: Anzaldúa’s Archive at Nettie Lee
Benson Library-Latin American Collection, Gloria Anzaldúa Papers 1942-
2004, University of Texas, Austin, EUA.

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Figura 2

Nepantla draft: Box 57. Folder 6. Fonte: The Nettie Lee Benson Latin American
Collection, University of Texas Libraries, the University of Texas at Austin.
Gloria Evangelina Anzaldúa Papers 1942-2004.

O arquivo de Anzaldúa materializa de maneira didática


seu pensamento de construção de identidade, construção essa que
se transforma através do tempo e se reconfigura de acordo com
as experiências vividas. Ao desenhar a casa com as seguintes
palavras ao seu lado “identity always under construction” e acima
do corpo descrito como “old ID”, infere-se que Anzaldúa propõe
que as relações identitárias são somadas e constituídas a partir de
sua herança, do seu lar, de sua referência familiar. Com o passar
do tempo, representado pela escrita de “luna” e pela composição
de um círculo com várias partes de um corpo acompanhado das
palavras “nepantla, breaking down, taking apart, dismember”
materializam a composição das múltiplas formações, experiências
e conexões que podem compor um novo sujeito. Esse sujeito,
reconstruído e composto pelas partes ora descritas no círculo,
é materializado ao final do arquivo como a representação dessa
identidade multifacetada, multiconectada que compõe os seres na
contemporaneidade.

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Enfatiza-se que a utilização das imagens dentro do contexto
de produção de Anzaldúa se tornou parte integrante e ativa de
sua forma de transmitir seus pensamentos, suas angústias e
questionamentos sobre a fronteira e identidade chicana. Dessa
forma, recorre-se mais uma vez a obra Borderlands para dialogar
com essa pesquisa, segundo a autora:

I write the myths in me, the myths I am, the myths


I want to become. The word, the image and the
feeling have a palpable energy, a kind of power.
Con imágenes domo mi miedo, cruzo los abismos
que tengo por dentro. Con palabras me hago piedra,
pájaro, puente de serpientes arrastrando a ras del
suelo todo lo que soy, todo lo que algún día seré.20
(Anzaldúa 2012, p. 93)

Assevera-se que, ao materializar seus pensamentos em


imagens, Anzaldúa conecta o mundo do inconsciente ao real, dando
oportunidade para que mais pessoas tenham acesso ao seu projeto
intelectual e de empoderamento da cultura e identidade chicana.
Dessa maneira, entende-se que, nesse momento, a autora simboliza
o papel de nepantlera e faz de sua história parte inerente à vida e
história de muitos outros.
Assim, Borderlands materializa-se em um texto plural,
propulsor de debates e reflexões que fazem com que a mulher latina
possa ser representada. A figura da mulher Anzaldúa, que lutou para
que outras mulheres pudessem encontrar o caminho para apresentar
seus pensamentos, cumpre a missão de se fazer presente para além
dos espaços fronteiriços. Anzaldúa expõe a necessidade de revisão

20. Tradução livre: Eu escrevo os mitos em mim, os mitos que eu sou, os mitos
que eu quero ser. A palavra, a imagem e o sentimento têm uma energia
palpável, uma espécie de poder. Com imagens domo meu medo, eu cruzo os
abismos que eu tenho dentro de mim. Com palavras me faço pedra, pássaro,
ponte de cobra arrastando tudo o que sou, tudo o que algum dia serei.

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daquilo que é ou foi estabelecido como verdade e convida os leitores
a reaprender sobre suas histórias, reaprender sobre sua identidade,
ou seja, de alguma maneira, entender o entre-lugar fronteiriço.
De todo o exposto, Borderlands/La Frontera é um texto
com contornos sociais, um documento cultural que retrata a vida
dos seres que habitam as fronteiras. Trata-se de um texto que não
se enquadra nos paradigmas dominantes, pois conta a história de
pessoas dispensáveis, sem poder, desvalorizadas por terem a raça,
a classe, o gênero e a etnia “erradas”. Nele, percebe-se o quanto
a materialidade da vida pode ser lida na obra da autora e, por sua
vez, o quanto este texto-vida também pode ser comum ao contexto
fronteiriço amplo existente, pois, entende-se que as reflexões ainda
precisam ser realizadas por todas as Américas.

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The new mestiza.


4ª ed. San Francisco: Aunt Lute Books, 2012.
BENSON, Library. Texas University at Austin. Gloria Evangelina
Anzaldúa Papers, 1942-2004. Disponível em: http://www.
lib.utexas.edu/taro/utlac/00189/lac-00189.html#a0. Acesso
em: 10/04/2015.
HAWLEY, John C. (ed.) Encyclopedia of Postcolonial Studies.
Westport, Connecticut, London: Greenwoof Press, 2001.
KEATING, AnaLouise. (ed.) Entre Mundos/Among worlds. New
York: Palgrave Macmilan, 2005.
KEATING, AnaLouise. (ed.) Gloria E. Anzaldúa: Interviews/
Entrevistas/Gloria Anzaldúa. New York e London: Routledge,
2000.
KEATING, AnaLouise. “From Bordelands and New Mestizas to
Nepantlas and Nepantleras: Anzladúan Theories for social

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change.” Human Architecture: journal of the sociology of self-
knowledge, vol. IV. Ahead Publishing House, pp. 5-16, 2006.
MIGNOLO, Walter D. “Introduction: From Cross-Genealogies
and Subaltern Knowledges to Nepantla”, in: MOREIRAS,
Alberto (ed.) Nepantla: Views from the South, vol. I, Issue I.
Durham: Duke University Press, 2000.

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PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA ESCRITA
EM UM CONTEXTO DE EDUCAÇÃO
DIFERENCIADA: VIVÊNCIAS DO PROJETO
MAGISTÉRIO EXTRATIVISTA TERRA DO MEIO,
ALTAMIRA, PARÁ

Marcelo Pires Dias


Ronaldo Henrique Santana
Raquel Lopes

Introdução

Este trabalho apresenta, através da análise de produções textuais


de alunos do “Projeto de Formação de Professores Extrativistas da
Terra do Meio”, o processo de apropriação da escrita ao longo de uma
experiência de escolarização de quatro anos. O Projeto foi proposto
pela Universidade Federal do Pará/Campus Universitário de Altamira
e Escola de Aplicação – UFPA, com apoio do Ministério da Educação
– MEC e realizado numa região conhecida como Terra do Meio (cf.
Parente, Miléo e Lopes 2020).
Ao considerar fatores como amplitude geográfica, distância
das comunidades atendidas e dificuldade de acesso à região, o

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Projeto Magistério Extrativista foi subdividido em três turmas,
sendo uma em cada Reserva Extrativista: Resex Rio Xingu, Resex
Riozinho do Anfrísio e Resex Rio Iriri. A demanda premente por
acesso à educação escolar apresentada pelos moradores dessas áreas
foi acolhida por um coletivo de instituições, dentre as quais a UFPA,
que se encarregou de tomar medidas para o atendimento do pleito.
Assim, um grupo de professores-pesquisadores do Campus
de Altamira, em 2010/2011, assumiu a responsabilidade de conduzir
uma pesquisa de modo a produzir dados que consubstanciam sem
alternativas de enfrentamento à situação de negação do direito à
educação a que estavam sujeitas as populações desse território. Dessa
pesquisa, um dos principais resultados apontou que a formação de
professores pertencentes à região seria a “única alternativa viável
para garantir a oferta de escolarização de qualidade para moradores
dessas áreas” (UFPA/Campus de Altamira, 2014, p. 5).
Mediante essa constatação e a partir de um conjunto de
mobilizações das comunidades extrativistas, foi elaborado e
proposto um projeto de formação de professores visando a um duplo
objetivo: garantir escolarização no nível da educação básica a jovens
extrativistas e habilitá-los profissionalmente em nível de magistério
para atuarem nas escolas das unidades de conservação em questão.
Este projeto, financiado pelo Ministério da Educação, foi executado
entre dezembro de 2015 e dezembro de 2019, com moradores das
três Resex que compõem o Mosaico de Áreas Protegidas da Terra
do Meio. A proposta inicial do Projeto previa o atendimento a um
total de 45 estudantes, subdividido em três turmas, número que foi
ampliado posteriormente.1

1. Parente, Lopes e Miléo (2020, p. 72) explicam que “o acordo inicial pactuado
com o financiador previa a inserção de 45 educandos no Projeto, porém,
em função da existência de uma forte demanda reprimida pela ausência
de oferta de educação escolar nas séries finais do ensino fundamental e
do ensino médio, houve uma procura expressiva e bem maior do que essa
previsão e, entre repactuações e ajustes, começamos a atender no primeiro

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Como base político-epistêmica, o Projeto em tela assumiu
a perspectiva freireana de educação para a emancipação (Freire
2016), articulada à Pedagogia da Alternância.2 Em consonância
com essa opção, o trabalho pedagógico com a língua portuguesa
baseou-se em uma concepção dialógica da linguagem, que a toma
como prática social (Gnerre 1988; Britto 2003; Mortatti 2003;
Fairclough 2016); consequentemente, o trabalho com a escrita foi
fundamentado na ideia de “letramento situado” (Barton e Hamilton
1998; Barton, Hamilton e Ivanic 2000). Essa tríptica fundamentação
político-filosófica possibilitou a efetivação, na prática pedagógica,
de produtivos enlaçamentos entre educação e cultura de forma a
conferir a essa experiência educacional um forte viés de práxis
decolonial, transformadora e em devir, cujos frutos continuam em
crescente expansão.
Como já assinalado, o Projeto de Formação de Professores
Extrativistas da Terra do Meio teve por objetivo habilitar moradores
das Reservas Extrativistas da Terra do Meio e adjacências ao
exercício da docência, através da Formação em Magistério/Nível
médio, para atuarem na educação infantil, ensino fundamental/séries
iniciais e EJA, sintonizados e comprometidos com a transformação
da educação e da realidade social desse território.
Neste ensaio, trataremos especificamente da turma
pertencente à Reserva Extrativista Rio Xingu, e tomaremos como
matéria-prima de análise textos confeccionados nas disciplinas

ano (correspondente ao ensino fundamental) uma média 90 pessoas,


divididas em três sub turmas, uma em cada Resex.”
2. O curso foi desenvolvido a partir dos princípios da Pedagogia da Alternância
e subdividido, a cada ano, em quatro Etapas/Módulos, sendo dois períodos
denominados Tempo Escola (TE), em que os estudantes se reuniam nas
comunidades-polo e cursavam presencialmente as disciplinas no intervalo
de 22 dias e dois períodos de Tempo Comunidade (TC), composto por
pesquisas de campo, exercícios de casa e atividades complementares
advindas de temas geradores e da percepção dos estudantes e seu olhar
sobre a própria comunidade em seus aspectos educacionais, ambientais e
socioculturais.

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de língua portuguesa e filosofia. A disciplina de Português, pela
natureza de sua função propedêutica, foi trabalhada em todos os
períodos de Tempo Escola e de Tempo Comunidade, tanto como
componente curricular específico, quanto – e, sobretudo –, por meio
de atividades interdisciplinares, de modo a potencializar os espaços
de aprendizagem dos estudantes na perspectiva da apropriação de
diferentes modalidades linguístico-discursivas visando ampliar
sua competência comunicativa, seja no âmbito dessa experiência
de escolarização, seja para além dela. A articulação didático-
pedagógica entre os diferentes componentes curriculares no decorrer
de todo o Projeto foi prevista e continuamente retroalimentada pela
ideia de currículo integrado, a partir da organização de três núcleos
por área de conhecimento e seus respectivos eixos temáticos, como
demonstrado no quadro 1.

Quadro 1 – Proposta curricular do Projeto


Magistério Extrativista
NÚCLEO EIXOS TEMÁTICOS
Múltiplas Linguagens Linguagens e Identidades Culturais na
Amazônia
Educação Escolar Fundamentos da Educação Diferenciada e
Diferenciada Organização do Trabalho Pedagógico
Estudos da cultura e da Ciências Humanas e Sociais
natureza Ciências Naturais
Os textos escolhidos para a presente discussão são oriundos
de atividades de produção textual do gênero relato de experiência
pessoal, nas disciplinas de Língua Portuguesa (denominada
Português e seu ensino) e Filosofia. Foram analisadas as primeiras
e as últimas produções textuais realizadas pelos alunos, numa
abordagem longitudinal e de modo comparativo, objetivando
evidenciar a aprendizagem da escrita por esses jovens extrativistas
como processo de apropriação da língua enquanto prática social,
que os institui como sujeitos de seu discurso e lhes possibilita
ocupar um lugar no mundo na condição de produtores de sentido e
não de meros consumidores de tecnologias educacionais.

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Considerações teórico-metodológicas

De acordo com as escolhas teóricas assumidas, tanto na


proposição do Projeto Magistério Extrativista, quanto na elaboração
deste texto, fizemos a opção de examinar os textos dos estudantes
de uma perspectiva multirreferencial (Ardoino 1995; Martins
2004), o que significa dizer, neste caso específico, que a análise
proposta não se restringe a uma abordagem puramente linguística
ou escolar; ao contrário, embora estes fatores sejam considerados
relevantes, assumimos que – para os nossos fins – uma “[...] análise
multirreferencial das situações das práticas dos fenômenos e dos
fatos educativos se propõe explicitamente uma leitura plural de
tais objetos, sob diferentes ângulos e em função de sistemas de
referências distintos, os quais não podem reduzir-se uns aos outros.”
(Ardoino 1995 p. 7)
Assim, além de critérios de análise linguístico-textual
(tais como convenções de notação alfabético-ortográfica, uso de
elementos coesivos, recursos de paragrafação, entre outros), serão
considerados aspectos da realidade sociocultural, familiar e escolar
dos autores dos textos, de modo a não perdemos de vista que, quando
tratamos a escrita como um objeto cultural complexo, escrever não
é verbo intransitivo.
Nessa direção, muito mais do que demonstrar que é possível
ensinar e aprender a escrever de forma significativa, prazerosa,
eficaz e sem os entraves decorrentes da pressão estruturante da
gramática normativo-prescritiva que gera bloqueio criativo e
insegurança linguística nos aprendizes, além de artificializar a ação
docente reduzindo-a a uma prática higienista de controle e punição,
pretendemos trazer algumas evidências de que uma abordagem
pedagógica socioculturalmente referenciada pode propiciar
condições de apropriação da escrita, no sentido defendido por
Roger Chartier (2003):

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A apropriação, tal qual nós a entendemos, visa a uma
história social dos usos e das interpretações, remetidas às
suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas
específicas que as constroem. Dar, assim, atenção às condições
e aos processos que, muito concretamente, fundamentam
as operações de produção de sentido, é reconhecer,
contrariamente à antiga história intelectual, que nem as ideias
nem as inteligências são desencarnadas, e, contrariamente aos
pensamentos universalistas, que as categorias dadas como
invariantes, quer sejam fenomenológicas ou filosóficas, devem
ser pensadas na descontinuidade das trajetórias históricas
[…]. Essa noção assim reformulada, que coloca o acento
sobre a pluralidade dos usos e das compreensões, se distancia,
em primeiro lugar, do sentido que Michel Foucault dá ao
conceito, tendo “a apropriação social dos discursos” como
um dos principais procedimentos pelos quais os discursos são
assujeitados e confiscados pelas instituições ou pelos grupos
que se atribuem seu controle exclusivo. Ela se distancia
igualmente do sentido que a hermenêutica lhe dá, pensando-a
como o momento em que a “aplicação” de uma configuração
narrativa particular à situação do sujeito transforma, pela
interpretação, a compreensão que ele tem de si mesmo e do
mundo, portanto sua experiência fenomenológica. (Chartier
2003, pp. 152-153)

Concebemos, então, as vivências com a escrita no Projeto


Magistério Extrativista, como experiências de apropriação, tanto
as protagonizadas pelos estudantes, quanto todas as outras que
nos atravessaram como sujeitos enunciativos pertencentes a uma
sociedade grafocêntrica e, portanto, premidos por uma “ordem
gráfica”, mas não necessariamente a ela subsumidos de forma
apassivadora. Uma tal postura diante da cultura escrita e de seus
saberes permite colocar sob escrutínio os fundamentos de nossas
próprias práticas docentes, as quais muitas vezes gostaríamos
de considerar críticas ou libertadoras, mas muitas vezes, se não
questionadas, podem apenas reforçar um sistema de dominação,

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conforme nos alerta Foucault (1971, p. 123): “Qualquer sistema de
educação é uma forma política de manutenção ou modificação da
apropriação de discursos e dos conhecimentos e poderes que eles
carregam.”

O perfil dos alunos-autores

Os sujeitos envolvidos na experiência do Magistério


Extrativista da Terra do Meio eram adolescentes, jovens e adultos
entre 14 e 35 anos, moradores das unidades de conservação
(Reservas Extrativistas, Estação Ecológica e Parque Nacional) ou
de seu entorno. Em termos de experiência escolar, boa parte deles
tinha pouco ou nenhum acúmulo significativo do ponto de vista do
que se considera “direito de aprendizagem”, visto que as primeiras
(e poucas) escolas apenas recentemente haviam sido instaladas em
suas localidades de moradia. Some-se a isso o fato grave de que tais
escolas seguiam (e seguem ainda, em grande medida) um currículo
urbanocêntrico, colonialista e desconectado das necessidades e
anseios locais (cf. Parente, Lopes e Miléo 2020). Muitos desses
estudantes, embora tivessem um certificado de até 4 anos de
escolarização, escreviam precariamente e liam de maneira muito
incipiente. Foi necessário todo um trabalho de (re-)alfabetização.

A escolha dos textos

Desde o início do Projeto e durante toda sua implementação


ao longo de mais de quatro anos (considerando-se a Resex Rio Xingu,
onde as atividades começaram em 2015), buscamos compartilhar
com os estudantes uma concepção de escrita como prática social e
como direito humano de comunicação e interação sociolinguística.

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Nessa direção, havia uma diretriz curricular clara: todos os
professores precisavam agir como como educadores em linguagem,
independentemente de sua área específica de atuação; desde o
planejamento integrado, passando pela proposição de atividades até
a avaliação formal, todas as etapas do trabalho pedagógico levaram
em conta a necessidade de desenvolver e ampliar as habilidades de
escrita dos estudantes.
Em função dessa diretriz, os alunos tiveram suas produções
textuais catalogadas em forma de portfólio, com o objetivo de
documentar o processo de aprendizagem/apropriação e não somente
de fazer registro dos produtos dessas atividades, de modo que
fosse possível tanto para os professores, quanto para os próprios
aprendizes, mensurar os avanços cognitivos alcançados e ter
elementos para subsidiar a avaliação final sobre cada educando.
Os textos que constam neste artigo foram escolhidos, em
boa medida, porque representam casos emblemáticos de mudança
qualitativa em termos do que estamos chamando de “apropriação da
escrita”. Todos os estudantes apresentaram avanços significativos,
mas não há espaço aqui para tratarmos de uma amostra maior.
Escolhemos três casos destacados pela equipe pedagógica como
ilustrativos da distância inicial (mês de ingresso no Projeto),
traços do percurso individual ao longo do tempo e estágio de
escrita três anos depois. Consideramos que tais produções textuais
apresentaram maior avanço em termos de aprendizagem com base
em traços dos próprios textos e em informações que constam no
parecer final dos educandos-autores. Como marco temporal para
esta análise, escolhemos a primeira produção de um mapa mental
escrito, do gênero carta, oriunda de uma atividade que consistia
em se apresentar à Direção da Escola de Aplicação por meio da
identificação pessoal, com informações a respeito de como o aluno
se via, como via seu local de origem e de moradia, o que almejava
de sua inserção no Projeto, dentre outras informações. Essa
primeira produção foi realizada em dezembro de 2015, no âmbito
da disciplina de Língua Portuguesa.

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Já a segunda produção foi realizada entre 2018 e 2019, na
disciplina de Filosofia da Educação, e consistia em produzir um
texto dissertativo relacionado ao papel da educação para os povos
extrativistas, no qual o aluno deveria relatar o que mudou em sua
visão de mundo depois de ter ingressado do Projeto.
Os textos analisados a seguir, produzidos por três discentes
(Erivan, Rayna e William) da Reserva Extrativista Rio Xingu,
retratam um pouco da trajetória escolar no decorrer do Projeto e
refletem, de forma inconteste, tanto aspectos de superação pessoal
dos estudantes, quanto o esforço dos profissionais da educação
envolvidos nessa experiência, assim como o acerto das escolhas
político-filosóficas e pedagógicas que fundamentaram esse processo
de escolarização.

Análise das produções textuais

Nas subseções a seguir, analisaremos textos dos três alunos


acima referidos. Debruçaremos-nos nos textos produzidos nas
primeiras atividades do Projeto, datados de dezembro de 2015,
assim como em produções feitas entre 2018 e 2019. Tomaremos
como base da análise elementos formais presentes no texto, como
convenções de notação ortográfico-alfabética, paragrafação,
pontuação, construção do período, uso dos elementos coesivos,
assim como aspectos essencialmente discursivos.

Rayna: estudou até a 4ª série do Ensino Fundamental, não


continuou os estudos por falta de escola na sua comunidade

O primeiro texto de Rayna foi produzido em 2015, no qual a


aluna se apresenta, fala da sua origem, escolaridade e um pouco da
sua família. É possível observar alguns elementos característicos de
alunos que tiveram o processo de escolarização interrompido; são

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notórios, em especial problemas de notação alfabético-ortográfica,
ausência ou uso inadequado de sinais de pontuação, além de ausência
de conectivos que ajudariam no encadeamento das sentenças. A
seguir apresentamos o texto e algumas considerações.

Imagem 1 – texto de Rayna do Nascimento,


produzido em 2015.

Fonte: Arquivo Projeto Magistério Extrativista.

Podemos observar no trecho aqui destacado em itálico –


“cuando comesei estuda eu e pra escola na rabeta do meu pai depois
Herculano mando o filho dele pra puxa alunos na rabeta dele o
Herlan e o meu pai não precisa da rabeta dele pra nós i para escola
porque ja não priscisa mais da rabeta do papai porque ja tinha
chegado outra rabeta”, – uma série de elementos que demonstram
uma aprendizagem frágil de certa convenções ortográficas (cuando,
comesei, priscisa); a falta de sinais de pontuação, que servem
para assinalar pausas no plano gráfico e cuja ausência deixa o

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texto corrido. Ainda que o texto apresente uma divisão clara em
parágrafos, internamente faltam elementos coesivos que ajudem a
encadear as sentenças conforme seu valor sintático-semântico.
Trata-se de um texto inicial com problemas, principalmente
do ponto de vista formal, situação relatada no parecer final sobre
a aluna: “Inicialmente apresentava dificuldades na escrita e na
ortografia (...)” (UFPA 2016a), o que demandou empenho e um
trabalho individualizado com a aluna pra que ela superasse as
dificuldades ao longo da jornada no Projeto Magistério Extrativista.
No ano de 2018, passados quase três anos do início do
Projeto, é possível observar avanços significativos na escrita dessa
aluna. Vejamos dois trechos de um dos últimos trabalhos produzidos
em sala de aula, no qual se deveria discutir um pouco dos principais
problemas que afetam a RESEX Rio Xingu:

Imagem 2 – trecho do texto de Rayna do


Nascimento, produzido em 2018.

Fonte: Arquivo Projeto Magistério Extrativista.

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Como é possível observar nos dois parágrafos iniciais da
imagem 2, os problemas ortográficos recorrentes na produção
inicial (de 2015) já não estão presentes no texto de 2018; além desse
elemento, a aluna já consegue fazer um bom gerenciamento do uso
de sinais de pontuação, assinalando adequadamente as pausas,
elemento praticamente ausente na primeira produção. Também
é visível o uso articulado de elementos coesivos, como o “pois”,
“mas”, “porque”. Em relação à concordância, podemos observar que
a aluna alterna entre ausência e presença de marcadores formais de
número, como em “(...) os alunos ficaram sem expectativa de estudar
por falta professor (...)” e “(...) nossas populações extrativista”.
Do ponto de vista discursivo-ideológico é bastante evidente
a mudança de posicionamento/visão de mundo presente nos textos
considerados nesse intervalo de tempo (2015-2018). Em seu
primeiro texto, a aluna falava do “sonho de conseguir um emprego
fixo para ajudar os pais”, repercutindo de maneira ingênua parte
do ideário liberal-meritocrático segundo o qual esforço individual
na escola leva à mobilidade social ascendente porque possibilita
ingressar em um “emprego fixo”. No texto de 2018, no trecho a
seguir, é possível perceber o posicionamento crítico da aluna em
relação à escolarização como direito, direito esse que por anos foi
negado a sua comunidade:

Imagem 3: trecho do texto de Rayna do Nascimento,


produzido em 2018.

Fonte: Arquivo Projeto Magistério Extrativista.

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Ao final do processo de escolarização no Projeto Magistério
Extrativista, a aluna alcançou um desempenho satisfatório e, de
acordo com o parecer final sobre o educando, as dificuldades “foram
superadas consideravelmente após o entendimento dos princípios
ortográficos e sintáticos” (UFPA, 2016a), o que é confirmado na
produção final analisada neste trabalho. Assim, como muitos
outros estudantes, Rayna concluiu a etapa de educação básica em
julho de 2019 e foi aprovada no Processo Seletivo Especial para
o Curso de Etnodesenvolvimento, graduação voltada para povos e
comunidades tradicionais sediada na Universidade Federal do Pará,
Campus Universitário de Altamira, no qual foi bolsista de Iniciação
Científica.

William: mora na RESEX Rio Xingu desde os 5 anos e


estou até a antiga 5ª série do Ensino Fundamental

O aluno William nos apresenta uma história de vida muito


semelhante à da aluna Rayna, marcada pela privação da escolaridade
por falta de escola, de modo que, apesar de ter um ano a mais de
escolaridade inicial, apresentou a primeira produção, datada de
2015, ainda mais problemática. Nessa sua primeira produção as
dificuldades são visíveis, a começar pelas convenções de notação
alfabético-ortográfica, como em conheso, estutandi, margisterio,
persoaumete, dentre outros exemplos. Também podemos perceber
a quase total ausência de paragrafação.
O encadeamento das frases aparece substancialmente
comprometido, sobretudo no que diz respeito ao uso de conectivos,
seja por falta ou excesso, como nas repetições da estrutura
sintática “Det + Sintagma Verbal”, do tipo “eu sou William”, “eu
sou estutanti”, “eu também aprende”. Chama a atenção o uso da
frase “eu ficar muito feliz”, com a presença do verbo no infinitivo,
estrutura muito comum em textos de pessoas em processo inicial
de alfabetização. Vejamos um trecho da sua primeira produção na
imagem a seguir:

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Imagem 4 – texto da primeira produção textual
de William Xipaia, produzido em 2015

Fonte: Arquivo Projeto Magistério Extrativista.

As dificuldades em sua produção escrita são confirmadas no


parecer sobre o educando, conforme se pode ler no trecho “(...) o
educando apresentava dificuldades consideráveis no início, sendo
necessária atenção especial quanto ao letramento” (UFPA 2016b).
Destacamos que essas dificuldades relatadas no parecer e mostradas
no texto (imagem 4) foram mitigadas, em sua maioria, o que pode
ser constatado em uma das últimas produções textuais do aluno.
Vejamos o trecho do texto a seguir (imagens 5 e 6), trata-se da
mesma atividade que gerou o texto produzido pela aluna Rayna.

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A atividade solicitava que o aluno falasse da importância
do acesso à educação e sobre possíveis mudanças em sua visão
de mundo, após o ingresso no Projeto Magistério Extrativista. É
perceptível a mudança em relação ao primeiro texto de 2015,
pois o autor já consegue construir parágrafos de forma adequada,
demonstra ter superado muitas instabilidades de notação ortográfica
e, mais importante, amadureceu muito em termos da progressão
textual, bastante truncada no primeiro texto, e que agora flui
satisfatoriamente. Também é possível observar o uso adequado
da translineação, elemento ausente em sua primeira produção. No
trecho presente na imagem 6 é possível conferir a visão do próprio
aluno em relação aos seus avanços no campo da linguagem:

Imagens 5 e 6

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Fonte: Arquivo Projeto Magistério Extrativista.

Como o próprio aluno relata, ele tinha muitas dificuldades


para ler e escrever quando de seu ingresso no Projeto, inclusive
no uso da pontuação (“eu não sabia colocar a pontuação direito da
forma correta”). Destacamos o trecho do parecer final sobre o aluno,
que diz: “As habilidades de leitura, escrita e interpretação também
foram desenvolvidas. Neste sentido, o estudante demonstrou grande
avanço na área da linguagem”. Willian também concluiu o ciclo de
educação básica em 2019 e foi aprovado na seleção para o Curso
de Licenciatura em Educação do Campo-Ciências da Natureza da
UFPA/Campus de Altamira, no início de 2020.

Erivan de Sousa: Pescador artesanal, mora na RESEX Rio


Xingu desde os 11 anos e estudou até a 3ª série do Ensino
Fundamental

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Dos três alunos retratados neste trabalho, Erivan de Sousa
foi o aluno que apresentou maiores dificuldades na apropriação
da escrita ao longo do Projeto, muito em função do fato de ter
ingressado após a etapa do ensino fundamental (ao final de 2016).
Suas produções atestam dificuldades mais estruturais de composição
de textos escritos. Vejamos um trecho de uma produção textual de
2016, em que é possível perceber a dificuldade na organização do
parágrafo, assim como instabilidades ortográficas (melhorol, timha,
desenvouvendo) e ausência de marcação de concordância verbal
(“nos já sabe fazer teatro”). De modo geral, os problemas nos textos
de Rayna e William são semelhantes aos de Erivan:

Imagem 7 – trecho do texto da primeira produção


textual de Erivan de Sousa, produzido em 2016.

Fonte: Arquivo Projeto Magistério Extrativista.

O parecer sobre o educando registra certo nível de


“desinteresse” inicial para participar das atividades propostas,
assim como falta de iniciativa e dificuldades no uso do tempo,
demonstrando pouca autonomia, além de uma certa recusa/
resistência em se expressar em público, dificuldades que foram
superadas no decorrer de sua participação no Magistério. Um fator
a ser levado em conta, neste caso, está relacionado ao contexto
sociofamiliar deste estudante, que difere daquele em que estavam
inseridos os outros dois colegas. Erivan não fazia parte de uma
família nuclear, não tinha residência definida e trabalhava em vários
locais diferentes ao longo do ano; durante as atividades de Tempo

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Comunidade, quando os professores se deslocavam de Altamira até
as casas de cada estudante para realizar o acompanhamento do Plano
de Estudos a ser implementado junto às famílias e comunidades,
nem sempre era possível localizar este rapaz com facilidade, devido
a sua condição de trabalho. Com o passar do tempo e um trabalho
integrado de atenção a suas especificidades, este estudante começou
a se empenhar mais e fez interessantes progressos cognitivos e
socioemocionais. No texto produzido em 2019, apresentado a
seguir, podemos perceber importantes mudanças.

Imagem 8 – trecho do texto da produção textual


final de Erivan de Sousa, produzido em 2019.

Fonte: Arquivo Projeto Magistério Extrativista.

No trecho da produção textual de Erivan apresentado na


imagem 8, é possível observar uma redução significativa dos
problemas apresentados em sua primeira produção. Trata-se de um
texto satisfatoriamente bem construído. No trecho a seguir (imagem
8), ele relata sua percepção das mudanças pelas quais passou ao
longo de seu processo de escolarização no Projeto.

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Imagem 9 – trecho do texto da produção textual
final de Erivan de Sousa, produzido em 2019.

Fonte: Arquivo Projeto Magistério Extrativista.

O autorreconhecimento da melhoria na escrita e leitura, no


trecho “consigo entender o que estou lendo e consigo ler o que
estou escrevendo” demonstra seu nível de engajamento e esforço de
superação, assim como o empenho dos professores na garantia do
direito de aprendizagem desse aluno. A privação de uma educação
de qualidade, por falta de escola, de certa forma é reparada nesse
momento. O parecer final sobre o educando revela “grande
desenvolvimento e percepção da intertextualidade”:

Em Ciências, apresentava capacidade de relatar fatos e


acontecimentos sobre a natureza, inicialmente apresentava
dificuldades em compreender e utilizar termos científicos, no
decorrer do processo demonstrou compromisso e autonomia
para aprender, faz relação dos assuntos trabalhados com seu
cotidiano, conhece e utiliza termos científicos. (UFPA 2016c)

Após ter completado o processo de escolarização no ano de


2019, o aluno Erivan de Sousa foi aprovado no Processo Seletivo
Especial do Curso de Educação do Campo - Ênfase Ciências da

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Natureza, na Universidade Federal do Pará/Campus de Altamira.
Do ponto de vista de seu processo de socialização, também é preciso
registrar um considerável avanço, sobretudo em termos de maturidade
emocional e disposição para trabalhar em equipe, como se – de algum
modo – estivesse a nos dizer que, ao ser aceito no e pelo grupo, ele
agora se sentia parte desse coletivo e estava disposto a fortalecê-lo.
Reconhecemos que existe uma infinidade de aspectos
a serem tratados com mais atenção e profundidade, tanto no
processo de apropriação da escrita aqui discutido, quanto em
seus produtos (os textos dos alunos). Gostaríamos, no entanto,
de chamar atenção para alguns deles, a começar pela questão da
ortografia. É fortemente marcado no imaginário escolar (e na
sociedade mais ampla) o desempenho ortográfico como sinônimo
de ‘saber escrever’ ou de ‘escrever corretamente’; sendo igualmente
verdadeiro o raciocínio inverso: fracassar no registro ortográfico
é fracassar na escrita, na escola, na vida.3 Ressaltamos que, sem
negligenciar a importância deste fator na constituição das práticas
de letramento, nossa condução do processo de ensino da escrita foi
pautada prioritariamente pela questão do sentido, pela função social
dessa modalidade linguística, pela necessidade de instituição de
sujeitos da linguagem como prática social.
Em segundo lugar, e retomando a contribuição da abordagem
multirreferencial de Jaques Ardoino para uma compreensão menos
plana dos fenômenos educacionais, queremos ressaltar a necessidade
de pensar o ensino da escrita encarnado no tecido da cultura, da
vida, para que sua aprendizagem se consolide como apropriação,

3. “A ortografia é hoje objeto de preocupação permanente entre educadores e


educandos. Como o seu desconhecimento continua sendo importante fonte
de fracasso escolar e de discriminação social, o estudo da aprendizagem
da ortografia é relevante, por um lado, por suas implicações pedagógicas
e sociais. Por outro lado, estimula a pesquisa psicolinguística a avançar
nas explicações sobre o que é a notação da língua escrita, sobre como esta
se aprende e sobre como seu aprendizado se diferencia da aquisição da
linguagem oral” (Morais e Teberosky 1994, p. 15).

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na perspectiva defendida por R. Chartier, e não mais como prisão
da dimensão criativa, do livre pensar. Nossa experiência aponta
que não há contradição/impossibilidade entre uma abordagem
voltada para o sentido e o tratamento didático-pedagógico das
unidades menores da língua; ao contrário: quanto mais embebidas
de sentido as atividades linguisticamente orientadas, mais rápida
e profundamente se consolida a competência em ortografia.
Lembrando que, como já alertava Paulo Freire há muitos anos, a
aprendizagem da língua é processo inconcluso: nunca paramos de
aprender, nunca nos “completamos”, porque a infinitude é traço
inerente a nossa condição humana.
Por último, e considerando a importância estratégica de
experiências educacionais para o nosso processo de humanização
com vistas à invenção de um outro projeto de sociedade, mais
igualitário, com justiça social e oportunidades para todos,
defendemos nossa ênfase das questões discursivas no trabalho
pedagógico no âmbito do Projeto Magistério Extrativista, porque,
como nos lembra Foucault, “O discurso é não apenas o que traduz
as lutas ou os sistemas de dominação, mas é a coisa para a qual
e pela qual a luta existe, o discurso é o poder a ser tomado”
(1971, p. 110). Somente instituindo novos sujeitos do discurso
estaremos em condições de disputar os espaços e os dispositivos
de verdadeiras transformações sociais. E isso precisa se dar numa
“relação dialética, na qual o impacto da prática discursiva depende
de como ela interage com a realidade material pré-constituída” –
como nos alerta Fairclough (2016, p. 91).

Considerações finais

Os textos aqui analisados demonstram significativas


mudanças ao longo do período de execução do Projeto Magistério
Extrativista, o que inclui a apropriação das convenções de escrita,
significativa diminuição das marcas de oralidade, além de mudanças

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discursivas e atitudinais refletidas especialmente nas produções
finais. A experiência com a escrita junto aos alunos demonstrou a
importância de uma pedagogia freireana, socialmente referenciada
e culturalmente sensível, com foco na aprendizagem significativa e
em permanente diálogo com os povos tradicionais, em contraponto
ao modelo de educação tecnicista-tradicional e urbanocêntrico.
Como salienta Freire (2016), existir humanamente é
pronunciar o mundo, modificá-lo. A apropriação da palavra e
a experimentação do diálogo com estes sujeitos, com o devido
respeito e reconhecimento de sua cultura, território e modos de
vida, incorporados nos dispositivos curriculares e na organização
pedagógica da proposta, demonstraram que é possível a realização de
uma educação crítica e emancipatória, com ênfase na aprendizagem
e na perspectiva da formação plena do educando.
Destacamos a importância desse tipo de Projeto educacional,
que leva educação formal de qualidade para localidades remotas, em
muitos casos localidades invisíveis para o poder público, mas quase
sempre visíveis aos olhares ameaçadores daqueles que destroem a
floresta, em busca de minério, impulsionados pelo garimpo ilegal,
cada vez mais presente na região do Xingu, além de outras ameaças,
que aos poucos vão modificando a paisagem e os modos de vida da
população extrativista.
Mesmo com todos os desafios que se apresentaram na
implementação do Projeto Magistério Extrativista, como a distância
e dificuldade de acesso à comunidade polo, complexidade da
organização logística e pedagógica, adaptação do espaço da
comunidade para as aulas, articulação com entidades e instituições
parceiras, deslocamento dos estudantes; dentre outros, avaliamos
esta experiência como extremamente exitosa e transformadora
para todos os envolvidos na proposta. Por fim, vale lembrar, como
já mencionado por Parente, Lopes e Miléo (2020), que dos 60
educandos que concluíram o curso 22 foram aprovados no ensino
superior na Universidade Federal do Pará, antes mesmo do término
do Projeto.

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Referências

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repéres et notes de lecture. Ivry: ANDESI, 1995.
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1998.
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educação e participação. São Paulo: Mercado de Letras, 2003.
CHARTIER, Roger. Formas e sentidos. Cultura escrita: entre
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FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. 2ª ed.
Brasília: Editora da UnB, 2016.
FOUCAULT, Michel. L’ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 60ª ed. Rio de Janeiro:
Paz & Terra, 2016.
GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. 4ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
MORAIS, A. e TEBEROSKY, A. “Erros e transgressões infantis na
ortografia do Português.” Discursos, nº 8, pp. 15-51, 1994.
MARTINS, João Batista. “Contribuições epistemológicas da
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fenômenos educacionais.” Revista Brasileira de Educação,
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MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e letramento. São
Paulo: Unesp, 2004.
PARENTE, Francilene de Aguiar; LOPES, Raquel da Silva e
MILÉO, Irlanda do Socorro de Oliveira. “Pedagogia da

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alternância na formação de Professores Extrativistas: uma
experiência na Terra do Meio, em Altamira/PA.” Revista
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RANGEL, Egon de Oliveira. “Educação para o convívio
republicano: o ensino de Língua Portuguesa pode colaborar
para a construção da cidadania?”, in: RANGEL, Egon de
Oliveira e ROJO, Roxane H. Rodrigues (coords.) Língua
Portuguesa: Ensino fundamental. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010.
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professores extrativistas da Terra do Meio – Magistério.
Altamira/PA, 2014. (mimeo)
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Rayna do Nascimento. Altamira: Faculdade de
Etnodiversidade, 2016a.
UFPA/CAMPUS ALTAMIRA. Parecer final sobre o educando
William Xipaia. Altamira: Faculdade de Etnodiversidade,
2016b.
UFPA/CAMPUS ALTAMIRA. Parecer final sobre o educando
Erivan Santana. Altamira: Faculdade de Etnodiversidade,
2016c.

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USOS DE LINGUAGENS A PARTIR DE
GÊNEROS – DESCREVENDO PERCURSOS
DA ABAYOMI – NO ENSINO REMOTO –
CONTEXTO PANDÊMICO

Daniele Cristina Avelino Feitosa


Adélia Maria Evangelista Azevedo

Introdução

Após termos vivido a experiência do Estágio Supervisionado


Obrigatório em Língua e Literaturas de Língua Portuguesa I, no
Ensino Fundamental, em 2019, numa escola pública, de Tempo
Integral (TI), no município de Jardim-MS, inicialmente tínhamos
enquanto estagiários que parte das vivências nos ambientes nesta
escola-campo já nos investiria de confiança. E que as trilhas seriam
mais calmas para as experiências pedagógicas no Ensino Médio, na
disciplina de Língua Portuguesa (LP), no ano seguinte. Enganamo-
nos logo nos primeiros meses, março de 2020, eis que nos deparamo-
nos com o estado de exceção da Pandemia do coronavírus. Com
isto, houve a suspensão total das aulas presenciais, o que ocasionou
uma interrupção impactante para toda a comunidade estudantil do

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mundo, do Brasil e para residentes/estagiários de Letras – UEMS –
Unidade de Jardim-MS.
O vírus letal ameaça e, ainda, instaura a insegurança para
as práticas pedagógicas em LP, em contextos e ambientes de sala
de aula virtuais, sem a presença física. O afastamento físico, ponto
central, é a sobrevivência, para salvar vidas; não só a nossa, mas
do mundo inteiro. Por considerar que a Covid-19 tem alto poder de
contaminação. Este contexto de exceção forçou-nos a reinventarmos
as estratégias pedagógicas para as ações pedagógicas em LP.
Aqui, recortamos parte da epígrafe de Lemke (2010): o antes:
“[...] prisioneiros de autores de livros textos e de suas prioridades,
escopos e sequências [...], no contexto virtual empreendemos uma
certa e não total liberdade para empreender ações: “[...] somos
agentes livres que podem encontrar mais sobre um assunto que os
autores sintetizaram, ou encontrar interpretações alternativas que
eles não mencionaram [...]”. Diante de uma realidade para as ações
integradas do Programa Residência Pedagógica (RP) – Subprojeto
de Língua Portuguesa, Edital CAPES nº 01/2020 – CAPES/UEMS
e do Estágio Supervisionado Obrigatório em Língua Portuguesa e
Literaturas de Língua Portuguesa II, no Ensino Médio, Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul – Letras – UEMS – Unidade de
Jardim.
A partir desta contextualização inicial, descrevermos parte
da ação empreendida no ambiente virtual que emerge de contextos
de exceção por conta da Pandemia – Covid-19, ambientes remotos.
Eis o contexto de extrema dificuldade, com vistas a ocupar espaços
virtuais e aproximar as realidades, em sociedade, para temáticas de
combate ao preconceito racial e respeito às diversidades culturais.
Com isso, conduzimos a etapa de vivência coparticipativa
num processo integrado entre orientadora de área do RP, professora
preceptora de LP, residente/estagiária e as turmas do 1º A e do B
do Ensino Médio. Selecionamos gêneros de circulação midiática,
o tutorial, o post e a live. As escolhas não foram aleatórias foram
motivadas pelo aspecto linguístico comunicacional. No caso, o

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gênero tutorial para uma atividade pedagógica com ações integradas
de LP e de Literatura – explorando a temática do olhar atento às
questões étnico-raciais – sob o contexto da Pandemia e do ensino
remoto, para o fazer em etapas, de uma boneca.
Os destaques estão para os percursos de transposição do
gênero tutorial para a produção da boneca Abayomi, utilizando para
isso diferentes linguagens seguiu por discussões em Chizzotti (2016),
Marcuschi (2008), Rojo (2009), Vieira (2020), Gomes (2017) e a
Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2017) do Ensino Médio.
Percursos integrados entre a formação acadêmica, as vivências a
partir de desafios reais para os usos dos gêneros midiáticos.

Reflexões sobre os processos de aprendizagem e a


importância dos usos de gêneros para ampliar ações
pedagógica em LP: nas trilhas do ensino remoto

Neste item, reportamo-nos às considerações de Chizzotti


(2016, p. 562) que afirma que o aprender é um desejo semeado pela
natureza humana. O aprendizado pode acontecer pela experiência
do cotidiano, de maneira informal em casa, com a família, e no
meio social que nos circunda. O autor afirma ainda que quando o
aprendizado deixa de ser informal, ou seja, passa a ser realizado
em uma instituição escolar, deve-se assumir uma proposta de
aprender por meio de processos estruturados de ensino, tudo pode
ser ensinado desde que o ensino respeite as condições do aluno.
Diante do desafio inicial das aulas remotas por conta do início
da Pandemia – Covid-19, 2020, lançamos ao não parar as ações de
aprendizagem considerando o continuar aprendendo mesmo sem
estarem em um ambiente formal de ensino. O diferencial tornou-se
o estar em casa a partir do acesso à internet manter-se no processo
de aprendizagem. Neste sentido Chizzotti afirma que: “Todo estado
moderno organiza o respectivo sistema de educação para atender ao
direito à educação para todos e garantir sua sobrevivência social e

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política. [...] Aprender é componente central do sistema de ensino
e é obrigação objetiva do estado democrático prestá-la aos seus
cidadãos” (Chizzotti 2016, p. 562).
O direito à educação foi de modo atingido no contexto
adverso da Pandemia Covid-19. Os profissionais da educação
do mundo e do Brasil inteiro se mantiveram mesmo sem o apoio
do Estado quanto aos financiamentos de bolsa de internet, de
formação adequada para a utilização dos ambientes virtuais e na
demora em atender de imediato a situação de emergência. Eis que
é preciso deixar claro a responsabilidade do estado: “[...] Aprender
é componente central do sistema de ensino e é obrigação objetiva
do estado [...]”. Aqui, em rede foi possível diante da rotina de
aprendizagem, imposta pela Pandemia criar dentro da precariedade,
oportunidades reais de conhecimento.
Outro ponto são as constantes reflexões teóricas sobre a
necessidade do profissional da área de Letras, e outras áreas também,
em manter o vínculo e o conhecimento. Manter-se conectados na
vida e na escola. Por considerar que a geração nascida no mundo
virtual anseia por desafios digitais. Afinal, foi inserida já nas redes
sociais. É uma geração que traz consigo um grande desafio aos
educadores já formados a longa data, e os em formação, no caso, os
residentes/estagiários. Estes buscaram adaptar aos usos das novas
tecnologias, e essa adaptação vem com um novo desafio, a quebra
da resistência que alguns professores têm em aceitar o novo.
As reflexões sobre os letramentos pensam justamente nesse
novo personagem da história contemporânea. Em que o(a) aluno
(a) que precisa ser incentivado (a) a ser crítico(a) e autônomo (a),
estes são os objetivos do multiletramentos, fazer uso do que a
atualidade dispõe como fonte de entretenimento e tornar fonte de
aprendizagem. Os celulares, tablets etc. podem ser uma arma nas
mãos de um professor que se debruce em aprender usá-los a seu
favor a em favor do aprendizado desses alunos, nesse sentido, o
aluno deixa de ser um mero expectador e passa a ser o protagonista
de seu aprendizado.

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De acordo com Rojo (2009, p. 98) faz-se necessário o
conceito de letramento” para oportunizar vivências de leitura e
produção de conhecimento a partir de vivências comunicativas
em sociedade. Leiamos: “[...] usos e práticas sociais de linguagem
que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam eles
valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo
contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola
etc.), numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural”
(Rojo 2009, p. 98).
As experiências de linguagem em Língua Portuguesa
seguem com as questões das práticas sociais, os jovens necessitam
diante de desafios discutirem e redescobrir contextos diversos de
uso. Neste contexto de poucas perspectivas por conta do momento
pandêmico, as escolas em rede com as instituições de formação e de
pesquisa contribuem em diálogos para atuarem no isolamento social
aproximando discussões.
Diante de tantas opções, selecionamos inicialmente o
gênero tutorial, no contexto de aproximar e manter as relações de
conhecimento com as duas turmas do 1º ano A e B do Ensino Médio,
TI, rede pública, para aulas de LP em contexto de ensino remoto. Por
considerar, que profissionais da área de Letras “selecionar e operar
nos parâmetros (flexíveis) de gêneros discursivos” (Rojo 2013,
p. 28) criando abordagens inclusivas e práticas a serem planejadas
para os espaços virtuais.
Com isso, planejamos ações em torno do tema da diversidade
racial, por considerar que se faz necessário orientar para que os
estudantes possam viver e explorar diferentes domínios discursivo.
E que este vai muito além de dominar um, ou outro gênero textual,
tanto na modalidade oral, escrita de uso da língua, por considerar
que é importante que o (a) jovem estudante consiga ser capaz de
exercer a comunicação e interagir considerando o conhecimento e
as práticas de linguagem em sociedade.
Para Marcuschi (2008), é importante compreender sobre
os diferentes domínios discursivos da esfera da vida social,

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ou institucional. Caberá à escola planejar e propor vivências
estratégicas aos jovens em sua formação. Leiamos: “[...] entendemos
como domínio discursivo uma esfera da vida social ou institucional
(religiosa, jurídica, pedagógica, política, industrial, militar, familiar,
lúdica etc.) na qual se dão práticas que organizam formas de
comunicação e respectivas estratégias de compreensão” (Marcuschi
2008, p. 194).
Nesta linha de pensamento da interação social, usar de
atividades que primem por aliar usos de compartilhados sobre o
domínio interativo é salutar. Compreender que o(a) professor (a) não
pode ser o único detentor do conhecimento, a sala de aula (online
ou presencial) está cada vez mais tecnologicamente adaptada.
Desta forma, defendemos que é preciso respeitar os processos de
aprendizagem individuais e propor meios para adaptar o aprendizado
às necessidades individuais de cada aluno e no coletivo.
A escolha da linguagem, os percursos empreendidos no
planejamento e as escolhas dos materiais tornaram-se reais para
a proposta de ensino do gênero tutorial, em práticas pedagógicas
de LP, em ambientes virtuais. Estas foram dialogadas com os
diferentes sujeitos envolvidos (orientadora do RP – Subprojeto
de LP, professora preceptora da RP, residente da RP/estagiária de
Letras e alunos (as) de pública TI).
Seguimos com reflexões de Cosson (2018) que discorre
sobre a contextualização e os interesses dos estudantes envolvidos.
Recortamos a seguinte afirmação:

A contextualização presentificadora ou simplesmente


presentificação é uma prática usual nas aulas de literatura
do ensino médio, assim como a contextualização temática.
Na maioria das vezes, o professor as utiliza para despertar o
interesse do aluno pela obra, chamando sua atenção para o
tema e as relações dele com o presente. [...] É importante que
esse processo seja conduzido com atenção pelo professor, uma
vez que se corre o risco de estabelecer uma relação superficial,
violentando a realidade histórica da obra. (Cosson 2018, p. 89)

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Por fim, aprendemos que os diversos gêneros textuais em
LP para despertar sobre a temática da diversidade cultural e a
valorização dos saberes afrodescendentes, em especial o gênero
tutorial, pode também ser usado como importante percurso para
representar e dar voz aos excluídos. Inserimos a contextualização
temática descrita por Cosson (2018) tanto para acrescentar sobre
o discurso memorialista, quanto para abordagem mais profunda e
menos superficial. Este é o que garante à rememoração de um povo
dentro dos estudos literários, que um povo repleto de riquíssimas
anedotas, como o povo africano, merece ser sempre lembrado
não somente pelas suas lutas e sofrimentos, mas também pela
inteligência, superação e originalidade.

Abayomi representação identitária: compartilhando


vivências reais em ambientes virtuais

O ponto temático foi proposto pela professora regente de LP,


no plano de aula sobre gêneros, parte da ação do Projeto Étnico-
Racial por considerar as questões da escola de TI. Esta ideia recebeu
toda uma adesão dos diferentes sujeitos envolvidos na comunidade
escolar.
Em diálogos foi possível encontrar e planejar as etapas a partir
do Projeto Central proposta pela Escola-campo em consonância
com a professora preceptora e toda a Coordenação. Desse modo, no
interior deste Projeto maior foi possível planejar toda a sequência
didática envolvendo aspectos diversos da linguagem. A proposição
denota a resistência que se inscrever na escolha do gênero tutorial
para conceder vida a Abayomi. Aqui, inscrevemo-nos a paixão que
se molda e concede resistência.
Desse modo, explicamos o porquê foi decidido utilizar
o gênero tutorial para a produção da Abayomi como percurso
criativo a ser trabalhado, durante a aula em formato live envolvendo

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diferentes saberes: professora preceptora de LP, residente e duas
estudantes do ensino médio. A escolha também foi conduzida por
reflexões críticas em Vieira (2020) sobre os valores culturais de
resistência da boneca. Este esclarece que a sociedade brasileira
precisa conhecer sobre os estudos étnico-raciais como forma de
combate ao preconceito e resistência.
A origem da Abayomi relaciona-se à necessidade de
empreender estratégias de sobrevivência em contextos adversos e, até
mesmo, genocidas. Leiamos sobre as origens que emergem da cultura
dos povos africanos em condição de escravos e de sobrevivência:

Para acalentar seus filhos durante as terríveis viagens a bordo


dos tumbeiros – navio de pequeno porte que realizava o
transporte de escravos entre África e Brasil – as mães africanas
rasgavam retalhos de suas saias e a partir deles criavam
pequenas bonecas, feitas de tranças ou nós, que serviam como
amuleto de proteção. As bonecas, símbolo de resistência,
ficaram conhecidas como Abayomi, termo que significa
‘Encontro precioso’, em Iorubá, uma das maiores etnias do
continente africano cuja população habita parte da Nigéria,
Benin, Togo e Costa do Marfim. (Vieira 2020, p. 1)

Muito mais do que recriar ou reproduzir a boneca, é a


construção de sentidos que advém de momentos de sobrevivência
[...] mães africanas rasgavam retalhos de suas saias e a partir deles
criavam pequenas bonecas, feitas de tranças ou nós, que serviam
como amuletos de proteção (Vieira 2020).”. Há ainda os usos
de linguagens envolvendo não só o fazer a boneca em si, mas a
oralidade, contar de mãe para filha (os) os valores e as práticas
sociais envolventes com a utilização e o aproveitamento de materiais
alternativos.
Os percursos históricos envolvem os sentidos e os
significados em língua iorubá. Estes estão presentes na origem
da boneca e na Literatura oral da cultura africana: “[...] Abayomi,

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termo que significa “Encontro precioso”, em Iorubá, uma das
maiores etnias do continente africano cuja população habita parte
da Nigéria, Benin, Togo e Costa do Marfim.”. É possível explorar,
segundo Vieira (2020), os muitos sentidos no fazer da experiência
em aprender a tecer a boneca.
A partir de retalhos de tecidos históricos e da diversidade de
linguagens para as ações e interações em ambientes virtuais, aqui,
de modo especial, o gênero tutorial, na sequência, o post e a live.
Há outro percurso sobre as origens da boneca, estão em
revisitações sobre os testemunhos sobre a origem, no artigo, de
Gomes et al. (2017. p. 251) que afirma que:

A narrativa de sua criação remonta a um período marcado


pela efervescência de movimentos sociais no país, nos anos
1980, momento de redemocratização, debates em torno de uma
nova Constituição e dos cem anos da Abolição da escravidão,
ambos culminando em 1988. No ano anterior, 1987, a
Abayomi começa a tomar forma. Waldilena Serra Martins,
mais conhecida como Lena Martins, integrava o Movimento
de Mulheres Negras e trabalhava como coordenadora de
animação cultural no Centro Integrado de Educação Pública —
CIEP — Luís Carlos Prestes. A artesã desenvolveu a técnica
da boneca negra de pano, sem costura ou cola, naquele mesmo
ano. Os materiais utilizados eram retalhos, tidos como restos,
descartes de fábricas e confecções. (Gomes et al. 2017. p. 251)

Desse modo, a comprovação de que a história da boneca


Abayomi surgiu nos porões dos navios tumbeiros alia-se a outra
versão de que é fruto de movimentos políticos de resistência vividos
por grupos de origem afros, no Brasil, em outro contexto histórico.
Para Gomes (2017) o surgimento está relacionado a luta por
direitos aos povos originários: “[...] momento de redemocratização,
debates em torno de uma Constituição e dos cem anos da Abolição
da escravidão, ambos culminados em 1988[...]”. E como afirma

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a artesã que é responsável pela materialização da boneca sob
diferentes perspectivas. Independentemente da origem da boneca,
a representatividade seja por questões fictícias, ou políticas, as
narrativas orais reforçam estratégias de luta.
Em síntese, após pesquisas, incluímos as duas possibilidades
sobre as narrativas como forma de garantir os recortes e os diferentes
lados de uma mesma narrativa. A primeira centrada na ficção de
resistência e sobrevivência. A segunda, com o foco na luta por
direitos constitucionais e de respeito em sociedade para a conquista
de representatividade.

Os processos de interação da Abayomi entre retalhos e


diálogos

O planejamento prévio antecedeu em grupos de Whatsapp


envolvendo residente/estagiária de Letras e professora preceptora
de LP e depois alunos das turmas do 1º ano A e B, respeitando o
isolamento físico pela Pandemia Covid-19. Seguimos as orientações
da Secretaria de Educação – SED/MS, e as orientações pedagógicas
com o incentivo à leitura, à pesquisa e às habilidades nas
competências linguísticas e não-linguísticas da língua portuguesa,
na modalidade oral e escrita. Os processos interativos foram
marcados por adaptações e intensas preocupações em manter as
atividades de LP ocorreram também em reuniões via Google Meet.
As participações tinham variações quanto ao número de estudantes
do Ensino Médio, por causa do acesso à internet, adaptação aos
ambientes, questões financeiras e de saúde das famílias.
Adequamos a necessidade de esclarecer sobre as etapas
do gênero tutorial e da elaboração de materiais para a efetivação
da Abayomi aliadas às narrativas sobre as origens. Com as etapas
sequências e a partir desta montar a sequência da live com a
participação de duas representantes das turmas do 1º ano A e B,

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a professora preceptora de LP e a residente/estagiária de Letras –
Subprojeto de Língua Portuguesa.
1. Produção dos Slides: com um breve resumo da história do
tema escolhido – das Abayomi – e passo a passo para a confecção
das bonecas. Segue a sequência de slides produzidos para explicar
sobre as etapas nas seguintes imagens.

Imagem 1 – Título “Oficina de Bonecas Abayomi”

Imagem 2 – Materiais necessários

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Imagem 3 – Orientações iniciais

Imagem 4 – Disposição dos materiais

Imagem 5 – O corpo da boneca

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Imagem 6 – Finalização

Os slides representados nas Imagens (1, 2, 3, 4, 5 e 6)


nortearam a sequência expositiva a que faz jus ao gênero tutorial.
Exploramos com as fotos para que os interlocutores pudessem
acompanhar o fazer.
Além disso, faz-se necessário na exposição discorrer sobre
os detalhes da boneca. De acordo com leituras em Vieira (2020),
as bonecas Abayomis não têm traços faciais com o intuito de
representar todas as etnias escravas trazidas pelos colonizadores,
com um olhar inclusivo e coletivo, são bonecas negras feitas com
retalhos de tecidos, sem costura ou cola, moldadas a partir de nós
que possuem tamanhos variados, entre 2 cm a 120 cm e produzidas
de diversas formas. Fica à critério do seu produtor(a) criá-las com
ou sem turbantes, com ou sem cabelos e até mesmo se vestirão
túnicas, vestidos ou blusas e saias, vai depender da preferência de
cada um. As finalizações e/ou acabamentos podem ser feitos com a
utilização de diversos materiais e com a customização de materiais
que poderão ser reaproveitados como fitas, miçangas e bijuterias.
É importante destacar que não só a confecção da boneca,
inserimos discussões sobre a Literatura oral cuja origem africana
apresenta a riqueza da exposição do gênero tutorial e a narrativa
marcada pela vida de luta de mulheres criativas e de questões de

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garantia de direitos na Constituição de 1988. Há todo um processo
de contação de história, este foi usado como recurso narrativo da aula
em ambientes virtuais para ampliar questões críticas e reflexivas.
As demais sequências foram mais encontros e reuniões:

1. Reunião (via WhatsApp) com a professora regente de LP:


para organização e demais necessidades para a garantia
do sucesso da transmissão e entendimento da live, por
parte dos sujeitos envolvidos (professora preceptora
de LP, residente/estagiária de Letras e aluna do Ensino
Médio);
2. Organização dos materiais: usados para a produção das
bonecas Abayomis (material separado em duplicidade
para a aluna protagonista e para a tutora da live).

As etapas do gênero tutorial somavam-se em prol da efetivação


de uma live envolvendo já os representantes da comunidade escolar
das duas turmas do Ensino Médio, considerando os sujeitos e a
oportunidade de apresentar experiências que transcendem a sala de
aula física e passam para o ambiente virtual.
Estas sequências estão previstas na BNCC de Linguagens
(2018) e no Projeto Pedagógico da Escola de TI. De acordo com
os documentos oficiais, busca-se contemplar a cultura digital,
diferentes linguagens e diferentes letramentos, desde aqueles
basicamente lineares, com baixo nível de hipertextualidade, até
aqueles que envolvem a hipermídia” (Brasil 2018, p. 72).
Considerando as orientações da cultura digital, para os
penúltimos acertos, realizamos o agendamento prevendo horários
para encontro e a concretização da live (aula ao vivo).
Para isso foi criado um post para divulgação aos alunos e aos
demais interessados inscritos na página “Integrando APP”, presente
na mídia social Facebook, o dia, hora e tema da live (Imagem 07).
Segue o post:

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Imagem 7 – Convite para o evento online

O post (Imagem 7) foi produzido para divulgação do


evento, modalidade live, na página do Facebook da Escola-alvo,
com o apoio da equipe técnica, coordenação e direção. O título foi
pensando na comunidade externa que também pudesse participar.
Lembrando que os jovens do Ensino Médio, apesar da timidez,
curtiram a realização do evento. Afinal, a live é algo do interesse
do público jovem e da sociedade como um todo. O texto traz as
informações com o título “Oficina: Bonecas Abayomi”, informações
sobre o dia e o horário do evento. A produção do post soma-se como
mais uma experiência de usos da linguagem em situações concretas
de interlocução com o público interno e externo.
Na Imagem 7, há os sujeitos envolvidos (professora
preceptora de LP, residente/estagiária de Letras e a aluna do ensino
médio). Diálogos com diferentes interlocutores e, ainda, com os
demais membros da comunidade postados em tempo real.

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Abayomi na live: desafios e resistências no percurso
criativo

Ao tecer a boneca, Abayomi, vivenciamos desafios de acesso à


internet, o manter-se conectado durante o evento, as trocas de turnos
de fala na produção da live (sujeitos envolvidos) e na explicação
sob o caráter de resistência da temática cultura dos povos africanos.
Buscamos desenvolver o gênero tutorial como aliada a esta etapa
discorrer sobre os valores culturais dos povos de origem africana,
ou seja, usar da oralidade para compartilhar experiências.
Segue recortes de momentos da live:

Imagem 8 – Print da Live – Comentários e curtidas


durante a live

É possível observar, relacionando a citação de Vieira (2020)


com a imagem do momento no qual a residente/estagiária de Letras
explica o processo de produção da boneca. Esclarecendo aos
internautas sobre as origens da boneca. Esta nasceu com a função

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apenas de distrair as crianças presentes nos navios tumbeiros, até os
dias atuais. Como há sempre muitos lados de uma mesma narrativa,
apresentou-se o ressurgir da boneca como resistência de grupos
afrodescendentes e de luta por direitos constitucionais na década de
80, no Brasil.

Imagem 8 – Sequência da live

Na Imagem 8, há a foto da estudante protagonista J.R. que


ocupa o lugar de fala inicial sobre os processos que envolve o
gênero tutorial, durante a transmissão do evento, houve interrupção
da conexão. E esta primeira estudante precisou ser substituída por
outra, a aluna C.M., que já estava atenta. Há duas outras imagens,
elas são da residente/convidada e estagiária de Letras e ao lado,
a professora regente de LP, CR. Elas atuaram como mediadoras
durante o tempo de interlocução. Houve uma intensa participação
dos(as) alunos (as) e dos demais participantes. A vivência
oportunizou comentários instantâneos e depois em aula online
foram debatidos e considerados.

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Foi observado que mesmo com as dificuldades com a
conexão da internet para alguns alunos (as). E outras pequenas
dificuldades técnicas por mais que não foram suficientes para
suprimir os resultados obtidos com a realização da live. O uso das
diferentes linguagens e as circunstâncias de interação em ambientes
virtuais foram o ápice do processo de recriação não só da boneca
Abayomi. Evidenciamos os percursos pedagógicos de produção de
sentidos para as ações de resistência e mesmo de superação diante
de ambientes inéditos para a aprendizagem.

Últimos ajustes da Abayomi

As reflexões descritas aportam aos instantes vividos com


dificuldades e conquistas em diálogos entre, diferentes sujeitos
em busca de empreender ações de conhecimento durante ações do
RP e do Estágio Sup. Obrigatório no Ensino Médio para Língua
Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa. É preciso manter a
força de vontade e a dedicação para finalizar um curso universitário
em momentos como o que a humanidade está vivenciando na
Pandemia Covid-19. Outro, é manter a esperança e as ações para
os estudantes no Ensino Médio da rede pública com recursos
financeiros e condições nada favoráveis são capazes de muitas
produções criativas a partir de temáticas consideradas de resistência.
Toda esta ímpar contextualização que tivemos, sobretudo
diante da possibilidade em se trabalhar o gênero tutorial da
confecção da Abayomi a partir de reflexões críticas sobre as origens.
Aponta-nos para a possibilidade criativa de conduzir aos estudos
pós-coloniais para a sala de aula, inserindo o (a) estudante no
caminho da revisão histórica (tanto técnica, quanto de sentidos).
Eis aqui, as trilhas da recomposição e da reconfiguração
histórica, sobre uma releitura das vivências de indivíduos que foram
tomados por domínios capitalistas, colonialistas e imperialistas,

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por agentes dominadores que inviabilizaram e ainda inviabilizam
direitos essenciais. É importante trazer à tona os valores e os sentidos
em diferentes linguagens desses sujeitos que foram expropriando
em suas crenças, dignidade e principalmente: identidades.
Acreditamos que não só recriamos algo inédito ao
coparticiparmos em ações em ambientes virtuais. Elas nasceram de
diálogos de diferentes sujeitos, de momento de resistência e de luta
pela vida em contexto, e das ações do Estágios e da Escola-alvo que
lutou para manter as portas virtuais do conhecimento abertas.
Agradecemos a CAPES que financiou a bolsa do Programa
Residência Pedagógica – RP – Subprojeto de Língua Portuguesa, à
Escola-campo TI que é parceira no processo de formação dos (as)
acadêmicos (as) de Letras – UEMS – Unidade de Jardim e toda a
comunidade escolar de Jardim-MS.

Referências

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Ensino Médio.


Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2018.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Diário
Oficial da República Federativa do Brasil, vol. 134, nº 248,
Seção I, pp. 27834-27841, 23 dez. 1996.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2ª ed., 8ª
reimpressão. São Paulo: Contexto, 2018.
CHIZZOTTI, Antonio. “Políticas Públicas: direito de aprender e
avaliação formativa.” Práxis Educativa, vol. 11, nº 3, Ponta
Grossa, pp. 561-576, set/dez. 2016.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso
comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros
e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MATO GROSSO DO SUL. Referencial Curricular da Educação
Básica da Rede Estadual de Ensino/MS - Ensino Médio.
Campo Grande: Secretaria de Estado de Educação, 2007.
ROJO, R. e MOURA, E. (orgs.) Multiletramentos na escola. São
Paulo: Parábola editorial, 2012.
________. “A teoria dos gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e
os multiletramentos”, in: ROJO, R. (org.) Multiletramentos e
as TICs: escol@ conect@d@. São Paulo: Parábola Editorial,
pp. 9-32, 2013.
VIEIRA, Kauê. Bonecas Abayomi: símbolo de resistência, tradição e
poder feminino. Portal Geledés. Disponível em: https://www.
geledes.org.br/bonecas-abayomi-simbolo-de-resistencia-
tradicao-e-poder-feminino/. Acesso em: 16/01/2021.

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CULTURA ESCOLAR: ESPAÇOS, TEMPOS E
CURRÍCULO DE UMA “ESCOLA DAS ÁGUAS”
DO PANTANAL

Rogério Zaim-de-Melo
Marcia Regina do Nascimento Sambugari
Washington Cesar Shoiti Nozu
Mônica de Carvalho Magalhães Kassar

Introdução

O pulsar das águas do Pantanal impõe aos seus habitantes a


necessidade de aprender a conviver com o ciclo de cheias e secas,
gerando uma organização singular dos municípios brasileiros que
compõem a região, principalmente nas áreas não urbanas (Zaim-
de-Melo 2017). O trabalho, a locomoção, a moradia, a rotina, as
relações sociais e a escolarização dos pantaneiros acompanham e
se transmutam de acordo com a dinâmica das águas (Nozu e Kassar
2020a; Roman et al. 2021).
Nesse fluxo, a oferta de escolarização a crianças e adolescentes
que produzem suas existências nas regiões das águas do município
sul-mato-grossense de Corumbá é organizada por meio das Escolas

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das Águas, situadas em locais de difícil acesso e que ficam isoladas
em certo período do ano, devido a características hidrológicas do
Pantanal (Zaim-de-Melo, Duarte e Sambugari 2020).
As Escolas das Águas, organizadas como polos ou extensões,
estão localizadas em um raio de até 500 km, tomando como
referência o Porto Geral de Corumbá (Zaim-de-Melo 2017; Nozu
e Kassar 2020b). Cada unidade de ensino possui singularidades,
desde a natureza jurídica, a gestão, a estrutura física e material, a
oferta de escolarização, até o regime de funcionamento (regular,
turno estendido, jornada ampliada, integral, alternância e internato)
(Zaim-de-Melo, Duarte, Sambugari 2020; Nozu e Kassar 2020a).
As unidades de ensino ofertam, principalmente, a primeira
etapa do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano), sendo que algumas
também disponibilizam a Pré-Escola e a segunda etapa do Ensino
Fundamental (6º ao 9º ano).
O número de unidades de ensino que compreendem as Escolas
das Águas apresenta variações conforme as (re)configurações das
políticas de governo – principalmente quanto às (re)estruturações
da Secretaria Municipal de Educação de Corumbá – e as demandas
das comunidades pantaneiras pelo direito à educação. Assim, as
unidades são criadas, reagrupadas, desativadas ou extintas (Nozu
e Kassar 2020a). Em 2016, Zaim-de-Melo (2017) registrou 11
unidades de ensino (cinco polos e seis extensões), contabilizando
344 matrículas; por sua vez, em 2019, Nozu, Rebelo e Kassar
(2020) identificaram nove unidades de ensino (cinco polos e quatro
extensões) que compunham as Escolas das Águas, com total de 293
matrículas.
Os estudantes dessas escolas são filhos de pescadores,
isqueiros, lavradores de agricultura familiar, mineiros e,
principalmente, dos peões de boiadeiros que trabalham nas fazendas
de gado (Zerlotti 2014; Zaim-de-Melo 2017). De acordo com Zaim-
de-Melo (2017, p. 21):

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A criação de gado em terras pantaneiras levou, ao longo dos
anos, à criação da “cultura pantaneira”, que se relaciona com o
fazer do peão, o manejo das boiadas, o uso do berrante, o café
quebra-torto (refeição realizada antes do início dos trabalhos
diários, composta de farofa, acompanhada de chá preto ou leite
e algumas vezes de arroz com charque) e o consumo de peixe
de água doce.

As Escolas das Águas se constituem como os primeiros


espaços de socialização das crianças além da família, local onde
fazem amizades, aprendendo regras e valores (Zerlotti 2014; Zaim-
de-Melo 2017). São instituições com funções de transmitir, produzir
e transformar as diversas formas de conhecimentos culturais e
científicos produzidos pela humanidade. A maneira como essas
ações acontecem caracteriza a chamada “cultura escolar”.
Para Julia (2001), a cultura escolar normatiza e define os
conhecimentos que serão transmitidos na escola, levando em conta
não só o aluno e sim todo o contexto escolar, como docentes,
funcionários, espaço etc. Viñao Frago (1995) apresenta o espaço,
o tempo e a linguagem como dimensões constitutivas da cultura
escolar. Forquin (1993) acrescenta outro elemento que se refere à
forma como os conteúdos são trabalhados no contexto escolar.
Na cultura escolar encontram-se as práticas e as condutas, os
modos de vida, os hábitos e os ritos, o dia a dia do saber escolar, os
objetos materiais utilizados, suas funções, a relação tempo e espaço,
bem como sua distribuição, a materialidade física, a simbologia, os
modos de pensar, significados e as ideias compartilhadas (Viñao
Frago 1995). Entre esses aspectos, o autor considera três dimensões
que merecem atenção:

[…] o espaço, o tempo e a linguagem ou meios de comunicação


- afetam o ser humano diretamente na sua própria consciência,
em todos os seus pensamentos e atividades, individual, ou
em grupo e como uma espécie em relação à natureza a qual

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pertence. Eles moldam e são moldadas, por sua vez, pelas
instituições de ensino. Daí a sua importância. (Viñao Frago
1995, p. 69, tradução nossa)1

O espaço físico é o lugar e, ao mesmo tempo, simbolicamente,


território, no qual os humanos estabelecem suas relações sociais e
a escola é uma das maneiras que auxiliam nessa conversão lugar/
território. Dessa maneira, o espaço nunca é neutro, traz consigo
toda a história e cultura de um povo. O mesmo se aplica ao espaço
escolar, que não deve ser visto como um espaço vazio, pronto para
que a aprendizagem ocorra sem levar em consideração todo o seu
entorno social.
No espaço físico escolar, leva-se em conta a área construída
(as salas de aula, sua disposição espacial, a existência de quadra
de esportes, laboratórios) bem como o ambiente aberto (área
murada ou não), dentro de um limite de propriedade. Também
são considerados os chamados espaços pessoais, como carteiras,
armários, entre outros (Viñao Frago 1998).
O tempo (social e humano) é uma construção social da
realidade, um ato de representação sobre o antes, o agora e o
depois. O tempo “é uma faculdade de síntese e relacionamento,
juntamente com a memória, cria e conecta o espaço da experiência
com o horizonte de expectativas” (Viñao Frago 1995, p. 72). Uma
das modalidades temporais é o tempo escolar, diverso e plural,
individual e institucional, condicionante e condicionado por outros
tempos sociais; um tempo aprendido conforme a aprendizagem do
tempo; uma construção cultural e educacional (Viñao Frago 1995).

1. […] el espacio, el tiempo y el lenguaje os modos de comunicación –


afectam al ser humano de lleno, en su misma conciencia interior, en
todos sus pensamientos y actividades, de modo individual, grupal y como
especie en relación con la naturaleza de la que forma parte. Conforman
y son conformados, a su vez, por las instituciones educativas. De ahí su
importancia (Viñao Frago 1995, p. 69).

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Além do espaço e do tempo escolar, também se define
na cultura escolar o que, como, quando e onde os conteúdos são
trabalhados. A cultura escolar define “o conjunto de conteúdos
cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados,
normalizados, rotinizados, sob os efeitos dos imperativos da
didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão
deliberada no contexto das escolas” (Forquin 1993, p. 167).
A partir da contextualização e da conceituação expostas,
no presente capítulo, são costurados resultados de duas pesquisas
que investigaram, com diferentes ênfases, as Escolas das Águas do
Pantanal corumbaense, de Mato Grosso do Sul. Particularmente,
neste texto, busca-se descrever o cotidiano de uma Escola das
Águas, de modo a analisar a sua cultura escolar, enfatizando os
espaços, os tempos e o currículo.

Caminhos metodológicos

Nesse trabalho, procuramos tecer algumas análises sobre


dados de duas pesquisas qualitativas: Jogar e brincar na cultura
lúdica das crianças da Escola Santa Mônica, Pantanal Paiaguás2 e
Inclusão de alunos público-alvo da educação especial em escolas
ribeirinhas de Corumbá/MS.3
A primeira pesquisa, com dados coletados em 2016, assumiu
a feição de estudo de caso fundamentado em Ludke e André (1998),
com observação in locu na Escola Fazenda Santa Mônica, uma
extensão da Escola Municipal Rural de Educação Integral Polo
São Lourenço, situada a 488 km de Corumbá. O levantamento de

2. Aprovada na Plataforma Brasil com a Certificação de Apresentação para


Apreciação Ética n. 60115516.6.0000.0021.
3. Aprovada na Plataforma Brasil com a Certificação de Apresentação para
Apreciação Ética n. 25693219.1.0000.5160.

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dados empíricos foi realizado durante 15 dias, no mês de agosto
de 2016, por meio de observações registradas em um diário de
campo e entrevistas com quatro docentes: as professoras A e B; e os
professores C e D.
A segunda pesquisa entrevistou, no ano de 2019, três
professoras da Escola Fazenda Santa Mônica, nominadas aqui como
professora E, F e G, nas dependências da Secretaria das Escolas das
Águas, na sede urbana do município de Corumbá. As/Os docentes
A, B, C, D, E F são graduadas/os em Pedagogia, ao passo que a
professora G é formada em Ciências Biológicas.
Em ambas as coletas, as entrevistas partiram de roteiros
semiestruturados e foram registradas por meio de gravação em áudio,
com posterior transcrição e textualização. Todos os participantes
foram informados das intenções da pesquisa e manifestaram
anuência mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
Os dados obtidos em ambas as pesquisas foram examinados,
utilizando-se a análise de conteúdo, preconizada por Bardin (2011),
para buscar compreender criticamente o sentido das comunicações,
seu conteúdo manifesto ou latente, as significações ocultas ou
explícitas. Os resultados foram organizados em quatro eixos: a) o
cenário, a rotina e a equipe escolar; b) o espaço escolar; c) o tempo
escolar; e d) o currículo.

O cenário, a rotina e a equipe escolar

A Escola Fazenda Santa Mônica está localizada na região do


Paiaguás, próxima do rio Piquiri, no Alto Pantanal, cerca de 448 km
de distância do Porto Geral de Corumbá. O cenário possui flora e
fauna exuberantes, com períodos de cheia e de seca bem definidos.
O acesso e a locomoção na região são bastantes dificultosos,
principalmente no período das cheias (Ecoa 2017).

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As atividades da escola iniciaram-se em 2010, atendendo três
alunos filhos de trabalhadores da própria fazenda. Com o aumento
da demanda dos alunos, em agosto de 2011 foi firmada uma parceria
entre o proprietário da fazenda e a Secretaria de Educação do
Município de Corumbá, incluindo a unidade de ensino no rol das
Escolas das Águas (Ecoa 2017).
Tendo em vistas as longas distâncias entre a escola e as
residências dos alunos, é disponibilizado um alojamento estudantil.
Conforme Ecoa (2017, p. 26), “os alunos ficam 60 dias alojados na
escola, voltando para casa ao final de cada bimestre”. Os pais se
orientam por meio de um calendário, entregue no início do ano letivo,
sobre as datas para levar e buscar os filhos na escola (Ecoa 2017).
Alguns trajetos casa-escola levam até sete horas (Ecoa
2017). Como informou a professora E: “depende de como está o rio,
como está o terreno. Se estiver seco já é o trator, se estiver alagado
às vezes tem que ir a cavalo. Teve até caso de um aluno que a mãe
para chegar na escola teve que ir de trator, outro trecho a cavalo e
de lancha”.
Tanto em 2016 quanto em 2019, a escola ofereceu os anos
iniciais do ensino fundamental de maneira multisseriada, em regime
de internato, com a mesma carga horária das escolas integrais, no
mínimo de 1.600 horas com jornada de, no mínimo, oito horas
diárias de efetivo trabalho escolar. Nessa escola, as aulas ocorriam
de segunda a sexta, período integral e no período matutino do
sábado. A rotina da escola seguia os seguintes horários:

– 5h45min – Levantar;
– 6h20min às 6h50min – Café da manhã;
– 7h – Entrada em sala;
– 9h às 9h20min – Intervalo/Lanche;
– 11h15min – Término do período matutino;
– 11h30min – Almoço;
– 12h às 12h50min – Sesta;
– 13h – Entrada em sala;

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– 15h às 15h20min – Intervalo/Lanche;
– 17h – Término do período vespertino;
– 17h30min – Banho;
– 18h30min às 19h – Jantar;
– 20h – Dormir;
– 21h – O gerador é desligado.4

Aos sábados, a rotina escolar era a mesma até às 11h15min,


embora os horários para alimentação, banho e hora de dormir
permanecessem. Aos domingos, o café da manhã era servido às 8h
(Registro de Diário de Campo).
Em agosto de 2016, a escola contava com a matrícula de
39 alunos (Zaim-de-Melo 2017); em setembro de 2019, havia 50
alunos matriculados (Nozu, Rebelo e Kassar 2020). As matrículas
apresentam grande variação ao longo do ano, em razão de
transferências e desistências.
Nos anos de 2016 e de 2019, a escola contou com uma
coordenadora administrativa, dois monitores (uma para as meninas
e um para os meninos), uma cozinheira, três auxiliares de serviços
gerais (uma é responsável pela lavanderia) e um “praieiro” –
funcionário responsável pelos cuidados da parte operacional externa
da escola, como cortar grama, molhar as plantas, rachar a lenha,
rastelar, limpar a caixa de gordura, abastecer o gerador etc.
Nos anos das coletas, o corpo docente da escola era
constituído por quatro professores/as: em 2016, uma concursada
e três contratados; em 2019, todas contratadas.5 Os professores da
Escola Fazenda Santa Mônica possuíam um regime de trabalho
diferenciado dos demais docentes da rede municipal de ensino.
Eles moravam na escola durante o período das aulas. No final
dos 1º e 3º bimestres retornavam para Corumbá, permanecendo

4. A energia elétrica da escola é fornecida por gerador a diesel. Dados


registrados em diário de campo.
5. No ano de 2019, embora houvesse na escola quatro professoras, apenas três
participaram das entrevistas referentes à segunda coleta de dados.

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por duas semanas com compromissos escolares: entrega de notas
e relatórios, elaboração de planejamento do próximo bimestre,
reuniões pedagógicas, cursos, entre outros (Zaim-de-Melo 2017;
Nozu e Kassar 2020a).
Todos os docentes tinham contrato de 40h semanais, das
quais 10 eram destinadas à hora atividade (planejamento individual)
e duas horas para a realização de planejamento integrado. O
vencimento do professor era acrescido em 20% sobre o salário base,
sob a rubrica de difícil acesso.
Para atuar na escola, os professores passam por um processo
diferenciado de seleção na Secretaria das Escolas das Águas,
no perímetro urbano de Corumbá, principalmente devido às
características peculiares, senão únicas, do local de trabalho e do
público a ser atendido. Os docentes recebem uma formação de cerca
de oito horas, na qual são abordados aspectos referentes à estrutura
e funcionamento escolar (Zaim-de-Melo 2017; Rios 2020; Nozu e
Kassar 2020b).
Segundo Zerlotti (2014) e Nozu, Rebelo e Kassar (2020),
existe uma alta rotatividade dos professores que trabalham nas
Escolas das Águas, por diversos fatores, como: desconhecimento
da realidade, problemas interpessoais, contratos temporários, mas
principalmente pelo isolamento da escola em relação à cidade.
Além dos professores, os monitores desenvolvem um
papel fundamental na formação dos estudantes, pois fica sob sua
responsabilidade zelar pela higiene das crianças, controlando banhos
diários, higiene bucal, cumprimento de horários e planejamento de
atividades lúdicas para os horários extraclasses.
A comunicação entre a Secretaria das Escolas das Águas,
sediada em Corumbá, que responde pedagogicamente pela Escola
Fazenda Santa Mônica, é feita através de internet via satélite e/ou
telefone celular rural.

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O espaço escolar

A escola foi pensada para atender até 40 crianças. É construída


em alvenaria, pintada nas cores azul e branco, coberta com telhas de
fibrocimento e isolante térmico e possui a seguinte estrutura: três
salas de aula (uma delas é utilizada também como sala de TV e
vídeo), uma biblioteca/sala de computação com acesso à internet via
satélite, refeitório, cozinha, secretaria, dois dormitórios (masculino
e feminino), dois consultórios médicos, uma quadra de basquete
(terra batida), dois alojamentos para professores, três alojamentos
para funcionários, nove banheiros, divididos entra a escola e os
alojamentos, e uma palhoça para convivência das crianças (Registro
de Diário de Campo).

Figura 1 – Espaço da Escola Fazenda Santa Mônica.

Fonte: Elaboração própria.

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As salas de aula possuíam estrutura semelhante: um quadro
negro, uma estante de madeira com jogos e materiais pedagógicos,
janelas amplas e teladas, conjuntos de carteiras e cadeiras para os
alunos, um conjunto de mesa e cadeira para o professor e ventiladores
de teto (Registro de Diário de Campo).
A padronização se fazia presente nas salas de aulas da
Escola Fazenda Santa Mônica: o espaço escolar, um dos itens que
compõem a cultura escolar (Viñao Frago 1995), a disposição das
carteiras e os cartazes nas paredes são exatamente iguais às outras
escolas urbanas. Nessa perspectiva, problematiza-se a presença/
ausência de traços da cultura local no que concerne ao espaço da
escola pesquisada.

O tempo escolar

A distribuição das turmas obedecia aos critérios baseados em


idade/ano escolar, classificando as crianças pelo domínio da leitura e
escrita, com pouca abertura aos saberes que elas traziam das suas casas
para a escola (Registro de Diário de Campo). Ainda que agrupadas
por idade/ano escolar, as turmas também se organizavam de forma
multisseriada, o que sinalizava diferentes desafios ao planejamento e
manejo do tempo das atividades (Nozu e Kassar 2020a).
De acordo com a professora G:

Naquela sala, que é bisseriada, o professor acaba dividindo a


turma em mais séries. Porque tem aquele aluno que está lá no
terceiro ano, mas ainda não aprendeu a ler. Então, a atividade
para ele acompanhar aquele conteúdo tem que ser diferenciada,
porque às vezes ele não consegue interpretar porque não sabe
ler. Enquanto isso tem aluno também do terceiro ano que está
acompanhando muito bem. Tudo o que você passa, ele termina
antes do tempo. Então a turma acaba se dividindo em várias,
apesar de ser duas é mais do que duas ali.

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Conforme Arroyo (2006, p. 113), nesse contexto é preciso
considerar que “os educandos estão em múltiplas idades. Múltiplas
temporalidades. Temporalidades éticas, cognitivas, culturais,
identitárias. É com diversidade de temporalidades que trabalha a
escola do campo”.
Quase todo o tempo da criança era ocupado com oito horas/
aula diárias, com intervalos para lanches e almoço (Registro de
Diário de Campo). Preocupada com o cumprimento dos conteúdos,
em 2016, a professora B relatou: “nas minhas aulas, os alunos só
brincam quando eu autorizo, quando sobra tempo, mas quase não
sobra, eu tenho muito conteúdo. Sem minha autorização eles não
podem brincar”.
De acordo com Zaim-de-Melo, Duarte e Sambugari (2020,
p. 21), “embora permaneçam oito horas na sala de aula, nos intervalos e
antes do banho, ao soar do sino, os alunos saem correndo e já estão no
seu ‘quintal’, prontos para brincar: um jogo de bolitas, um pega-pega ou
apenas um empurra-empurra, levando a um riso solto, descontraído”.
Já em 2019, ao relatar as práticas pedagógicas para incluir
um aluno com necessidades educacionais especiais em sala de aula,
a professora E informou:

Eu procurava fazer jogos, alguma dinâmica para sempre inserir


mais os alunos. Porque, por mais que todos estivessem juntos
no quinto ano, ele [estudante com necessidades educacionais
especiais] tinha as suas especificidades, então para incluir mais
a turma toda sempre fiz questão de formar equipes. Realizava
jogos, atividades mais lúdicas para sempre incluir ele. Para
poder avaliar, ele tinha que fazer uma coisa mais dinâmica,
com jogos, com brincadeira, colocar em grupo para conseguir
desenvolver, ter interesse em desenvolver. Ele cantava e
dançava chamamé.6 Era o melhor dançarino!

6. Trata-se de um estilo musical e de uma dança, de influências de ritmo


folclórico argentino e da cultura Guarani, difundido no Paraguai e no estado
de Mato Grosso do Sul.

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Os diferentes relatos evidenciam a multiplicidade de práticas
em que os “tempos humanos” (Arroyo 2006) podem constituir a
cultura escolar: ora sinalizando para cortes entre o tempo de aprender
e o tempo do lúdico/do brincar/da vida cotidiana; ora confluindo
esses tempos humanos no espaço de sala de aula.
Para Martins (2007), a organização do tempo escolar
deveria transcender à realidade fragmentada sob a qual se institui
o cotidiano escolar, que tem apenas aulas. Assim, é importante que
a singularidade de uma Escola das Águas, de um lado, proporcione
uma educação emancipatória voltada para o global, sem esquecer,
por outro lado, as especificidades da cultura local.

O currículo

O currículo da escola era dividido em uma base comum


(fundamentada nos Parâmetros Curriculares Nacionais) e, ainda,
uma parte diversificada para enriquecer e complementar o currículo
(Corumbá 2015). Tanto em 2016 como em 2019, na base comum
estavam os componentes curriculares de língua portuguesa,
matemática, história, geografia, arte, educação física e língua
estrangeira moderna (língua inglesa). Já na parte diversificada,
foram oferecidos os componentes mídias e tecnologias, formação
cidadã, atividades artísticas e culturais, iniciação desportiva e
orientação para o estudo e pesquisa.
Esse currículo nem sempre era elaborado de acordo com as
necessidades das crianças. Um exemplo disso é o material didático
utilizado, como afirma a professora A:

No material didático que nós temos feito para alunos do


campo, traz orientações do tipo: Qual é o seu bairro? Junto
com a sua família, utilizando objetos da natureza tente produzir
uma música, treinando com todos até encontrar um ritmo legal.

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Como a gente faz se o menino mora em uma fazenda e seu pai
levanta às quatro da manhã para trabalhar no campo e a mãe
passa o dia inteiro com seus afazeres domésticos?

O material didático, embora teoricamente tenha sido feito


para se adequar à realidade dos alunos das escolas do campo, quase
sempre traz em seu conjunto um conteúdo com textos que não
correspondem às características regionais (Verceze e Silvino 2008).
Além disso, é preciso problematizar a precarização das condições
de vida dos povos das águas, bem como dos trabalhadores docentes,
e entender como isso se reproduz nas relações escolares (Zerlotti
2014; Nozu e Kassar 2020a).
Para Zaim-de-Melo (2017, p. 33), “não é só nas escolas do
campo ou das ‘águas’ que essa situação acontece, pois em busca
de uma homogeneização para atender aos parâmetros do Programa
Nacional do Livro Didático, o material didático utilizado nas escolas
acaba se descolando da realidade local ou regional”.
Os conteúdos escolares são priorizados, em detrimento de
atividades lúdicas, como em geral ocorre nos contextos escolares.
Isso indica que a cobrança por resultados é a mesma, na cidade
e no campo. Como afirmou, em 2016, o professor C: “o desafio
de trabalhar numa Escola das Águas é inserir no meio em que as
crianças vivem os mesmos conhecimentos que na cidade tem, que
as crianças teriam que estar nesse contexto”.
O afã de padronização dos atendimentos às crianças da cidade
e as das águas, leva à prevalência de um currículo hegemônico,
cujas particularidades da cultura pantaneira pouco são observadas,
de modo a transplantar a cultura escolar urbanocêntrica para as
Escolas das Águas, acarretando em uma falta de identidade local,
com pouca valorização e reconhecimento das suas singularidades
(Zerlotti 2014; Zaim-de-Melo 2017).
Entretanto, em 2019, algumas percepções da professora F, ao
informar o trabalho com um aluno com necessidades educacionais
especiais, sinalizavam algumas pistas sobre possibilidades

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de incorporação de aspectos socioculturais locais às práticas
pedagógicas:

É dentro de atividades específicas que ele [aluno com


necessidades educacionais especiais] conseguia desenvolver.
Então, tudo que envolvia isso, ele se expressava melhor. E
também era muito ligado nas coisas do cotidiano dele, da vida
cotidiana, da lida na fazenda, dos animais, como que tinha que
lidar com boi, com cavalo.

As crianças da Escola Fazenda Santa Mônica têm


assegurado, por direito, o conteúdo curricular principal – núcleo
comum, desafio enfatizado pela professora B – e, ao mesmo tempo,
as atividades específicas relacionadas ao contexto sociocultural
em que se encontram (Candau 2008). Entretanto, no currículo da
escola eram frágeis as referências à cultura pantaneira (Zaim-de-
Melo 2017). Esse desafio poderia ser atenuado, independente do
currículo proposto pela Secretaria Municipal de Educação, se os
professores fossem oriundos das fazendas, das regiões das águas
ou das proximidades das escolas, ou se permanecessem nas escolas
por mais tempo, criando vínculos mais estreitos com a comunidade
local. Isso porque nas Escolas das Águas há uma alta rotatividade de
professores (Zerlotti 2014; Nozu, Rebelo e Kassar 2020).
De toda forma, é preciso fortalecer a incorporação das
especificidades locais nas atividades curriculares da escola, o que
propiciaria às crianças pesquisar, aprender, compartilhar e valorizar
elementos da cultura pantaneira.

Considerações finais

Nesse texto, foram apresentados alguns aspectos da cultura


escolar de uma unidade de ensino das Escolas das Águas do

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Pantanal corumbaense, destacando aspectos do espaço, do tempo
e do currículo. Estes elementos vão se construindo em meio à
diversidade das turmas multisseriadas, dos alunos alojados e dos
professores que se deslocam do perímetro urbano para trabalhar/
viver nas Escolas das Águas.
Os elementos que compõem a cultura escolar estavam
presentes no cotidiano das crianças, sendo que o espaço e o tempo
eram os maiores influenciadores na cultura lúdica observada. As
crianças só podiam brincar na frente da escola. Embora haja um
grande espaço físico no entorno dela, as preocupações com a
segurança dos alunos limitam os locais nos quais eles podem se
divertir (ZAIM-DE-MELO, 2017).
A prevalência de elementos urbanocêntricos e a fragilidade
de inserção da cultura pantaneira no currículo da escola investigada
constitui-se um desafio urgente a ser enfrentado. Essa é uma das
lacunas que precisam ser consideradas pela Secretaria Municipal de
Educação, considerando, inclusive, a alta rotatividade de professores
que atuam nas Escolas das Águas.

Referências

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metas. In: MOLINA, M. C. (Org.). Educação do campo e
pesquisa: questões para reflexão. Brasília: Ministério do
Desenvolvimento Agrário, pp. 103-116, 2006.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2008.
CANDAU, V. M. Reinventar a escola. Petrópolis: Vozes, 2008.
CORUMBÁ. Projeto Político Pedagógico das Escolas das Águas.
Corumbá: Secretaria Municipal de Educação, 2015.
ECOA. Caderno do professor: Escolas das Águas: valorizando o
saber local. Campo Grande: Gráfica Mundial, 2017.

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Brasileira de História da Educação, nº 1, pp. 9-43, 2001.
LUDKE, M. e ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisas em educação:
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do Campo.” Revista Educação, 33 (1), pp. 93-106, 2007.
NOZU, W. C. S. e KASSAR, M. C. M. “Inclusão em Escolas
das Águas do Pantanal: entre influências globais e
particularidades locais.” Revista Educação Especial, vol. 33,
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NOZU, W. C. S. e KASSAR, M. C. M. “Escolarização de crianças e
adolescentes pantaneiros em tempos de COVID-19.” Práxis
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NOZU, W. C. S.; REBELO, A. S. e KASSAR, M. C. M. “Desafios
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VERCEZE, R. M. A. N. e SILVINO, L. F. M. “O livro didático
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ZERLOTTI, p. H. Os saberes locais dos alunos sobre o ambiente
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Pantanal de Mato Grosso do Sul. Dissertação de Mestrado
em Educação. Campo Grande: Universidade Católica Dom
Bosco, 2014.

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TRILHAS DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA EM
LÍNGUA PORTUGUESA PARA O ENSINO
REMOTO EM CONTEXTO PANDÊMICO

Lidiane Martins
Adélia Maria Evangelista Azevedo

Introdução

Pensar o ensino de Língua Portuguesa, doravante (LP),


sempre foi sinônimo de firmar inúmeros desafios. Agora, se a pouco
tempo alguém pedíssemos para elaborar uma Sequência Didática em
Língua Portuguesa (SDLP) para as aulas em contexto de pandemia,
imaginaríamos algo improvável, de cunho ficcional.
Com o início da Pandemia Covid 19, nos primeiros meses
de 2020, este contexto, de uma hora para outra tornou-se realidade.
Desse modo, o ano de 2020 entrou para a História, como um período
atípico em que o coronavírus SARS – Covid 19 abalou o mundo.
Diante de tantas alterações e adequações emergenciais, a escola não
ficou de fora e, de repente, nos vimos diante do inesperado, adequar
o ensino ao tempo contexto de exceção.

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Assim, este trabalho objetiva apresentar percursos discursivos
e de análise de parte de uma ação maior ocorrida durante o período
de março de 2020 a dezembro de 2020. Apresentamos a SDLP, ela
foi aplicada numa turma do 9º ano, de uma Escola da Rede Estadual
de Ensino, da cidade de Guia Lopes da Laguna – MS. A descrição
busca realizar análise das atividades construídas com propósito de
amenizar os prejuízos causados pelo ensino remoto, nas aulas de
LP, naquele início da crise sanitária.
Desse modo, este artigo traça uma breve contextualização
da pandemia no mundo e no Brasil; em seguida trazum relato sobre
pandemia e o ensino em Mato Grosso do Sul (MS) e Guia Lopes
da Laguna, respectivamente estado e cidade em que se localiza a
escola, na qual desenvolvemos a experiência pedagógica.
Diante do inédito, buscamos construir estratégias a partir de
uma SDLP que possibilitasse leitura e produção interativa a partir
de gêneros textuais, permitindo, dessa maneira, o uso real da língua,
e proporcionando mais sentido ao aprender, principalmente para
aquele momento, tão adverso.
Segue, nos próximos itens, o esforço para tais vivências de
transição entre o ambiente presencial e virtual.

Contexto pandêmico no mundo e no Brasil

De acordo com Harver (2020), a Covid-19 foi inicialmente


encontrada em Wuhan, província da China, embora não saibamos
ainda se teve sua origem lá. E o vírus que inicialmente se pensava
que não passaria dos muros da China, tomou uma propagação
mundial, provocando um cenário de guerra contra um inimigo
invisível.
Especialistas afirmam o poder do vírus, por conta da rápida
propagação; a falta de medicamento para combater ou prevenir
o contágio e pelo número de mortes que ele provoca. Conforme

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salienta Nancy (2020) ao contradizer alguns estudiosos que
minimizam a problemática do vírus:

A pesar de ello, la gripe “normal” siempre mata a varias


personas y el coronavirus[...] que no hay vacuna es claramente
capaz de una mortalidade mucho mayor. La diferencia (según
fuentes del mismo tipo que las de Agamben) es de 1 a 30: no
me parece una diferencia pequeña [...] (Nancy 2020, p. 29)

Diante de tal situação, a China que enfrentou primeiramente


a questão, apresentou entre as medidas de prevenção mais eficazes,
o isolamento social. Uma alternativa contraditória, pois alcançou o
almejado por aquele país, porém não foi tão bem aceita ou eficaz em
outros, por diversas questões.
Como explica Harvey (2020) foi notável na China, o
confinamento da epidemia à província de Hubei, em Wuhan, o
epicentro inicial da Pandemia. Este não se deslocou para outros
pontos importantes do país como Pequim, por exemplo, nem para
o Ocidente, nem para o Sul. Tais medidas tomadas para confinar
geograficamente o vírus foram draconianas. Seria quase impossível
replicá-las em outro lugar. E assim, o país pode, naquele momento,
conter a situação, diferente de outros.
Harvey (2020, p. 16), ainda comenta que um dos primeiros
problemas para evitar a pandemia foi a impressão de que a
expansão do vírus ocorreria apenas em território chinês. Segundo
o estudioso, o fato de a epidemia ter eclodido na China, que rápida
e impiedosamente agiu para conter seus impactos, levou o resto do
mundo a tratar erroneamente o problema como algo que aconteceria
apenas “lá”.
Em outros países, preocupou-se com a possibilidade de
o vírus se tornar uma pandemia começou muito tardiamente.
Os Italianos, por exemplo, inicialmente por questões políticas,
econômicas e culturais, entre outros, não aderiram às medidas de
isolamento social, como na China. Então, em um espaço de menos

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de um mês entre o primeiro cidadão italiano contaminado, o país
se viu em um cenário devastador, chegando a mais de mil mortes
diárias por conta da Covid-19.
A questão da Itália foi apenas o pontapé inicial para o cenário
catastrófico que o mundo assistiria. Em seguida outros países da
Europa, seguido dos Estados Unidos da América (EUA) e de países
da América do Sul, dentre eles, o Brasil, presenciaram a devastação
do vírus. E com ele, o aumento de crises já instauradas.
No que tange à área da saúde, Davis (2020, p. 8) ressalta
que “[...] no novo século, a medicina de emergência continuou a ser
reduzida no setor privado pelo imperativo do “valor de ação”, [...] e
no setor público pela austeridade fiscal e reduções nos orçamentos
estaduais e federais destinados ao setor”. Isso não aconteceu somente
nos EUA, mas na maioria dos países capitalistas. Resultado, além
de serem surpreendidos com o vírus desconhecido, há também
um despreparo para atender um número expressivo de pacientes
contaminados.
Nessa linha EUA, França, Espanha, Inglaterra, Brasil, entre
outros países ao redor do mundo sofreram com falta de leitos e UTIs
para atender aos pacientes com sintomas mais graves da pandemia.
Dentre as questões para essa ineficácia está a cultura, mas
principalmente a necessidade de sobrevivência de alguns grupos.
Conforme, Santos (2020, p. 15) explica “qualquer quarentena é
sempre discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais do que
para outros e impossível para um vasto grupo”.
Podemos dizer, portanto, que a exclusão social implicou
no insucesso do isolamento, uma vez que um grande grupo foi
impossibilitado de aderir à quarenta, esses ficaram mais expostos
ao vírus. Por conta disso, entre outras questões, os números de
casos aumentam e o colapso na saúde pública foi inevitável, como
falaremos a seguir ao expor a situação do Brasil, na pandemia.

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O agravamento da crise pandêmica no país

No Brasil, após os primeiros casos de contaminação da


Covid-19, em meados do mês de março de 2020, o presidente
sinalizou, em uma transmissão em rede nacional que era contra a
orientação de que o brasileiro aderisse ao isolamento social. Nesta
ocasião, o líder do país culpabilizou a mídia por espalhar pânico
às pessoas e afirmou que se contraísse a doença seria uma simples
“gripezinha”.
Desde então, em meio à pandemia aumentou ainda mais
os ânimos entre os favoráveis e os não favoráveis à posição do
governo, desse modo, a crise política no país, mesmo durante a
pandemia, se manteve tão forte quanto ao vírus, prova disso foram
as manifestações constantes dos grupos apoiadores do líder maior,
do país.
Segundo Löwy (2020, p. 147) lideranças de outros países
como Shinzo Abe (Japão), Modi (Índia), Trump (USA), Orban
(Hungria) também reagiram à epidemia do coronavírus negando o
seu perigo. O presidente Trump nos EUA, em 2020, por exemplo,
nas primeiras semanas, e o inglês, Boris Johnson, chegaram a propor
que deixasse o conjunto da população se infectar com o vírus, para
assim “imunizar coletivamente” toda a nação. Porém, mais adiante,
com o agravamento da crise eles recuaram a ideia.
O estudioso salienta, que a diferença no caso do Brasil, é que
o dirigente do país se manteve firme em sua posição. “O caso do
Brasil é então especial, porque o personagem do Palácio da Alvorada
persiste em sua atitude “negacionista” (2020, p. 147). Tal posição,
inclusive levou o presidente a tomar algumas atitudes drásticas
como, por exemplo, no início à eclosão de uma crise pandêmica,
o então ministro da saúde, foi demitido, por ir de encontro aos
pensamentos de seu chefe.
Assim, no Brasil, além de a polaridade política se ampliar no
período de pandemia, a crise econômica que o país já vivia também

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se agravou e contribuiu para o aumento da Covid-19 no país. Pois,
conforme Salienta Santos (2020) é impossível que um vasto grupo
social tenha condições de estar em quarentena, nesse período.
Então a necessidade de buscar meios de sobrevivência levou
muitos a se expor ao vírus, se contaminar, e contaminar outros, e
assim aumentar o número de casos, e deixar o país em uma situação
de descontrole, em relação à doença. Com a tragédia anunciada, os
números, só se fizeram crescer com o decorrer dos meses, mas as
situações foram díspares em cada estado do país, a seguir trataremos
de questões relacionadas à Covid-19, em Mato Grosso do Sul – (MS).

Contexto pandêmico em MS

Este item tenciona relatar questões pertinentes acerca do


contexto da Covid-19 em MS, estado ao qual pertence à escola em
que realizamos as experiências pedagógicas apresentadas neste
trabalho. Para tal, primeiramente destacaremos o avanço e as medidas
tomadas ao enfrentamento da doença, nesta localidade, como aporte
de nosso trabalho utilizaremos, em especial, informações retiradas
da Secretaria de Estado de Saúde - SES.
Segundo Garcia e Duarte (2020) diante da elevada
infectividade do SARS-CoV-2, agente etiológico da Covid-19, e
na ausência de imunidade prévia na população humana, bem como
de vacina contra este vírus, tornou-se exponencial o crescimento
do número de casos. As Intervenções Não Farmacológicas - (INF),
foram as principais orientações sugeridas para inibir a transmissão
entre humanos e desacelerar o espalhamento da doença, buscando,
dessa maneira, diminuir e postergar o pico de ocorrência na curva
epidêmica.
Diante dessa alternativa, desde os primeiros registros de
casos do novo coronavírus no país, o Estado de MS tomou medidas
de prevenção à doença. Assim, promoveu incentivo ao isolamento

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social voluntário, uso de máscaras, higienização das mãos; além
disso suspendeu eventos e atividades públicas; decretou restrições
de funcionamento de bares, restaurante e lanchonetes, limitação
de passageiros em transportes públicos, e a suspensão de aulas em
escolas públicas e privadas, entre outros.
Com tais medidas até o final do terceiro mês desde o primeiro
caso confirmado no Brasil, o estado, ocupava o último lugar em
número de contaminados e de morte no país, talvez um dos motivos
para o baixo número de contaminações foi a adesão e incentivo das
INF. Porém, a partir do terceiro mês do início de casos confirmados,
a situação começou a ficar mais crítica.
As medidas foram tomadas no tempo adequado e isso
de certa forma contribuiu para com o baixo número de casos de
Covid-19, no MS, até aquele momento. Por outro lado, o índice
reduzido de incidências levou à perda da adesão ao isolamento por
parte da população, e o estado que chegou a estar entre os índices
mais baixos de contaminação, mudou o quadro e os números de
casos positivos levou MS, ao pico de contaminação.
Outra questão para o aumento de casos do novo coronavírus
no MS, inicialmente, foi a circulação de assintomáticos. Foi o que
ocorreu no município de Guia Lopes da Laguna, cidade à qual
pertence a escola onde desenvolvemos a experiência pedagógica,
que relataremos neste artigo. O município em questão, por exemplo,
se tornou no mês de maio de 2020, o epicentro da doença no
estado pelo contágio de um caminhoneiro que veio de São Paulo,
contaminado, passou pelo setor de carregamento de um frigorífico
da cidade, e transmitiu o vírus aos funcionários da empresa.
Segundo informações da SES (2020), o rapaz infectado
tomou ciência de que estava com a doença e informou que havia
contraído o vírus. Os funcionários da empresa frigorífica, localizada
em Guia Lopes da Laguna, que tiveram contato com o paciente
fizeram o exame e testaram positivo. Em num período curto, entre o
contato do motorista e o primeiro teste positivo de um funcionário,
o vírus já havia se espalhado pela empresa. A cidade de pouco mais

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de dez mil habitantes ficou no mês de maio em segundo lugar em
número de casos, ficando atrás apenas da capital, Campo Grande.
Além de Guia Lopes da Laguna, as cidades vizinhas Jardim
e Bonito, também, registram casos devido a tal situação, e também
tiveram que tomar medidas restritivas. Um dos motivos de maior
preocupação foi o fato de, como a maioria das cidades pequenas
em nosso país, nenhum dos três municípios, na época, não possuía
leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Caso houvesse
pacientes com casos graves deveriam ser transferidos para a capital.
Como prevenção inicial, o prefeito da cidade de Guia Lopes
da Laguna tomou medidas mais rigorosas instituindo o decreto nº
28 de 07 de maio de 2020, por exemplo, tornou obrigatório o uso de
máscaras em todos os locais públicos; permitiu somente os serviços
comerciais de extrema necessidade; e aderiu ao lockdown, medida
mais rigorosa, que restringiu a saída das pessoas de suas casas a dois
dias por semana conforme mês de aniversário.
Além de restrição de entrada e saída do município e suspensão
de todas as atividades do terminal rodoviário do município, entre
outros. Dias difíceis e em meio a todo esse contexto vale destacar
que houve uma abordagem específica nas redes de ensino escolar.

O ensino em MS no período da pandemia

Este tópico objetiva trazer informações acerca do ensino


escolar ofertado pela Rede Estadual de Ensino do Mato Grosso do
Sul, no período da pandemia do novo coronavírus. Trataremos de
determinações importantes tomadas para atender ao momento e de
orientações pedagógicas, em especial, às voltadas ao período em que
desenvolvemos as experiências didáticas em LP, na segunda etapa
do Ensino Fundamental, apontadas mais à frente deste trabalho,
referentes ao primeiro bimestre do ano escolar de 2020.

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Conforme dissemos anteriormente, diante da pandemia,
o governo do estado do MS tomou algumas medidas para o
enfrentamento ao novo coronavírus, dentre elas, a suspensão das
aulas presenciais. Assim, em 16 de março de 2020, no Decreto
nº 15.391, ficou determinado de acordo com o Art. 2º, Inciso I, a
suspensão, salvo mediante autorização expressa do Governador do
Estado, da “realização de atividades de capacitação, de treinamento
ou de qualquer evento coletivo pelos órgãos ou pelas entidades da
Administração Pública Estadual Direta e Indireta que impliquem a
aglomeração de pessoas”.
Para complementar o decreto acima, no dia 17 de março de
2020, o Diário Oficial 10.117 trouxe a seguinte redação:

Art. 2º-A. Ficam suspensas as aulas presenciais nas unidades


escolares e nos centros da Rede Estadual de Ensino de Mato
Grosso do Sul, no período de 23 de março a 6 de abril de
2020, sendo que o período de 18 a 20 de março de 2020 será
de adaptação para a comunidade escolar. (Mato Grosso do
Sul 2020)

A partir desse momento, as escolas começaram a se organizar


para atender aos estudantes por meio de aulas remotas vinculantes,
realizadas por meio de aplicativos e ferramentas digitais, entre
outros.
Como orientação para a elaboração das Atividades
Pedagógicas Complementares – (APCs) a Superintendência de
Políticas Educacionais – (SUPED) e a Secretaria de Estado de
Educação – (SED) encaminharam, para as escolas, instruções
através da Comunicação Interna – CI 989. Segue abaixo alguns itens
direcionados para o ensino fundamental, foco deste trabalho, que
chamaram atenção, por exemplo:

— os docentes devem disponibilizar aos estudantes APCs para


serem realizadas no período de suspensão das aulas presenciais;

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— os professores orientarão os estudantes nas APCs a serem
desenvolvidas em domicílio para que ampliem as habilidades
priorizadas e determinem de que forma serão as avaliações
periódicas;
— todas as APCs planejadas e elaboradas devem que conter
detalhamento da ação, as habilidades das APCs, lembretes,
dicas e exemplos de como realizá-las, especificar como seria
o processo avaliativo, isto é, o professor deveria direcionar
a atividade ao estudante de forma descritiva, clara e com
linguagem apropriada ao ano escolar;
— a APC proposta deverá garantir a aprendizagem, evitando
atividades meramente conteudistas/copistas, fazendo-se
necessário que fossem direcionadas aos estudantes atividades
coerentes e que, de fato, contribuam para o aprendizado;
— a devolutiva da APC poderá ser realizada conforme
combinado entre professor-estudante, para melhor organização
e controle do professor;
— a APC e a comunicação com os estudantes poderá ser
realizada por meio de materiais impressos, ou outros recursos
como whatsapp, e-mail, google classroom acessíveis aos
estudantes; (Mato Grosso do Sul 2020)

Na leitura dos itens da SED, é possível observar


preocupação para que haja alcance aos estudantes tanto de entrega e
acompanhamento de atividades, como de aprendizagem. Por isso, se
destacam maneiras diferenciadas de recursos para ofertar o ensino,
tanto material impresso como recursos tecnológicos, e ainda com o
planejamento, para que aconteça o aprendizado.
Acerca do planejamento, as orientações chamam atenção
para o atendimento de habilidades mínimas. Quanto a isso, a
Coordenadoria de Políticas para o Ensino Fundamental – (COPEF)
– orientou as escolas quanto às habilidades, que deveriam estar em
consonância com o Currículo de Referência de Mato Grosso do Sul
(2019, pp. 207-217).

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Dentre as habilidades, algumas foram desenvolvidas nas
atividades pedagógicas que apresentaremos e analisaremos no
tópico seguinte. São habilidades que dialogam com concepções
teóricas que propõe o desenvolvimento de leitura e escrita a partir
de gêneros discursivos. Pois, como diz Marcuschi (2008, p. 154)
“é impossível não se comunicar por meio de um gênero (...) toda
manifestação verbal se dá sempre por meio de textos realizados em
algum gênero”.
Diante do exposto, como pudemos constatar, a pandemia do
novo coronavírus afetou o mundo todo e no Brasil não foi diferente.
Dentre as necessidades de mudanças e adaptações a escola, como
espelho da sociedade, não poderia ficar indiferente.
Sendo assim, considerando o contexto pandêmico, e as
aulas remotas, a seguir, explicitaremos como tais questões foram
trabalhadas nas aulas de LP, em uma turma do 9º Ano, de uma Escola
da Rede Estadual de Ensino, da cidade de Guia Lopes da Laguna -
MS, levando em consideração o ensino a partir dos gêneros textuais.

Processos de compreensão da SDLP

Neste item, apresentamos uma SDLP, aplicada a turma do 9º


ano, de uma Escola da Rede Estadual de Ensino, da cidade de Guia
Lopes da Laguna – MS, de modo a compreender os processos em
busca de amenizar os prejuízos causados pelo ensino remoto, nas
aulas de LP, no início da pandemia.
Em relação aos desafios, as aulas remotas trouxeram, por
exemplo, a necessidade de considerar que o tempo de estudo
disponibilizado pelos alunos não era o mesmo que o dedicado no
presencial. Com isso, surgiu a importância de considerar o fato de
que quantidade não é qualidade, e que no ensino remoto, o estudante
precisaria de mais tempo para desempenhar menos tarefas, por isso
elas precisariam ser elaboradas com bastante cuidado para não
perder a qualidade.
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Então, ao que se referia à prazos, a escola em que
desenvolvemos a SDLP aqui relatada, inicialmente definiu que as
postagens e devolutivas dos exercícios aconteceriam diariamente,
de acordo com o horário de cada professor, porém houve
constatação de dificuldades na entrega dos exercícios em tempo
hábil. Assim, depois de reunião entre professores, coordenação e
direção ficou definido que as postagens das Atividades Pedagógicas
Complementares – (APCs), passariam a acontecer a cada quinze
dias; já as devolutivas dos estudantes poderiam ser feitas assim que
fossem cumpridas, tendo como prazo máximo os quinze dias entre
uma postagem e outra.
Vale ressaltar que o desenvolvimento das APCs ocorria
de maneira online, via whatsapp, e classroom, para aqueles que
tinham acesso aos recursos tecnológicos, e impresso para os que
não possuíam alcance ao meio digital.
Quanto à construção da SDLP, consideramos a pandemia do
novo coronavírus como temática a ser abordada nos textos e nas
atividades de leitura, compreensão e produção textual, uma vez que
era assunto do momento. A cidade onde estávamos desenvolvendo
as atividades passava pelo pico de contaminação inicial. Além
disso, privilegiamos uma abordagem a partir de gêneros textuais
tradicionais e digitais, pois os gêneros contribuem para o processo
de uma compreensão mais efetiva e a “entender o próprio
funcionamento social da língua” (Marcuschi 2008, p. 208).
Dessa maneira, explorando a temática da Covid-19, sobre a
modalidade de gêneros diversificados, entre eles, os informativos
como a reportagem, e os que circulam nas mídias sociais como
“tampletes”, memes, entre outros, com objetivo, de desenvolver
habilidades que pudessem contribuir para suas competências
comunicativas. a SDLP abaixo:

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Figura 1 – SDLP março de 2020

Podemos verificar (Figura 1 – SDLP março de 2020) que,


em relação à construção da SDLP aqui apresentada, o primeiro texto
trata-se de um gênero informativo sobre a temática da Pandemia
intitulado “#fiqueemcasa”, retirado do blog da Unicamp. Ele

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explora o assunto da medida não farmacológica de proteção contra
o Coronavírus, o isolamento social.
Esclarecemos que o material em questão traz informações
e orientações precisas acerca do assunto, a pandemia da Covid-19.
Para compreensão, buscamos primeiramente explorar a habilidade de
identificar informações explícitas no texto, previstas em documentos
oficiais que regem o ensino de LP, como a BNCC, e também nas
orientações pedagógicas da SED/MS para a disciplina de Língua
Portuguesa. Constatamos o desenvolvimento da habilidade quando
a questão número 01 ao solicitar que o estudante identifique “[...]
qual é a estratégia funcional fundamental para evitar o contágio
do coronavírus?”, cuja resposta está clara no trecho do texto que
diz “Ficar em casa é sim uma estratégia funcional e fundamental”.
A atividade pedagógica de Língua Portuguesa exigiu
conhecimento prévio, e reconhecimento do sentido da palavra.
Uma vez que ao questionar no exercício número 02 sobre “quem
são as pessoas que tem dificuldade ou são impossibilitadas de ficar
isoladas em casa?”, o estudante precisa ter conhecimento ou no
mínimo compreender o sentido da expressão “informalidade” e
“autônomos”, para desenvolver a resposta.
Já a terceira e última pergunta a respeito do primeiro texto
da SDLP, explora o reconhecimento de elementos de coesão. A
questão exige habilidade que requer retomada ao texto. Uma vez
que, ao solicitar que o aluno “Explique a frase “E é por estas pessoas,
todas elas, que, também, temos que parar”, para contextualizar e
compreender a questão há a necessidade de fazer retomadas ao
texto e identificar a quem se refere as expressões “estas pessoas” e
“todas elas”.
Vale ressaltar que apesar de ser uma atividade comum
gênero tradicional, o texto informativo; e uma abordagem habitual,
a compreensão a partir de leitura e respostas a questionamentos
referentes ao texto, acreditamos que houve contribuição para o
aprendizado dos estudantes, uma vez que as indagações tinham
objetivos de levar o aluno a interagir com o texto. Além disso, a

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interação também fluiu, por se tratar de um assunto de interesse dos
interlocutores, a pandemia vivida naquele momento.
Desse modo, foi gratificante possibilitar aos discentes ler,
compreender e refletir sobre um assunto tão relevante. E com essa
prática, esperamos, subsidiá-los para que através da leitura, da
interação com os gêneros, construam habilidades que colaborem
com seu processo de formação de leitor autônomo. E com tal aporte,
quem sabe, futuramente possam ler o mundo com mais criticidade,
crescer em suas realizações pessoais e colaborar com a construção
de uma sociedade melhor, mais igualitária.
Ainda tratando de gêneros discursivos, não ficamos somente
no tradicional. Outra proposta que a SDLP buscou atender foi a de
explorar os gêneros advindos das mídias digitais. Sobre os gêneros,
a BNCC destaca que “[...] é necessário contemplar também os
novos letramentos, essencialmente os digitais (BNCC 2018, p. 69)”.
Sendo assim, a abordagem de leitura e compreensão de memes e
posts, solicitada na questão número 04, atende as orientações do
documento.
No exercício em questão, há dois memes (Figura 1) que
exploram problemas que foram acrescidos com a pandemia. O
primeiro exige que o leitor faça inferências e identifique a troca de
posições de seus interlocutores.
Pois, ao dizer “Se sua mãe tiver mais de 60 anos e quiser
sair de casa, proíba! Se ela reclamar e disser que “todo mundo está
saindo”, diga a ela que ela não é todo mundo. Chegou a hora da
revanche”, o discurso em questão aponta uma inversão de papéis
entre mãe e filho com a intenção de gerar humor no texto. Uma
vez que a possibilidade de trocar os papéis e chefiar a mãe é algo
improvável para o público adolescente, quando há uma relação de
respeito entre mãe e filho; a ideia de “revanche”, nesse contexto
torna-se, no mínimo, algo engraçado.
E assim, o texto conquista o(a) adolescente principalmente,
porque ele (a) se identifica com a situação das proibições determinadas
pelas mães. Além disso, a presença do humor colabora ainda mais
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para a apreciação do gênero. E essa contemplação contribui com a
compreensão, pois ao prender o leitor, o texto atinge sua finalidade
que é chamar atenção para um assunto bastante sério gerado pela
pandemia, a dificuldade de manter os idosos em isolamento social.
Quanto ao segundo texto da questão quatro, o meme exige
leitura de linguagem mista para construir sentidos. A linguagem
verbal “vou aproveitar a quarentena pra estudar” associada à
sequência de imagens do gato remete às dificuldades que os
estudantes estavam enfrentando com inserção das aulas remotas.
O fato de o gato/aluno, descumprir com seu propósito ao acabar
dormindo em vez estudar conforme havia planejado mostra como
os discentes estavam sem foco para os estudos, naquele contexto.
Já o terceiro texto, trata-se de um post com o objetivo de
convencer a população que tem condições de “ficar em casa” a aderir
ao isolamento social. Para tal, o texto traz imagens de profissionais que
atuaram na linha de frente do combate ao Covid-19 e o apelo destes
com o seguinte discurso “Não podemos ficar em casa, mas você pode”.
Desse modo, detectamos que são textos do campo de atuação
onde os adolescentes circulam com frequência, as redes sociais.
Sendo assim, a familiaridade com o gênero também colabora com
a compreensão.

Resultados após a aplicação da SDLP

Quanto às devolutivas, as compreensões apresentaram


coerência, umas mais, outras menos desenvolvidas, mas a maioria
dentro do esperado, conforme constatamos abaixo.
Letra “a”, da questão número 04 – nesta os estudantes
deveriam explicar a compreensão para o meme “Se sua mãe tiver
mais de 60 anos e quiser sair de casa, proíba! Se ela reclamar e
disser que “todo mundo está saindo”, diga a ela que ela não é todo
mundo. Chegou a hora da revanche”

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Exemplo de resposta: “É a revanche porque os filhos proíbem
as mães de sair porque são do grupo de risco.”

Figura 2 – Resposta exercício 4 - Letra “A”


(aluno, C.H.R.M, 14 anos, 9º Ano).

Aqui, (Figura 2 – Resposta ‘exercício 4), o estudante escreve


que “é a revanche”, ele entende que chegou o momento de inverter
os papéis e os filhos deverão assumir o lugar dos pais na questão
de orientações sanitárias. Em seguida, ele explica o motivo para tal
revanche, há a proibição porque as mães “são do grupo de risco”,
e consequentemente necessitam de mais cuidados, no caso, “ficar
em casa”.
Essa resposta demonstra que o estudante tem conhecimento
prévio sobre o assunto, de que as pessoas de mais idade eram
pertencentes ao grupo de risco para o contágio da Covid-19 e
utilizou das informações para formular sua explicação. Foi uma
construção sucinta, porém coerente.
Já a devolutiva da letra “b”, da questão número 04, é
interessante porque há a identificação dos estudantes com o
personagem do meme.

Figura 3 – Resposta exercício 4 - Letra “B”


(Aluno K.H.S.C, 14 anos, 9º Ano).

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Resposta: “Ah, esse daí parece comigo. Eu falo “Ah, eu vou
estudar!”. Acabo nem estudando, fico olhando facebook e acabo
dormindo.”
Pela resposta, constatamos as dificuldades que os discentes
tiveram para se adaptar ao novo modelo de ensino, pois as aulas
remotas trouxeram distinções das presenciais, que precisariam de
adequações, como o tempo disponibilizado para os estudos, por
exemplo. Enquanto no ensino presencial havia um horário específico
para as aulas na escola, com o ensino remoto, inicialmente, realizar
os estudos em casa denota certa “liberdade” em relação aos horários
de estudos. Estudar em casa, diante de um contexto pandêmico
trouxe desânimo, e com a flexibilidade de tempo, alguns estudantes
se identificaram com o gato, pois acabavam abandonando os estudos
para fazer outras coisas, como ir dormir, por exemplo. Porém,
sabendo que havia compromissos com os estudos, a situação gerava
certo desconforto, talvez por isso, os estudantes se identificaram
tanto com o meme.
Já o terceiro texto da questão número 04, assim como os
anteriores teve uma boa devolutiva e compreensão. Vejam exemplo
de resposta abaixo na Figura 4:

Figura 4 – Resposta exercício 4 - Letra “C” –


(Aluna, B.S.B., 14 anos, 9º Ano)

O exercício explica um post, que tem como locutores,


profissionais que atuaram na linha de frente do combate ao
coronavírus com o seguinte discurso “Nós não podemos ficar em

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casa, mas você pode”. Pela compreensão da estudante, ela dialoga
com o texto e ressalta a finalidade de mostrar “a importância de
ficarmos em casa” e concorda com o locutor ao reafirmar que essa
atitude “não é apenas para salvar a nossa vida, mas é também ajudar
as pessoas que estão na frente de batalha contra o coronavírus”.
Portanto, há aqui uma concordância entre locutor e
interlocutor (Figura 5) acerca da posição de ideias quanto aos
procedimentos de combate ao novo coronavírus. Nesta atividade
em questão não houve respostas divergentes à opinião presente no
texto; poderia haver, como ocorreu em outras atividades, conforme
explica Marcuschi (2008) que em um mesmo texto há diversos
sentidos produzidos por diferentes sujeitos desde que, apesar de
variadas às compreensões sejam compatíveis.
Assim, acreditamos que a SDLP, cumpriu com o propósito de
explorar a partir dos gêneros o conceito de leitura interativa e dessa
forma contribuirá com a competência leitora dos discentes. Para
isso, considerar o contexto pandêmico contribuiu com o alcance de
tal objetivo. Emprestamos aqui as concepções de Marcuschi (2008,
p. 231) acerca da importância de levar em conta que o “leitor se
acha inserido na realidade social e tem que operar sobre conteúdos
e contextos socioculturais com os quais lida permanentemente.”
Para que haja um processo de compreensão mais efetivo
é importante considerar o contexto em que o leitor está inserido,
pois partindo da realidade a interação autor-texto-leitor tem melhor
condições de acontecer, em espacial, quando estamos construindo
nossa competência leitora. Desse modo, abordar a temática da
Covid-19 pode ter gerado, no momento, maior interesse, interação
e contribuição para o crescimento da independência leitora dos
discentes.
Não menos importante para esse processo de interação, além
da atividade de leitura/compreensão está a de produção de textos
materializados em gêneros discursivos.

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Produção textual criativa

Quanto à prática de escrita voltada para a produção de


gêneros textuais, entendemos ser interessante destacar que a escola
é tida como o principal espaço em que se desenvolvem habilidades
e competências para a produção de textos escritos. No entanto,
conforme salienta (Fernandez 2012, p. 10) muitas vezes a produção
textual no ambiente escolar “[...] se limita à simples prática de
reproduções de palavras, frases ou pequenos textos que estão longe
de levar em consideração o caráter social dos textos escritos”.
Fernadez (2012, p. 25) salienta que de nossa intenção
comunicativa dá-se a escolha dos gêneros discursivos produzidos,
por isso deve-se propor tarefas de recepção e produção de textos
escritos que contemplem objetivos comunicativos concretos e em
usos socialmente determinados.
Diante disso, após trabalho com leitura e compreensão,
elaboramos uma proposta de produção criativa em que acreditamos
contemplar uma comunicação real da língua. Assim, propomos aos
estudantes a elaboração de memes com o intuito de sensibilizar
a população acerca da importância de adotar as medidas não-
farmacológicas de proteção ao contágio do novo coronavírus.
A produção poderia ser realizada no papel, utilizando lápis,
caneta, lápis de cor e afins, ou em aplicativos. Quem fizesse pelo
aplicativo para dar mais autenticidade à produção foi orientado
a produzir o meme com a própria imagem, se possível inserir as
pessoas (familiares) com quem encontravam-se em isolamento.
Para os estudantes que optaram por realizar a atividade com recurso
digital e iriam produzir o gênero pela primeira vez, sugerimos
aplicativos que geram memes como: Meme generator free, e Meme
generator – Create funny memes. Abaixo, segue o resultado de duas
produções:

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Figura 5 – Recortes das produções usando celular

Esta atividade (Figura 5. Recortes das produções usando


celular) foi bem produtiva e teve uma participação efetiva dos
estudantes e familiares. Percebemos que a Turma do 9º ano do
Ensino Fundamental sentiu-se motivada, e atribuímos isso ao fato
de a proposta ter sentido para os produtores por se tratar de uso real
da língua e do contexto da Pandemia. Revela a criação de estratégias

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de sobrevivência a partir de leituras e informações dos Órgãos de
Saúde do Município, Estado e da Escola sobre o tema.
O estudioso Marcuschi (2008) salienta sobre a importância
de as produções darem-se a partir de situações reais de uso da língua.
Sendo assim, o diálogo sobre uma temática bastante debatida no
momento, e ainda feito através de gêneros de uso recorrentes dos
adolescentes, como é o caso dos memes, contribuíram para dar
sentido às produções e os motivou a realizá-las.
Outro ponto positivo do exercício foi a participação dos
familiares, muitos dos estudantes fizeram questão de envolver a
família na realização da tarefa, conforme mostra uma das produções
que trouxemos como exemplo. Ressaltando que se a família é
imprescindível para o processo de aprendizagem em tempos normais,
durante a pandemia da Covid-19 essa participação se tornou crucial.

Considerações finais

Esta reflexão descreve parte de todo um processo a partir de


uma SDLP aplicada em uma última série dos anos finais do ensino
fundamental, 9º ano, de uma escola da rede estadual de ensino do
município de Guia Lopes da Laguna – MS, no contexto adverso da
Pandemia Covid-19. Não apresentamos uma receita pronta e fechada
em si mesma, mas um percurso de adaptação da passagem radical
do ensino presencial para as Atividades Remotas (AR), levando em
conta as obrigatoriedades do cenário pandêmico da Covid-19, na
rede pública estadual, do MS.
Priorizamos na elaboração das atividades para aquele
contexto, nada de diferente do presencial, leitura e produção
interativa a partir de gêneros textuais, permitindo, dessa forma, o
uso real da língua, e trazendo mais sentido para o aprender naquele
momento tão adverso à abordagem de gêneros diversificados para a
prática de leitura/compreensão e produção textual.

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Acreditamos que essa prática colabora para as estratégias
de leitura e cumprem com o propósito de explorar habilidades que
levam o(a) aluno(a) a interagir com o texto e tornar-se futuramente
um leitor competente, capaz de “utilizar os gêneros a serviço de
sua necessidade comunicativa”, conforme salientam Bakhtin
(2000) e Marcuschi (2008). Para isso, os estudantes do 9º ano do
ensino fundamental leram, identificaram informações explícitas e
implícitas no texto, opinaram, entre outros, enfim, interagiram.
A SDLP descrita, aqui, possibilitou aos estudantes envolvidos
práticas comunicativa/interacionista. Reconhecemos os esforços
coletivos das Escolas que se mantiveram ativas salvando vidas
e estabelecendo redes de conhecimento. Isto não significa que
desconsideramos o agravamento das questões financeiras das famílias,
a falta de apoio psicológico aos estudantes e professores; o luto
decorrente das contaminações da Covid-19 e as inúmeras dificuldades
de acesso à internet e equipamentos, ao contrário, desejamos maiores
investimentos na educação e inclusões de todos e todas.

Referências

BAKTHIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In Estética da criação


verbal. São Paulo, 2000.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e
Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação
Básica, 2017.
DAVIS, Mike, [et al]: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem
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GARCIA LP, Duarte E. Intervenções não farmacológicas para o
enfrentamento à epidemia da Covid-19 no Brasil. Disponível
em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S2237-96222020000200100

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FERNANDEZ, Gretel Ees (coord.) Gêneros textuais e produção
escrita – teoria e prática nas aulas. São Paulo: IBEP, 2012.
GUIA LOPES DA LAGUNA. Decreto nº 28, de 07 de maio de
2020. Estabelece as medidas preventivas e restritivas a ser
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virtude da Covid-19 e dá outras providências. Guia Lopes da
Laguna, 07 de maio de 2020.
HARVEY, David. Política anticapitalista en la época de
COVID-19. Et al: Coronavírus e a luta de classes. Brasil:
Terra sem Amos, 2020.
LÖWY, Michael. Quarentena: reflexões sobre a pandemia e depois.
1ª ed. Bauru: Canal 6, 2020.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gênero
e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
________. “Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia
digital”, in: MARCUSCHI, Luiz Antônio e XAVIER,
Antônio Carlos (orgs.) Hipertexto e gêneros digitais: novas
formas de construção do sentido. Rio de Janeiro: Lucerna,
pp. 13-69, 2004.
MATO GROSSO DO SUL. Comunicação Interna 989, de 17 de
março de 2020. Orientações para o período de suspensão
das aulas presenciais da REE. Superintendência de Políticas
Educacionais e Secretaria de Estado de Educação, de 17 de
março de 2020a.
________. Decreto nº 15.391, de 16 de março de 2020. Dispõe
sobre as medidas temporárias a serem adotadas, no âmbito
da Administração Pública do Estado de Mato Grosso do
Sul, para a prevenção do contágio da doença COVID-19
e enfrentamento da emergência de saúde pública de
importância internacional decorrente do coronavírus (SARS-
CoV-2), no território sul-mato-grossense. Mato Grosso do
Sul, 16 de março de 2020b.

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________. Decreto 15.393, de 17 de março de 2020.Acrescenta
o art. 2º-A ao Decreto nº 15.391, de 16 de março de 2020,
que dispõe sobre as medidas temporárias a serem adotadas,
no âmbito da Administração Pública do Estado de Mato
Grosso do Sul, para a prevenção do contágio da doença
COVID-19 e enfrentamento da emergência de saúde pública
de importância internacional decorrente do coronavírus
(SARSCoV-2), no território sul-mato-grossense. Mato
Grosso do Sul, de 17 de março de 2020c.
________. Currículo de referência de Mato Grosso do Sul:
educação infantil e ensino fundamental. Organizadores
Hélio Queiroz Daher; Kalícia de Brito França; Manuelina
Martins da Silva Arantes Cabral. Campo Grande: Secretaria
de Estado de Educação/SED, 2019.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. São
Paulo: Boitempo editorial, 2020.

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OS CASOS MARI FERRER E JOÃO BETO:
O PAPEL DAS METANARRATIVAS COMO
JUSTIFICATIVA PARA VIOLÊNCIAS

Marlucia Mendes da Rocha


Renata de Melo Gomes

Introdução

Sem, necessariamente, realizar uma investigação


aprofundada, é possível perceber que vivemos um tempo,
primeiras décadas do século XXI, em que ocorre o enrijecimento
de posicionamentos políticos à direita, além do aumento das
desigualdades sociais, culturais e políticas (Curiel 2018). Isso,
somado à modalidade de poder que constitui a modernidade de
acordo com Foucault (2005), o biopoder, pulveriza as relações de
poder que são reforçadas pela comunicação hiperconectada. Como
consequência, percebe-se uma disseminação de julgamentos e
linchamentos públicos, característica marcante do poder disciplinar
(Foucault 2005), baseado em “verdades”/metanarrativas que visam
contribuir para a manutenção do status quo, afinal os fatos tendem
a ser significados a partir de formações ideológicas que antecedem

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suas ocorrências e constituem os indivíduos em sujeitos do discurso
(Pêcheux 2014).
Dessa maneira, baseados em narrativas, os sujeitos
compreendem os fenômenos e dão a eles determinados sentidos,
processo que ocorre imperceptivelmente por eles, que acreditam
ter ideias e opiniões autônomas, independentes de influências
ideológicas hegemônicas (Pêcheux 2014). Essas metanarrativas,
“(...) narrativas que respaldaram crenças e comportamentos da
tradição do mundo ocidental, essas sempre em uma perspectiva de
totalidade, seja de cunho religioso, seja político-ideológico (...)”
(Sacramento 2012, p. 257) cumprem papel totalizador em relação
à explicação dos fenômenos sociais e sua influência pode ser
percebida ao analisarmos fatos que ocorrem na realidade brasileira
da atualidade.
Assim, neste texto, buscaremos compreender o
funcionamento das metanarrativas para a manutenção do status
quo, a partir da análise de dois fatos ocorridos no final da década de
2010 e início da década de 2020 na sociedade brasileira, juntamente
com seu desdobramentos, por acreditarmos serem emblemáticos
para o entendimento do pensamento hegemônico social. Tratam-se
do estupro da blogueira de moda Mariana Ferrer, no Café de La
Musique, beach club de luxo em Florianópolis (SC), no dia 15 de
dezembro de 2018 e do espancamento e assassinato do soldador
negro João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour Hipermercado de
Porto Alegre, no dia 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da
Consciência Negra.
Para isso, realizaremos análise da telenovela Lado a lado
(2012), ambientada na cidade do Rio de Janeiro pós-abolição da
escravidão e Proclamação da República, por tratar de aspectos que
delineiam o imaginário de gênero e raça na sociedade brasileira.
Paralelamente, examinaremos posicionamentos de autoridades,
publicações midiáticas e comentários de leitores acerca do caso
Mari Ferrer e João Beto, com o intuito de compreender o papel das
metanarrativas na organização do pensamento social. Além disso,

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pretendemos demonstrar que as metanarrativas não só contribuem
para a manutenção do poder hegemônico, como também reforçam e
justificam atrocidades, tomando como alicerces as suas “verdades”.

Quem está do lado de quem?

Ainda que nosso objetivo não seja aprofundar a compreensão


da telenovela em sua integralidade, trata-se de peça simbólica
construída a partir de muitas, ou seja, um gênero que não deve ser
reduzido a um simples somatório dos que o compõem. Dessa forma,
reconhecemos ser uma arte mestiça, e, nesse sentido, “espaço de
todos os possíveis [...] enquanto encruzilhada de trocas e encontros”
(Laplantine e Nouss 2016, p. 54). Nesse sentido, para a realização
da análise, consideramos que se trata de objeto constituído a partir
da fusão de diferentes linguagens, tal como afirmam Bauer e Gaskell
(2002). Somado a isso, temos em conta que obteremos apenas uma
pintura da realidade, como afirma Minayo (2000) ao citar Demo
(1985). Assim, teremos apenas uma das possibilidades de leitura de
um real contingente e pleno de significações.
Também é necessário salientar que, para realizar uma
analogia entre a telenovela e situações “reais” analisadas neste
artigo, tomaremos a trama como um discurso ficcional, ou seja,
certa leitura da realidade que, segundo os autores:

cria possíveis quadros da realidade que nos permitem


compreender o mundo e suas relações significativas,
de modo que tais narrativas tornam-se referenciais para
as problematizações que fazemos do nosso entorno,
ocasionalmente respondendo-as ou mesmo contribuindo para
a desnaturalização/desconstrução das ‘verdades’ que dele [o
mundo] retiramos. (Beck e Pacheco 2016, p. 30)

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Assim, conceberemos que a telenovela Lado a Lado
possibilita alcançar uma versão, da realidade da época, com a qual
compartilhamos. A telenovela brasileira Lado a lado foi exibida,
no Brasil, em 154 capítulos, pela Rede Globo, entre os meses de
setembro de 2012 e março de 2013. Escrita por João Ximenes
Braga e Claudia Lage, sob direção geral de Vinícius Coimbra e
Dennis Carvalho, também foi veiculada em diversos outros países,
alcançando todos os continentes do planeta. Foi ambientada no
início do século XX, no Rio de Janeiro, e conta a história de duas
mulheres bastante diferentes que se aproximam por acreditarem em
princípios semelhantes que iam de encontro aos valores da sociedade
conservadora da época: a liberdade e o respeito às diferenças.
Isabel (Camila Pitanga), mulher negra e filha de um ex-
escravizado, trabalha, desde criança, como empregada doméstica na
casa de uma dama francesa, fato que a impediu de estudar. Apesar
disso, nutre o sonho de alçar voos inimagináveis para mulheres e
negros à época, esforçando-se para aprender o que lhe é oferecido
por sua patroa – “boas maneiras” no traquejo social e francês.
Moradora da primeira favela brasileira, o Morro da Providência,
após ter a casa demolida em prol do “progresso” da capital, sua
história se constrói sob o cenário das lutas pela sobrevivência dos
negros e pobres, que vivem em condições desfavoráveis e sofrem
perseguições relacionadas à raça, classe e cultura, a última com
fortes influências africanas, representada principalmente pelo
samba e pela capoeira.
Laura (Marjorie Estiano), por sua vez, é branca, professora
e pertence a uma classe social mais abastada, porém cultiva valores
também inconcebíveis para as mulheres da sua época, como
o respeito e a amizade por pessoas fora do seu extrato social e a
convicção de que o casamento é um empecilho para conquistar
seu sonho de estudar e trabalhar. Filha de uma ex-baronesa
preconceituosa e obstinada, Constância (Patrícia Pillar), capaz de
eliminar qualquer obstáculo que possa impedi-la de atingir seus
objetivos, ela se vê obrigada a casar com o filho de um poderoso

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senador. Sem conseguir se desvencilhar dos caprichos da mãe,
Laura vai ao altar, onde conhece Isabel, com quem cria um laço de
amizade que acompanha a vida das duas personagens.
Durante o desdobramento da trama, é possível perceber
metanarrativas que organizam a sociedade da época e que se
mantêm até os dias atuais. Apesar de alicerçadas em constatações
supostamente biológicas, essas “verdades” são construídas
socioculturalmente, através de discursos que são reiterados
socialmente. Os negros são considerados seres inferiores, capazes
apenas de realizar atividades pouco valorizadas e detentores de
valores, cultura e religiosidades “incivilizados”, já que de influência
africana. Tal fato pode ser observado quando Chico (César Mello)
é convidado a participar do time de futebol de brancos e ricos, por
perceberem que apenas contando com sua habilidade desportiva
poderiam vencer a partida.

Figura 1 – Cena em que Chico participa


de partida de futebol

Nota. Lado a Lado, 2013, capítulo de 5 de fevereiro de 2013 - 21 min. e 02 seg.,


disponível em: https://globoplay.globo.com. Acesso em: 03/12/2020.

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A cena demonstra que, ainda que constatada a habilidade
da personagem, grande parte do time é contra o convite por
considerarem absurdo o fato de um negro jogar futebol, quanto
mais desempenhar a função com tamanha maestria. Além disso, a
simples possibilidade de dividir em um espaço de destaque – como
era considerado o futebol, devido às suas raízes europeias – comum
negro, já era impensável, tanto que Chico precisou se pintar de
branco1 para poder participar.
Situação semelhante ocorria com a personagem Zé
Maria (Lázaro Ramos), hábil capoeirista. Apesar da destreza
com que jogava, era visto como desordeiro e perseguido pela
polícia, chegando a ser preso em determinada fase da trama. A
capoeira, apesar de todas as capacidades corporais que suscita, era
desaprovada pela sociedade, sendo, inclusive, proibida por lei. Isso
pode ser percebido em relação a todas as manifestações de matriz
africana, como o samba e o candomblé, que tinham seus membros
desaprovados e até perseguidos socialmente. A mãe de santo, Tia

1. Essa história, segundo alguns pesquisadores, começa em 1914,


quando o América vivia uma grave crise. Com isso, perdeu diversos
sócios, conselheiros e jogadores. Doze destes atletas foram para as
Laranjeiras, jogar no Fluminense. Entre eles, os irmãos Carneiro de
Mendonça: Marcos, Fábio e Luiz que, mais tarde, tornariam-se grandes
dirigentes tricolores. Mas também veio junto Carlos Alberto Fonseca Neto.
Ele era mulato e ainda existia muito preconceito no Brasil, no Fluminense,
clube frequentado pela elite. Também não havia espaço para os negros atuar
em com liberdade nas partidas de futebol dos grandes clubes. Dizem que no
América, Carlos Alberto já utilizava a técnica de passar pó-de-arroz no rosto
e braços para esconder sua cor. Só que no América ele atuava no segundo
time e a atitude não chamava a atenção. No Fluminense, no entanto, a
situação foi diferente. Ele acabou, segundo algumas versões, usando o
pó-de-arroz obrigado pela diretoria. Numa partida, acabou transpirando e
os adversários começaram a gritar pó-de-arroz, pó-de-arroz. Essa passou
a ser a forma de provocar os tricolores, que, mais tarde, adotariam o pó-
de-arroz como manifestação de paixão. Disponível em: https://www.
mguerramemoria.com.br/fluminense-origem-do-po-de-arroz. Acesso em:
03/03/2021.

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Jurema (Zezé Barbosa), precisava esconder sua religiosidade e a
própria Isabel foi considerada prostituta por decidir se dedicar a
dançar samba.
É possível perceber que não havia situações que desabonavam
as personagens na realização de seus ofícios, mas a prática de
atividades que se relacionavam à África já era suficiente para
que fossem condenadas socialmente. Zé Maria não era violento e
raramente usava a capoeira para se defender. A casa da mãe de santo
era frequentada por senhoras brancas, das altas classes cariocas,
que buscavam seus conhecimentos e práticas religiosas para se
protegerem. Isso confirma que o que fazia com que a religiosa fosse
perseguida não tinha relação com sua prática, mas sim comum
discurso que considerava que o continente negro e todas as práticas
oriundas de lá fossem vistos de forma pejorativa. Assim, o mesmo
discurso que justificou a escravidão dos negros pelos europeus
também foi usado para persegui-los e às suas práticas ancestrais. As
humilhações por que sofriam as pessoas negras ao serem associadas
à prostituição, à criminalidade e à miséria permanecem até hoje.
Infelizmente, a branquitude sobrepõe-se como um modelo a ser
seguido e reverbera sentidos na linguagem.
Isabel, ainda que nada fizesse que a diferenciasse das
demais atrizes do teatro, foi considerada como dona de ações mais
subversivas do que as praticadas por aquelas. Ao retornar da Europa
e realizar uma apresentação, foi vítima de preconceitos, vindos dos
próprios pares, como de seu pai e demais moradores do Morro da
Providência, ainda que ela não diferisse consideravelmente das
demais artistas em relação aos trajes usados por elas, por exemplo.

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Figura 2 – Apresentação de dança de Isabel

Nota. Lado a Lado, 2013, capítulo de 25 de dezembro de 2012 - 34 min. e


40 seg., disponível em: https://globoplay.globo.com. Acesso em: 3 dez. 2020.

Figura 3 – Diva Celeste (Maria Padilha),


atriz do teatro Alheira

Disponível em: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/lado-


a-lado/galeria-de-personagens/. Acesso em: 3 dez. 2020.

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Figura – Neusinha (Maria Clara Gueiros),
atriz do teatro Alheira.

Disponível em: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/lado-


a-lado/galeria-de-personagens/. Acesso em: 3 dez. 2020.

As imagens demonstram a similaridade entre as atrizes


e, ao retomarmos a obra, percebemos que as três personagens
apresentavam comportamentos bastante semelhantes, possibilitando
inferir que o que as diferenciava, considerando Isabel inferior às
demais, era outro fator: o mesmo que fazia com que demais negros
e suas culturas fossem também inferiorizados.
Sobre isso, cabe retomar a maneira como Hall (2015)
considerou o conceito de raça: um significante flutuante, ou seja, um
conceito construído discursivamente que não deve ser fundamentado
em princípios biológicos e científicos. De acordo com ele,

Não é que as diferenças não existam, mas sim que o que


importa são os sistemas que utilizamos para dar sentido a elas,
para tornar as sociedades humanas inteligíveis; os sistemas que
cotejamos com as diferenças, a forma como organizamos essas
diferenças em sistemas de sentido com os quais, de alguma
maneira, fazemos com que o mundo nos seja inteligível. (p. 3)

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Tomamos a discussão do autor, tanto para descrever o
conceito de raça em relação à época retratada pela narrativa ficcional
quanto para descrever a época atual, considerando que não houve
mudanças significativas, permitindo a realização de tal inferência.
Logo, a partir dos exemplos citados, nota-se que as razões que
levam os sujeitos, no final do século XIX até hoje, a considerar
determinados seres superiores a outros, no que tange à raça, não
são questões relacionadas à cientificidade, mas normatividades
reiteradas e reproduzidas pelos sujeitos com funções disciplinadoras
dos corpos, isto é, para a manutenção da modalidade de poder que
engendra a sociedade moderna, e que se pretende perpetuar. Assim,
as classificações culturais que estabelecem hierarquias raciais estão
relacionadas à linguagem e não propriamente a questões de “cor,
cabelo e osso” como se propõem as metanarrativas cartesianas ligadas
ao pensamento racionalista advindo do Iluminismo (Hall 2015).
Situação semelhante pode ser observada em relação
à discussão de gênero. Diferentemente do preconizado pelas
metanarrativas imbricadas às normativas da sociedade ocidental,
gênero não é uma categoria que representa socialmente o sexo, sendo
o segundo referenciado em diferenças materiais. Segundo Butler
(2000), “A diferença sexual [...] não é, nunca, simplesmente, uma
função de diferenças materiais que não sejam, de alguma forma,
simultaneamente marcadas e formadas por práticas discursivas” (p.
110). Dessa forma, a normatividade que determina comportamentos e
direciona o “fazer” e o “ser” dos sujeitos, nada tem a ver com maneiras
naturais e essencializadas de corpos se colocarem no mundo.
Ao contrário, as formas de se portar, os desejos e a própria
identidade de gênero dos sujeitos são, performativamente,
reiterados de maneira a se conformar aos padrões normativos que
o poder hegemônico impõe, oferecendo, em troca, a inteligibilidade
desses corpos e sua aceitação como “normais”. Aos corpos que
não se identificam a essas normas, são oferecidos o silenciamento,
a posição de abjetos, diferentes formas de violências e punições
reproduzidas socialmente, sob o eco do poder disciplinador. Em

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relação às personagens da telenovela Lado a lado, isso pode ser
percebido em diferentes situações, como veremos a seguir.
Logo no início da trama, Isabel engravida de Albertinho
(Rafael Cardoso), irmão de sua amiga Laura. O “deslize” da
personagem ao ter se entregado a um homem branco, ainda que
não houvesse, com ele, laço matrimonial – o único espaço em
que é permitido à mulher se “entregar” a um homem – persegue a
personagem por toda a trama. Isabel é julgada socialmente por seu
erro, inclusive pelo próprio pai, que passa a considerá-la uma vadia,
por envergonhar as tradições familiares. Albertinho, por sua vez, é
condenado pelo ato sexual apenas por sua irmã, personagem que não
se conformava completamente às normativas. As demais personagens
que problematizam sua ação, como sua mãe, Constância, o fazem
por discriminação racial, afinal é inaceitável um homem branco se
relacionar oficialmente com uma mulher negra.
Fato similar ocorre com Laura que, ao descobrir uma suposta
traição por parte do companheiro, Edgar (Thiago Fragoso), relação
que resultou em uma filha, decide se divorciar do marido, ato
abominável à época, principalmente se por iniciativa da esposa, e
é punida como ostracismo, obrigada a abandonar a cidade e a ir
viver com uma tia distante. A mãe da criança, Catarina (Alessandra
Negrini), também não é vista com bons olhos pela sociedade, não
só por ter tido uma filha de um homem comprometido, mas também
por demonstrar sua falta de apreço pela criança, além de inabilidade
para a maternidade. As próprias personagens que, de certa maneira,
não se enquadram completamente às normatividades, como Isabel,
Laura e Edgar, condenam o posicionamento pouco afetivo da
personagem.
Mais uma vez, nesse ponto, faz-se necessário recorrer à
naturalização dos corpos, equívoco criticado por Butler (2000). O
julgamento das personagens que condenam a mãe por não sentir
apreço pela própria filha baseia-se na essencialização dos corpos,
afinal espera-se que as mães “naturalmente” desejem ter filhos e
os amem. Sobre isso, Badinter (1985) defende, corroborando

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com o preconizado por Butler, que o amor materno é apenas mais
um sentimento que, como qualquer outro, poderá existir ou não,
afinal não se trata de dado instintivo. O contexto histórico-cultural,
a dinâmica econômica e a inserção da mulher no mercado de
trabalho podem contribuir para diminuir ou não o interesse da mãe
pela criança. No caso de Catarina, o desejo pelo enriquecimento e
ascensão profissional são maiores que o prazer pela maternidade, e a
personagem acaba deixando a filha com o pai em troca de dinheiro.
De acordo com o que foi demonstrado, a pulverização do poder
disciplinador, fruto da sociedade do controle, permite e corrobora
com punições que ocorrem socialmente. Essa “evolução” no poder de
controle do Estado proporciona aos próprios sujeitos a capacidade de
controlar os comportamentos uns dos outros, em consonância com as
metanarrativas, que visam manter o status quo. A partir das análises
realizadas, é possível perceber que as classificações e hierarquias de
raça e gênero, que configuram corpos, sinalizavam o aceitável e o
não aceitável na sociedade do início do século XX, representada pela
telenovela Lado a lado, fato que persiste até os dias atuais. Dessa
forma, sujeitos vistos como abjetos são vítimas de violências que
vão de silenciamentos, ostracismo ou até castigos físicos, seguindo
as normativas – que determinam sujeitos inteligíveis ou não, caso se
adequem ou não ao esperado, consequência de uma suposta natureza,
reforçada por metanarrativas.

Mari Ferrer e João Beto: o que duas pessoas tão diferentes


têm em comum?

Em primeiro plano, cabe explicitar, de forma geral, a


situação ocorrida com Mariana Ferrer, em 15 de dezembro de 2018,
em um evento no Café de La Musique, um beach club de luxo em
Florianópolis (SC). Mariana Ferreira Borges, modelo e blogueira de
moda, de 21 anos de idade, foi drogada e estuprada por André de

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Camargo Aranha, empresário paulista, filho do advogado Luiz de
Camargo Aranha Neto, segundo boletim de ocorrência registrado
pela vítima no dia seguinte ao crime. O caso, que corria em sigilo,
foi publicizado por ela, em 20 de maio de 2019, através das
redes sociais. O julgamento foi encerrado em setembro de 2020,
após absolvição do réu pelo juiz Rudson Marcos, mas ganhou
notoriedade em novembro de 2020 quando trechos foram vazados
pelo The Intercept Brasil, jornal online independente, causando
comoção social e manifestações diversas, devido ao desfecho do
caso, ao posicionamento assumido pelos profissionais durante o
julgamento e à peculiaridade da sentença, considerada inédita em
situações dessa natureza.
Em segundo lugar, faz-se necessário, também, exibir o caso
que envolve o espancamento seguido do assassinato de João Alberto
Silveira Freitas, soldador, negro, morador da Vila Farrapos, zona
norte de Porto Alegre, no dia 19 de novembro de 2020. A situação
ocorreu em uma unidade da rede Carrefour da cidade. As imagens
cedidas pelo hipermercado mostram a vítima sendo encaminhada
por seguranças até o estacionamento quando, durante o trajeto,
desfere um soco contra um deles. Em seguida, João Beto, como
era conhecido, é espancado e imobilizado pelos seguranças, um
deles mantendo o joelho sobre suas costas. O caso também causou
comoção social e diversas manifestações, sejam elas pacíficas,
diante de diversas unidades Carrefour, e até invasões de filiais da
rede de hipermercados.
Nas duas situações, há questões que devem ser levantadas
para ratificar a tese levantada por nós de que, em ambos os casos,
metanarrativas que classificam os sujeitos são determinantes para
a compreensão das situações. Nesse sentido, é possível perceber
que discursos normatizadores quanto à raça e ao gênero devem ser
observados, considerando que essas narrativas aproximam ambas as
categorias. Para isso, é essencial retomar Hall (2015) quando aponta
a similaridade entre os sistemas de diferença racial e sexual, que
se ancoram em questões fisiológicas e anatômicas, naturalizando

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discussões construídas discursivamente, isto é, a partir do contexto
social, cultural e histórico.
Em relação à Mari Ferrer, várias colocações e argumentações
utilizadas para, de certa forma, “justificar” a violência sofrida por
ela ou, até mesmo, considerar que não tenha sido vítima de estupro,
estão relacionadas a comportamentos que se espera que sejam
adotados por mulheres na sociedade. Durante o julgamento, Cláudio
Gastão da Rosa Filho, defensor de André Aranha, afirma2 que não
teria uma filha do “nível” de Mari Ferrer, declarando em seguida
que espera que seu filho não encontre uma mulher como ela.
Nessa mesma audiência, o mesmo defensor também expõe fotos
da mulher, objetivando demonstrar que as atitudes morais da moça
tornavam impossível considerá-la como vítima de um estupro, sob
a alegação de que o objetivo de Ferrer era manipular a situação para
obter ganhos pessoais. Gastão aponta fotos postadas na internet por
um fotógrafo e afirma que as únicas “chupando dedinho” ou “em
posições ginecológicas” eram as de Ferrer.
Outro ponto que merece atenção diz respeito ao vídeo
postado por Rodrigo Constantino, colunista e escritor brasileiro, no
dia 4 de novembro de 2020, comentando o caso Mari Ferrer.3 Nele,
o colunista afirma que, se sua filha chegasse em casa, afirmando
que estava numa festa com a presença de muitos homens e que,
após ter bebido, teria sido abusada, ele a colocaria de castigo e não
denunciaria o caso. Para ele, ela teria cometido um erro grave, visto
que agiu de maneira equivocada, de acordo com o que se espera de
uma mulher. No mesmo vídeo, Constantino afirma que sua filha
teria adotado “um comportamento absolutamente condenável”
e reclama que essas falas não são permitidas nos dias atuais, mas

2. Baseado no vídeo da audiência de Mariana Ferrer disponibilizados pelo


The Intercept Brasil, disponível em: https://theintercept.com/2020/11/03/
influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/?comments=1#comments.
Acesso em: 05/12/2020.
3. Baseado no vídeo, disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=myTSPEHjuTc. Acesso em: 05/12/2020.

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que “existe mulher decente” e “piranha”. Com isso, o escritor
hierarquiza possíveis tipos de mulher e, de certa forma, define o que
“mereceriam” receber em troca, ou a que risco estavam se expondo,
justificando atitudes de possíveis abusadores.
Alguns comentários postados,4 em relação ao vídeo,
merecem ser considerados para efeito da análise. Um deles, feito
por uma mulher, dizia: “Eu sou mulher e entendi o que ele disse.
Mulher de respeito e bem criada dificilmente será abusada”. Essa
postagem foi seguida de algumas respostas, dentre elas, “Até que
enfim achei uma mulher que pensa certo”, postada por um homem.
Outros dois comentários, também masculinos, afirmavam: “Em
qualquer circunstância, eu mataria o cara. Mas, se eu desconfiasse
que minha filha facilitou, iria sofrer as consequências também”
e “Vc tem razão amigo, ela procurou e agora só quer aparecer.
Quem manda ela tá em cima de macho?”. A partir dos exemplos,
é possível perceber que o comportamento das vítimas é utilizado
como parâmetro para considerar homens como estupradores ou
não, ou seja, antes de serem avaliados os atos dos algozes, mede-
se, moralmente, os posicionamentos das vítimas que porventura
possam tê-las exposto à violência.
Mais uma postagem que merece destaque traz, em seu
conteúdo, o que já evidenciamos em relação à hierarquização dos
sujeitos baseada num recorte de gênero. O comentário feito por um
homem, “Lugar de estuprador é na cadeia! Lá ele vai virar aranha
fêmea!”, sinaliza a punição que deve sofrer um “macho” que comete
estupro, tornar-se fêmea, ou seja, ser rebaixado na hierarquia sexual
– ocupar a posição da mulher em relação ao homem na sociedade. É
necessário perceber que, apesar de condenar o estupro praticado e,
de certa forma, defender uma mulher em detrimento a um homem, o
discurso classificatório de gênero está imbricado no posicionamento
assumido.

4. Mantivemos os comentários exatamente como foram encontrados na internet,


disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=myTSPEHjuTc. Acesso
em: 05/12/2020.

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Situação semelhante ocorre quando analisamos notícias
e comentários publicados na internet sobre o assassinato de João
Beto: há uma tendência a buscar razões para justificar as violências
sofridas por ele e até para sua morte. É possível perceber que os
noticiários tentam fazer uma cronologia dos fatos que levaram ao
assassinato do soldador, seja através das filmagens das câmeras
de segurança do hipermercado, busca por testemunhos de pessoas
presentes no local no dia do crime ou até pela coleta de informações
sobre a vida pessoal da vítima: ficha criminal, temperamento e
posicionamentos diante das mais diversas questões.

Comentários, atribuindo o assassinato a posicionamentos


adotados pelo soldador, também nos permitem perceber essas
questões com maior precisão, como o postado em relação ao
posicionamento assumido pelo governador do Rio Grande do
Sul, Eduardo Leite, de que a questão racial, provavelmente,
teria interferido na morte de João Beto em matéria da Gauchazh
online: “Homem negro mais um bandido da pior espécie essa
e a diferença e porque esse traste não comenta quando um
negro mata um branco e isso ta acontecendo diariamente ah
deve ser por que vidas brancas não importa” (Para 2020). De
acordo com a postagem, é possível inferir a correlação entre
ser negro e bandido, além do fato de atribuir à própria vítima
a responsabilidade pela violência sofrida, afinal tratava-se de
alguém “da pior espécie”.

O mito da democracia racial, “mito segundo o qual no Brasil


não existe preconceito étnico-racial e, consequentemente, não existem
barreiras sociais baseadas na existência da nossa diversidade étnica
e racial (...)” (Munanga 2001, p. 18) contribui para a naturalização
do conceito de raça, visto que, a partir dele, as violências sofridas
por negros estão relacionadas a questões que não envolvem o não
enquadramento às hierarquias normativas que atribuem sentido
discursivo à categoria. Discursos proferidos, inclusive, por autoridades
brasileiras, reforçam ainda mais esse posicionamento, contribuindo

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para a culpabilização de vítimas por suas próprias mazelas. Alguns
posicionamentos e falas em relação ao caso João Beto devem ser
resgatados para comprovar tal inferência.
O atual presidente Jair Bolsonaro, no Dia da Consciência
Negra, fez várias postagens no Tweeter a esse respeito. Em todas,
negou a existência do racismo no Brasil, condenando as pessoas que
protestam contra o racismo que, segundo ele, instigam a violência.
(Sakamoto 2020) Para reforçar ainda mais o posicionamento de
que, no Brasil, vivemos uma “democracia racial”, o presidente
afirmou: “Sou daltônico: todos têm a mesma cor” (Sou 2020) O
vice-presidente, Hamilton Mourão, na mesma linha, afirmou:
“Para mim, não existe racismo no Brasil. É uma coisa que querem
importar, mas aqui não existe” (Araújo 2020). Essas afirmações não
fogem ao esperado para uma nação em que as pessoas negam o
racismo, respaldados pelo tal mito que opera na sociedade brasileira
desde que os primeiros estudiosos “confirmaram” sua inexistência.
Baseados nas comuns conjunções carnais entre colonizadores
e escravas, que demonstrariam, ao contrário do afirmado por
antirracistas, que havia até certo interesse por negros e não
discriminação, esses pesquisadores ignoraram os estupros dessas
escravas, o uso histórico dos corpos femininos para dominação
entre os povos e a estratégia de embranquecimento da população.
Sobre esta última estratégia, o vice-presidente brasileiro, ainda que
negue a existência do racismo, é enfático: “Gente, deixa eu ir lá que
meus filhos estão me esperando. Meu neto é um cara bonito, viu ali.
Branqueamento da raça” (Temóteo 2018). Logo, ainda que negue
o que seu discurso teima em confirmar, a autoridade, que deveria
posicionar-se para fazer cumprir o Artigo 4º da Constituição Federal
brasileira, em contraposição, reforça preconceitos. Nenhuma
novidade em relação a uma nação que, de acordo com Munanga,
historicamente, “se constrói pela negação do próprio racismo”
(Araújo 2016, p. 2).
Semelhante ao percebido ao analisarmos o “deslize”
cometido por Mourão, a dificuldade em explicar determinadas

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desigualdades sociais põe à luz ideologias discriminatórias que
tendem a culpabilizar vítimas por suas próprias mazelas. É o que
pode ser percebido quando o vice-presidente ratifica que grande
parte da população pobre, sem acesso e que vivem em desvantagem
social é negra (Araújo 2020). Quando nega o racismo na sociedade,
mas reafirma que determinados grupos raciais possuem uma vida
menos privilegiada, ele individualiza uma discussão que é social
e culpabiliza os negros por ocuparem posições hierarquicamente
inferiores na sociedade brasileira. Na mesma linha, o presidente
da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, afirma, em seu Tweeter:
“Marginais não representam os pretos honrados do Brasil, seja
Marighella, Madame Satã ou o negro do Carrefour.”5Esses
posicionamentos negacionistas apenas reforçam o racismo
estrutural da sociedade, escamoteando questões que deveriam ser
discutidas e problematizadas. Segundo Han (2017, p. 140) “Tanto a
violência quanto o pode são estratégias para neutralizar a alteridade
inquietante, a liberdade rebelde do outro’.

Conclusão

Diante das análises realizadas, confirmamos o papel exercido


pelas metanarrativas na sociedade. Espera-se que mulheres tenham
comportamentos que se adequem às normatividades sexuais. A
partir do momento em que é assignada como mulher, uma série de
consequências a espera: como se portar, com quem se relacionar,
quais lugares frequentar, caso contrário, pode sofrer as mais diversas

5. Disponível em: https://twitter.com/sergiodireita1/status/


1331629850394812419?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%
5Etweetembed%7Ctwterm% 5E1331629850394812419%7Ctwgr%5E%
7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fcatracalivre.com.br%
2Fcidadania%2Fsergio-camargo-diz-que-joao-alberto-nao-representa-
pretos-honrados%2F. Acesso em: 06/12/ 2020.

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violências. Quando Mari Ferrer ultrapassa a linha que divide
mulheres “honestas” das “desonestas”, seja por fazer determinadas
poses para fotos ou tomar quaisquer atitudes que não se enquadram
às esperadas, ela passa a ser responsabilizada, inclusive, pelo seu
próprio estupro.
O mesmo ocorre em relação a João Beto: as diferenças raciais
marcam também as diferenças de experiências vivenciadas por cada
um. Aos brancos, são dadas mais oportunidades, facilidades e seus
“pecados” são mais facilmente perdoados ou, ao menos, não tendem
a ser usados como justificativa para que lhe sejam infringidas as
mais duras punições. Aos negros, resta a existência marcada por
perseguições em shoppings, negação de oportunidades de trabalho e
truculências de seguranças e policiais, tudo isso mascarado por uma
suposta “democracia racial” que contribui para reforçar ainda mais
a sua autoimagem de incapaz ou sua autorresponsabilização pelos
seus próprios fracassos.
Logo, percebe-se que há expectativas da sociedade em
relação aos sujeitos e que, quando estes ocupam a posição do
“não lugar” estão passíveis de vivenciar diferentes violências
(Bagagli 2017). Essas expectativas, engendradas e justificadas por
metanarrativas, classificam corpos e, diferentemente, das formas
centralizadas de penalidade assumidas até meados do século XIX,
passam a ser exercidas de maneira pulverizada por toda a sociedade
(Foucault 1987). Essas relações de poder, ainda que não explicitadas
e, na maior parte das vezes, negadas pelos indivíduos, mantêm o
status quo e constituem os discursos e posicionamentos assumidos
socialmente. Transpondo a discussão sobre transexualidades em
Bagagli (2017), por considerarmos se tratar, de forma análoga, de
corpos abjetos, como os abordados em nossas discussões, cabe a
esses sujeitos construir alternativas de luta, a partir de parceria entre
os movimentos sociais e os estudos críticos, visando descortinar as
relações de poder que mantêm e reforçam as hierarquias sociais.
Somente assim será possível alcançar lugares de existência
respiráveis para os corpos marcados pela abjeção.

EXPLOSÃO CULTURAL 215

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Referências

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ELABORAÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO
TRANSDISCIPLINAR PARA O ENSINO DA
ÁREA DE LINGUAGENS

Ademar Vilhalva
Adriana Sales
Denise Silva

Introdução

A proposta de material didático tem como objetivo se tornar


apoio aos professores e alunos na escola indígena no que se refere
ao ensino transdisciplinar na área de linguagens. O material se
compõe por meio dos saberes tradicionais indígena kaiowá. Foi
elaborado através das pesquisas com mais velhos das comunidades
e professores que já atuam há mais tempo na Escola Municipal
Mbo’eroy Arandu da aldeia Taquapery, município de Coronel
Sapucaia, Mato Grosso do Sul.
Tem como público, estudantes do ensino fundamental II
e está escrito em língua kaiowá. Entendemos que o ensino não
precisa ser disciplinar e que há a necessidade de organizar uma
sequência didática transdisciplinar no intuito de modificar a forma

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como temos o ensino hoje. Nesse sentido, são propostas práticas de
ensino de línguas, artes e educação física sobre os saberes indígenas
com vistas ao desenvolvimento das habilidades de leitura, escrita,
oralidades, interpretação atividades corporais, jogos, brincadeiras,
artesanatos e interpretação.
Com relação aos alunos, além das propostas didáticas
apontadas, esse material os ajudará a entender sobre a sua cultura
e identidade pois traz ensinamentos sobre a cultura tradicional
indígena, crenças, costumes, modo de ser kaiowá e de viver, assim,
podem valorizar, mostrar que os seus saberes tradicionais são
valiosos e fortalecer cada vez mais a sua língua e sua identidade
cultural.
Para que a pesquisa fosse possível localizamos os estudos
a partir da linguística aplicada, pois essa área de estudos também
se intitula transdisciplinar, Cavalcanti 1998, explica essas
características e aponta que essa visão do ensino, baseada em
disciplina surge com a divisão do trabalho, sendo assim, não é algo
que está restrito ao ambiente escolar. Envolveu toda uma sociedade
que pensava dessa forma, em saberes separados, compartimentados.
Nesse sentido, entendemos que o conhecimento não envolve
uma única disciplina e a transdisciplinaridade é quando o ensino
exige mais áreas de investigação um outro modo de produzir
conhecimentos ou seja, conteúdos ou atividades podem envolver
conhecimentos em várias disciplinas e saberes.
A escola da comunidade indígena se organiza em componentes
curriculares, e segundo o PPP Escola Municipal Mbo’eroy Arandu
a área de linguagens é composta da seguinte forma: língua
português, artes, educação física, língua guarani e língua espanhola.
Objetivo apresentado nesse documento é possibilitar aos estudantes
participar de práticas de línguas para que lhe permitam ampliar
suas capacidades expressivas em manifestações artísticas, corporais
e linguísticas, como também seus conhecimentos sobre essas
linguagens, em continuidade às experiências vividas na educação
infantil.

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O projeto escolar é pensado, planejado, construído a partir
dos valores reconhecido pelo povo. Estes princípios devem nortear
e estar em todas as áreas de conhecimentos para fundamentar os
projetos educativos das comunidades indígenas, valorizando suas
línguas e conhecimentos tradicionais.
O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas,
1998 também fala que a linguagem é o meio que se modifica e
transmite suas culturas e o uso de linguagem é que expressa e passa,
constantemente reavaliada, de uma geração para outra, os modos
específicos de usar as linguagens.

Aqueles que precisamos ouvir

Para o desenvolvimento das atividades, fizemos uma


pesquisa com mais velhos da comunidade e professores que atuam
na escola. O professor Enoque Batista, 2020 disse que no contexto
guarani e kaiowa sempre o conhecimento é repassado em dois
locais, primeiro a família se reúnem ao redor do fogo, o fogo e
um local muito importante para guarani kaiowa, ao redor do fogo
começa o diálogo da mãe e pai, avó, tio, tia e outros parentes é nesse
lugar que a pessoa aprende a cosmologia do guarani e do kaiowa.
As crianças e os jovens se reúnem na oga pysy onde e casa de reza
com rezadores e outros membros que faz parte dos rezadores, lá eles
recebem toda educação para viver bem. Viver bem é cuidar de si
mesmo, e cuidar dos outros.
Atualmente a família do guarani kaiowa está em contato
com outros sistemas, o sistema que leva kaiowa a ter outra visão de
viver, por isso o conhecimento tradicional fica esquecido, porque
a família mudou – se para outro local, as crianças e adolescente se
deslocam para a escola e igrejas e esse lugares também influenciam
e dão outras orientações para viverem.
Por causa dessa mudança, se torna importante os saberes
indígenas na escola, mas há muitas dificuldades, pois o conhecimento

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tradicional se escolarizou, há uma mudança de espaço de ensino e
para isso os professores e mediadores encontram dificuldades porque
não foram formados para isso, a formação deles é universitária, não
tem preparação para realizar saberes, não são os conhecedores de
saberes tradicionais, da cosmologia guarani kaiowa.
Anteriormente os saberes indígenas não eram aceitos na
escola, para ser aceito da secretária municipal precisava transformar
em uma disciplina de saberes indígenas, e só assim, nesse formato
disciplinar é que poderíamos ensinar alguma coisa sobre guarani
kaiowa.
Com o passar do tempo há modificações e os conhecimentos
indígenas estão mais presentes e a escola funcionaria como um
espaço de valorização além do dia a dia em suas casas, sendo assim,
essa proposta está em língua kaiowá, pois deve – se manter uma
educação na língua materna como forma de fortalecer, construir a
aprendizagem e valorização da língua e da cultura. E os assuntos
abordados visam preservar o nhande reko, valorizando mais as
tradições, os conselhos dos mais velhos aos mais novos e a cultura
que não deve ser esquecida. Seguem as propostas didáticas:

Ta´ãnga jegua

Imagem: Ademar Vilhalva.

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Chicha avati peky
Ojejapo hagua chicha avati pekygui:ojeporu avati sa´yju ikyva
terã hatãva, pa avati(10), po y (5 litro) eira, nha´e (panela) avei
ojeporu angu´a ojejoso haguã avati há ojeporu avei vatea´i terã
vateá guasu chicha ojejapopyrema onhemõi haguã há´epe.
Mba´e ojeporu ojejapo hagua chicha:Ejoso terã eikyty avati sa´yju.
Emoi oja tuichava pe y ndive há embopupu ojypeve kaguĩjy
Há upei emõi ambue oja tuichavape,embojehe´a porã y
ndive há e chumbiri porã va´erã pe hatykue pono osĕ hyvi
kaguĩ,ho´ysavy porá meve.
Uperire emoi eira há´epe he´ĕ porãmeve.Ha oimbama chicha
ojejapo va´ekue ,há emboyru vateape terá vateaguasupé.

Tembiaporã
1) ko´ape mbo´ehara ikatu onhomongueta mbo´epy
kuera ndive mbo´ekotype chicha rehegua omonhe ´e
va´erã pe nhe´e mbyky oñhondivepa há upei katu ikatu
onhomongueta,ojapo nheporandutemimbo´e kuera pe
ikatu haguãicha uperupive ombokatupyryve ñe´eha rupi
há avei omoñe´evy onhe´epy.

2) Mba´echa ojejapo chicha? Mba´echagua ojeporu ojejapo


haguã emombe´u rehaívy nde kuatia rehe.

3) Ehaí( x ) tembiporu ojeporuva ojejapo haguã chicha


( ) nha´e,angu´a,avati ( ) angu´a ,avati ,y
( ) y,avati,nha´e ( ) nha´e,angu´a,vatea´i terã vatea guasu

4) Mba´eichaguagui ojejapo chicha ehaí hera?

5) Mba´eicha chagua ojeporu onhemohe´ĕhaguã chicha?


Mba´eichaguape ikatu onhemoi kaguĩ ojejapopyre?
Nha´e pe.

6) Moope ikatu retopa avati?


( )kokuepe ( )ka´aguype ( )nhũ rehe

7) Mba´echagua chagua avati nde reikuaa ?Emoha´anga há


ehai hera há upei embojegua.

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8) Ejapo jeporeka nde tekohape mba´echagua avatipa
onhenhoty vyteri,há mba´echagua avatipa ndoikoveima
onhenhotyva ?

Nhemborari rehegua

Nhemborárihá´e ipya´eveva ojo´ehegui:Nhande rekope


sambo,rari, jeikuaa,nhemoitĩ,jelia,nhembiarã,nheha´ã terá
jovahara oje´e tete vevuipe mitã kuera onhepyrũ oikuaa
pokȭi(7) ro´y oreko ma jave pe nhemborari rehegua.
Oikuaa haguã irari há omongu´e kuaa hete
Ko´ãnga onhehendu kaiowa nhe´ĕpe Nhanderu há nhande
sy há´e kuera mante oikuaa porã há ikatu omohesakã umi
mitãguasu terã kunha taĩ kuerape oikuaã porã haguã hekopete
umi nhemborari rehegua .
Rari niko há´e teko kuaaopamba´e vaigui ikatu nhanembo´yke.
Oĩave ikatu oiporu teko vaírã terá takate´ȳ há ikatu haguã
ombohovái mymba pochy ,yvyretajara ,uru há hembiguaikueragui.
Ñemoiti ikatu avei já´e heta nhembosarai ymãite guivema oĩva
guarani há kaiowa pa´ũme. Oĩ tekohape ndojeporuveima, ha
ko´anga mbo´eroga rupi ikatu mitã kuera ndive nhapu´ã jevy
nhande reko nhande mba´e teeva.

Tembiaporã
1. Nhemongueta mbó´epy kuera ndive rari rehegua,maerãpa
umi nhande ramõi kuera irari araka´e ,ymãve rupi ,oikuaa
haguãojehesamondo kuaa haguã terã ojeporeka kuaa

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haguã pehĕgue ndive(família).Nhande sy terã nhande
ru ndive .pe rari rehegua,mbo´ehara ikatu omohesakã
porã ma´erã pa ikatu oñemomba´e pe ñemborari rehegua
nhande rekopetegua.

2. Mba´ere onhe´e mombe´upy ehai x há´epe.


( ) rari ( ) jeí ( ) nhemborari

3. Mba´eichagua nhe´epe oje´e nhemborari ehaí hera .

4. Mavapa ikatu ombo´e rari rehegua hekopete?

5. Emombe´u rehaívy mba´e he´ise


Rari Nhemoĩtĩ

6. Emoha´anga nhemborari ra´anga há embojegua .

7. Ejapo ñeporandu jari terã nhamõi pe moopepa ikatu


onheha´ã pe nhemborari .

8. Mba´erepa nhande jaikuaa va´erã rari rehegua ehai x há´epe.


( ) rejei kuaa haguãnte ( ) renhorãirõ kuaa haguã
( ) reikove haguã ( ) reiporu haguã jejopy vaihápe

Guyrapa rehegua

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Guyrapa ha´e peteĩ tembiporu te´yi kuera oiporuva ,ymã rupi
te´yi kuera oiporu guyrapa omarika haguã ,ojopoí haguã pira
há avei ojeporu araka´e nhorãirõ harupi,ko´anga rupi katu
guyrapa ojeporu avei onhembosaraí haguã vy´´a harupi.

Tembiaporã:
1. Nhemongueta temimbo´e kuera ndive guyrapa rehegua
,mba´echapa pe guyrapa ojejapo terá mba´echapa ikatu
jaiporu ,moopepa jajohu va´erã umi jeporurã jejapovy
guyrapa.Ha ymãve rupi maerãpa ha mba´epepa umi te´yi
kuera oiporu araka´e ?

2. Mba´ere onhe´ĕ pe mombe´upy?

3. Moope te´yi kuera ymãve rupi oiporu araka´e pe guyrapa.


( ) omarika ,ojopoí há nhorãirõ harupi.
( ) omarika,onhembosarai há nhoraĩrõha rupi.
( ) ojopoí,nhorãirõ há nhembosaraíha rupi

4. Ejapo ñeporandu ituja veva terã iğuaiguĩ vevape


mba´echaguaguipa ojejapo pe guyrapa,moopepa ikatu
jatopa umi tembiporurã há ehaí pe ne nheporandu kue
nhe´epuku rupi.

5. ko´anga rupi guyrapa ojeporu avei.

6. moope ko´anga rupi guyrapa ojeporu nhembosaraí haguã


( ) marika hape ( ) jopoí hape
( ) nhorãirõ hape ( ) vy´a hape

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Guachire

Ojeguachire vy´a hape onhondivepa ojopore oipyhy peáhera


sarta.Upe ara tekotevĕ ojejapo chicha heta umi pehĕgue kuerape
oguachire haguã onhondivepa. Mava ikatu ho´u chicha ikatu ho´u
mitã kuera há kakuaa kuera jarí há nhamõi háambue kuera(outro).
Upeva ikatu ojapo oimeraevãnte ojevy´a haguã vy´a pope.

tembiaporã
1. Nhemongueta mbo´epy kuera ndive ko michĩmi
mombe´ypy guachire rehegua .

2. Mba´eicha hera mombe´upy?

3. Mba´eicha jave ojejapo guachire há ma´erã ojejapo


guachire?

4. Mba´e oikotevĕ heta ojapo ojeguachire hapé.

5. Mava ikatu ho´u chicha.

6. mba´egui ojejapo chicha


( ) mandi´ogui ( ) jetygui
( ) andaígui ( ) avatigui

7. Emohenda ko terá (chicha)mba´echaguavapa há´e.


( )nhe´eteva ( )teroja ( )tero

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8. nhe´e( chicha)há´epa
( )tero jurugua ( )tero tĩgua

9. ko nhe´e(vy´a) mba´echagua nhe´epa há´e emohenda


( )tero ( )teroja ( )nhe´eteva

Jari

Jari omongu´i avati ojapo haguã hu´i, ho´u haguã pira mimõi
ndive.Ojy aja pira ha´e há tia omõngu´i avati pira tyrá rã.Pe
nha´ĕpe opupu hina pira ojopoí akue ysyrype, ojy aja, jarí ha
tia onhomogueta oĩ oha´ãrovy ipira mimõi.

Tembiaporã
Monhe´ĕrã há nheporandurã
1. Mbo´ehara omboguapy vaerã mbo´epykuerype
omombe´u haguã ymã guare rembi´u rehegua há
ko´angapa umi tembi´u ojeporuvy teri .

2. Mba´ere ymaguare jarí há nhamõi hesaĩ?


3. Mba´e jarí kuera ojapo tata kotare oha´arõ aja pira
mimõi?
( ) oporahéi ( ) onhomongueta ( ) omongu´i avati
( ) omomimõi pira ( ) oguapy

4. Mba´egui ojapo hu´i


( ) avati ky´igui ( ) mandi´o ky´igui ( ) jety ky´igui

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5. Mba´e ombopupu ña´epe?
( ) pira ( ) avati ( ) hu´i

6. Ndepa rei´ikuaa mbaei´chapa ojopói pirá? Emombe´u


rehaívy nde kuatia rehe.

7. Mba´echagua chagua tembi´u ikatu ojejapo


avatigui,emombe´u há emohanga umi tembi´u.

8. Mba´e arape ikatu onhenhoty avati ejapo ara jepapaha


ra´anga.

9. Ymã rupi te´yi kuera mba´echagua tembiporu oiporu


onhoty haguã avati
( ) kyse ( )s arakua ( ) yvyra

10. Mba´echagua chagua avati nde rehecha nde tekohape


onhenhoty ramo emoha´anga.

11. Ejapo nheporandu nhamoĩpe terã jaripe mba´echagua


chaguapa avati rerapa oĩ.

12. Ymãve rupi moope te’yikuera ojeheka hembi´urã rehe


ejapo nhe´ĕ hesegua.

13. mba´echagua chagua nde rehecha te´yi kuera onhoty


ikokuepe nde tekohape .ehaí hera há ejapo há´anga há
embojegua .

14. emoha´anga ko´ã tembi´ukuera te´yikuera rembi´u teeva.


Avati mbichy, pirekai,pira mbichy há pira
mimõi,kumanda,jety mbichy,chicha,hu´i, há ambueve
tembi´u.

15. mba´´echagua mymba ka´aguy ro´o te´yi kuera ho´uva


emoha´anga há ehaí nhe´e remombe´uvy.

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Jeroky

Jeroky há´e peteĩ vy´aha ,avei jeroky ojejapo jehovasa haguã


terã nhemongaraí haguã . pe jeroky hape avei ikatu nhaime
haguã vy´apope nhande pehengue kuera ndive, jeroky hae ojapo
nhanderu há nhadesy,ikatu pe jeroky oiko oga pysype , pe jeroky
hape ikatu ou mitã kuera,kakuaa, jarí,nhamõi, há ojerokyva.
Pe jerokyhape ikatu ojeporu mbararaka,jeguaka,po´y,
johasaha,jegua haguã yryku, chiripa, terã yvyra pará,pe
jerokyhape ikatu omonhepyrũ nhanderu, há ijyvyraíja.
Há avei jeroky hape ojejapo kaguĩ , ikatu haguãicha ouva
jeroky hape ho´u haguã.

Tembiaporã:
1. Mba´e omombe´u pe mombe´upy?

2. Mba´e heise jeroky ndeve ehaí nhe´e jeroky rehegua


mba´e he´ise pe jeroky ndeve.

3. Moope ikatu ojejapo pe jeroky?

4. Mavapa ikatu ou jeroky hape emombe´u rehaívy.

5. Emoha´anga umi tembiporu ojeporuva jeroky hape.

6. Embohasa ko´ã tembiporu rera Lingua Portuguêsa pe.


Mbaraka:______ Jeguaka:______
Yryku:______ Po´y:______

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7. Ejapo nheporandu mba´egui ikatu ojejapo ko´ã tembiporu
há moopa ikatu jajohu.
Mbaraka: Jeguaka: Yvyra para
Po´y: Chiripa:

8. Etopa mombe´upy ryepype nhe´e


Terova: Nhe´eteva:

9. Ejapo ñeporandu ne nde jari pe terã itujaveva pe mba´e


he´ise jehovasa há mongarai há ehaí hesegua nhe´e.

Yryku rehegua

Yryku há´e peteĩ temitȳ ikatu retopa ka´aguype terá ikatu avei
onhenhoty há´e peteĩ temitȳ onhenhotyva oga jerere terã hoky
rei rei ka´aguy,kokuerere rupi. Ko yryku te´yi kuera oiporu
ojegua haguã há´epy,ikatu oime raĕva oiporu há avei há´ekuera
omboéte eterei voi yryku mba´eiko há´e ikatu omboyke opa
mba´e vai pono oja nde rehe avei pono mba´e tirõ vai oja mitãre
terã mitã kunhã ikunha taĩva rehe,pono ojepota ivaiva mitã kunha
rehe upeagui há´ekuera oiporu yryku ojegua haguã há´epy.

Tembiaporã
1. Mba´eichagua rehe onhe´e pe nhe´e mbyky?

2. Moope ikatu retopa pe yryku?

3. Maerã te´yi kuera oiporu pe yryku,mba´epe há´e iporã?

4. te´yi kuera oiporu yryky pono oja mba´e


( ) pochy ( ) vai ( ) tirõ ( ) ãngue

EXPLOSÃO CULTURAL 231

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5 karai kuera oiporu ave yryku mba´epe há´ekuera oiporu
ejeporeka há ehai hesegua

6. Mba´echaguapa te´yi kuera oiporu yryku.


( ) hogue ( ) hapo ( ) hakã ( ) hi´a

7. mba´echa rejapo va´erã yryku reiporu haguã hi´a


( ) reikytĩ ( ) rejoso ( ) rembopupu
( ) remongu´i

8. yryku á ryepypeguapa há´e


( ) hovy ( ) sa´yju ( ) hũ ( ) pytã ( ) morotĩ

Po’y

Po´y há´e ojejapo mba´e á gui ikatu reiporu avei takuara po´í
pirukuegui. erejapo haguã tekotevĕ rereko (jú) erembokua
haguã pe mba´e á. Embopupu ikatu haguãicha hu´ũ
erembokuavo Eremõita chupe nha´ĕpe hoysã haguã.
Terá ehã´arõ osyrypa y chuguireikytĩta taquara mbyky remoĩ
haguã pe mba´eá hũndive terã po´yvy ndive.
Aveí reimo´iserõ guyra rague hendive ikatu ave. Upeicha hina
ojejapo poyrã eremoĩ haguã nde ajurare.

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Tembiaporã
1. Mba´eichaguare onhe´e pe mombe´upy
( ) hu´yre ( ) yvyra áre ( ) po´yre ( ) takuara

2. Mba´eichagui ikatu ojejapo po´y


( ) yvyragui há takuaragui ( ) hyakuagui há po´yvygui
( ) po´yvy gui há takuaragui ( ) yvagui há takuaragui

3. Mba´eichagua jeiporuha rerekova´erã rejapovy po´y

4. Moo ikatu retopa pe po´yvy há takuara?

5. Mava ikatu oiporu po´y.


( ) kakuaante ( ) mitãnte ( ) itujavevante
) oimerãeva

6. Ejapo peteĩ jeporeka ituja veva terã nhanderu há nhandesy


ndi mba´epa he´ise terá mba´e ohechauka pe po´y jeporu
kaiowapé.ha ejapo nhe´eremombe´uvy pe nde jeporeka.

Gyrapa Pyaká

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Jeporurã guyraparã yvyra y kue, yvyloro gui ita apu‟a, ha mba‟e yvi
kaguarata terã mbokaja yvi isã rã, vakapi ita‟i ñemohenda haḡua.
Mba’e jejapirã, guyrahá miymba ka’aguy. Mamõ ojejapo
va‟erã tenda nandi hape, onhevanga rendape, mbo‟ehao roka,
terã. Mba’echa ojejapo va’erã mbohapy jevy há’ã, ojapiramo
ojapo hepy, nahani ramo osĕ ñevanga gui. Sa’i ramooñevangava
ha‟ekuera año oñevanga oñondive. Ave poapy remo kare
va’erã ita apu‟a ojere haḡua guyrapa.

Tembiaporã
1. Mba´echagua jehugare onhe´e ko mombe´upy?

2. Mba´eichaguagui guyrapa pyaka ojejapo?ha moope ikatu


rejohu umi mba´e reiporu haguã?

3. Mba´eichagua ikatu reiporu guyrapa pyakape rejapi haguã?

4. Ndahetaíramo ohugava nhevanga hape mba´e ikatu oiko?

5. Moope ikatu retopa karaguatai?

6. Ko´ape mbo´´ehara ikatu ogueru guyrapa ojejapo pyre


ohechauka haguã tembimbo´e kuerape terã ogueru va´erã
ojapo kuaava ochuka haguã pe ijejapo.omombe´u haguã
mba´echapa terá mba´echaguagui ikatu rejapo.avei ochuka
haguã mba´echa ojeporu va´erã pe guyrapa py´aka.

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HISTÓRIA INDÍGENA NO CEARÁ-BR:
UM RESGATE DA CULTURA, LÍNGUA E
IDENTIDADE

Daniel Valério Martins


Ruan Rocha Mesquita
Daiane Oliveira da Silveira

Introdução 

Para uma melhor compreensão partiremos do conceito de


identidade, no qual utilizamos o pensamento de (Hall, Woodward e
Silva 2000) quando explicam sobre as particularidades que definem
cada grupo, associando-os às comunidades indígenas que formam o
objeto de estudo dessa pesquisa. Senão, veja-se: 

A identidade é marcada pela diferença, mas parece que


algumas diferenças, nesse caso entre grupos étnicos, são vistas
como mais importantes que outras, especialmente em lugares
particulares e momentos particulares (...). Nesse sentido, a
emergência dessas diferentes identidades é histórica; ela está
localizada em um ponto específico no tempo. Uma das formas

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pelas quais as identidades estabelecem suas reivindicações é
por meio do apelo a antecedentes históricos. (Hall, Woodward
e Silva 2000, p. 11)

Assim, através do presente capítulo, seguindo o exposto por


Valério (2014), mostramos uma análise acerca do processo histórico
das comunidades indígenas Pitaguary, Tapeba, Kanindé, Jenipapo-
Kanindé e Anacê, uma pequena parcela entre as etnias indígenas
autodeterminadas1 e reconhecidas no estado do Ceará, e que estão
situadas na Região metropolitana de Fortaleza-Brasil.
Em estudos de Valério (2014) foi constatado que algumas
dessas comunidades perderam totalmente sua língua originária,
buscando palavras em tupi-guarani, como forma de resgate cultural.
Aquilo que parece ser simplesmente um argumento sobre o passado
e a reafirmação de uma verdade histórica pode nos dizer mais
sobre a nova posição de sujeito, do guerreiro do Século XX que
está tentando defender e afirmar o sentimento de separação e de
distinção de sua identidade nacional no presente do que aquele
suposto passado. 
Assim, essa redescoberta do passado é parte do processo de
construção da identidade que está ocorrendo nesse exato momento
e que, ao que parece, é caracterizada por conflito, contestação e uma
possível crise (Hall, Woodward e Silva 2000).
Valério (2014) afirma que no resgate cultural, fazendo
uso do processo de aculturação/adculturação, podem-se ver
aspectos positivos, de modo que essas comunidades, com seus
conhecimentos empíricos e práticas cotidianas de caráter particular,
podem assimilar de acordo com seus interesses, traços de outra
cultura vista como “dominante”, para manter a indígena, até porque

1. De acordo com o Artigo 3ᵒ da Declaração das Nações Unidas sobre os povos


indígenas de 2006, os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em
virtude desse direito, os indígenas determinam livremente sua condição
política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e
cultural.

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seria impossível diante do processo de globalização fazer com que
a comunidade voltasse a ter os mesmos traços do passado, como se
fosse isolada da nação. 
Vemos, assim, uma temática trabalhada anteriormente por
alguns autores utilizando o termo “aculturação” que em um de seus
conceitos, portanto, pode ser vista como: “[...] um processo em que
os contatos entre diferentes grupos culturais levam a aquisição de
novos padrões culturais por um, ou talvez ambos, grupo(s), com a
adoção de toda ou parte da cultura do outro” (Jary e Jary 1991, p. 3,
tradução nossa). 
De acordo com o que foi exposto anteriormente, sobre o
fenômeno da globalização e consequentemente fazendo reforçar os
conceitos de aculturação e adculturação, diante do contato, interação
e aquisição de culturas distintas, nos encontramos diante de uma forte
indagação:  “Como combinar a defesa da cultura diante das trocas
inevitáveis, mesmo que as migrações não sejam forçadas, e com
o direito que as pessoas têm de ampliar seu acervo de lugares, seu
repertório de desejos e, enfim, seus horizontes?” (Ratts 2009, p. 40). 
Diante de tais argumentos podemos ver, ainda, que a
globalização, como bem expressa Hall, Woodward e Silva (2000),
na obra “Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos
Culturais”, produz diferentes resultados em termos de identidade.
A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode
levar ao distanciamento da identidade relativamente à comunidade
e à cultura local. De forma alternativa, pode levar a uma resistência
que pode fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e
locais ou levar ao surgimento de novas posições de identidade (Hall,
Woodward e Silva 2000)
Ao olhar para as missões jesuítas, Casillase Villar (2006),
entendem que a aculturação, buscada com a homogeneidade cultural,
seria a ferramenta para a dominação e controle das comunidades
indígenas, fazendo uso a princípio de um caráter religioso em busca
de fins puramente econômicos, pois tais comunidades seriam a força
da produção e aumento das riquezas dessas missões (aldeamentos).

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Essa visão é também exposta no pensamento de Tito Barros Leal
(2011): “Indubitavelmente, é a aculturação a marca mais conspícua do
projeto missionário: “dar” ao indígena os elementos necessários para a
boa-vivência de cristão civilizado, livre dos horrores da bestialidade, à
qual, anteriormente, estava entregue” (Barros 2011, p. 21).
Esse pensamento das missões jesuítas, apresentando como
máscara um caráter totalmente religioso, também serviu como
mecanismo de busca pelo esquecimento de culturas indígenas,
incluindo suas línguas originárias. Isto porque, o objetivo central
seria a formação de uma mão-de-obra produtiva e obediente, mesmo
que resultasse a extinção de várias culturas indígenas. 
Então, abordamos nesse trabalho, a aculturação na linha da
antologia de Schaden (1969), ou seja, em seus diversos ângulos e
pontos de partida, os conceitos variantes do mesmo processo, do
contato e das interrelações entre as mais diversas comunidades,
considerando-se seus antecedentes históricos, seus costumes e
tradições, ou seja, sua cultura e identidade. 

Culturas e línguas originárias no Brasil e no Ceará 

Em Pindorama, nome nativo na língua tupi-guarani do hoje


então chamado Brasil, havia mais de 200 línguas não escritas antes
da chegada dos europeus. De cada quatro brasileiros; três falavam
tupi, e todos os outros que não utilizavam o tupi eram denominados
Tapuya2 e somando a língua portuguesa que em contato com estas
ganhou um toque e se distanciou do português falado em Portugal.3

2. Tapuya – nome dado a todos os indígenas não falantes do Tupi-guarani,


considerado pelos mesmos, povos bárbaros, por seu caráter guerreiro na
defesa do litoral contra invasores.
3. Informações obtidas na obra 1822 de Laurentino Gomes em perspectiva
comparada com os censos do IBGE de 2010.

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De acordo com o autor José Cordeiro (1989), no séc. XVI,
viviam cerca de 22 povos indígenas no território cearense e cada
um desses povos possuía seu idioma próprio e são as bases para a
formação das etnias estudadas nessa pesquisa. Entre elas podemos
destacar os Tarariú que deram origem aos Kanindé, Genipapo, Anacè
e Paiakú que por sua vez, deram origem aos Jenipapo-Kanindé e aos
Potyguara, que deram origem aos Pitaguary e juntamente com o
encontro e convivência com os Tremembés, Karirí e com padres
Jesuítas, entre eles, Francisco Pinto e Luiz Figueira4 deram origem
aos Tapeba em aldeamentos de Poranga, Messejana e Caucaia,
fundados no início do século XVII.5 
Assim, vemos que essas populações, com o passar dos
anos, e com o contato com os europeus, foram perdendo suas
línguas originarias e ganhando também denominações distintas.
A população do Brasil era chamada de “brasilianos” de acordo
com artigos publicados no início do século XIX no jornal Correio
Brasiliense de Londres. Segundo o jornalista Hipólito José da Costa,
dono do Jornal, as pessoas naturais do Brasil deveriam se chamar
brasilienses, brasileiros os portugueses ou estrangeiros que lá se
estabeleceram, e brasiliano o indígena (Gomes 2010). 
A população nativa do Brasil, até ser chamada de brasileira,
ganhou várias denominações. Sendo utilizada para designar as
pessoas nativas do Brasil, a palavra “brasileiro” ganha força somente
a partir da primeira Constituição do Brasil, em 1824, porque até
então, chamar um português de brasileiro, ainda que fosse nascido
no Brasil, era uma “ofensa”, uma vez que o término era utilizado

4. Francisco Pinto e Luiz Figueira foram autores das primeiras gramáticas


da língua tupi, ainda chamada na época língua brasílica. Durante uma
expedição ao Maranhão, Francisco Pinto é assassinado pelos indígenas da
região e Luiz Figueira consegue ser resgatado por outros jesuítas. (Girão,
Raimundo em Três documentos do Ceará Colonial).
5. Atualmente, Poranga se chama Parangaba e assim como Messejana, são
grandes bairros de Fortaleza, Caucaia se tornou distrito, fazendo parte da
Região metropolitana da Grande Fortaleza.

EXPLOSÃO CULTURAL 239

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para designar os comerciantes do pau-brasil e os nativos (indígenas),
que juntos eram chamados de brasis. 
Sabendo-se que a denominação “indígena” segue um
caráter um tanto quanto errôneo de acordo com a historiografia e
a delimitação geográfica, ainda assim, neste trabalho, utiliza-se a
mesma, tendo por base os textos que descrevem essas comunidades.
Nesta época, em 1824, a população indígena estava estimada em
800.000 pessoas e a língua predominante era o tupi, por ser mais
preciso, o “tupinambá”; dialeto o qual era falado no momento do
contato entre o povo colonizador e o povo colonizado no litoral
brasileiro e estudado pelos jesuítas que traduziam a catequese,
tornando-se uma língua importante ao lado do português, mas na
metade do século XVIII, tal língua havia sido proibida pelo Marquês
de Pombal, nas chamadas Reformas Pombalinas. 
Apesar de muitas palavras do tupi antigo fazerem parte do
vocabulário português, a língua tupi não tem força significativa,
sendo considerada muitas vezes inútil, incompreensível e irrelevante
por grande parte da população brasileira. A elite brasileira não
percebe, não quer perceber nem tem o interesse em admitir o
verdadeiro valor da língua tupi, que ainda é uma língua viva, que
não desapareceu, e que segue sendo falada em algumas regiões
do Brasil, em uma pequena parte do litoral brasileiro, resgatada
por pequenas comunidades indígenas e até mesmo incorporadas
no próprio dicionário da língua portuguesa, mas ocorre que, com
a expulsão dos jesuítas, o português prevaleceu e fixou-se como
língua oficial do Brasil, mas com o toque especial do contato. 
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), o Brasil é um país de dimensões continentais
com uma área total de 8.514.876 km2 formado por 26 estados e
um Distrito Federal, todos submetidos a uma única Constituição, e
com uma população estimada em 192 milhões de habitantes (2010).
Segundo a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), existem 220
povos indígenas diferentes, que somam mais de 345 mil pessoas
vivendo em terras indígenas e aproximadamente 190 mil fora das

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reservas, incluindo-se as dos grandes centros urbanos, havendo
falantes de 180 línguas distintas e que ocupam 12,54% do território
nacional. 
De acordo com os dados obtidos através do censo 2010,
do IBGE (2010), 817 mil pessoas se autodeclararam indígenas,
mostrando um crescimento de 84 mil indígenas entre os anos de
2000 e 2010, representando 11,4% da população indígena. O
Estado do Ceará, seguindo os dados do mesmo censo, possui uma
população estimada em 19.336 indígenas com uma estimativa de
crescimento de 6,2 % ao ano. Como vimos anteriormente, e para
contrastar com os dados da FUNAI, de acordo com o Censo do
IBGE (2010), o total da população Indígena no Brasil é de 896,9
mil, incluindo os 817 mil autodeclarados, citados anteriormente,
que dos mesmos, 36,2% vivem em área urbana e 63,8% na área
rural, divididos em 305 etnias que falam 274 idiomas distintos.
Considerando a população indígena residente fora das terras, onde a
maior concentração foi encontrada no Nordeste, 126,6 mil. Também
havia 8,8% de pessoas residentes nas terras que não se declararam e
não se consideravam indígenas e sem declaração. Entre as regiões,
o Nordeste apresentou a maior proporção de pessoas que não se
declararam, mas se consideravam indígenas, 22,7%.  
No Ceará, esse percentual chegou a 45,5%. E de acordo
com dados do mesmo Censo, entre os anos de 2000 e 2010, a
taxa de alfabetização dos indígenas com 15 anos ou mais de idade
(em português e/ou no idioma indígena) passou de 73,9% para
76,7%. Vemos, portanto, que apesar do aumento significativo de
crescimento da população indígena nos últimos anos, ocorre um
processo histórico de diminuição de suas culturas, que iremos
explicar no tópico a seguir. 

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O desaparecimento de culturas e línguas originárias 

Desde o ano de 1500, com a chegada dos europeus no Brasil,


a população nativa, também chamada indígena, vem sofrendo o
chamado “estigma” da diferenciação citado por Goffman (1988).
Com os processos de etnocídio e genocídio enfrentados, a população
indígena, vêm ao longo de todos esses anos, desaparecendo ou
tornando-se invisibilizada. 
No período colonial brasileiro, o emprego forçado da
mão-de-obra indígena seria a base de sustentação do projeto
colonial europeu, os quais seriam imputados ao estigma dos “seres
inferiores”, que deveriam ser escravizados ou mortos, quando não
fosse possível domesticá-los ou catequizá-los pela fé cristã. Assim,
ordens religiosas passaram a agir na defesa de causas indígenas
nas denúncias de monocultura e nas instalações dos aldeamentos,
segundo Schaden (1974). 
No início do século XVII, o movimento das Entradas6 chega
às capitanias do Rio Grande e do Siará7 (1603 e 1607), conhecida
por grande concentração Tapuya gerando resistência diante do
domínio português ao serem aprisionados, destinados a escravidão
e a busca de minérios. Durante todo o século XVII, a capitania
do Ceará se constituiu como um entreposto, uma guarnição de
passagem: inicialmente, como possessão da Coroa na proteção de
toda extensão do território do Rio Grande para além da província
do Jaguaribe, “infestada” de grupos indígenas hostis, e sob perigo
constante dos franceses que comerciavam com os Potiguaras, no
litoral. (Martins, 2009). 

6. Tipo de expedição empreendida e financiada pelo governo colonial em nome


da coroa portuguesa na época do Brasil Colônia com o fim de exploração
territorial, captura ou extermínio de indígenas, entre outros.
7. Siará é o nome da capitania que deu origem ao Estado do Ceará, seu nome
em tupi-guarani quer dizer “o canto da jandaia”, um pássaro comum nessas
terras durante aquela época.

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Segundo cartas do Rezão do Estado do Brasil (1616),8 no ano
de 1611, a capitania do Rio Grande possuía 16 aldeias indígenas,
muito pequenas, mal governadas e inquietas por falta da doutrina de
clérigos e capitães ou padres e religiosos da companhia, de acordo
com a carta referente a Capitania do Rio Grande, eram enviados
dois padres em determinadas épocas para a catequização, mas como
passavam pouco tempo com os indígenas, se tornava difícil deixá-
los em um estado de submissão. Nesse contexto, as autoridades
colonialistas apontavam numa mesma direção de que a ocupação
para a pecuária se faria somente com a “desinfestação” dos índios
“bárbaros”, cujas hostilidades eram impedimentos concretos da
efetiva economia nascente (Martins 2009). 
No final do século XVII e início do século XVIII, ocorre a
guerra de extermínio, também chamada de Confederação dos Cariris
ou Guerra dos Bárbaros, que perdurou durante 30 anos (1683-1713)
e que as nações mais atingidas foram a dos índios Payaku, que
segundo essa visão infestavam a região do Jaguaribe e Banabuiú no
Ceará, e os Janduins no Rio Grande do Norte, esse último, assinando
um tratado de paz em 1692 entre Canindé Cacique dos Janduins
e D. Pedro II Rei de Portugal, assim no ano de 1699, o capitão-
mor Pedro Lelou do Ceará avisou a corte que havia a presença de
apenas duzentos moradores que dos mesmos alguns eram soldados
da guarnição de Fortaleza e outros “gentios domesticados”,9 que
depois não mais aceitando a situação de submissão e o desrespeito
pelos portugueses sobre o tratado assinado, fazem ocorrer em
agosto de 1713 a destruição da cidade de Aquiraz,10 ocupada

8. Rezão do Estado do Brasil (c.1616), Códice 126 da Biblioteca pública do


Porto, seguido de um estudo cartográfico de Armando Cortesão e A. Teixeira
da Mota.
9. Carta Régia a Caetano de Mello e Castro. 11/09/1699. Apud Stuart
2001(Martins 2009).
10. Aquiraz, cidade fundada em 1699, sendo a sede administrativa da capitania
do Siará Grande até 1726, quando foi substituída por Fortaleza.

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pelos portugueses e sede dos negócios da empresa colonial, sendo
transferida depois para Fortaleza. 
Todos os projetos coloniais implementados no Ceará entre
os séculos XVII e XVIII, referentes à população indígena, tiveram a
marca do integracionismo, ou seja, os planos de “civilizar” os índios
tinham por finalidade a integração destes à sociedade colonial, não
importando, evidentemente, as diferenças étnicas existentes entre os
dois mundos confrontados (Barros 2011). 
Em meados do século XVIII, fomentando o desaparecimento
de culturas linguísticas inteiras, o Marquês de Pombal, na época
ministro do rei de Portugal, no chamado Diretório Pombalino,11
proíbe o uso das línguas nativas, fazendo com que o português
se tornasse a língua oficial, de maneira a sufocar muitos dialetos
falados em todo o Brasil, expulsando, para tanto, muitos jesuítas
que aparentassem “desvios de conduta” em relação ao sistema. 
Para Bertoldo & Santos (2010), menos de 10% da população
daquela época fazia parte do seleto grupo que tinha acesso a
prática formal da educação, estavam excluídos nesse percentual
não somente os indígenas, mas também, os negros escravizados ou
libertos e as mulheres. Para essa época, em diversos períodos, o
autor Nimuendaju (1987), baseado em autores cearenses, ressalta a
presença de vários grupos indígenas, entre eles os Paiaku na região
do Vale do Jaguaribe, já em menor proporção devido aos resultados
da guerra de extermínio e na exploração nas fazendas de criação de
gado que começaram a crescer na região do Ceará. 
Aportando o pensamento de Barros (2011), com a proibição
das manifestações culturais indígenas, eles seriam mais facilmente
manipulados e civilizados de acordo com o pensamento colonial
europeu, ou seja: Se anteriormente, no período das missões, os
índios haviam sofrido com a proibição das suas manifestações

11. Diretório Pombalino de 1758, regimento em vigor na colônia relativo à


ordenação dos indígenas, sendo que no ano seguinte, em 1759, através da
Ordem Régia, Portugal expulsa de suas terras os jesuítas.

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religiosas e a imposição do cristianismo, agora se somava a tanto, a
negação das suas línguas em função da língua do branco. 
A prática do trabalho, apresentada pelos missionários como
dignificante e redentora, agora se revestia de novo sentido, devendo
ser encarada pelos nativos como precípua obrigação; ficava claro
que a liberdade dependia do trabalho (Barros 2011). 
Segundo Gomes (2010), no início do século XIX, o Brasil
tinha pouco mais de três milhões de habitantes, menos de dois por
cento da população atual. De cada três brasileiros, um era escravo e a
população indígena era estimada em 800 mil pessoas. E já se notava
bem acentuado o fluxo migratório de europeus e o tráfico negreiro
para lavouras e mineração. Gerando assim uma imposição cultural
europeia local (portuguesa) diante das classes desfavorecidas (índios
e negros). Na Capitania do Ceará, uma das quais possuía muitos
indígenas do Nordeste, o trabalho escravo não era exercido de
forma excessiva nessas terras, sendo preciso recorrer a mão-de-obra
indígena, em uma espécie de “combate a vadiagem”, na tentativa
de inserir essa população na produção e força de trabalho, impondo
outro modo de vida, desestruturando sua cultura e controlando sua
população, gerando um esquecimento que viria novamente à tona no
século seguinte. Mas, de fato, foi a imposição da língua portuguesa
às populações indígenas que mais profundamente marcou esse
período. Se a negação das línguas indígenas tinha um caráter
intencional de pôr no ostracismo as culturas nativas, também trazia
em si a ideia de “civilizar” e “educar” os nativos (Barros 2011). 
Esse processo de imposição cultural foi uma das causas da
diminuição das culturas indígenas no Brasil, surgindo, em resposta,
somente no século XX as políticas indigenistas – resultado dos
movimentos que vieram à tona no intuito de revelar a ineficácia
do governo brasileiro em acabar com os sérios conflitos fundiários
que vinham enfrentando e que persistem até os dias de hoje contra
poderosos empresários e contra o próprio Estado. Tais membros
do poder diziam conduzir os “selvagens” rumo a um grau mais
“evoluído” de “civilização”, como um “favor prestado” em troca

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da terra e da tutela dos povos indígenas, conforme abordam Mead
(1980), Boas (1964) e Grupioni (2006). 
Essa ideia de civilizar e educar os nativos pregado pela
Companhia de Jesus tinha seus aspectos políticos de organização,
sociais com um ar religioso e ao mesmo tempo econômico, pois
os indígenas seriam a base de sustento com sua mão de obra barata
(escrava), situação essa que vem à tona e se deixa conhecer a partir da
Congregação Geral 34,12 que também passa a servir de fortalecimento
para a luta indígena como provas de atrocidades a cultura indígena
que durante séculos foi sufocada, calada e invisibilizada. 

Novos movimentos indígenas: uma educação para a intra e


interculturalidade

Atualmente, nas questões fundiária e de identidade, o


movimento indigenista13 vem ganhando força. De acordo com
Kymlicka (1996), a “identidade” consistiria no primeiro passo para
vir à tona o sujeito indígena, que passaria a usar a assimilação da
cultura nacional imposta, em soma com sua cultura originária como
uma das ferramentas para chegar ao desenvolvimento comunitário
na economia, saúde, transporte, educação etc. ou seja, não se tratando
apenas de aculturação, aproveitariam o contato para a adculturação.
Aqui podemos ver a importância desse fortalecimento identitário
e sua eficácia com suporte nos conceitos de intraculturalidade,

12. Congregação Geral é a expressão utilizada pela Companhia de Jesus


para designar o seu órgão máximo de governo, o topo da estrutura que
tem poder para eleger o Geral da Ordem, nos seus 481 anos de história,
a Congregação Geral se reuniu 36 vezes, a última ocorrendo em 03 de
outubro de 2016 em Roma.
13. O movimento indígena contemporâneo surgiu nos anos 70 e se organizou em
nível nacional na década seguinte, mas um grupo indígena que se mobilizou
por sua terra na década de 90, pode remeter seu passado a 100 ou 200 anos.

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multiculturalidade, interculturalidade e transculturalidade, dentro
de um mesmo processo de fortalecimento pessoal e comunitário
como pregado em Valério (2016, 2019, 2020) no chamado processo
de Sobreculturalidade. 
No Ceará, bem como em outros estados brasileiros, o
processo de reconhecimento identitário e territorial indígena se
torna um tanto quanto difícil e árduo, mas vem crescendo e se
consolidando na atualidade, sendo percursores nesse movimento
indígena, os Tapebas e os Tremembés nos anos 80, que lutando
por suas identidades e a posse das terras que ocupavam, fizeram
surgir um choque de informações perante a sociedade nacional,
pois se tratavam de pessoas que falavam português se pareciam e se
vestiam como a população regional. 
Essa visão ia de encontro à imagem estereotipada do índio
como selvagem, que anda nu com um arco e flecha nas mãos, ou
seja, uma imagem do indígena como isolado e exótico como sempre
foi apresentado nos próprios livros didáticos de todo o país, pois
de certa forma, como esse choque de informações seria difícil
diferenciar índios e não-índios, quando eles sentiam a necessidade
de invisibilidade devido aos estigmas imputados. 
Vale ressaltar que o povo Tremembé, depois de vários anos de
luta, consegue somente em agosto de 2015, a portaria que garante a
demarcação de suas terras, entre elas, da Barra do Mundaú e Sítio São
José do Burití em Itapipoca- Ceará. Pelos preconceitos enfrentados
e estigmatizados pela situação de fragilidade que se encontravam,
muitos povos indígenas preferiam ocultar ou renunciar suas
identidades, assim passavam a crer que seria mais fácil a inserção no
mercado de trabalho e na sociedade de um modo geral. 
A luta pela afirmação identitária e territorial rearticula as
dimensões do cotidiano desses povos, reescrevendo suas histórias
em função da afirmação de uma cidadania diferenciada, garantida a
duras penas (Martins 2009). 
Assim, passa a ser exigida uma maior reflexão sobre a
diversidade de identidades entre os moradores de uma determinada
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cidade, pois na cidade de Fortaleza em sua região metropolitana,
além da população “branca”, de acordo com os vários censos do
IBGE, quando a população é questionada por sua cor, existem
também comunidades negras e várias comunidades indígenas, entre
elas os Pitaguary, Tapeba, Kanindé, Jenipapo-Kanindé e Anacé, as
quais foram o objeto de estudo da pesquisa que gerou esse trabalho. 
Estudos de Van Dijk (2009), sobre a dominação étnica e
racismo na Espanha e na América Latina, mostram que apesar da
negação do racismo no Brasil, do mesmo modo como ocorre em
outros países da América Latina, em regra geral de todo o continente,
os brancos europeus dominam os demais grupos de várias maneiras.
O autor comenta que este fato pode ser observado diretamente
entre as classes média e alta, nas elites, nos centros de poder e
das riquezas, onde a maioria de gente de descendência europeia
dominam a política, os meios de comunicação, as universidades, os
centros de investigação, as empresas, os tribunais etc.
Ainda de acordo com Van Dijk (2009), na esteira de Grupioni
(2006), na temática do racismo, dessa vez em comparação com os
indígenas, tem-se que essa população sempre foi marginalizada nos
próprios livros, pois como ocorre não somente no Brasil, mas em
toda América Latina, os negros e indígenas somente ganham um
determinado destaque, quando o discurso educativo versa sobre um
tempo passado, ou seja, quando já estão mortos. No mesmo discurso,
parafraseando Silva (1995), aponta que os negros e os indígenas
de hoje em dia, assim como suas vidas cotidianas, raramente são
considerados em um livro de texto, o fato de que a metade da população
brasileira seja de cor, não parece afetar o conteúdo educativo. 
Assim, de acordo com os autores Alexandre Gomes e
João Paulo Vieira Neto (2009), em seus estudos sobre museus e
memória indígena no Ceará, refletem sobre uma nova abordagem
na maneira de apresentar os povos indígenas, ressaltando que seus
objetos deixam de ser vistos como vestígios materiais de culturas
“inferiores” e “exóticas”, representantes de um passado em vias
de extinção. E com a criação dos museus indígenas ganhariam um

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sentido positivo de exaltação e da diversidade cultural, afirmando
a contribuição desses povos na formação da identidade cultural
brasileira, que segundo o pensamento de Candau (2008), a
sociedade brasileira, formada por diferentes grupos socioculturais,
precisa buscar a interculturalidade, uma vez que: “A perspectiva
intercultural está orientada à construção de uma sociedade
democrática, plural, humana, que articule políticas de igualdade
com políticas de identidade” (Candau 2008, p. 52)
Como bem explica o sociólogo Stavenhagen (2008), em
entrevista para a revista Nuevamerica em sua edição de número
117: Reconhecer a presença das culturas indígenas nas culturas
latino-americanas atuais é aceitar a realidade intercultural que nos
caracteriza. Os meios de comunicação, a educação, as políticas
culturais, os espaços públicos e as artes, deverão ser um reflexo
dessa grande diversidade cultural que engrandece a região Latino-
americana (Stavenhagen 2008). 
Como seria aceita e difundida essa realidade intercultural
pela população que vivia como lavradores e pescadores, povos
tipicamente rurais que não tinham sequer uma organização
comunitária e não possuíam conhecimentos suficientes para iniciar
a luta por um reconhecimento de terras e identidade? Necessitavam
de apoio contra os preconceitos de que eram alvo e para a afirmação
de sua identidade cultural que o próprio Estatuto do Índio (Lei nº
6001, de 19 de dezembro de 1973) era insuficiente, na medida em
que prescreve o seu artigo primeiro: “Esta Lei regula a situação
jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com
o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e
harmoniosamente, à comunhão nacional”. (Brasil 1973)
O quarto artigo do Estatuto do Índio brasileiro deixa ainda
mais clara essa visão preconceituosa, em que o ideal de civilização
está baseado na integração do indígena ao restante da população
nacional, tendo uma minoria enfraquecida que incorpora-se e
adapta-se à cultura da maioria. Essa visão de “integração” está
explícita no trecho abaixo: 

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Art. 4º Os índios são considerados: I. Isolados – quando vivem
em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e
vagos informes através de contatos eventuais com elementos
da comunhão nacional; II. Em vias de integração – Quando
em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos,
conservam menor ou maior parte das condições de sua vida
nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência
comuns aos demais sectores da comunhão nacional, da qual
vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; III.
Integrados – Quando incorporados à comunhão nacional e
reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que
conservem usos, costumes e tradições característicos da sua
cultura. (Brasil 1973)

Sendo assim, o Estatuto utiliza a ideia de integração como um


verdadeiro progresso, colocando as comunidades indígenas em uma
situação de “hipossuficiência”, aumentando a necessidade de ajuda
às comunidades para sobreviver, com a preservação de suas culturas. 

Estas actitudes racistas se están desvaneciendo lentamente,


aunque a menudo han sido sustituidas no por la aceptación
de los pueblos indígenas como naciones distintas, sino por
el supuesto que son “minorías raciales” o “grupos étnicos”
desfavorecidos, cuyo progreso exige integrarlos en el grueso
de la sociedad. (Kymlicka 1996, p. 18) 

Portanto, nesse clima de insatisfação das comunidades


indígenas em relação à sua dependência a um Estado que visa a
sufocar suas culturas, e fazer desaparecê-las é que se dá início a
uma luta por autonomia, buscando modificação, começando alguns
membros de tribos indígenas a atuar em mobilizações públicas, com
ações judiciais contra quem se opunha aos interesses da causa.

En la mayoría de los Estados multinacionales, las naciones que


los componen se muestran proclives a reivindicar algún tipo

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de autonomía política o jurisdicción territorial, para asegurarse
así el pleno y libre desarrollo de sus culturas y los mejores
intereses de sus gentes. Según la carta de las Naciones Unidas
“todos los pueblos tienen derecho a la autodeterminación.
(Kymlicka 1996, p. 22)

Analisando que se tratava de comunidades aculturadas


ou interculturais, pois já haviam sofrido um longo processo de
assimilação e ao mesmo tempo interação com outras culturas, uma
restauração ou resgate da cultura original seria bem mais difícil, mas
não impossível se fosse utilizado o princípio da intraculturalidade,
trabalhado por Aparício (2011), para o fortalecimento comunitário
e preservação cultural. E de que forma se usaria esse princípio? Isso
se daria utilizando-se aspectos de ambas as culturas confrontadas no
panorama brasileiro, para se chegar a uma formação indígena que não
ignorasse suas origens, preservando se suas manifestações culturais,
mas também dando ferramentas e conhecimentos necessários da
cultura não-indígena, a fim de que o indígena possa batalhar com
suas próprias armas numa realidade multicultural, pensamento
também defendido por Ratts (2009), quando nos diz que: Um grupo
indígena que passou por transformações forçadas e aceleradas pelo
contato com a sociedade brasileira e com as relações capitalistas
faz uso da mudança cultural para falar de si mesmo (Ratts 2009).14

Considerações finais 

O ponto crucial deste trabalho, seria, portanto, a promoção


e difusão da educação intercultural ou diferenciada, no caso das
escolas indígenas e quilombolas, como ferramenta para a utilização

14.  Publicado em: Silva, Evaldo Mendes da; Sousa, Ivo e Monteiro, Carla
(orgs.) A tradição por trás da criação. Fortaleza: SEDUC, 1998, pp. 18-19,
in: Ratts, Alex, 2009, p. 41.

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e difusão da intraculturalidade, vista como mecanismo de resposta
das comunidades indígenas em busca do desenvolvimento interno
eficaz, por meio da mão de obra indígena especializada em
determinadas áreas de conhecimento e, assim, fazer valer a criação
e implementação do conceito de Sobre culturalidade auxiliando no
processo de resgate, conservação e preservação cultural e linguística
dos povos indígenas do Ceará-BR. 
A escola, portanto, está sendo chamada a lidar com
a pluralidade de culturas, reconhecer os diferentes sujeitos
socioculturais presentes em seu contexto, abrir espaços para
a manifestação e valorização das diferenças além do resgate,
preservação e conservação de suas línguas, culturas, terras e
territórios (Moreira 2001).
A resposta ao movimento indígena ganha outra vertente,
enquanto nas décadas de 70 e 80 o foco estava centrado na luta
pelas terras e territórios, na década de 90 o centro das atenções do
movimento se volta para a educação, pois ela daria suporte para se
chegar ao conhecimento sobre a cultura do “branco” e fazendo do
indígena sujeito ativo em uma sociedade que antes o invisibilizava.
Assim, a educação de uma maneira diferenciada, organizada pelo e
para o indígena se torna a ferramenta de valorização de suas culturas,
línguas e cosmovisões em um embate político intercultural crítico. 

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SOBRE OS ORGANIZADORES E OS AUTORES

Sobre os organizadores

CARLOS VINÍCIUS DA SILVA FIGUEIREDO


Professor de Língua Portuguesa e Língua Inglesa do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso
do Sul Campus Dourados. Doutorado em LETRAS pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie com pesquisa realizada
na Texas University em Austin - Estados Unidos. Mestrado
em LETRAS pela Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul. Graduação em LETRAS pela UFMS/CPTL. Magistério
pelo Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do
Magistério – CEFAM - JALES. Integrante do Programa de
Estágio Brasil-Canadá em Educação Profissional e Pesquisa
Aplicada em parceria com a Association of Canadian
Community Colleges (ACCC) com período de estudos no
Institute of Arts and Technology do Seneca College (Toronto
- Canadá). Tem experiência na área de Gestão Escolar e
de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, Estudos
Culturais e Estudos da Subalternidade, atuando principalmente
nos seguintes temas: subalternidade, intelectual, literatura,
Clarice Lispector e Gloria Anzaldúa. Atualmente é Diretor
Geral do IFMS Campus Dourados.

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DENISE SILVA
Licenciada em Pedagogia (2004) pela Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS), Mestrado em Letras (2009)
também pela UFMS, e Doutorado (2013) e Pós-doutorado
(2016) em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp); Pós-
doutorado em Sociolinguística pela Universidade Estadual
de Mato Grosso do Sul (2018) e Pós-doutorado em Estudos
Culturais pela UFMS (2020). Tem experiência na assessoria
linguística e pedagógica em cursos de formação inicial e
continuada de professores indígenas e na produção de material
didático para ensino de línguas em contextos complexos. É
uma das fundadoras do Instituto de Pesquisa da Diversidade
Intercultural (Ipedi - 2012) e ocupa o cargo de presidente da
instituição. Atualmente é Professora Visitante do Programa de
Pós- Graduação em Letras da FACALE/UFGD. E-mail para
contato:  denisemiranda83@gmail.com Lattes: http://lattes.
cnpq.br/060212137034768 Orcid: https://orcid.org/0000-
0003-4558-7100.

GICELMA DA FONSECA CHACAROSQUI TORCHI


Possui graduação em Licenciatura Em Letras Português
Literatura Brasil pela Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (1992), mestrado em Estudos Literários pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (2001) e doutorado em
Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (2008) e Pós-doc pelo ECCO, UFMT
(2020). Atualmente é professora adjunta com dedicação
exclusiva da Universidade Federal da Grande Dourados.
Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em
Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas:
literatura, cultura, semiótica, arte e literatura comparada.
Atualmente é Pró-Reitora de Extensão e Cultura da UFGD.

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MÁRIO CEZAR LEITE
Escritor e crítico literário. É professor Titular do Departamento
de Letras/IL da Universidade Federal de Mato Grosso.Possui
graduação em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso
(1987), mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade de
São Paulo (1995), doutorado em Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000) e estágio
de Pós doutoramento em Estudos de Literaturas Comparadas
no DLCV, FFLCH, da Universidade de São Paulo (2005-
2006), sob a supervisão de Benjamin Abdalla Jr.; Estágio
Pós-doutoral em Memória Social e Bens Culturais (fev.2016-
fev.2017), no PPG em Memória Social e Bens Culturais da
UNILASALLE, Canoas-RS, sob a supervisão de Zilá Bernd.
Foi um dos criadores do Programa em Estudos de Linguagem/
IL/UFMT (2003). Também foi um dos criadores do Programa
em Estudos de Cultura Contemporânea-ECCO/UFMT (2007)
onde atua como professor-orientador nas Linhas de Pesquisa
Poéticas Contemporâneas e Epistemes Contemporâneas. Com
ênfase em Letras e interdisciplinaridade atua principalmente
nos seguintes temas: literatura brasileira, literatura de Mato
Grosso, oralidade e mitos, Pantanal, imaginário, identidades
e regionalismo, questões culturais e identitárias na América
Latina.

Sobre os autores

ADÉLIA MARIA EVANGELISTA


Graduação em Letras pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, mestre em Linguística pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas.
Doutora pelo Programa de Doutorado do PPLG – Letras –
DINTER “Novas Fronteiras”, convênio UFRGS e UEMS.
É professora do quadro efetivo da Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul, Unidade de Jardim.

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ADÉLIA MARIA EVANGELISTA AZEVEDO
Graduação em Letras pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, mestre em Linguística pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas.
Doutora pelo Programa de Doutorado do PPLG – Letras –
DINTER “Novas Fronteiras”, convênio UFRGS e UEMS.
É professora do quadro efetivo da Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul, Unidade de Jardim. 

ADEMAR VILHALVA
Graduação em Licenciatura Intercultural Indígena com
habilitação em Linguagens pela Universidade Federal da
Grande Dourados. Atualmente é professor indígena Kaiowá da
rede municipal de educação de Coronel Sapucaí, Aldeia
Indígena Taquaperi.

ADRIANA SALES
Graduação em Letras pela Universidade Federal da Grande
Dourados – UFGD, Mestrado em Letras (Linguagem e
Sociedade) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná
– UNIOESTE e Cursa Doutorado em Estudos de Linguagens
pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul-UFMS. É
docente efetiva da Faculdade Intercultural Indígena do curso
em Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu da UFGD.
Possui experiência em ensino de línguas em contexto indígena,
português para falantes de outras línguas e metologia de ensino
de línguas

ALEXANDRA APARECIDA DE ARAÚJO FIGUEIREDO


Pós Doutoranda em Letras pela Universidade Federal da
Grande Dourados – UFGD. Linha de pesquisa: Estudos de
língua(gens) e discurso.

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CESAR AUGUSTO SILVA DA SILVA
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(1998) e Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Atualmente é Professor Adjunto da
Faculdade de Direito (FADIR) da Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul (UFMS), e coordenador da Cátedra Sérgio
Vieira de Mello na mesma universidade, em Campo Grande.
Além de Professor do Mestrado Interdisciplinar Fronteiras
e Direitos Humanos da Faculdade de Direito e Relações
Internacionais da UFGD, em Dourados-MS.

DAIANE OLIVEIRA DA SILVEIRA 

DANIEL VALÉRIO MARTINS


Doutorado em Estudos Latinoamericanos pela Universidade de
Salamanca-Espanha. Atualmente é Professor do mestrado de
Antropologia de Ibero-América da Universidade de Salamanca,
membro do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade
de Salamanca, atuando no Grupo para Criação e Difusão da
Antropologia, membro do mesmo grupo pela Universidade
Federal da Grande Dourados.

DANIELE CRISTINA AVELINO FEITOSA


Graduanda em Letras-Licenciatura, com Habilitação em Língua
Portuguesa e Língua Inglesa, bem como suas Literaturas pela
UEMS.

FRANCIELLE VASCOTTO FOLLE


Mestra pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em
Fronteiras e Direitos Humanos na Universidade Federal da
Grande Dourados – UFGD. Possui graduação em Direito pelo
Centro Universitário da Grande Dourados.

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LIDIANE MARTINS
Possui graduação em Letras – Português e Inglês pela
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
MARCELO NICOMEDES DOS REIS SILVA FILHO
Professor adjunto na Universidade Federal do Maranhão –
UFMA. Doutor em Letras pelo PPGL da Unioeste. E-mail:
marcelo.nicomedes@ufma.br. http://orcid.org/0000-0002-
9715-2099.

MARCELO PIRES DIAS


Doutor em Linguística pela Universidade Federal do Pará
(UFPA), Mestre em Estudos Linguísticos (UFPA). Atualmente
é Coordenador do Curso de Licenciatura em Educação do
Campo, Licenciatura sediada na Faculdade de Etnodiversidade
(FACETNO/UFPA – Campus Altamira) e desenvolve
pesquisas nas áreas da Dialetologia e Sociolinguística
Variacionista.

MARCIA REGINA DO NASCIMENTO SAMBUGARI


Possui Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Mestrado em Educação Escolar pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Atualmente é Professora Associada II da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus do Pantanal.

MARIA ROSELI CASTILHO GARBOSSA


Professora Doutora de Português Instrumental da Uniguaçu-
Faesi, de São Miguel do Iguaçu e da SEED – Secretaria
Estadual Educação do Estado do Paraná.

MARLUCIA MENDES DA ROCHA


Doutora em Comunicação e Semiótica – Pontifícia
Universidade de São Paulo – PUC/SP; Profª do Programa de Pós
Graduação em Letras – PPGL: Linguagens e Representações
da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC – Ilhéus/BA;
Orcid: 0000-0001-9509-2478.

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MÔNICA DE CARVALHO MAGALHÃES KASSAR
Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual
de Campinas, mestrado em Educação pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul e doutorado em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas. Realizou estágios de pós-
doutorado na Universidad de Alcalá, na Universidade Estadual
de Campinas e na Universidade de Lisboa. É professora
Titular pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e
Pesquisadora Sênior Voluntária da mesma universidade, onde
atua no Programa de Pós-graduação em Educação - Educação
Social, no Campus do Pantanal.

RAQUEL LOPES

RENATA DE MELO GOMES


Mestre em Letras e doutoranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras – PPGL - Linguagens e Representações
da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC – Ilhéus/BA.

ROGÉRIO ZAIM-DE-MELO
Licenciado em Educação Física pela UNESP, Rio Claro,
Mestre em Educação Física pela USP e Doutor em Ciências
Humanas, Educação pela PUC-Rio. É docente do curso de
Educação Física da Universidade Federal do Mato Grosso Sul
(UFMS) - Campus do Pantanal.

RONALDO HENRIQUE SANTANA


Doutor em Estudos de Cultura Contemporânea pela
Universidade Federal de Mato Grosso (PPGECCO/UFMT);
Mestre em Educação também pela Universidade Federal de
Mato Grosso (PPGE/UFMT). Criador e Coordenador (Líder)
do Grupo de Estudos sobre Natureza, Cultura e Etnosaberes da
Amazônia (GENCEA) – UFPA/CNPq. Professor Adjunto da
Universidade Federal do Pará – UFPA.

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RUAN ROCHA MESQUITA
Graduando em Sistemas e Mídias Digitais pela Universidade
Federal do Ceará.

VERA LUCIA HARABAGI HANNA


Professora do Programa de Pós-graduação em Letras da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Doutora pela
Brown University-EUA. Doutora em Letras pela PUC-SP.

WASHINGTON CESAR SHOITI NOZU


Professor Adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Educação (Mestrado e Doutorado) e do Programa de Pós-
Graduação em Fronteiras e Direitos Humanos (Mestrado) da
UFGD. Doutor e Mestre em Educação pela UFGD.

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