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Sofrimentos Do Puerpério
Sofrimentos Do Puerpério
FORTALEZA – CE
2011
DENISE TOMAZ AGUIAR
FORTALEZA – CE
2011
A282q Aguiar, Denise Tomaz
Quando ser mãe dói: história de vida e sofrimento
psíquico no puerpério/ Denise Tomaz Aguiar –
Fortaleza, 2011.
98p.
Orientadora: Profª. Drª. Lia Carneiro Silveira
Dissertação (Mestrado Acadêmico em Cuidados
Clínicos em Saúde – Universidade Estadual do
Ceará, Centro de Ciências da Saúde).
1. Enfermagem. 2. Mulher. 3. Pós-parto. 4.
Sofrimento psíquico. I. Universidade Estadual do
Ceará, Centro de Ciências da Saúde.
CDD: 614
DENISE TOMAZ AGUIAR
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof.ª Dra. Lia Carneiro Silveira (Orientadora)
Universidade Estadual do Ceará - UECE
______________________________________
Prof.ª Dra. Karla Correa Lima Miranda
Universidade Estadual do Ceará - UECE
______________________________________
Prof.ª Dra. Eliany Nazaré Oliveira
Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA
Ao Enyo:
A Deus pela possibilidade da vida, por ter me guiado em todas as minhas decisões.
Agradecimento especial aos meus pais Candido e Maria José, pessoas dedicadas,
sempre respeitando minhas decisões, apoiando e ajudando sempre quando era
necessário, obrigada pela compreensão nos momentos de ausência, obrigada por
mesmo na distancia estarem sempre presentes. Sem vocês nada disso valeria à pena!
Aos meus sobrinhos Gisele e Artur que mesmo antes de nascerem foram tão presentes
nesse período, servindo como exemplo de significação do processo de ser mãe.
A minha orientadora, Profª. Dra Lia Carneiro Silveira, pelo o acolhimento afetuoso
nas dificuldades, pela escuta paciente e orientação pontual, por ter me direcionado para
este estudo e ter operacionalizado junto comigo a sua construção, conduzindo este
estudo com competência.
A todos os colegas da 5º turma do CMACCLIS pelo feliz convívio durante esse
tempo. Vocês farão parte da minha história.
A mulher que com seu depoimento, contribuiu para a realização deste estudo, sendo
alvo de minha atenção, no qual não teria sido possível a realização desse estudo.
A minha madrinha Ana Maria e sua família por ter me acolhido em sua casa, por todo
apoio, amparo e atenção.
A minha prima-irmã Vilma e sua família pela torcida, apoio, conselhos e orações,
durante o percurso deste estudo.
A todos que fizeram parte do meu convívio no dia a dia e com empenho, entusiasmo,
bondade e disponibilidade contribuíram direta ou indiretamente, para que este estudo
se concretizasse.
Para onde vai a minha vida e quem a leva?
Porque eu faço sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim na treva?
Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?
Iansã
Voz: Maria Bethânia
Composição: Gilberto Gil e Caetano Veloso
RESUMO
A maternidade porta um aspecto enigmático abordado em diversos campos do saber como nas
artes ou na ciência. No entanto, não podemos afirmar que este enigma abra-se apenas para
experiências positivas, ela pode mesmo apresentar um lado sombrio e mobilizador de
angústia. Este estudo tem o objetivo de compreender como a vivencia da maternidade se
converte para a mulher/mãe em uma experiência de sofrimento psíquico. Para alcançar este
objetivo, buscamos identificar como a mulher interpreta a situação atual e qual o significado
de ser mãe e como isso se articula com sua historia de vida; Conhecer as percepções e as
redes de significado dessa mulher, como também seus valores, concepções, idéias e
referenciais simbólicos que organizam suas relações com o bebe, com o parceiro e com a
família, procurando perceber quais as possibilidades de articulação dos componentes
subjetivos da história de vida dessa mulher para a produção de um cuidado clínico que
considere o sujeito em sua singularidade. O estudo foi realizado no período de 2009 a 2011
numa unidade de saúde do município de Fortaleza, Ceará, e aborda a história de vida de uma
mulher que se apresenta em uma situação de sofrimento psíquico no pós-parto, que a
chamaremos de Flávia. A abordagem foi realizada através do método da história de vida por
meio da priorização da escuta dessa mulher, guiada pela pergunta “Conte-me sua historia de
vida”. Para análise da história utilizamos o ensaio metapsicológico defendido por Iribarry
(2003). O estudo amparou-se na resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que
regulamenta pesquisas envolvendo seres humanos. O primeiro encontro com Flávia se deu por
indicação da enfermeira da unidade de saúde, o caso foi relatado através de uma cunhada de
Flávia que procurou a unidade de saúde, solicitando uma visita da equipe. O motivo era que
Flávia apresentava crises de choro, falta de ânimo, sem vontade de comer de banhar-se e com
muitos medos. Tivemos quatro encontros onde, a partir da escuta, pudemos delimitar em sua
história alguns núcleos de sentido como: as Relações amorosas; a Maternidade; o Parto, o
sangue e o medo. Percebemos que estes núcleos despontam em uma cadeia de significantes
que se articula em torno de uma repetição: aposta amorosa – decepção com essa escolha -
maternidade – risco de morte. Em seguida, buscamos no referencial psicanalítico o aporte
teórico necessário para construir o ensaio metapsicológico baseados nos núcleos apreendidos.
Mesmo não nos propondo a realizar uma intervenção clínica, percebemos no ultimo encontro
um ganho terapêutico pelo simples fato de ter alguém para endereçar o sofrimento, a angustia
e sua interface com sua história. Apostamos no fato de que, através da consideração da
dimensão do sujeito articulado ao seu desejo, podemos reinventar os espaços e ferramentas de
assistir àqueles que demandam nosso cuidado.
Motherhood carries a puzzling aspect addressed in various disciplines such as arts or science.
However, we can not say that this puzzle is only open to positive experiences, she can even
have a dark side and mobilizer of anguish. This study aims to understand how the experiences
of motherhood becomes for the woman / mother in an experience of psychological distress.
To achieve this goal, we seek to identify how women interpret the current situation and what
is the meaning of motherhood and how it fits with their life stories, insights and know the
significance of networks of women, but also their values, concepts, ideas and symbolic
references that organize their relationships with the baby with her partner and family, trying to
understand what the possibilities for linking the subjective components of the life history of
this woman to produce a clinical care to consider the subject in its uniqueness . The study was
conducted from 2009 to 2011 in a health unit in Fortaleza, Ceará, and discusses the life story
of a woman who presents himself in a situation of psychological distress in the postpartum
period, which will call Flávia. The approach was performed using the method of the history of
life through the prioritization of listening to this woman, guided by the question "Tell me your
life story." To use the analysis of history advocated by Iribarry metapsychological essay
(2003). The study bolstered on the resolution 196/96 of the National Health Council to
regulate research involving human subjects. The first meeting took place with Flávia by
recommendation of the nurse health unit, the case was reported by a sister of Flávia who
sought health unit, prompting a team visit. The reason was that Flávia had crying spells,
hopelessness, unwilling to eat and bathe with many fears. We had four meetings where, from
listening, we delineate in its history some units of meaning such as: Love relations,
Motherhood, Childbirth, blood and fear. We noticed that these nuclei arise in a chain of
signifiers that are built around a repetition: bet loving - disappointed with this choice -
motherhood - the risk of death. Then we look at the psychoanalytical theoretical basis
required to build the metapsychological essay based on cores seized. Even if we do not
propose to do a clinical intervention, we realized at the last meeting a therapeutic gain by
simply having someone to address the suffering, grief and its interface with its history. We bet
on the fact that, by considering the size of the individual to articulate their desire, we can
reinvent the space and tools to assist those who require our care.
3 EIXO METODOLÓGICO................................................................................. 34
3.1 Procedimentos Metodológicos............................................................................ 38
a) Tipo de pesquisa e Abordagem........................................................................ . 38
b) Período, Cenário e Sujeito do Estudo............................................................... ............
38
c) Produção do texto, análise e construção do ensaio metapsicológico................. 40
d) Princípios Éticos do Estudo............................................................................... ...........
42
4 RESULTADO E DISCUSSÃO........................................................................ 44
4.1 Amor e Sangue: uma história de vida e sofrimento psíquico no pós-parto......... 44
4.2 Delimitação dos Núcleos de Sentido ................................................................... 53
4.3 Feminilidade, Amor, Maternidade: afinal, o que quer uma mulher? ................ 55
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 80
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA................................................................. 85
APÊNDICE............................................................................................................... 87
APÊNDICE 1 - Termo de consentimento livre e esclarecido – TCLE................. 88
ANEXO........................................................................................................................ 89
ANEXO 1 – Parecer do comitê de ética da UECE de aprovação da pesquisa......... 90
1. A MATERNIDADE E SEUS ENIGMAS
Não podemos afirmar que a maternidade traz em seu bojo apenas experiências
eminentemente positivas – sabemos que ela pode ter um lado sombrio e mobilizador de
profundas ansiedades. As produções acadêmicas de diferentes áreas retratam a pluralidade de
aspectos que envolvem a mulher e a maternidade. Dentre estes aspectos enfocaremos no
estudo os afetos de tristeza com os quais uma mãe pode se deparar após o nascimento do
filho. Isso que parece contraditório vem surgindo com grande prevalência nos fazendo refletir
porque um momento de alegria pode reverte-se em tristeza para essas mulheres que
apresentam sintomatologias depressivas no período puerperal.
Pode-se supor que em todos os partos existe um grau de sofrimento na mulher, o qual
deriva de seu encontro com o bebê da realidade e lhe traz uma sensação de vazio e um
sentimento de perda, de algo que lhe pertencia e já não lhe pertence mais. Esse sentimento
pode ser vivenciado em graus diversos por diferentes mulheres ou, ainda pelo nascimento de
filhos diferentes na mesma mulher. Um denominador comum parece ser que, em todas as
mulheres, essa perda exige um intenso trabalho de luto e de elaboração decorrente da presença
do bebê da realidade e da ausência do bebê imaginário (FOLINO, 2008)
As tentativas de explicar o que acontece nesse encontro triste vão variar dependendo
do ângulo onde nos situamos. Para a ciência trata-se de uma patologia, que precisa ser curada,
eliminada. Conceituada dessa forma as divesas formas de nomear o sofrimento como a
depressão, é um rótulo diagnóstico, onde o sofrimento é medicalizado, ou seja, é um termo
cujo significado é uma doença que acomete o indivíduo e que por isso deve ser eliminada.
Triste destino, transformar a dor da perda em uma enfermidade a ser tratada por remédios.
A psicanálise surge como uma outra forma de abordar aquilo que o homem afirma
fazê-lo sofrer. A queixa subjetiva não é tomada com algo a ser eliminado, mas como enigma a
ser decifrado. Esse sofrimento esta ancorado com algo da historia do sujeito que se articula na
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forma como ele conta sua dor. A psicanálise considera que existe um saber que se articula na
elaboração do sintoma. Saber não sabido pelo eu, pois trata-se de um saber inconsciente.
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Para nos aproximarmos dessas singularidades, dessas mulheres que manifestam um
sentimento de tristeza após o nascimento do filho, apenas por meio da fala, da escuta tomada
no caso-a-caso. Conforme afirma Catão (2002) a escuta da tristeza materna, em lugar da
prescrição médica habitual, permite à mãe dar sentido, no contexto de sua história, àquela
gestação particular, único caminho possível de tornar a pôr em marcha o desejo aí implicado.
O sentido dado pela mãe a esta experiência revela-se então, por pior que ele seja, fundamental
enquanto baliza constitutiva da subjetividade futura da mãe e do bebê.
Apresentou-se como uma difícil realidade a ser encarada para uma ainda acadêmica de
enfermagem com pensamento romântico da maternidade, da alegria do amor incondicional
que toda mãe tem pelo filho. Isso coube suscitar uma provocação em buscar compreender esse
fenômeno tão estranho e ao mesmo tempo tão freqüente.
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Na inserção nos Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) notamos que a assistência ao
sofrimento psíquico da mãe se dá de forma objetiva que os profissionais da saúde julgam já
saber a evolução do quadro, caracterizando por uma assistência que se limita em identificar
sintomas adotados pela psiquiatria e os psicofármacos associados.
Várias críticas já têm sido feitas a esse modelo. No campo das práticas “psi”,
principalmente no que diz respeito ao conceito de "doença mental" que passa a ser
desconstruído para dar lugar a uma nova forma de perceber estes fenômenos no âmbito da
"existência-sofrimento" do sujeito.
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Diante da aproximação com o sofrimento psíquico em mulheres que experienciam o
papel da maternidade percebemos os agravos que pode acarretar para mãe, para a criança e
para a família. Percebemos também que existem lacunas, tanto nas produções cientificas,
como nos serviços de assistência às mulheres, nos quais julgamos certa (in)visibilidade dessa
questão.
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constituir-se mãe não se dá da mesma forma para todas, mas ancorada na singularidade de
cada historia e os significantes que foram abstraídos pelas mulheres.
Nessa perspectiva, buscamos no estudo, por meio da escuta da historia de vida de uma
mulher, compreender como a vivencia da maternidade se converte para a mulher/mãe em uma
experiência de sofrimento psíquico. Para alcançar este objetivo, buscamos identificar como a
mulher interpreta a situação atual e qual o significado de ser mãe e como isso se articula com
sua historia de vida; Conhecer as percepções e as redes de significado dessa mulher, como
também seus valores, concepções, idéias e referenciais simbólicos que organizam suas
relações com o bebe, com o parceiro e com a família.
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2. OS NOMES DA TRISTEZA NO PÓS-PARTO
Neste eixo inicialmente, situaremos as várias formas e nomes que se tem dado na
literatura atual acerca da tristeza que acomete as mulheres no período puerperal,
posteriormente traremos uma discussão da abordagem científica literária existente em relação
a discussão da mulher/mãe e o sofrimento psíquico no pós-parto e para finalizar extrairemos
uma discussão do referencial teórico adotado para discussão.
Definimos este período com o inicio entre as duas primeiras horas após a saída da
placenta quando a puérpera deve estar hemodinamicamente equilibrada, sendo seu término
imprevisto, isso porque enquanto ela amamentar sofrerá modificações da gestação. Porém
didaticamente, o puerpério é dividido em imediato - que ocorre entre o 1º (primeiro) e o 10º
(décimo) dia; tardio - entre o 11º (décimo primeiro) e o 42º (quadragésimo segundo) dia; e
remoto - que se dá a partir do 43º (quadragésimo terceiro) dia (BRASIL, 2001).
a) Baby - Blues
Em torno do terceiro dia após o parto, a maioria das mulheres apresenta o que se
denomina Baby Blues. O aspecto lábil do blues é bastante conhecido pelas mães, e
caracteriza-se basicamente pelo sentimento de tristeza, crises de choro, emotividade
exacerbada, hipersensibilidade e labilidade. Podem ocorrer ansiedade, fadiga e preocupações
excessivas com a lactação e com a saúde do bebe. Pode haver distúrbios cognitivos leves,
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como dificuldade de concentrar-se, dificuldade de raciocinar e problemas com a memória e o
choro fácil, mas não chegam a impedir a realização das tarefas pela mãe (ARRAIS, 2005)
Essa freqüência nos faz acreditar que é algo comum, diríamos evolutivo e adaptativo,
fazendo parte deste momento de novas tarefas e novas relações para a mulher, como também
o equilíbrio dopaminérgico. Como também pode ser a representação do final de sua gravidez
psíquica, a mãe deixa de se relacionar com o bebe intra-útero para se permitir entra num
sistema interativo com o neonato
Em geral apresenta-se de forma muito passageiro (até o oitavo dia após o nascimento
do bebe) dificilmente será necessária a intervenção profissional, porém é relevante o apoio
familiar pra proporcionar descanso e segurança para a mãe e atenção aos seus desejos para
facilitar que ela própria descubra seu filho e as formas de interação com este filho.
(MORREIRA, 2003)
b) Psicoses puerperais
Os quadros psicóticos no puerperio são mais raros e mais graves que os de DPP,
apresentando uma incidência de um a dois casos por mil partos realizados. Acometendo cerca
de 5% das mães. (ARRAIS, 2005)
O mesmo autor pontua que a puérpera com estes distúrbios apresentam alterações no
humor, na percepção da realidade, idéias delirantes, alucinações, alterações de ordem
cognitiva rejeição do bebe como se este fosse seu inimigo, com risco para o infanticídio ou
outras formas de ataque e agressão ao bebê.
Na sua maioria as mulheres que são acometidas pela psicose puerperal já apresentaram
quadros psicóticos importantes anteriores à gravidez e ao parto. Esses distúrbios psicóticos
são perturbações graves com surgimento súbito de forma brusca Rocha (1999 apud ARRAIS,
2005).
A família observa condutas estranhas, diferentes, pouco comuns nos cuidados que a
mãe dispensa a si, ao seu bebe e às suas relações com comentários e comportamentos
inadequados, no qual necessita vigilância todo o tempo da família não necessitando o
afastamento do bebe só em caso de um agravamento nos sintomas, em caso de proteção para
ambos. (MOREIRA, 2003)
c) Depressão puerperal
A depressão pós-parto inclui desde quadro transitório benigno até situações graves que
podem culminar em prejuízos irreparáveis para a gestante, o feto e até ao companheiro. A
depressão puerperal acarreta atualmente inúmeros transtornos a família e as instituições
hospitalares, pois o quadro de depressão puerperal ainda é pouco reconhecido pelos
profissionais de saúde, ressaltando que intervenções simples e precisa são capazes de
melhorar a qualidade de vida dessas mães e de seus filhos. (SOUSA, 2008)
Para Sousa (2008) a causa da depressão puerperal ainda é desconhecida, mas alguns
fatores são freqüentemente encontrados em historias de depressão pós-parto e considera que
os principais fatores responsáveis pela depressão puerperal são os biológicos, os sociais e os
psicológicos. Para explicar esses fatores a autora cita Lowdermilk; Fishel,(2002) ao afirmar
que em relação aos fatores biológicos, estes são resultantes da grande variação nos níveis de
hormônios sexuais (estrogênio e progesterona) circulantes e de uma alteração no metabolismo
das catecolaminas causando alteração no humor, podendo contribuir para a instalação do
quadro depressivo. Ao referir-se ao fator social considera que seja uma hipótese para o
surgimento do quadro o estresse, a rotulagem e o modelo feminista, acrescenta que os baixos
níveis de gratificação social, de suporte e de controle no trabalho e no papel pai /mãe estão
também relacionados. No fator psicológico o mesmo considera ser originário de sentimentos
conflituosos da mulher, como dificuldade de adaptação ao papel de mãe, dificuldades no
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relacionamento com o parceiro, problemas financeiros e fatores relacionados às condições do
parto.
Para Arrais, (2005) a explicitação biológica, por si só, não tem sido suficiente para
justificar o acometimento da DPP. Se considerarmos que todas as mulheres apresentam essas
alterações hormonais, tanto na gravidez quanto no parto, mas apenas cerca de 20% delas vão
apresentar os sintomas depressivos após o parto, podemos pensar que outros fatores estão
envolvidos nesta problemática, e que eles vêm sendo negligenciados na literatura médica da
área.
Não é por acaso que ser mãe na modernidade suscita sentimentos de culpa e
frustração e conflitos de identidade, afinal as mães estão habituadas a uma
cultura que proíbe a discussão plena da ambivalência materna, da
coexistência de sentimentos ambivalentes. O natural passa a ser sacrifício e o
amor irrestrito. (AZEVEDO E ARRAIS, 2006)
No inconsciente, o parto é vivido como uma grande perda para a mãe, muito mais do
que o nascimento de um filho. Ao longo dos meses de gestação ele foi sentido como apenas
seu, como parte integrante de si mesma. A mulher emerge da situação de parto num estado de
total confusão, como se lhe tivessem arrancado algo muito valioso ou como se ela tivesse
perdido partes importantes de si mesma. Tanto quanto na morte, no nascimento também
ocorre uma separação corporal definitiva. Este é o significado mais angustiante do parto, que
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se não for bem elaborado, pode trazer uma depressão muito intensa à puérpera: o parto é vida
e também é morte. (SILVA et al, 2003)
Essa tristeza/sofrimento vista pelo olhar da ciência (modelo cientifico) vai muitas
vezes deturpar e destoar a verdade (o real motivo) que esta intrínseca ao sujeito e suas
questões. Isso, porque o solo filosófico que dá origem a definição de ciência moderna, baseia-
se, principalmente, no paradigma cartesiano do cogito ergo sum - „Penso, logo existo‟ - no
qual o sujeito é caracterizado como aquele da consciência, do pensamento, o qual procura a
verdade na razão lógica dos fatos. Sendo o homem um ser de pensamento que pode através
da aplicação rigorosa do método, alcançar a verdade.
Percebe-se que essa abordagem ao sofrimento psíquico é pautada pela mesma noção
da racionalidade científica. Pressupõe um sujeito racional, capaz de dirigir conscientemente
suas ações rumo à superação daquilo que o aflige, e à busca da cura. Se ele se distancia do que
está regulado na norma social, basta receber as informações corretas, ser orientado
adequadamente, motivado corretamente ou ainda condicionado segundo uma norma para que
se aproxime dos objetivos pautados pelo profissional de saúde.
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Programa Saúde da Família e da Reforma Psiquiátrica Brasileira), percebemos que, na prática,
o que realmente acontece ainda está muito próximo das concepções positivistas e das ações
fragmentadas características do modelo biomédico.
Exemplo disso é a nova política do “Pacto pela Vida 2006” que na tentativa de uma
maior consolidação do SUS estabelece as seguintes prioridades:
Uma análise dos enunciados acima nos permite deduzir a que “mulher” as políticas
atuais se referem e como esta mesma mulher é lá abordada. Tanto no Pacto pela Vida (onde
ela aparece nas ações de controle do câncer e de redução da mortalidade), quanto no texto que
subsidia o PAISM (que aborda ações voltadas para prevenção de agravos, redução da
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morbimortalidade) o foco é voltado para a compreensão do organismo e do adoecimento
numa perspectiva de causa e efeito. Nesses textos a mulher aparece predominantemente como
corpo orgânico a preservar ou como agente de uma função reprodutiva durante a gravidez, ou
ainda como cuidadora de um recém-nascido, no puerpério.
Nas políticas publicas não é explicado a que sujeito eles estão se referindo o que
parece claro é que a mulher apreendida é pautada no modelo de Descartes do sujeito
cartesiano, o sujeito do conhecimento pautado na racionalidade objetiva, naturalizado,
indivisível e coerente entre a razão e afetos. Segundo Marcon (2007) esse ou outro conceito
de sujeito adotado, muda completamente a pratica clinica.
Diante disso, nestas políticas a mulher/mãe não é tomada com um sujeito em sua
singularidade. Não há espaço para o questionamento de suas inseguranças, daquilo que a faz
sofrer e as ações desenvolvidas pelos profissionais não dão suporte para o endereçamento da
angústia.
Os sintomas, que muito poderiam dizer de sua questão em relação à maternidade, são
reunidos sobre a rubrica dos “transtornos do humor” de forma homogeneizada. Mas, afinal,
será que podemos tomar da mesma forma questões tão diversas que escutamos na nossa
prática clínica como: “não consigo olhar para o bebê que começo a chorar. Não sei o que
fazer com ele, tenho medo de machucá-lo”; “estou muito sensível, de uma hora para a outra
começo a chorar”; “eu me sinto muito estranha com alguém mamando no meu seio”. Essas
questões apontam para um estranhamento em relação ao próprio corpo e à simbolização do
bebê recém-chegado. No entanto, geralmente não se abre um verdadeiro espaço para o
endereçamento da angústia e as ações se voltam para um tamponamento dessas questões
através da prescrição indiscriminada de benzodiazepínicos e antidepressivos.
Assim a medicina psiquiátrica, não acontece de forma diferente das outras áreas, que
usa o sintoma como algo dotado de sentido e que compete ao médico dar a sua significação e
decifrá-lo, o sintoma é tido como o que identifica uma disfunção fisiopatológica e deve ser
identificado para ser medicado e curado.
Outro discurso que podemos tomar para perceber como a mulher e seu sofrimento
psíquico vem sendo abordado no campo da saúde, é através da análise da produção científica
atual. Os estudos encontrados referentes a sentimentos depressivos no pós-parto apontam
predominantemente para preocupações relativas à busca de relações causais e de diagnóstico
rápidos (SANTOS et al, 2007), à procura de regularidades na ótica da prevalência. (COSTA
et al, 2007 ; CRUZ et al, 2005; RUSCHI et al, 2007; MORAES et al, 2006; PHILLIPS e
NASCEU, 2005). Muitos, ainda, tentam isolar fatores de risco em busca de determinantes que
possam caracterizar e padronizar o sofrimento dessas mulheres com questões objetivas como
socioeconomicas e dados demográficos (idade) (MORAES et al, 2006, RUSCHI et al, 2007)
, dados obstétricos (numero de filho, condições do parto) (CRUZ et al, 2005, RUSCHI et al,
2007; SCHWENGBER e PICCININI, 2003) dentre outros. No entanto o que se percebe é que
na maioria dos estudos a busca se tornou inconclusiva.
28
encontra-se de 10 a 20% (SANTOS, 1995) nos instigando ao seguinte questionamento: será
que está aumentando os casos de depressão puerperal ou as mulheres estão com mais
assistências aumentando as notificações ou essas mulheres estão buscando mais os serviços?
Quadro 01: Prevalências da depressão pós-parto encontradas nos estudos, Brasil, 2009
Outro dado revelado nas produções científicas é a maior atenção dado a criança no
período puerperal, com os estudos com grande foco na repercussão desse fenômeno na
formação e desenvolvimento da criança (MOTTA et al 2005) e com o impacto do vinculo
mãe-bebê (SCHWENGBER E PICCININI 2003), comprometendo a amamentação
(HASSELMANN, 2008). Com lacunas na produção cientifica no que diz respeito a
mulher/mãe com sofrimento psíquico como sujeito com sentimentos e desejos.
Neste discurso o sujeito é suposto pela ciência para, no mesmo ato, ser dela excluído,
ou, mais exatamente, ser excluído do campo de operação da ciência. (ELIA, 2004) O que
torna claro que a técnica e o método das ciências biomédicas são incompatíveis com o sujeito
ao excluir suas dimensões subjetivas e singulares, ao excluir o saber do sujeito, ao objetificar
o que deveria ser subjetivado.
29
especialista. Entendemos que a psicanálise pode vir em nosso auxílio, trazendo questões e
conceitos que podem contribuir com essa reflexão.
30
Entretanto, sua pesquisa vai se dá especificamente em torno daquilo que a medicina
descartava como fingimento ou encenação. Abordando as histéricas depararam-se com
paralisias que não obedeciam a estrutura anatômica dos nervos, cegueiras sem nenhuma
alteração dos olhos, partos consumados de ventres vazios. Além disso, encontrou nesse
mesmo terreno estranhas relações entre o corpo e o pensamento que estavam longe de um
paralelismo: uma dor de cabeça excruciante surge após cruzar com um olhar penetrante olhar
de recriminação, uma paralisia no pescoço depois do encontro com um homem que vira a
cabeça das mulheres, pernas paralisadas em uma paciente que teme não poder sustentar-se
sozinha.
Freud decidiu, então, escutar essas mulheres e o que ele acabou descobrindo foi que
suas falas desvelavam outra racionalidade que, embora desconhecida por quem falava,
portava um sentido a respeito dos sintomas e da própria verdade do sujeito. Trata-se da
descoberta do inconsciente (QUINET, 2000).
O que Freud percebeu, ao longo de sua investigação, foi que alguma coisa estranha
fazia com que essas mulheres sentissem coisas que não correspondiam ao saber da medicina.
Mas, ao contrário do que se pensava, elas não estavam fingindo, apenas desconheciam
completamente o porquê de seus sintomas. As pessoas que ele ouvia diziam: “isso” me
acontece, mas eu não sei por quê. Eu não sei de onde “isso” vem, está fora de mim, fora do
meu controle! Até hoje é assim que se apresenta na clínica o sujeito que sofre, inclusive, a
mãe que não entende porque se sente tão triste frente ao filho esperado com carinho.
Sua descoberta tem a ver, então, com esse “isso”, com esse algo que parece estranho,
mas ao mesmo tempo tão íntimo. Algo que não nos deixa em paz, está lá a todo momento:
fazendo repetir coisas, sempre em torno do mesmo; fazendo sintomas no corpo; falando por
nós, em nós, “como se fosse” um outro. Mais que isso, ele descobriu que esse “isso”, esse
“outro”, fala mesmo. A descoberta freudiana do inconsciente é a de que ele tem certas leis de
funcionamento e comporta o desejo, sobre o qual nem sempre o sujeito quer saber.
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Embora não sabido pela consciência, é lá que se delineiam as trilhas por onde o sintoma foi
construído.
Porém, essa linguagem não diz tudo, sempre resta algo não nomeável, traumático.
Esse resto vai ser recalcado, exatamente por não poder ser dito, fundando assim a dimensão
do inconsciente. Esse inconsciente é constituído pela dimensão simbólica costurada por
cadeias de significantes que marcam a história do sujeito.
No entanto, o que esse axioma lacaniano parece anunciar é uma subversão desse
sujeito que, apesar de fundar a ciência, é por ela foracluido. O sujeito, como categoria do
pensamento moderno, nasce como sujeito do conhecimento (BICCA, 1997). No entanto, na
mesma operação em que a funda ele é excluído (ELIA, 2004). É este “sem-lugar” que a
psicanálise vai tomar como material de seu trabalho.
Essa concepção de sujeito permitiu abordar o inconsciente não apenas como o lugar
de destino de todas as experiências humanas vividas e que permanecem em lugares
inacessíveis da memória humana. O inconsciente porta um saber. Embora não sabido pela
consciência, é lá que se delineiam as trilhas por onde o sintoma foi construído.
Para alcançar o inconsciente é preciso escutar, ou seja, evocar a fala do sujeito, pois é
somente quando algo dessa fala fracassa, se engana e vacila que podemos ver surgir o sujeito
do inconsciente, aquele que realmente importa à psicanálise.
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escuta que abra espaço para que o próprio sujeito elabore as especificidades de sua situação,
de seu sofrimento. Não uma escuta que seja reduzido a uma coleta de informações do paciente
(ainda que preocupando-se com a dimensão subjetiva) tendo em vistas a construção de
subsídios para que o profissional de saúde possa intervir segundo suas intenções, geralmente
comprometidas com um ideal de saúde. Para problematizarmos esse conceito de escuta
recorremos ao referencial da clínica do sujeito por acreditarmos que ela nos possibilita pensar
a construção de uma prática que se desloca do foco na cura, passando para uma perspectiva de
desconstrução/reconstrução de sentidos, atrelada à ética da singularidade de cada caso.
Pois enquanto que para a ciência, um corpo doente é um corpo doente, não importando
o sexo, ou seja, a assistência se direciona a um ser “assexuado” (MIRANDA,1994). Freud
mostrou que a estruturação subjetiva (e a conseqüente divisão do sujeito) e a própria noção de
realidade (entendida como realidade psíquica) se dá a partir do encontro com a diferença
sexual. No jogo que vai se instalar a partir daí, ser homem ou ser mulher implica em
horizontes completamente diferentes.
No que diz respeito ao que faz sofrer a mãe, Freud nos deixou contribuições teóricas
relevantes, que nos permitem perceber que este sofrimento tem estreitas relações com a forma
como essa mulher vivenciou sua própria estruturação subjetiva. Sigamos no decorrer do
estudo suas formulações acerca da feminilidade e vejamos que contribuições podemos tirar
para abordar esse sofrimento que se relaciona ao nascimento de um filho.
33
3 EIXO METODOLÓGICO
Diante das questões específicas que nosso referencial teórico nos coloca sobre o que é
ser mulher/mãe e da necessidade de um método que não “objetifique” os sujeitos de nosso
estudo, procuramos encontrar um referencial metodológico que possibilitasse a abordagem do
sujeito nas suas questões singulares e nas marcas de sua história. Sendo assim, optamos por
adotar o método de História de Vida para a produção dos dados.
34
O método de história de vida tem como conseqüência tirar o pesquisador de seu
pedestal de “dono do saber” e ouvir o que o sujeito tem a dizer sobre ele mesmo: o que ele
acredita que seja importante sobre sua vida. Nessa abordagem, o pesquisador respeita a
opinião do sujeito e acredita no que diz. Dessa forma, quem faz a avaliação não é somente o
pesquisador, o pesquisador e o sujeito se completam e modificam mutuamente em uma
relação dinâmica e dialética.
35
apenas de uma técnica de coleta de informações. Precisa ser amparado por referenciais que
considerem a singularidade de cada caso.
O método da história de vida não segue uma construção de instrumento inicial que se
antecipe às questões do sujeito, pois considera que as intervenções só podem ser pensadas á
partir do próprio encontro. Dessa forma a psicanálise permite subsidiar teoricamente esse
posicionamento através do conceito de transferência e da noção de “a posteriori” em Freud
No nosso caso, não é disso que se trata. Apoiados na suposição do inconciente não nos
interessamos pelo significado oculto no discurso consciente. Não se trata de abordar a
História de Vida buscando interpretar o que foi dito. Nem tampouco classificar o conteúdo da
fala do entrevistado para atribuir-lhe significados. A partir do olhar psicanalítico,nos
interessamos por aquilo que está do lado do significante. Pois esse significante é que forma a
cadeia de significação no inconsciente e esse inconsciente escapa por forma de sintoma.
Permite reconhecer que esse sujeito que fala é marcado pela divisão que a linguagem
impõe a todo ser falante. Sendo assim, um discurso não porta apenas a dimensão do sentido,
mas, também, um saber inconsciente, um saber não sabido por aquele que fala, e por meio do
discurso do sujeito se utiliza dos significantes que lhe são próprios para dizer aquilo que lhe
acontece.
37
Por outro lado, o tipo específico de ensaio que desenvolvemos aqui, também não é
uma construção totalmente arbitrária, onde o pesquisador enxerga o que lhe convém. Nesse
ponto ele se fasta da criação literária, pois, seguindo a tradição freudiana, se situa como um
texto produtor de modelos conceituais (IRIBARRY,2003).
Optamos pela abordagem qualitativa, pois busca o desvelar do fenômeno por si mesmo.
Minayo (2008) descreve a abordagem qualitativa como sendo um universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, que são profundos, não podendo ser
reduzidos à operacionalização de variáveis. Este método aprofunda-se no mundo dos
significados das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em
equações medias e estatísticas.
A pesquisa qualitativa considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o
sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito
que não pode ser traduzido em números, abrindo novos horizontes para compreensão holística
e levando a uma reflexão profunda. (GUALDA et al.,1995)
Vale ressaltar que o estudo ancora-se nas especificidades da pesquisa psicanalítica, que
ao contrario da pesquisa descritiva, há participação da subjetividade do pesquisador e trabalha
com a impossibilidade de previsão do inconsciente, assim não poderia jamais exigir uma
sistematização completa e exclusiva. A pesquisa psicanalítica é sempre uma apropriação do
autor que depois de pesquisar o método freudiano descobre um método seu, filiado a essa
vertente e o singulariza na realização de uma pesquisa. (IRIBARRY, 2003)
38
pesquisa e extensão desta universidade. Ressaltando a boa interação e apoio das Agentes
Comunitárias de Saúde da área que abrange a Policlínica Nascente nas atividades de pesquisa
e extensão.
Em relação ao sujeito do estudo tivemos como idéia inicial no projeto abordar várias
mulheres no período do puerpério1 que apresentaram alguma queixa de sofrimento psíquico
após o nascimento do filho. Utilizando como critérios de inclusão: estar no puerpério, residir
nos arredores da Policlínica Nascente e aceitar participar do estudo por meio do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. Como critério de exclusão a impossibilidade de responder
à entrevista.
No período em que nos dispomos a coleta de dados na policlínica houve apenas três
casos identificados pela equipe com historia de sofrimento psíquico no pós-parto. Tivemos
contato com apenas dois casos, pois um deles não ficou o período puerperal na residência de
abrangência da policlínica abordada.
Desses dois casos acompanhados percebemos que em apenas uma história obtivemos
impressões transferenciais sobre o texto examinado como se faz necessário para proceder a
análise conforme defende Iribarry (2003), com isso optamos por abordar somente uma
1
Consideramos como puepério nesse estudo o início entre as duas primeiras horas após a saída da
placenta com o seu término imprevisto. Visto pelas alterações singulares de cada caso.
39
história. Confirmamos a idéia de abordar apenas uma história, ao identificar ser o suficiente
para suprir os objetivos do estudo e também pela condição de possibilidade de explorar mais a
teoria e os diversos aspectos envolvidos nessa história. Sendo o quantitativo de casos não uma
prioridade do estudo, mas sim o aprofundamento nas discussões do caso. Assim realizamos o
estudo com uma mulher, que nomeamos de Flávia, no qual tivemos quatro encontros em seu
domicílio.
Para não fugir o eixo do referencial no enfoque do discurso dos sujeitos de forma
particular e única, entendemos que adotar alguma técnica de analise que remetesse a
perspectiva de categorização temática, iria de encontro com o todo arcabouço teórico de
estudo. Como dissemos anteriormente, quando de trata da pesquisa psicanalítica, o que vai
interessar é a produção inconsciente, sustentada na cadeia significante, e não no significado
do texto.
Neste contexto optamos por realizar aquilo que Iribarry (2003) chama de uma leitura-
escuta. Segundo autor, a leitura-escuta é aquela onde o pesquisador psicanalítico vai
instrumentalizar sua transferência ao texto (composto pelo dado coletado) de modo que possa
identificar significantes já escandidos, demarcados pelo entrevistado, associado a um trabalho
de escansão de significantes que a legibilidade do texto permite, apoiada em uma concepção
teórica. A seguir, mostramos passo a passo como chegamos aos resultados deste estudo.
40
A condução da entrevista se deu por meio de uma escuta atenta, não passiva, tomando
como foco a fala do sujeito „ao pé da letra‟ e nos significantes que esse sujeito costura em
seus discursos, não tendendo a avaliação ou julgamento de valor, explicações, consolo e
soluções rápidas as questões do sujeito. Além disso, foram as próprias questões da
entrevistada que guiaram o fio condutor da entrevista. Seguindo a indicação da associação
livre, pois nesse fluxo da associação livre, ou seja, permitindo o sujeito que fale o que ele
pensa que seja importante, que queira e deseje falar, os significantes próprios do sujeito vêem
a tona.
Tivemos quatro encontros no domicilio da participante para a produção dos dados, que
resultou em um bom contato e aproximação do sujeito e sua história. E diante da riqueza das
informações optamos por trabalhar com esta história em todo o estudo. De posse dos dados
coletados, convertemos o dado em texto e daí para os procedimentos de análise e
posteriormente para a produção do ensaio metapsicológico.
41
trabalhada. “Além disso, procura elaborar impressões que reúnem as suas expectativas diante
do problema de pesquisa e as impressões dos participantes que forneceram suas contribuições
na forma de dados coletados” (IRIBARRY, 2003)
Vale ressaltar que, aqui, não há manipulação dos signos (como na análise de conteúdo
e na análise do discurso), fica-se restrito ao domínio do significante e da abertura de sentidos
que lhe é característica. São os significantes introduzidos pela experiência do pesquisador
com o texto (embasado na literatura consultada) que irão oferecer novas significações, novos
sentidos para o dado coletado que, a partir daí, será transformado em texto.
Tendo em vista que este é um trabalho que tem como um de seus objetivos contribuir
para a produção de saberes acerca do cuidado clínico em enfermagem, buscamos num último
capítulo articular as discussões dos passos anteriores na perspectiva de extrair contribuições
para a assistência do profissional enfermeiro no momento de prestar o cuidado clínico.
42
Saúde, que contém diretrizes e normas regulamentadoras para pesquisa envolvendo seres
humanos, de forma direta ou indireta, individual ou coletiva, sejam elas realizadas por
quaisquer categorias profissionais, no campo biológico, psíquico, educacional, cultural ou
social, incluindo o manejo de informações e materiais (BRASIL, 1996).
43
4 ANÁLISE DOS DADOS E ELABORAÇÃO DO ENSAIO METAPSICOLÓGICO
Cheguei até Flávia por indicação da enfermeira da unidade de saúde que, sabendo dos
objetivos de minha pesquisa, pediu que eu lhe fizesse uma visita. Segundo a enfermeira, o
caso foi relatado através de uma cunhada de Flávia que procurou a policlínica nascente,
solicitando uma visita da equipe. O motivo era que Flávia apresentava crises de choro, falta de
44
ânimo, sem vontade de comer, de banhar-se e mostrava-se com muito medo. De posse dessas
informações, peguei o endereço com a enfermeira e me dirigi até sua residência.
Chegando lá, Flávia me pergunta se sou psicóloga da policlínica. Eu digo que não e
explico o motivo de estar ali. Por conta de uma pesquisa e também para um apoio ao serviço
da policlínica, a enfermeira da equipe passou o caso para que eu fizesse a visita, neste
momento lhe informo dos objetivos e do desenvolvimento da pesquisa. Pergunto se ela aceita
participar da pesquisa, ela diz que aceita, caso não tenha que ir à policlínica falar na frente de
muita gente. Explico como vai ser o contato novamente e ela assina o termo de
consentimento.
Chamou minha atenção o fato de que, nesse momento, Flavia quase não falava sobre
si, sua cunhada era quem tomava a palavra, Flávia, no entanto, ficava concordando e olhando
a cunhada falar:
eu já disse pra ela tirar isso da cabeça e que isso vai passar, é coisa que ela
coloca na cabeça dela. (...) eu disse que ela tem que ta boa, disposta para
cuidar do filho dela. (...) ela fala do meu irmão, mas é porque ele é assim
mesmo, é o jeito dele, ele é meio calado
Em meio à fala da cunhada, Flavia me diz que achava que estava assim (chorando) por
medo de ter que voltar para o hospital. Fico sabendo que sua saída do hospital foi através de
uma alta a pedido (mesmo tendo história de infecção puerperal), pois Flávia diz que ela e o
filho estavam bem e a médica não liberava por que faltava um exame.
Isso a remete a outro momento de sua vida, o primeiro parto que foi marcado por uma
experiência difícil. Por conta de uma hemorragia no pós-parto, teve que voltar para o hospital
e disse que isso lhe causou muito medo: medo de ficar internada, deixar de cuidar da casa e de
cuidar de seu marido. Voltaremos para esse fato posteriormente.
Ao indagar sobre sua história antes da gravidez Flávia diz que é a filha mais velha
dentre cinco irmãos (três homens e duas mulheres). Ela e sua irmã são gêmeas. Referia muita
proximidade com sua irmã gêmea, frisando que elas eram bem diferentes em relação a
personalidade e forma de agir. Afirma que sua mãe sofreu muito para criá-las, as condições
financeiras não era boa e o fato de serem gêmeas agravou a situação. A saída adotada pela
mãe foi recorrer à ajuda de uma irmã.
Minha mãe conta que quando teve a gente foi muito sofrida, ela quase que
não conseguia criar a gente, sempre fala que foi muito sofrida para criar
nós duas e que foi uma irmã dela que ajudou, e que era pra gente chamar de
mãe...Eu chamava ela de mãe. (...) Minha mãe disse para mim que não
presta mulher casar e ficar trabalhando ou estudando, ela disse que isso não
é certo. Ela disse você tem que escolher ou casamento ou estudo eu não
aconselho você a estudar e casar não, aí eu casei e parei os estudos e decidi
não trabalhar, mas toda vida eu tive vontade de trabalhar, ganhar meu
dinheiro.
Em relação ao pai, na história de Flávia, percebemos alguns trechos que apontam para
uma relação impotente, falhando em seu papel de pai.
Meu pai não conversava, era rígido não deixava eu sair, não queria vê a
gente em festa, ele não falava quase nada, era muito na dele.
Cita pouco sua relação com sua família e retoma a falar do marido, do casamento e da
suas escolhas. Flávia escolhe casar à trabalha ou estudar (estudou ate a oitava serie, parou os
estudos para casar), pontuando como um grande medo na adolescência a possibilidade de
separação e ter que voltar para a casa dos seus pais com os filhos.
Meu único medo quando era moça era eu pegar um homem ruim me deixar
com filho e eu ir morar com minha mãe e meu pai... eu deixei de estudar e
trabalhar para casar
Flavia e Roger eram “casados no cartório” há 13 anos. Quando se conheceram ela diz
que começou o relacionamento para esquecer o outro namorado. Ela não gostava de Roger,
mas considerava ele uma boa pessoa.
Casar mudou completamente a vida de Flavia, pois o marido não queria que ela saísse
de casa, Sempre teve vontade de trabalhar, porém o marido nunca permitiu.
queria impedir de eu ir até na minha mãe... Agora já nem saio mais de casa,
só saia para a casa da minha mãe, porque eu disse para ele que para a
minha mãe eu não deixo de ir
Referiu não ter amizades para conversar “hoje eu só converso e me abro para minha
sogra que eu falo as coisas do filho dela”. Completa que depois de casar e morar naquela rua
46
perdeu muito o contato com a irmã, pois o ex-marido da irmã mora na mesma rua que Flávia e
o atual marido não permite que a irmã vá à casa de Flávia. Como também o contato com a
mãe, pelo fato de avó materna ter dito um AVC e a mãe não poder sair de casa para não
deixar a sua avó só.
Ainda em relação ao seu casamento Flávia no inicio não queria engravidar, lista como
motivos o fato de ser muito nova e o medo de ser mãe e de não saber criar o filho.
logo que eu casei eu não quis ter filho...eu era muito nova, tinha medo de
não saber criar um filho.
Cerca de quatro anos depois, quando achou que era o momento de engravidar, pois
segundo ela “já estava mais velha”, parou de tomar os comprimidos, mas mesmo assim a
gravidez não veio, demorou ainda aproximadamente mais dois anos.
Eu me casei em 97 e não queria ter filho, passei quatro anos sem querer ter
filho, tomava comprimido, ai passei mais uns quase quatros anos sem
comprimido para poder pegar menino .
Seu parto foi cesárea de urgência, pois já estava passando dos nove messes, não sentia
contrações e apresentou história de pré-eclampsia. Refere que no momento do parto não teve
dores nem nenhum desconforto “No primeiro eu não senti uma dor na unha”.
Tava sentada ai eu senti um sangue saindo da cirurgia mas pensei que fosse
normal todo mundo viu minha cunhada elas disseram que era normal....ai
começou a aumentar, ai ela ligou para a ambulância, ai o pessoal da
ambulância disse que não ia consegui me tirar, e que eu não podia descer as
escadas, que eu ia sangrar muito e era arriscado eu morrer, eles disseram
que ia ligar para o corpo de bombeiros, ai o corpo de bombeiros veio, foi o
maior sacrifício do mundo para me colocar nessa maquina eu sei que mais
ou menos oito homens para me colocar e ainda meu sogro e meu marido
...eu fiquei muito inchada. [...] Ai cheguei no hospital dizendo que eu queria
ficar boa e que esses medico tirasse esse sangue de dentro de mim para eu ir
embora no mesmo dia, eu queria vir embora eu sabia que eu tinha que ficar.
De tanto ela insisti o médico fez uns procedimentos prescreveu uma medicação e
deixou ela voltar para casa, porém no outro dia o sangramento voltou em intensa quantidade,
47
voltou ao hospital e o médico então disse para ela que ela teria que ficar uns dias, voltou a
internar-se no hospital, e teve que parar de amamentar pelas medicações.
depois de eu insisti o medico disse que eu podia ir, mas quando foi no outro
dia sangue de novo, ai voltei, quando cheguei no hospital eles disseram não
agora você vai ter que ficar, ai fiquei três dias, tomei antibiótico parei de
sangrar ai vim embora.[...] Sinto muito medo de piorar de ter que voltar
para o hospital porque no outro filho voltei para o hospital sangrando muito
e tive que tomar muito antibiótico, e tive que parar de dar mama, o que eu
mais quero é dar mama po meus filho, como não pude dar para o outro vou
dar para esse, eu acho muito bonito dar de mamá.
Esse primeiro filho demonstra alimentar a felicidade do casal, pois ela refere a
assistência do marido com carinhos e cuidados com ela e com o filho, marcado por diversas
vezes em sua fala confrontando com o nascimento do seu segundo filho, que segundo ela, ele
estava sendo frio e distante: ...ele mudou muito; ...ele não era assim; ...ele era diferente, era
carinhoso; ...no começo, na primeira gravidez, ele era carinhoso e atencioso comigo.
Esse eu parei por que eu quis, eu parei porque a cinco anos que eu tava
tomando comprimido tava sentindo umas dores, tava saindo muita
inflamação, eu vejo muita mulher que fica tomando comprimido e tem
mioma essas coisa, ai disse para o meu marido que queria, ele disse que por
ele, ele não queria mas já que tu quer eu não posso fazer nada.[...] parei em
junho quando foi em agosto eu peguei.
Surgem na fala de Flavia queixas que desde a gravidez Roger se mostrou mais frio
com ela. Não tinham mais relações sexuais, passava o dia todo fora de casa “dizendo ele que
tava trabalhando”. Flavia chega a suspeitar da existência de “outra”: ela diz:
ele mudou totalmente eu como mulher dele eu sei que ele mudou totalmente
eu não sei se ele tem outra, mas eu rezo se ele tiver eu não saber porque eu
não vão agüentar e vai ser sofrimento para mim para a mãe dele, pra
todos.[...] Um homem não vai ficar sem ter relação e eu que sou mulher é
que sei. Antes ele era calado, mas agora ele não ta só calado, ele ta
diferente.[...] A família dele, a irmã e a mãe disse que é o jeito dele, é
porque elas são família tem que defender, mas ele mudou muito depois da
gravidez desse ultimo, não sei se ele tem outra? Mas ele ta muito diferente
comigo desde quando eu tava com quatro messes que nos não tivemos mais
relação e isso é..... o que mais indica.[...]Ele só chega de noite, diz que ta
48
trabalhando, mas o trabalho dele é muito pesado, ainda bem que eu tenho
meus filhos, porque eu fico muito só.
Ele (o marido) é muito calado, ignorante, ele é muito caladão mesmo, antes
a gente saia, hoje ele nem me leva mais para sair diz que o dinheiro ta
pouco, não chega para mim para dizer nada... Quando eu sai sentindo dor
(no segundo parto) ele num foi homem para fazer nada, nem uma pergunta,
ele é muito ignorante não conversa nada comigo, não me faz um carinho,
antes ele não era assim.[...] a mãe dele disse que é cansaço esstresse do
trabalho ai eu vou relevando os meus choro ele não vê porque ta
trabalhando mas ele fica sabendo mas não me diz nada
E diante das falas e angustias do marido ela muitas vezes buscava elogios e referia
com grande afinco a qualidade do marido.
... ele (o marido) nunca levantou a mão para dá em mim [...] ele (o
marido)sempre traz as coisas pra casa, nunca passamo fome, essa casinha é
dele que a mãe dele ajudou a fazer e ele tem um dinheirinho e um trabalho
fixo.
Ao falar da relação do marido com os filhos diz: “ele é louco por esses meninos
quando o primeiro adoeceu... pense!” Porém ao mesmo tempo afirma em relação ao
puerperio do segundo filho: “ele (o marido) passa, olha para ele (o bebe) e sai, não fala e
nem faz uma brincadeira”. E complementa o raciocínio se referindo a expectativa da
aparência do filho.
o menino é a cara dele eu até pensava que ele fosse parecer comigo que nem
o outro. A gente que carrega nove meses e sofre a gente quer que pareça
com a gente.
eu chorei um pouco durante minha gravidez, porque meu marido tava muito
ignorante, as vezes eu arrancava rabo em casa, fazia briga grande, na
primeira gravidez ele era diferente.
Conta também que quando estava grávida, seu irmão bateu na mulher dele e abalou
muito ela, pois para ela bater é coisa que ela não admite, relata:
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eu tava com quatro mês de grávida meu irmão teve um briga muito grande
com a mulher dele o filho dela chegou para mim assustado e disse teu irmão
ta batendo na minha mãe quando eu me levantei eu já tava toda me
tremendo e eu segurando ele e ele querendo bater nela eu senti muita raiva
e umas coisa ruim.
O parto, segundo ela, foi pior que o primeiro, “embora tenha sido parto normal”.
Meu corte foi muito profundo. O pessoal diz assim todo mundo tem parto
normal no outro dia não sente mais nada, meu pensamento era ter normal
para quando eu chegar eu já poder fazer minhas coisas, que nada, eu tive
normal que eu cheguei em casa que eu vi meu sofrimento, para me levantar
foi preciso chamar a vizinha mais minha mãe e minha cunhada, foi uma
semana que eu passei sem fazer nada eu tinha medo de sangrar, de ficar
tonta, de sentir alguma coisa. Eu pensava que ia ter normal e pronto no
outro dia eu tava boa. [...] Na hora do parto eu pensei que eu ia morrer, eu
pedi o medico para não me deixar eu morrer, sofri muito. O medico me deu
uma injeção de força, mesmo com a injeção de força faltou a força para
botar o menino pra fora, foi a doutora que teve que cortar e puxar, depois
me deu uns tremelique, depois ela foi me dizer que era pré-eclampsia e eu
nunca tive problema de pressão, mas na hora do parto a pressão aumentou
no primeiro foi assim e no segundo também. Esse parto foi muito pior todo
mundo dizia que parto normal era melhor, mas sofri mais.
Complementa que, mesmo depois que estava em casa sofreu muito e não conseguiu se
recuperar com facilidade:
fiquei mais de uma semana sem fazer nada eu tinha medo de sangrar, de
ficar tonta, de sentir alguma coisa, pensava que ia ter normal e pronto no
outro dia eu tava boa, todo mundo dizia que parto normal era melhor, mas
sofri mais, tanto no parto como em casa.
Refere que ao chegar em casa não conseguia fazer nada, sentia muito medo. Medo de
sangrar, de ter que voltar para o hospital, de o filho ficar doente. Sentia-se culpada por ter
50
solicitado para sair do hospital antes de receber alta. Com isso ela refere que aumentou seu
medo, medo de sentir-se “culpada por alguma coisa que pudesse acontecer”.
Nesse segundo filho, percebemos que o marido reage de forma diferente. O marido
não se interessa por ela, eles ficam morando em espaços separados, ela na casa da sogra (em
baixo) e ele em cima, parece que no segundo filho não acontece o que Flávia esperava, pois o
marido não demonstra o mesmo interesse com ela e com o filho como no primeiro. É o
momento que o sintoma aparece:
Mais é ruim nunca pensei que ia senti isso na minha vida, não queria saber
de banho, não queria comer, o menino chorava e eu não tinha gosto, meus
peitos ferido, sentindo muitas dores, deus me livre passar por isso de novo
na minha vida, só chorara de uma para outra eu começava a chorar e era o
dia todo assim.[...] eu não sei por que esse medo que eu senti. É horrível, de
uma hora para outra dar vontade de chorar. [...] Mas eu não sei por que
esse medo que eu senti é horrível de uma hora para outra dar vontade de
chorar. Eu com menino nos meus braços e eu não consegui dar mama eu
chorando minha vontade toda vida foi dar mama po meu filho, eu acho
muito bonito dar de mama, não tinha dado para o outro, pelos remédios,
queria dar para este.”
Refere que os sintomas permaneceram por cerca de três semanas e afirma que seus
filhos o ajudarão a melhorar, pontuou também, a leitura de uma oração, que fez durante a
noite com muita fé e atenção, que a curou, no outro dia não sentiu mais vontade de chorar.
Parei quando meus peito tava dolorido e senti uns calafrios no peito e
comecei a chorar e n quis mais comer e fiquei só chorando quando foi de
noite a vizinha me deu uma oração, bichinha eu rezei com tanta fé, tinha um
monte de oração aqui e eu rezava com medo e não prestava atenção as
palavras. Mas essa eu rezei com tanta fé que eu dormi a noite todinha, e
pronto não sei mais nem o que era choro [...]Tenho muito medo dos exames
dar ruim, mas to tirando isso da cabeça, acho que isso me fazia chorar. Eu
sou muito medrosa.
Eu acho que esses choro é porque eu sai do hospital sem ordem médica eu
sai porque eu quis ele não deu, ele ia da alta no sábado e ele disse que não
podia porque não tinha visto os exame,s ai no outro dia eu falei com meu
filho, ai eu tava preocupada com meu filho e também não gosto de ficar
muito tempo fora de casa, deixar meu marido só, preciso cuidar dele, ai eu
51
decidi sai, eu tava bem, ele (o bebe) também, minha cunhada assinou o
papel e eu fiquei com medo de ter que voltar. Meu medo maior foi só esse
Flávia ao falar da sua consulta de „revisão de parto‟ diz: “O medico disse que eu
evitasse ter filho, por que eu tive esses problemas e o sangramento”.
Mesmo com orientação médica, diante dos sofrimentos e dos riscos nas suas gestações
(eclampsia) e período puerperal (hemorragia e sofrimento psíquico), tanto para ela como para
o bebe, Flávia mostra uma significação de maternidade tão forte, que, em outro momento ela
retoma seu valor a maternidade e seu amor pelos filhos, e, mesmo com todo risco ela
assegura: “se deus me der coragem eu tenho outro filho”
.... foi meus dois filhos que me fizeram ficar melhor e tirar esses medo da
cabeça. Ser mãe é bom demais, quando eu me sinto só, quando eu brigo com
meu marido ai ele fica comigo, é bom demais ele chega faz carinho, pede
pra mim não chorar... apesar dos dois serem homem.
Outro dois momentos marcam muito a vida de Flávia, primeiro, o fato curioso que
Flávia pediu o filho da irmã para criar por dois anos, e o segundo, uma doença que acometeu
seu primeiro filho aos três anos definido por ela como “púrpura no sangue”.
eu quero bem a ele como se ele fosse um filho meu, fiquei dois anos com ele
aqui, ela (a irmã) não queria mais responsabilidade com o menino, ai
quando resolvi devolver eu não quis mais, eu disse, vou ter que tomar uma
decisão, ou ela pega o filho dela de volta ou eu vou dar para o pai dele. Ele
não queria ir simbora, mas eu tava grávida e ficar com menino novo... Ate
hoje quando ele vem aqui eu noto a diferença... ele quer ficar aqui nos fim
de semana. Eu vejo no rosto dele a vontade de voltar, mas ele tem mãe e pai.
Em relação ao segundo momento, ela refere que surgiram umas manchas na pele do
seu filho e que depois de muito tempo descobriu que era púrpura no sangue, relatou muito
52
sofrimento durante todo tratamento do filho e um medo muito grande da doença ser leucemia,
relata que faz acompanhamento até hoje do filho.
Para finalizar sua historia, no momento da nossa despedida no fim do ultimo encontro
com Flávia em meio a uma pausa ela diz: “Mas isso que eu senti saiu de dentro de mim e
nunca mais vai voltar.” E conclui: “mais é ruim nunca pensei que ia senti isso na minha
vida.”
Iniciamos nos detendo em algo que surge com muita força na fala de Flávia: a
significação que seu casamento representava na sua historia desde a adolescência. Ao nos
aproximarmos da sua historia isso vai se fixando, ao percebermos que, apesar do medo em
relação aos homens (que podem abandoná-la com um filho), ela decide casar.
53
Entretanto, sabemos como essa escolha é fada ao fracasso. Essa esperada
“completude” através do amor é impossível de ser alcançada, pois, ao colocar todas as
chances de felicidade nas mãos de um outro, ela se exime de sua responsabilidade e
desconhece sua participação na montagem daquilo que, mais tarde virá a se queixar. Mas
deixemos essa discussão para depois. Voltemos a história de Flávia.
A solução no casamento funciona por algum tempo (o marido é carinho e a faz feliz) e
nessa fase ela não pensa em ter um filho, pois tem medo de não saber criá-lo. Algo remete a
seu próprio nascimento, quando sua mãe vacila frente a possibilidade de ocupar esse lugar
(pede que ela chame a tia de mãe). Isso também se repete quando, posteriormente, ela toma
como seu o filho da sua irmã gêmea, devolvendo-o por ocasião do nascimento do segundo
filho.
Entretanto, cerca de quatro anos depois, Flávia muda de opinião e resolve engravidar,
mesmo tendo que superar o medo de ser mãe (medo que ela sentia e vai continuar sentindo) e
de não saber criar.
Apostamos que, aqui, algo falhou na fantasia2 de Flávia. Ao perceber que algo em sua
relação com o marido começa a não corresponder aos seus desejos, a não preencher o seu
vazio, ela passa a buscar um filho. A existência de um conflito inconsciente em relação à
maternidade se presentifica através de uma infertilidade temporária. Durante seis anos Flávia
tenta engravidar, sem sucesso.
O primeiro filho demonstra funcionar e supre seu desejo, pois ela consegue de volta o
carinho e a “assistência” do marido, voltados para ela e para o filho. Mas só por algum tempo.
Cinco anos depois, surgem duvidas em relação a fidelidade do marido, ela se sente sozinha e
surge a decisão por uma nova gravidez, mesmo indo contra a vontade do marido e apesar de
seus medo relacionados à gravidez. (medo de sangramentos, hemorragias após o primeiro
parto, doença hemorrágica que afeta o filho).
Seu medo era de sangue, mas, ao defrontar novamente com o desinteresse do marido,
ela opta pela gravidez mesmo assim, numa tentativa de salvar sua relação. Ela, inclusive, sai
do hospital através de uma alta a pedido para não deixá-lo só em casa (sozinho muito tempo
2
O conceito de “fantasia” se refere a, como o sujeito constrói sua posição frente a realidade.
Desenvolveremos mais aprofundadamente este conceito no tópico seguinte.
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ele pode traí-la). Ou seja, coloca-se em uma situação de morte para manter sua relação com o
marido. Sua responsabilidade nessa situação se manifesta como sensação de culpa (medo que
o filho adoeça devido sua decisão de deixar o hospital). Porém parece que no segundo filho
sua fantasia é abalada, e o marido não demonstra o mesmo interesse como no filho anterior,
surgindo aí um sofrimento.
Percebemos que Flávia parece ter grandes questões no que se refere à gravidez e à
maternidade. Quando algo ameaça desorganizar, ela decide ser mãe, mesmo o marido dizendo
que não querer, mesmo com muito medo de toda a historia de parto difícil que ela vivenciou,
mesmo com o risco da hemorragia puerperal, mesmo não sabendo criar um filho, mesmo
pedindo o filho da irmã, ela decide ser mãe.
Mesmo sendo considerado por muitos como um autor que valoriza o masculino, Freud
foi um dos, senão o primeiro, a colocar-se numa posição de ouvir as queixas de suas pacientes
mulheres. Freud é um autor que propiciou que as falas femininas se colocassem de forma
diferenciada, levando suas pacientes histéricas a sério. Assim a escuta oferecida a essas
55
pacientes parece ter contribuído com a possibilidade de libertação do sofrimento psíquico das
mulheres.
Ao reconhecer suas limitações frente ao ser feminino afirma; “Se desejarem saber
mais a respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou
consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais
profundas e mais coerentes.” (Freud, 1933, p.165). Assim ele abre importantes questões
acerca da feminilidade.
O senso comum eternizou o chavão “Freud explica”, mas percebemos que a questão
onde ele tropeçou, ou seja, a questão para a qual ele não conseguiu encontrar uma resposta
última, e que o intriga até o final da vida foi exatamente “o que quer uma mulher?”. Apesar
disso, seus questionamentos e algumas de suas elaborações abriram caminho para que
pudéssemos explorar esse tal continente.
Em primeiro lugar, Freud nos permite perceber que a menina, não nasce mulher. Ela
terá que construir seu acesso ao vir-a-ser mulher por um caminho singular que se inicia ainda
na infância no processo de constatação da diferença sexual. Essa via, será aquela que a fará se
confrontar com a impossibilidade de completude, com a falta de um significante que possa
dizê-la toda. Os caminhos pelos quais ela buscará algo que responda a essa falta são vários,
mas a via do amor certamente é uma das mais abordadas por Freud ao longo de sua obra, onde
aparece articulada a uma tentativa de responder ao próprio enigma da feminilidade. Assim se
mostra a história de Flávia onde ela coloca todo o significado de sua vida numa relação
amorosa. É sobre esse enigma do desejo feminino que Flávia gira, desde o momento em que
elege o amor a um homem como resposta à sua angústia. São essas questões que abordaremos
a partir de agora.
O que Freud vai confirmar em sua prática clínica é que, aquilo que constitui a
masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida, e, foge do alcance da
anatomia, da sociologia, da psicologia, de uma questão meramente comportamental.
Esse interesse sexual na infância culmina com a descoberta de uma região do corpo,
rica em excitação, que passa a ser considerada pela criança como algo extremamente
privilegiado. Freud chamou a isso de “falo”, exatamente para diferenciá-lo do pênis, pois,
enquanto este último é uma parte do corpo real com suas limitações, o falo é imaginariamente
um órgão ereto o tempo todo, que nunca falha, que nunca detumesce, é pura potencia, é
sempre satisfação. Seria aquilo que poderia conferir á criança sua potência e, dirigido à mãe,
anunciar uma possibilidade de completude.
Vale ressaltar aqui que a mãe tem nesse primeiro momento uma importância
fundamental para a criança. É um outro do qual ela depende inclusive para sobreviver
fisicamente. É o primeiro ser ao qual a criança, independente de seu sexo, encontra-se
57
visceralmente ligada. Depende dela para alimentá-la e cuidar de todas suas necessidades.
Além disso, é ela quem investe libidinalmente o corpo da criança através de seus cuidados
maternais. Nesse papel de maternagem a função da mãe é situada muito além do ideal
carinhoso e assexuado comumente atribuído a ela. Pelo contrário, toda sua dedicação é uma
fonte incessante de excitação e satisfações sexuais vindas das zonas erógenas: “ela a acaricia,
beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o substituto de um objeto sexual
plenamente legítimo.” (FREUD, 1924, p. 210) Por seu caráter erotizante, a submissão a esses
cuidados não é sentida apenas como satisfação, mas também como risco de um excesso.
O falo, portanto, é não apenas um órgão privilegiado pela criança, mas é também
dirigido a mãe como suposto responder por aquilo que ela quer.
Em segundo lugar, como ser a quem falta algo, a mãe deseja coisas. Mas aqui, onde
ela deseja, não é mais mãe, e sim mulher. É para o pai (ou algo que assuma o lugar disso) que
ela vai dirigir seu desejo. A criança não pode dar o que ela precisa como mulher. Com essas
descobertas começa a surgir a angústia: então não sou aquilo que a completa? porque eu
nasci? de onde eu vim? Como eu nasci? Porque ela quis que eu nascesse? O que o outro quer
de mim? Ele me quer? O que é a morte, o sexo, a maldade, a rejeição, o desejo, o limite, o
amor. Ou seja, elas também vivem conflitos e contradições diante de questões essenciais do
ser humano diante de si mesmo e dos grandes mistérios da vida e do universo.
Aqui as saídas vão se bifurcar. Os meandros por onde a filha precisaria passar em
busca de situar seu lugar na partilha entre os sexos é diferente em relação ao caminho
percorrido pelo filho homem. O menino toma o pai como rival e a mãe como objeto de amor,
vive a angustia da castração medo de perder (o falo) e de ser castrado.
Forçado a fazer uma escolha entre a preservação do órgão ameaçado pelo pai e o amor
pela mãe, o menino frequentemente opta pela primeira opção mantendo seu interesse
58
narcísico e dirigindo seu interesse para outras mulheres. Dessa forma preserva tanto o pênis
(enquanto zona erógena) quanto o sexo oposto (como objeto sexual). (laços de família)
A menina, por sua vez, se depara com a diferença entre os sexos se percebendo em
desvantagem, vive o desespero de já se ver castrada 3. Percebe que existe no menino algo que
ela não tem e elabora teorias, pensa que aquilo que ele tem ela vai ter e ainda vai crescer,
dente outras, na busca de descobrimentos e de alcance da verdade, formulam teorias que,
como todas as teorias infantis, podem parecer meio absurdas, mas que deixam marcas para
todo o desenvolvimento.
A partir daí, a tarefa de constituir-se mulher não será nada fácil. Envolve em si mesma
seus percalços. Freud afirma que:
... a Comparação com o que acontece com os meninos nos mostra ser o
desenvolvimento de uma menininha em mulher normal mais difícil e mais
complexo, de vez que inclui duas tarefas extras às quais não há nada de
equivalente no desenvolvimento de um homem. (FREUD, 1932)
Assim considera “Duas tarefas extras” em relação ao menino, dois movimentos que a
menina precisa executar para advir mulher: 1) mudar de zona erógena – abandonando a idéia
de um falo imaginário e passando da excitação clitoriana para a vagina; e 2) mudar de objeto
– desviando o interesse inicial todo concentrado na mãe, e passando para uma escolha objetal
do sexo masculino.
Essa troca de objeto se dá da mãe para o pai em busca do falo que a mãe não lhe deu.
Daí decorre a situação edipiana e o complexo de castração em busca do falo que lhe falta.
Nesse complexo de Édipo as meninas demoram-se um pouco, muitas vezes destruindo-o de
forma incompleta. Isso pode se dar sem muitos sofrimentos, mas também pode deixar marcas
para toda a vida dessa mulher.
3
A menina quando criança elabora essa teoria, não que Freud considere que a mulher seja deficiente
em ralação ao homem ou que tenha sido feita em desvantagem e que isso seja a verdade sobre a
mulher, isso é uma fantasia infantil, a criança interpreta as coisas dessa forma.
59
Essa substituição da mãe como objeto de investimento amoroso ocorre ao perceber
que à ela também falta algo, que a mãe não pode lhe dar o falo, e a menina vai se ressentir
contra a mesma, culpando-a por tê-la feita incompleta. A ênfase recai sobre a decepção de se
sentir tendo sido feita em desvantagem. Essa decepção leva-a ao abandono da mãe como
objeto de amor e à passagem ao pai. Diz Freud, “um passo que se acompanha de hostilidade; a
vinculação à mãe termina em ódio” (1932, p. 122). No entanto, essa relação de exclusividade
com a mãe não será, de todo, abandonada. Ela vai marcar as relações posteriores da menina
com o pai, o marido e a maternidade.
Soler (2005) discute que, para a mulher, essa acusação da mãe está sempre presente no
cerne do discurso do inconsciente e, mesmo quando o sujeito não tem a censura a lhe fazer,
ainda resta uma: a de ser inesquecível demais, as vezes a ponto de ser devastadora. A mãe é
vista como objeto Outro, a potencia simbólica que detém o poder dos oferecimentos da fala e
as palavras da mãe, seus imperativos e seus comentários se inscreve na memória, às vezes
devastadora e persecutória.
Segundo Freud (1932), a menina passa a esperar do pai, aquilo que ela não tem. No
inconsciente essa espera,muitas vezes, vem em forma da espera por um bebê, um filho que o
pai lhe daria. Finalmente, como essa espera se revela inútil, abrem-se três linhas de
desenvolvimento possíveis para o acesso a feminilidade.
A primeira conduz à inibição sexual, esse primeiro destino possível relaciona-se com o
último movimento realizado pela menina, ao trocar o falo imaginário pelo desejo de ter um
filho, Freud (1933) entende que a feminilidade seria impedida devido a inibição sexual ou à
neurose, a qual seria elaborada somente no futuro ao ser contemplada com o filho daquele que
ela supõe ter o falo. Entretanto, Freud (1924) afirmava que o complexo de Édipo na menina
poderia ser abandonado, levando em conta que esse desejo jamais se concretizaria. Esse
mesmo fato poderia vir a contribuir com outro destino: o complexo de masculinidade, levando
a menina a permanecer fixada no complexo de Édipo
60
Com a descoberta de que não possui o falo imaginário, a menina que já se descobre
castrada, sabe que não o tem e quer tê-lo. Assim, a menina a recusar o fato de ser castrada,
enrijece-se na convicção de que realmente possui um pênis e comportar-se como se fosse
homem. (FREUD, 1925).
Nesse ponto, já temos elementos suficientes para começarmos a abordar o caso Flávia.
Tomando do ponto de vista geral, como todo ser falante, Flávia se constituiu como sujeito, ao
lidar com a castração, com a descoberta da incompletude, da falta. Do aspecto particular,
como mulher, ou seja, como alguém que está situada na posição feminina, é em torno de seus
questionamentos com relação ao desejo da mãe , que ela vai trilhar os caminhos da
feminilidade. Entretanto, do ponto de vista da singularidade, encontraremos para Flávia, assim
como para cada sujeito, elementos que são únicos, que dizem respeito única e exclusivamente
a sua história de vida, com a forma como ela significou tudo pelo que passou.
Começamos tomando uma questão que está no cerne dessa relação de Flávia com a
mãe, que é o fato de ter sido dada para outra. Nas entrevistas realizadas causa estranhamento a
forma como ela não questiona o fato de ter sido dada para outra mulher. Porque que Flávia
não se pergunta por que a mãe manda chamar a tia de mãe? Parece estranho, pois é uma forma
de a mãe dar ela para outra e ela não se pergunta?
Flávia depois afirma que hoje não vê mais essa tia, não tem mais nenhum contato.
Estes questionamentos podem apontar indícios para a condução do atendimento de Flávia, no
sentido do profissional de saúde buscar identificar suas redes significantes costurados desde o
4
Nesse ponto acontece a Interrupção do trabalho de Freud, posteriormente Lacan vai retomar essas
questões e vai dar outros encaminhamentos.
61
momento da sua infância até o momento atual.
Supomos que o fato de a mãe lhe dar simbolicamente para a tia nos possibilita a
reflexão da postura do sujeito frente ao Outro (a mãe): Será que a mãe não é mais mãe? Por
que ela me deu? Ela não me quer? O que Ela quer de mim? O que o Outro quer de mim? Se o
Outro “quer” é porque a ele falta. O sujeito não suporta se deparar com essa falta, que remete
a sua própria falta. Ela percebe que, como filha, não é o que completa a mãe e para não se
defrontar mais com isso elabora sua fantasia. Isso é, constrói uma resposta para isso, e assim
será sua posição diante de todos „os Outros‟ que surgir na sua vida. Essas questões intrigam e
apontam para o que poderia ser um caminho de investigação.
Diante da relação faltosa da mãe lhe „doando‟ para a tia, Flávia parece construir uma
cena simbólica: Minha mãe não me quer, o Outro (a mãe representa o Outro) não me quer, eu
preciso do Outro para me completar, então vou montar uma cena que o Outro vai me querer
(na história de Flávia ela busca a gravidez para o Outro -o marido- que ela julga ser de
extrema importância na sua vida lhe aceitar). Flávia constrói uma hipótese de: se a minha mãe
me abandonou porque o Outro (o marido) não vai me abandonar? Assim cada vez que ela for
ameaçada de passar por essa experiência (da possibilidade de ser abandonada) ela recria a
cena, e cada momento que ela pode ser abandonada novamente a fantasia treme. Aquela cena
que ela montou parece não está sustentando, aquilo que ela montou bem bonitinho começa a
se rasgar e esta preste a lhe destruir, e a angustia na falta no Outro e a cena que ela fez para
encobrir tudo isso não dá mais conta.
Segundo Nasio (1980), a fantasia se constitui como aquilo que temos de mais
próximo, ou seja, a realidade. A realidade psíquica é recoberta de fantasia, ou seja, é o nosso
modo corporal de tratar o real. O sujeito baseia-se em sua própria estrutura, o suporte
62
imaginário para construir a fantasia. Logo, a fantasia é uma construção imaginária que se dá
pela experiência vivida do sujeito. E ainda complementa:
Percebe-se que a fantasia pode ser considerada uma síntese integrada de idéias,
sentimentos, memória e interpretações onde o que predomina são os elementos afetivos. Ela
pode ser pensada como uma satisfação imaginária dos desejos, da libido, devido a seu caráter
particular, mas, pode também ser pensada no sentido de falta. O conceito aparece diversas
vezes na obra de Freud a partir de diferentes explicações: fantasias conscientes, inconscientes,
pré-conscientes, porém todas elas possuem em comum a satisfação substituta da realidade não
satisfeita. Ela possui aspectos positivos e negativos podendo ora contribuir para a adaptação
do sujeito ora para um desvio da realidade com permanência em um mundo irreal impedindo-
o de enfrentar os problemas concretos. (SOARES et al, 2005)
A visão de a mãe não poder ser tudo e não proporcionar a real felicidade e completude
leva-a ao abandono da mãe como objeto de amor e à passagem ao pai. Ao transferir esse
objeto para o pai supomos que na historia de Flávia, o mesmo faltou fazer alguma coisa e ela
sofre por esse pai não ser o suficiente, criticando-o por sua rigidez e ausência. A resposta que
ela dá a isso é casando, por considerar o marido como algo que vai lhe completar que vai ser
tudo na sua vida e coloca o marido no lugar do pai. Despertando-nos em uma aproximação
das características do pai e do marido de acordo com as descrições de Flávia, o que parece
reforçar essa busca da real felicidade, de completude, do falo, por „objetos‟ semelhantes.
63
“para ela (mulher), ser amada é uma necessidade mais forte que amar”, assim vai se
construindo a busca pela completude através do amor que perpassa toda a historia de Flávia.
Com a fantasia abalada, surge a angustia cada vez que ela não consegue sustentar essa
idéia de que o marido vai completá-la (que vai abandoná-la), porque o que a defesa do
recalque serve para ela não entrar em contato com o que tem de inconsciente, para que o
marido exerça a função de suturar, fechar tudo, para ela não ter que entrar em contato com o
que tem no inconsciente que é a relação dela com a própria feminilidade, quando o marido
tampona, ela não tem que olhar, nem pensar, o que eu faço? Já que o marido não ta
funcionando para isso ela é jogada a ter que se confrontar com essa situação.
Com essa duvida do marido surge o desejo de busca a sutura da falha (a completude, o
falo) nos filhos, na maternidade. No primeiro filho parece que algo funciona como suplência a
essa falha. O marido passa a lhe dar atenção, carinho, etc. Já no segundo o efeito parece ser
contrario.
Percebemos que no segundo filho, o bebê que surge, na realidade não corresponde
exatamente àquele inconscientemente esperado. Na verdade ele surge longe de uma relação
de completude, pois o bebê real não corresponde ao bebê imaginário. O bebê nomeado, esta
imagem perfeita ganhará formas pelas palavras, que significam e dão sentido à presença deste.
O simbólico media essa relação entre o bebê marcado no inconsciente e o bebê que chega na
realidade. Mas a linguagem não é suficiente para dar conta de tudo e sempre sobra algo
impossível de simbolizar, revelando que o desejo não pode nunca ser totalmente satisfeito,
que o bebê não pode preencher todas as demandas da mãe e, sendo assim, não corresponderá
totalmente à imagem e às identificações nele projetadas. A perda do bebê fantasiado, o bebê
imaginário, é inevitável. (VALENTE E LOPES, 2009)
Com esse abalo na fantasia da mulher/mãe surge uma angústia que não tem razão e
nem palavras que possa definir, caracteriza-se como uma perda de algo que lhe foi retirado
das suas entranhas, uma perda da anterior função de mulher, subvertendo-se para uma função
de mãe e a perda do filho imaginário. É o momento em que o sintoma aparece, pois a fantasia
não dá mais conta de sustentar o sujeito, de permitir que ele não tente se deparar com o sujeito
do inconsciente.
Por outro lado, o filho recém-nascido também precisa ocupar um lugar para ela.
Guiada pela lógica do inconsciente, lembramos que para a mulher/mãe o bebe se equivale ao
falo e isso é acompanhado de sentimentos de culpa e angustia, a presentificação desse objeto
incestuoso lança o sujeito em situação de angustia e de culpa, isso tem haver com o Super eu
que acusa o sujeito que esta fazendo alguma coisa desse desejo inconsciente.
65
Flávia refere não saber o porquê da sua angustia. Isso remete a pensar que o objeto que
imagina parecer completá-la também é um objeto que lhe causa pavor, e esse pavor e medo é
a angustia.
Para Freud inicialmente a angustia era uma defesa, a pessoa sente angustia para se
defender do desejo (edípico, incestuoso), porém depois ele considera que ao contrario a
angustia vem primeiro, é a angustia da castração, de ter que se reconhecer como castrada.
Porém, a relação do sujeito com seu desejo é contraditória. O que a teoria psicanalítica
vai dizer é que aquilo que a pessoa mais deseja, é também o que ela mais teme porque o que
ela deseja, ela deseja inconscientemente, e isso é inaceitável para a consciência. Então nesse
momento lidar com a questão do bebe que é um substituto do falo no inconsciente, de acordo
com a teoria de Freud, joga essa mulher numa situação edípica e uma situação edípica sempre
remete a uma situação incestuosa que gera culpabilidade e angustia.
Flávia demonstra outro momento de culpa, na sua decisão de sair do hospital sem alta
médica e depois retornar para o hospital com algo de grave com ela ou com a criança, parece
questionável o fato de mesmo que Flávia teve grandes problemas no puerperio– hemorragia,
ela ainda sai do hospital sem alta por referir que tinha que ir para casa.
Parece que Flávia desde o momento que saiu sem alta medica do hospital, mesmo
preocupada com o filho, tinha como foco o marido que estava em casa. Catão (200) explica
que uma mãe em sofrimento psiquico está ocupada demais consigo própria para poder atender
as exigências dos cuidados ao bebê. “A mãe deprimida, por ter seu desejo extraviado, não está
apta ao desempenho da função materna”. Pois Soler (2005) frisa que o desejo propriamente
feminino deixa a mãe ausente para seu filho.
Por esse fato expressou sentimento de culpa, Freud (1915) diz que quando uma pessoa
se sente culpada ela tem culpa, pode ser uma culpa inconsciente, mas ela tem participação em
alguma coisa para pensar que a culpa é dela.
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Finalmente, gostaria de ressaltar que a cadeia de significante elaborada por Flávia que
se articula em torno de uma repetição: aposta amorosa – decepção com essa escolha -
maternidade – risco de morte. Neste aspecto percebemos a articulação com a teoria
psicanalista que destaca a função do retorno (wiederkehr) como fundamental, pois o retorno
repetitivo dos significantes, a maneira que a rede de significantes se entrecruza, aponta para o
fato de que a lógica dessa linguagem que estrutura o inconsciente pode ser estabelecida e
formalizada: esta rede simbólica é constituída de uma maneira tal que escapa ao acaso que há
uma lei que estabelece a sintaxe dessa rede simbólica; bem como podemos depreender dessa
formalização a emergência de um impossível (COSTA, 2006).
O sujeito repete de forma tão inexorável quanto desconhecida a maneira pela qual ele
responde àquilo que se inscreve como traumático. Freud (1914, p. 165) afirma que “o
paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas o expressa pela atuação
ou atua-o (acting-out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem,
naturalmente, saber que o está repetindo”.
O que repete para o sujeito, seguindo as vias traçadas pelo discurso no qual ele está
preso, é sempre o mesmo obstáculo, justamente o que se impõe como traumático, que retorna
como hiato entre o significante e o real; é a repetição articulada ao real como aquilo que volta
sempre ao mesmo lugar para o sujeito. Freud, em 1920, situa o real do trauma como a
repetição incessante do impossível de representar pela linguagem.
A resposta de Freud ao enigma trazido pela repetição das cenas traumáticas é supor
que a repetição tem por objetivo dominar o estímulo que provoca a dor, conferindo-lhe um
sentido (Freud, 1920). Um pouco mais tarde, entende o próprio sintoma como uma tentativa
de desfazer a situação traumática (Freud, 1926), que podemos entender como uma solução
que cada sujeito constrói para dar conta do encontro traumático com o sexo, do encontro
traumático com seu desejo. Este caráter repetitivo que a experiência de satisfação imprime ao
67
funcionamento do aparelho psíquico coloca o sujeito em uma busca infindável pelo objeto que
ele crê ter alcançado, mas que está, desde sempre e para sempre, perdido.
Neste contexto percebemos que seus significantes volta como algo do inconsciente
como a infertilidade temporária, parto difícil, o pedido de tirar esse sangue de dentro de dela
para ir para casa, o não saber criar o filho, o fato de a mãe não conseguir criá-la sozinha sem a
tia, enfim percebemos ai a atuação do sujeito. Deixa claro a percepção de um sujeito dividido
entre um saber que se considera ter e um saber que sobressai a decisão consciente.
Acreditar nessa forma de pensar traz outra concepção para a enfermagem que incita
mudança na prática guiada pela busca de abordar a pessoa cuidada em suas diversas
dimensões. Nesse contexto iremos abordar no próximo capítulo as contribuições para o
cuidado clínico em enfermagem pensado nessa perspectiva.
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5 CONTRIBUIÇÕES PARA O CUIDADO CLÍNICO EM ENFERMAGEM
Nas ultimas décadas, a enfermagem vem buscando delinear seu corpo teórico e definir
epistemologicamente seu objeto. Em todos os seus espaços de atuação, está envolvida a
produção do cuidado em saúde (MERHY, 2005), esse „cuidado‟ delimitado como a essência
da profissão (WALDOW, 2001).
69
vezes difícil afirmá-la como prática social, enquanto que no imaginário coletivo o ato de
cuidar ainda está associado à caridade.
70
sentimentos e emoções positivas em relação a esse outro e um ideal moral que tem como fim
último a preservação da vida humana.
No entanto, o conceito de cuidado adotado neste estudo parte uma perspectiva crítica
em relação à abordagem humanística. Consideramos que os adjetivos desse cuidado
humanista de zelo, carinho, compaixão dentre outros não aborda as reais dimensões do sujeito
e do seu sintoma.
Ou seja, o que está em jogo na perspectiva de cuidado na qual nos situamos é que a
possibilidade de dizer a verdade sobre si, sobre aquilo que lhe acontece, só pode ser possível
do lado do sujeito. É à essa possibilidade que Michel Foucault atribui a relação do homem
grego consigo, a partir do conceito de epiméleia heautoû que o autor traduz como “cuidado de
si” (FOUCAULT, 2006, p. 4).
Segundo Foucault (2006) o “cuidado de si” é primeiramente, uma atitude geral, certo
modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro.
É uma forma de atenção, de olhar, “é preciso converter o olhar, do exterior, dos outros, do
mundo, para si mesmo. Estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento”.
Também designa ações, “ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais, nos
modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos”.
O “cuidado de si” está relacionado às práticas que o próprio sujeito desenvolve para
consigo, visando apropriar-se de si mesmo, de suas vontades, de seus desejos, de seus
apetites. Só assim ele poderia relacionar-se com os outros, governar, dominar a Pólis. O
percurso desse aprendizado deve até envolver um outro: o mestre. Entretanto, o mestre não é
o especialista e sua pedagogia se distancia muito dos ideais que marcam o cuidado na
perspectiva humanística como o zelo, a ajuda e o bem-estar. Pelo contrário, o mestre é aquele
responsável por inquietar, por despertar. (FOUCAULT, 2006).
Certamente não se trata aqui de propor uma transposição da ética grega para os dias
atuais. Isso seria impossível tendo em vista que vivemos uma outra episteme5. Mas podemos
5
Derivada de uma palavra Grega que significa conhecimento ou ciência. O termo foi utilizado pelo
filósofo contemporâneo Michel Foucault no sentido que o conhecimento e os discursos representam a
condição de possibilidade de uma determinada época.
71
decantar daí a importância de reconhecer a verdade como algo que está do lado do próprio
sujeito. Segundo Foucault, na contemporaneidade apenas duas correntes de pensamento
levaram isto em consideração: a psicanálise e o marxismo.
72
saúde no contexto assistencial, possibilitando assim novos arranjos para o cuidado em saúde e
em enfermagem.
Em se falando em saúde mental essa realidade parece ser mais cruel, pois como
enquadrar esses sujeitos e seu sofrimento psíquico na sua perspectiva organicista e
biologicista, como localizar a lesão? Parece não ser possível tal feito, porém o que se percebe
é que a opção por aproximar o sofrimento psíquico às patologias no modelo orgânico levou à
formulação de um modelo clínico-biológico centrada na busca pela cura.
Consideramos que a psicanálise é a ferramenta teórica que pode nos embasar para a
criação de uma nova estratégia de cuidado clínico a mulher/mãe com sofrimento psiquico.
Pois no campo das ciências biomédicas essas experiências de sofrimento são tomadas como
sintomas a serem classificados e abordados principalmente seguindo as considerações do
modelo científico. Neste discurso, a experiência da maternidade é considerada naquilo que ela
tem de comum, que se repetiria para todas. O sintoma é tomado como algo a ser eliminado,
restabelecendo-se assim uma situação de cura. Já na psicanálise O sintoma vai adquirir um
74
estatuto bem diferente, ele também é signo, mas não de uma doença a ser eliminada. É, antes,
o signo de um saber enigmático, recalcado, mas que porta uma verdade sobre o sujeito.
Com base teórica e utilização das ferramentas clínicas adequadas é possível que a
enfermagem revitalize seu cuidado clínico, partindo da diversidade de saberes e valorização
dos sujeitos, reinventando os espaços e ferramentas de atuação junto ao sofrimento psíquico
considerando a dimensão ética do sujeito e a articulação com seu desejo.
Percebemos que a consulta de enfermagem, pode ser tomada como um campo pautado
por intervenções que extrapolam o caráter instrumental e o direcionamento para a recuperação
75
de um ideal de saúde, indo para além do conceito referido acima. Retomar seus conceitos por
uma via comprometida com o reconhecimento do sujeito, do cuidado em seu modo singular
de existência, considerando a história de vida, a posição subjetiva e o caráter ativo desse
sujeito no processo de cuidar.
Trabalhar com a escuta é saber reformular o que o outro diz, por meio de uma escuta
atenta e disponível, fazendo questionamentos sem solucionar problemas, sem julgar,
interpretar, explicar ou investigar (POUJOL, 2006). Ao utilizarmos essa ferramenta, é preciso
identificar os níveis de comunicação com os quais o sujeito se expressa e ter uma “atenção
flutuante‟, a qual Freud definiu como sendo a atenção centrada em todo discurso do sujeito e
não nos pontos que interessa ao profissional/analista (FREUD, 1913).
I. Atenção flutuante à fala do sujeito, que não se deve deter muito naquilo que é dito pelo
paciente, nas significações já prontas. O sujeito vem para a consulta com o discurso bastante
amarrado em verdades conscientes, sustentando-se nessas significações.
III. Deve-se evitar organizar o caso clínico no momento em que ele está se desenrolando.
IV. Não se deve ter ambição terapêutica. O profissional não deve ter a intenção de curar.
V. O analista deve se submeter à regra fundamental para a psicanálise: Deixar que o sujeito
associe livremente seu discurso.
VI. No mecanismo de estratégia, querer sabe de toda a vida do sujeito de uma só vez reforça a
resistência.
VII. Saibam que o analista é colocado no lugar do Outro pelo analisando (Sujeito Suposto
Saber de Lacan).
IX. A análise é o que vai buscar o traumático, onde o sujeito tem um certo gozo masoquista.
Não adianta levar o sujeito de um significante a outro, ele é quem repete, recordar e elabora
novos significados.
77
Dessa forma entende-se que os sujeitos é que são os “produtores de conhecimento,
detentores do saber sobre os impasses de seu gozo, e únicos capazes de produzir as saídas
necessárias” (SANTOS; COSTA-ROSA, 2009, p.493).
Cuidar, nesta perspectiva, diz respeito a uma construção diária, elaborada a cada
encontro, em que possa significar: cuidar da relação transferencial, cuidar dos significantes,
cuidar da posição que estabelecemos para nós e para o paciente e, principalmente, cuidar em
não se esquecer que o saber inconsciente se caracteriza pelo desconhecimento (GARCIA,
2004).
No entanto, para que seja possível estabelecer um cuidado de enfermagem com uma
perspectiva psicanalítica, deve incluir os mecanismos que tornem possível o aparecimento dos
sujeitos (pacientes e profissionais), incluindo também espaços onde os profissionais
envolvidos com o caso possam discutir o mesmo, favorecendo um trabalho interdisciplinar e
acompanhamento do caso em supervisão, pois é nela que o terapeuta poderá realizar o
exercício de contar, falar do caso a um outro, para poder trabalhar, a partir de seu próprio
recalque, que possibilitará nomear os acontecimentos e transformar o a priori teórico em uma
teoria inédita de si e da relação com o paciente (GARCIA, 2004).
Neste discurso é preciso valorizar soluções dadas pelo próprio sujeito com uma
disponibilidade para dar lugar ao inesperado, ao que não estava inscrito. É preciso estar atento
ao inusitado, ao que não é possível de ser coletivizado pela equipe ou assimilado pelo sujeito,
isso muitas vezes passa despercebido pelos profissionais. (MONTEIRO; QUEIROZ, 2006).
O interesse maior deve estar pautado não na narrativa por si, mas no processo de
reconhecer o que está entre as necessidades e as demandas daquele sujeito com sofrimento.
Ao invés de barrá-lo impondo uma realidade que ele não enxerga, criar espaços para o sujeito
se manifestar, de amarrar os significantes de sua vida, proporcionando o deslocamento de
78
posições, ou seja, o profissional sair do lugar de detentor do saber, de ver o paciente de forma
coletiva e padronizada, e permitir que o próprio sujeito ocupe o lugar de protagonista da
clínica. Pois quando nos referimos a clínica do sujeito não significa uma clínica para o sujeito,
mas uma clínica que o sujeito é quem a conduz.
Os resultados desta produção vêm contribuir sobremaneira tanto para uma tentativa de
subversão da clínica e do cuidado gerando uma qualificação nos espaços de atendimento
clínico inseridos nos serviços públicos já existentes, como para reestruturação dos sujeitos em
sofrimento psíquico.
Entendemos que associar os sujeitos, sua história de vida, suas questões e desejos, é a
única forma de garantirmos um atendimento que considere a dimensão ética da assistência
pautada na verdade dos sujeitos. O enfermeiro que utiliza a psicanálise como um dos
norteadores de sua prática clínica pode refletir acerca das relações da subjetividade do
indivíduo com a sua história de vida, buscando fatos que estejam correlacionados ao
sofrimento psíquico do paciente e conduzir intervenções que auxiliem o sujeito em sua
terapia, possibilitando a emergência de um discurso onde o próprio sujeito compareça.
79
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizamos este estudo, cientes que construir uma pesquisa nessa temática e nessa
abordagem necessita de certa dose de ousadia, pois foi preciso mergulhar em uma revolução
paradigmática em conceitos, valores e certezas. Isso demandou uma luta intensa e muita
dedicação, para apreender novas formas de fazer ciência, rompendo a visão patológica,
padronizada e naturalizada do fenômeno do sofrimento psíquico na maternidade.
Assim partimos para o desafio de construir esse estudo, encarar o campo e suas
imprevisibilidades que se mostra no encontro com o outro e as incertezas que ainda nos
rondava sobre o estudo e sua condução. Pois optamos por nos manter abertos ao que iríamos
encontrar, certos apenas de que queríamos escutar as mulheres e suas histórias, sair do lugar
de maestria permitindo a emergência de um saber novo (um saber não sabido). Com isso para
chegarmos até aqui, trilhamos um longo caminho de construções/desconstruções.
Nessa seção não tentaremos colocar um marco definitivo no problema estudado, pois
nossa pretensão não é dar repostas, mas provocar perguntas, apontar duvidas,
questionamentos e uma possível condução a respeito da temática. Nossa intenção é dar uma
contribuição para compreensão e tratamento das mulheres que sofrem diante do fenômeno da
maternidade, sem, contudo ter a ambição de compreende-lo e explicá-lo na sua totalidade,
porém propor um olhar novo para os sujeitos, com uma nova abordagem, com uma tentativa
80
de inserir o sujeito e sua historia no olhar clinico do enfermeiro, acreditando na relação direta
da historia de cada sujeito e o sofrimento que lhe aflige.
Diante dos encontros e das significações de Flávia extraímos núcleos de sentidos que
remetem à sua forma de vivenciar a situação atual da maternidade e a interface do sofrimento
psíquico no pós-parto. Flávia julga de extrema importância a sua relação com o marido
optando em ariscar a sua vida em uma nova gravidez para „ter de volta esse marido‟ que
estava frio e distante, porém a gravidez não resolveu e surge um sofrimento. Isso atrelado na
81
eterna busca de Flávia de compensar sua incompletude no amor, gerando uma cadeia de
significantes que se articula em torno de uma repetição: aposta amorosa – decepção com essa
escolha - maternidade – risco de morte. Essa busca inicia-se desde a infância que seu pai era
ausente, sua mãe lhe deu para a tia, e ela sempre em busca por meio do amor alcançar sua
completude (pai, marido, mãe, irmã, filho da irmã e seus dois filhos).
Percebe-se que evocar a fala do sujeito e atuar uma escuta que o profissional se
desloque do seu lugar, de um saber pré-estabelecido para privilegiar o saber do sujeito, em um
processo de responsabilização do sujeito, que abra espaço para que o próprio sujeito elabore
as especificidades de sua situação, de seu sofrimento, uma escuta que não seja reduzido a uma
coleta de informações do paciente tendo em vistas a construção de subsídios para que o
profissional de saúde possa intervir segundo suas intenções, mas pensar a construção de uma
prática que se desloca do foco na cura, passando para uma perspectiva de
desconstrução/reconstrução de sentidos, atrelada à ética da singularidade de cada caso, onde
cada um possui em si mesmo um saber acerca do que lhe atinge.
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Neste estudo a utilização da técnica da escuta e da atenção flutuante foi um dispositivo
fundamental para acessar o discurso do paciente, respeitando a expressão de sua
singularidade. Tendo a entrevista como uma forma adequada na obtenção da historia do
sujeito e para se levantar hipóteses sobre a estrutura clínica apresentada, pois se relaciona de
modo muito particular com a linguagem.
83
Isso nos faz reconhecer a necessidade dos profissionais de saúde em destacar aspectos
que direcione a responsabilização e inserção do sujeito, guiados pelo saber que cada um
possui sobre si e sobre as questões que ficaram marcadas na sua história, essa abordagem nos
faz resgatar um sujeito verdadeiramente agente da clínica
84
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APÊNDICE
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APÊNDICE 1
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE
Prezada Senhora:
Sou aluna do Curso de Mestrado da Universidade Estadual do Ceará - UECE. Venho
convidar a senhora a participar do estudo que estou desenvolvendo, intitulado: “Quando ser
mãe dói: historias de sofrimento psíquico no puerpério”, tendo como objetivo compreender
como a vivência da maternidade se torna para a mulher/mãe uma experiência de sofrimento
psíquico (mental), buscando identificar como a mulher considera a situação atual, qual o
significado de ser mãe, qual o envolvimento desse sofrimento com sua historia de vida e
como é sua relação com o bebe, com o parceiro e com a família.
Solicito sua participação no estudo por meio do seu consentimento em duas vias. Sua
participação se dará através de conversas individuais que teremos em mais de um encontro e
será gravada. Gostaria de deixar claro, que essas informações são sigilosas, seu nome não será
em nenhum momento divulgado e não lhe trará riscos. As informações cedidas somente serão
utilizadas para o estudo. Informo ainda, que sua participação é voluntária mesmo tendo
aceitado participar poderá a qualquer momento durante o andamento da pesquisa desistir, com
liberdade para retirar seu consentimento. Sua colaboração e participação poderão trazer
benefícios no desenvolvimento de uma melhor assistência à mulher com sofrimento psíquico
no pós-parto.
O Comitê de Ética da UECE encontra-se disponível para quaisquer esclarecimentos
pelo fone: 31019890 Endereço: Av Parajana, 1700 Itaperí Fortaleza-CE. Eu, Denise Tomaz
Aguiar, como pesquisadora responsável também me disponibilizo para quaisquer
esclarecimentos no endereço rua recanto tranqüilo N° 102 Apto 302 Bl:C Itaperi e nos
telefones: (88) 99142505 (85) 32320038
Fortaleza, _____ de ___________________ de 2010.
_______________________________________
Assinatura do entrevistado
_____________________________________
Assinatura da Pesquisado
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ANEXO
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