O objetivo do artigo “As possibilidades de uma Leitura do Fenômeno Jurídico a
partir da Religião: a proposta metodológica e o exemplo da teologia política de João
Calvino” de Caetano Dias Correa é discutir as interfaces entre direito e religião, focando- se em aspectos teóricos internos à religião, a partir de suas próprias especificidades, notadamente levando em conta seu caráter irracional.
Para tanto, o autor aborda alguns estudiosos do fenômeno religioso, começando
por Rudolf Otto, o qual estudou a religião não a partir de seus conceitos, buscando sua descrição racional, mas levou em conta suas mecânicas internas, sensitivas e emocionais. Segundo ele, o traço característico da religião seria o pavor diante do mistério (misterium tremendum), assim “a reflexão de Rudolf Otto dirigia-se muito mais à crença e a seus elementos, do que à explicação teorizada dessa crença.” (CORREA, 2017, p. 193)
Em sequência, parte-se à análise do historiador romeno Mircea Eliade, que
entendia a questão sob o prisma da oposição entre sagrado e profano, sendo que este último seria “tudo aquilo tachado de natural e secularizado pelo homem religioso.” (CORREA, 2017, p. 196). A partir dessa distinção, Eliade usa o termo “hierofania”, que seria uma revelação do sagrado no mundo material, histórico, local, contrapondo o sagrado à sua própria característica absoluta e onipotente, limitando-o no tempo.
Prosseguindo, o autor discute a obra de Roger Bastide, e seu conceito de sagrado
selvagem. Para ele, a hierofania seria incontrolável espontânea, porém, a partir dessa aparição selvagem, o sujeito tende a institucionalizá-la, domá-la, buscando administrar essa experiência originalmente irresistível. Essa noção de controle do fenômeno religioso está no cerne da compreensão das interfaces entre direito e religião, principalmente ao se analisar a teologia política de João Calvino.
Porque o momento primeiro da ruptura protestante com o catolicismo se
caracteriza por uma irrupção selvagem do fenômeno religioso, mas passado esse instante, surge a necessidade de se administrar esse novo mundo. O exemplo de João Calvino em Genebra é importante nesse sentido, pois ele buscava uma instituição intelectual teológica de um governo protestante, consequentemente com efeitos jurídicos próprios. Assim, o processo contraditório que emerge nesse momento da Reforma é que, esse movimento iconoclasta, de questionamento de certos símbolos do cristianismo, ao ser domesticado, traz em si uma tendência policial de controlar insurgências aos novos símbolos. Logo, “as punições e ameaças terrenais seriam indispensáveis, o que justificaria a instituição e o aparelhamento do poder civil para realizar o trabalho de Deus.” (CORREA, 2017, p. 209)
Já no texto “Direito como religião: um relato dos estudos iniciais sobre as
possibilidades de uma ontologia religiosa do direito”, expõe-se o estágio atual de uma pesquisa que busca apresentar o direito como fenômeno ontologicamente religioso. Para tanto, apresenta-se a religião, em seu aspecto fenomenológico, enquanto tentativa de conceber o mundo como humanamente significativo.
Assim, os autores buscando apresentar alguns autores que analisaram a religião
sob o prisma sociológico. Primeiramente, cita-se o trabalho de Émile Durkheim, que concebia a experiência do sagrado enquanto possibilidade de encontro entre o indivíduo e os valores comuns de uma sociedade, destacando, ainda, o lugar da religião como uma espécie de ancestralidade epistemológica, sendo ela um primeiro esforço de classificação das coisas, similar ao empreendimento científico.
Prosseguindo, em Max Weber, a partir de uma perspectiva individual, encontra-se
uma análise da “ética protestante”, enquanto associação da religião ao pensamento racional, na medida em que o indivíduo protestante, querendo ter uma prova de salvação, busca uma vida ética racional, a fim de assegurá-la. Assim, o sagrado manifesta algo transcendente em relação à sociedade, tendo força, para a construção de um nomos no corpo social, assim como em Durkheim. Em sequência, na concepção de Peter Berger, na obra “O Dossel Sagrado”, a religião é um esforço subjetivo de exteriorização, um discurso de transcendência de significados interiores em direção ao mundo. Assim, na medida em que busca sentido exterior, importa na criação de normas, contenções, pelo meio jurídico, buscando vincular o conhecimento ao comportamento social. Ademais, em Thomas Luckmann, a ênfase está na capacidade humana de dar origem a universos simbólicos de significados, que são objetivados e institucionalizados.
Ainda na compreensão do caráter jurídico dos fenômenos religiosos, pode-se citar
as pesquisas de Marcel Mauss, que compreendia que a juridicidade da organização social tem a sua origem na ideia da obrigação da retribuição de dádivas. Na concepção de Mauss, haveria uma força mística permeando as sociedades arcaicas, denominada mana, a qual seria representada por um emblema (totem). Assim, quando uma dádiva é oferecida a alguém, e não retribuída, há a possibilidade daquele que doou usurpar a mana do donatário que não retribuiu. Logo, a obrigação é de cunho jurídico-religioso, e o ato de doação não tem necessariamente ligação moral, altruística, mas parece estar mais ligado a ideia de proveito, interesse.
O que se encontra em Georges Gurvich é a mobilização de conceitos como
“magia” e “religião”. A magia seria o esforço de projetar uma onipotência para explicar o mundo, é uma forma ancestral de ciência. Porém, Gurvich demonstra como, para a manutenção do poder, do nomos, a magia por si só não é capaz de assumir a lida, entrando em cena a ordem religiosa, como elemento que liga a sociedade, e que marca o direito social. Assim, na medida em que a religião consiste no esforço do homem em transcender seu limite biológico e dar significado humano à natureza, tem-se que ela nasce em conjunto com o fenômeno jurídico, eminentemente ordenador do mundo à semelhança do homem.
Finalmente, a monografia “A César o que é de Deus: magia, mito e sacralidade do
direito” de Rafael Prince Carneiro, aborda os aspectos religiosos do direito. Primeiramente, o autor destaca as relações entre magia e direito, identificando nas sociedades arcaicas uma lógica pré-científica, uma fez que a magia nesses contextos serviria para estabelecer relações de causa e efeito na busca de transformar a realidade. Porém, a premissa de que o homem primitivo não tinha domínio racional e técnico da natureza é rejeitada pelo antropólogo polonês Malinowski.
É preciso destacar, também, um elemento central na magia, que é a palavra. A
língua aqui é concebida como “expressão realizativa”, ou seja, faz-se coisas com palavras. O Direito está cheio dessas expressões, a expressão de fórmulas jurídicas vai além da comunicação, trata-se de uma ação propriamente, e que obedece um ritual específico. Está presente também na lógica jurídica essa distinção do possuidor da linguagem específica, da mesma maneira que nos rituais mágicos a linguagem ritual se distancia da linguagem profana.
O autor da monografia demonstra como essa concepção da imbricação mágica no
direito foi criticada no século XX pela corrente do realismo jurídico. Dentro dessa concepção, pode-se citar o esforço anterior de Rousseau em conceber uma “religião civil” instituída pelo Estado e que tenha como dogma a santidade do contrato e das leis. Nesse contexto, Duncan Kennedy propôs um “ateísmo constitucional”, denunciando a irracionalidade da divinização da constituição.