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Universidade Federal de Santa Catarina | UFSC

Centro de Filosofia e Ciências Humanas | CFH


Coordenadoria Especial de Museologia
Disciplina: Introdução à Arqueologia 2022.1
Docente: Lucas Bueno
Discente: Leticia Conte Zulian, Bruno Vieira Losso, Augusto Gomes

Atividade Avaliativa - Tese do Marco Temporal e os museus de Arqueologia

São muitos os dilemas que envolvem as práticas arqueológicas dentro dos


debates contemporâneos. Assim como nas demais ciências humanas, é natural que
o campo esteja em constante discussão e reorganização - sendo essencial que os
questionamentos sobre: o porquê se utilizar certas práticas, para que se retirar
objetos de seus locais de origem e o que fazer com esse material depois de
retirado. Todas essas questões precisam estar muito bem refletidas criticamente e
fundamentadas para que a Arqueologia esteja envolvida com respeito e conexão a
diversidade de aspectos culturais que se envolve quando se assume uma pesquisa,
e para que, por exemplo, um sítio arqueológico, possa cumprir um papel social
enquanto campo, fonte de conhecimento e instrumento de intervenção (uso social
da memória).
Após serem coletados e separados, os vestígios arqueológicos são retirados
do seu contexto inicial e adquirem outros significados, muitas vezes sendo
apropriados por outros grupos que não tem conhecimento sobre o processo
relacional que faz parte da história de vida daquele objeto. Segundo, Barreto “não
apenas retira-se os objetos do seu contexto de significação social, mas também ao
separá-los, priva-se também as pessoas de seus nexos relacionais e, portanto, seu
acesso simbólico é apenas parcial e restrito” (BARRETO, 2020 apud SALLES, 2021,
p. 6). São esses sentidos relacionais que são importantes para que se construam as
narrativas. É necessário saber primeiro o contexto das coisas para poder contar
suas histórias e para que esse material contribua para o conhecimento no presente.
Para que esses documentos não sejam esvaziados de seus significados, é
fundamental que os grupos que têm relação (de identidade) direta com aqueles
objetos, possam ter autonomia sobre o que fazer com eles. Bem como os
profissionais que estão ali para salvaguardar, estejam bem instruídos a respeito das
realidades envolvidas, e informados sobre a atualidade dessas realidades - para
que esses objetos não flutuem isolados e esquecidos dentro de uma reserva
técnica.
A intersecção entre Arqueologia e Museologia por muito tempo ignorou essas
relações e o contexto dos objetos que eram coletados e selecionados para compor
narrativas. As memórias desses povos eram muitas vezes apagadas ou
subalternizadas por um discurso colonizador branco que busca explicar a trajetória
dos vestígios arqueológicos a partir de seu lugar na história. Estamos vivendo o ano
de 2022 do calendário cristão, e essa contagem de tempo não se estabeleceu à toa,
nem de uma maneira pacífica e nem de uma hora para outra. Já é sabido que o
território onde hoje acontece o país Brasil é uma imensa área por onde circulam
centenas de povos originários há milhares de anos. Cerca de 520 anos antes do
presente, iniciou-se uma sequência de invasões nessas terras, onde diferentes
povos vindos do continente hoje conhecido como Europa, passaram a disputar o
controle das áreas e dos recursos que aqui habitavam, estabelecendo um plano de
dominação que percorre cinco séculos. Ailton Krenak no documentário “Guerras do
Brasil.doc”, afirma que são 500 anos de guerra, uma guerra que dura até hoje.
A instalação dessa Colônia, posteriormente Império, e por fim República,
desenha o desenvolvimento de um dos maiores planos de exploração de recursos
naturais e de exploração de mão de obra que a humanidade já viu/vê - do qual
também faz parte em sua história o maior sistema transporte transcontinental e
venda de pessoas escravizadas. Um sem fim de violências que têm como base um
amplo descarte de corpos dissidentes tidos como rebeldes - quem não aceitou as
regras do jogo em geral sempre foi morto e/ou dizimado. Visitando a história recente
das trajetórias de diferentes grupos indígenas, sem receio algum nos permite
afirmar: o Brasil é constituído e continua se constituindo sob uma sequência de
genocídios. Diversos grupos étnicos desses povos originários já foram dizimados,
diversas práticas e saberes culturais já foram extintos - tal como aconteceu com
povos sequestrados de África que foram trazidos escravizados (e que após a
abolição do sistema de mão de obra escravizada tornou-se descartável às mãos do
poder branco). É preciso reconhecer e identificar o que atravessa esses 500 anos e
chega até hoje ainda em forma de violência e morte. É preciso identificarmos o que,
dentro de cada coisa que fazemos, também pode se tornar uma possibilidade para
enfrentarmos esses pensamentos do passado que se fazem presentes no presente.
Por exemplo o que podemos fazer dentro de cada um de nossos campos, quando
se existem movimentos articulados dentro dos poderes de Estado, que visam
alimentar o não reconhecimento ao direito à terra dos povos originários - que não
apenas já habitavam essas mesmas terras antes de serem inventadas todas essas
cidades (trazidas por povos europeus), mas que não tiveram poder de opção frente
ao avanço devastador da “civilização ocidental” em busca de recursos naturais,
mercadorias, dominação de territórios e fundação de novos mercados. Tudo isso
desemboca por exemplo no modelos de negócios e agronegócios latifundiários
vigentes como motor da economia no Brasil de hoje, que ao mesmo tempo que
movem a economia do país, entram em constantes conflitos com os povos
indígenas, gerando atentados diretos à vida de certos grupos, bem como
articulações políticas que possuem como base o questionamento desse fator
originário que constitui o direto dos povos de utilizarem as terras de uma maneira
para além do tradicional à herança dessas invasões e de toda colonialidade de
pensamentos.
Diante disso, tentamos aqui neste ensaio expor um dos mais recentes
episódios de perseguição do direito à vida (que para a maioria dos povos originários
está diretamente ligada ao direito à terra, ou ao uso desta a partir de seus próprios
traços culturais). Estamos buscando aqui apresentar a Tese do Marco Temporal -
que está em julgamento no Supremo Tribunal Federal, da República Federativa do
Brasil. Tese esta que coloca em revisão a demarcação das terras indígenas que
foram garantidas por lei em 1988 com a Constituição Federal Brasileira. Estamos
tentado expor, junto a isto, a importante contribuição que os museus de arqueologia
podem oferecer em prol da proteção dos direitos indígenas no presente, visto que
seus acervos são capazes de comprovar, por exemplo, ocupações indígenas que
datam tempos anteriores aos que a Tese do Marco Temporal apresenta. Tudo isso
coloca em xeque a noção de conservação defendida pela própria museologia. O
que vale mais? Uma coleção intacta num para sempre museológico de uma reserva
técnica ou a existência material e cultural da linha hereditária do povo que deu
origem à tais objetos que se tornaram acervo?
O Recurso Extraordinário que contesta o Marco Temporal foi movido pela
Fundação Nacional do Índio (Funai) devido a um conflito existente entre o Governo
do Estado de Santa Catarina e os povos da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. Este
conflito se originou no ano de 2009, quando uma Ação de Reintegração de Posse
foi requerida pela então Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina,
atual Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), que afirma ser legítima
possuidora de uma área de 80.006,00m2 do distrito de Itaió (ANJOS et al., 2021). O
Instituto alega ocupar esta área há mais de sete anos de forma “pacífica e
ininterrupta”, apesar dela pertencer legalmente a Terra indígena Ibirama-La Klãnõ
dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani (ANJOS et al., 2021, p. 4). Em 2009, o
acórdão do Superior Tribunal de Justiça foi a favor da reintegração de posse ao
Instituto, atropelando os direitos legais desta ocupação indigena. No Recurso
Extraordinário, a Funai questiona a legitimidade desta reintegração de posse que
violou os direitos constitucionais dos povos originários.
Foi então em 2017 publicado o Parecer Normativo 001/2017 pela
Advocacia-Geral da União (AGU) que deliberou que “só teriam direito à demarcação
os indígenas que estivessem ocupando a terra em 5 de outubro de 1988” (ANJOS et
al., 2021, p. 4). Assim é desenvolvida a Tese do Marco Temporal que restringe às
demarcações das terras indígenas, restringindo a compreensão da trajetória desses
povos sobre estas terras e ameaçando mesmo aquelas terras que já foram
legalmente consideradas como trajetoria originária e demarcadas. Em resposta, no
ano de 2020, a comunidade Xokleng da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ fez um
pedido de “tutela provisória” para suspender os efeitos do Parecer 001/2017 até que
seja concluído o julgamento do Recurso Extraordinário. O Relator Ministro Edson
Fachin deferiu este pedido, suspendendo os efeitos do Parecer 001/2017
temporariamente.
O Recurso Extraordinário referente ao Instituto de Meio Ambiente de Santa
Catarina (IMA) e os povos Xokleng, Kaingang e Guarani terá um caráter de
"repercussão geral”, ou seja, se a tese do marco temporal for aplicada a esta
disputa ela poderá também ser aplicada a diversos outros processos jurídicos.
Assim, a luta e vitória destes povos se torna essencial para o futuro das
comunidades indígenas do Brasil como um todo. Atualmente, não há uma data
prevista para a retomada do julgamento da Tese do Marco Temporal que vem sendo
amplamente divulgada e contestada pelos povos indígenas do país. Havendo
vontade e soma de esforços, há sim como se barrar essa tentativa de retrocesso
legal, e os Museus de Arqueologia brasileiras podem de alguma maneira tomar
partido e contribuir com o argumentos em favor dos povos indígenas realizando o
uso social dessas memórias.
REFERÊNCIAS

ANJOS, Auricelia dos; LAURIS, Elida; MARTINS, Pedro Sérgio Vieira; SANTOS,
Raimundo Abimael dos. Justiça e o Marco Temporal de 1988: as teses jurídicas
em disputa no STF sobre terras indígenas. Conselho Indígena Tapajós Arapiuns -
CITA e Terra de Direitos. Agosto de 2021. Disponível em:
https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Justica-e-o-marco-Temporal-de-1988-(
final).pdf. Acesso em: 28 jul. 2022.

SALLES, Juliana Machado. Histórias roubadas: (des)encontros entre


arqueólogos, sítios, coleções arqueológicas e os Laklãnõ-Xokleng no Alto
Vale do Itajaí, SC. Hawò, Goiânia, v. 2, 2021. Disponível em:
https://revistas.ufg.br/hawo/article/view/68725. Acesso em: 28 jul. 2022.

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