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Dissertação Final - Luis Augusto
Dissertação Final - Luis Augusto
Introdução
É um pensamento de senso comum e que está presente na retórica política depositar um peso
enorme no papel da educação para a resolução dos conflitos sociais, porém, talvez a educação
não possa deslocar centros de poder e de desigualdade que são estruturais se a própria
educação - em sua conceitualização e prática - não for ela mesma reeducada para lidar com as
pressões culturais e econômicas da sociedade contemporânea.
Para pensar a construção do paradigma educacional dentro da era moderna faremos, num
primeiro momento, uma breve abordagem conceitual e, em seguida, uma abordagem
histórica. É importante para nós fazer um cruzamento da histórica conceitual com a história
sócio-cultural, pois é justamente dela e para ela que vivem os sujeitos a quem a educação se
dirige e, também, porque a formulação de um modelo de educação deve levar em conta as
demandas e entraves de seu tempo.
Em sua obra Educação e Liberdade, Luc Vincent faz uma exposição precisa e bastante lúcida
sobre o ferramental conceitual que está em jogo no pensamento pedagógico de Kant e de
Fichte. Bem, um ponto fundamental para pensar a educação começa com a noção de sujeito e
liberdade. A filosofia moderna geralmente é caracterizada como uma filosofia do sujeito.
Porém, esta noção não diz respeito à nossa individualidade como capaz de definir o gênero
humano, tampouco diz respeito à significação latina - sub-jectum - de estar submetido a
alguém hierarquicamente superior. O conceito de sujeito na filosofia moderna significa a
capacidade de se sustentar a si mesmo. Este ato de sustentação é o que define e constitui o
sujeito filosófico, o que sustenta sua existência. Pois, na medida em que nos sustentamos a
nós mesmos, não precisamos nos remeter a outro alguém ou outra coisa para daí tirar nossos
fundamentos, valores ou existência, nossa atividade como sujeitos nos retira do terreno da
submissão e nos faz entrar em contato direto com a autonomia e a liberdade.
Luc Vincent sustenta que não é através do cogito cartesiano que temos propriamente uma
filosofia onde o sujeito tem completa autonomia, mas sim no século XVIII através de Kant e
Fichte. É através da filosofia de Kant que o sujeito adquire responsabilidade total sobre o
saber e sobre o agir, baseado na sua liberdade de autodeterminação. Esta conceitualização
kantiana tem uma implicação direta na noção de natureza:
“Ao definir a essência humana pela liberdade e pela razão prática, Kant eleva a noção de
responsabilidade ao mais alto grau: doravante, a natureza humana está em nossas mãos” (pág,
10)
A radicalização da noção de sujeito em Kant coloca, portanto, a nossa própria natureza como
algo decorrente do exercício da liberdade. Esta atividade de formação e de transformação de
nossa natureza humana está diretamente associada à educação, pois é ela quem pode dar
conta de organizar este processo de aperfeiçoamento livre, progressivo e compartilhado da
cultura, do conhecimento, da liberdade e da ética.
Este conceito de sujeito plenamente autônomo está presente na resposta dada por Kant à
pergunta “Que é Esclarecimento?”. Neste texto Kant deixa evidente que a saída do homem da
menoridade e sua entrada na maioridade entrelaça tanto o aspecto teórico como o prático da
autonomia individual, culminando na tomada da responsabilidade sobre si mesmo. Isto pois,
esta saída da menoridade implica em fazer uso de nosso próprio entendimento, afirmando
assim nossa autonomia e liberdade. Esta afirmação é um ato, um ato de se sustentar a si
mesmo, de responder por si mesmo, de saber por si mesmo.
Entretanto, este processo de emancipação individual e coletiva não se faz a despeito das
condições históricas, pois as ordenações políticas, o regime legal ao qual estamos submetidos
e os preceitos morais/culturais atuam facilitando ou dificultando essa saída da menoridade.
No texto citado, Kant chama atenção para esse aspecto quando se refere a postura de
Friedrich II, rei da Prússia, em relação à religião. A atitude desse déspota esclarecido em não
prescrever uma religião para o povo é um ponto interessante, pois a “liberdade religiosa”
permite a reflexão e a tomada de decisões individuais, permite a circulação de ideias e o uso
de cada qual de seu próprio entendimento e liberdade.
Feito esse passo de exposição conceitual, cumpre agora falar do chão histórico onde se
desenvolveu e continuou caminhando o ideário iluminista em relação à educação e à
formação de sujeitos.
II
Em sua obra A Era das Revoluções, Eric Hobsbawm trabalha com a noção de dupla
revolução para tratar das transformações sociais decorrentes da Revolução Francesa (1789) e
da Revolução Industrial (fins do século XVIII e começo do século XIX).
Como se sabe, estes dois eventos históricos marcam o fim da sociedade aristocrática e o
início da sociedade burguesa. A abertura social desse período se deve à superação das
relações feudais, à implementação do capitalismo industrial e à instituição de constituições de
teor liberal (liberdade, igualdade e propriedade privada). As transformações nas relações de
trabalho e no ordenamento civil vão implicar numa realocação do papel da educação para as
sociedades então modernizadas.
Hobsbawm elenca quatro “caminhos abertos ao talento” pela dupla revolução: a carreira nos
negócios, a educação (como ponte para as profissões liberais, para o funcionalismo público e
para os cargos políticos), as artes e a guerra (pág 299). Embora esses caminhos não fossem
fáceis de ser percorridos, podemos localizar aqui uma mudança histórica que permitiu com
que a educação começasse a ser tornar acessível através de sistemas públicos de educação e
do espírito de esclarecimento que marcaram a Revolução Francesa.
O que cumpri aqui destacar é a simultâneidade das duas revoluções e como elas impactaram
de modo paradoxal nossa perspectiva educacional, trazendo para o centro das sociedades
modernas tanto ideais de liberdade e de aperfeiçoamento humano como também fomentando
atividades intelectuais, artísticas e culturais dentro de uma lógica utilitarista e mercadológica.
Diálogos contemporâneos sobre educação
“Não tenho necessidade de pensar quando posso simplesmente pagar” (2005, Kant, pág 102).
Estas palavras de Kant parecem fazer ainda mais sentido hoje do que no século XVIII. Uma
questão posta pela dupla revolução e presente até hoje é o dilema: estamos educando para a
emancipação ou para o mercado? Essa tensão é constante e se torna cada vez mais evidente
em tempos de neoliberalismo e de pós-modernidade. No caso brasileiro podemos lembrar da
recente reforma do ensino médio voltada para uma lógica de formação de trabalhadores
técnicos e de empreendedores, o crescimento das corporações privadas de ensino superior
que mercantilizam e empobrecem essa etapa formativa e do ataque às universidades públicas
Essa quebra na linha cronológica parece desmembrar a coesão de uma educação voltada para
a liberdade, a autonomia e a ação ética engajada na coletividade. Nesse novo espaço material
e psicossocial criado pelo capitalismo da terceira revolução industrial o mundo publicitário e
midiático parecem se tornar o meio formativo principal, não a escola ou outras instituições
equivalentes. O império da informação e da performance parecem seduzir e se difundir muito
mais do que o conhecimento. O registro estético ancorado nas tecnologias digitais e na
infinidade de mercadorias e serviços disponíveis parece se sobrepor à dimensão ética.
Em síntese, uma educação que encare o seu tempo precisa refletir sobre a viabilidade do
projeto de educação moderna nas condições sócio-culturais, seja com vistas a renová-la ou a
encontrar outro caminho:
“Que função resta para a escola, quando não há mais lugar para o cultivo da cultura feita de
interiorização de normas ou crenças estáveis? Que fim restou para a pedagogia que visa
emancipar os homens da ignorância, da incultura e subserviência quando se constata a perda
do empuxo que os levaria à superação de si mesmos? Estas indagações são desafios porque
fazem ver que a educação transita do valor de uso para o valor de troca ou para o absoluto
desvalor. Atrelada ao sistema produtivo, a escola perde a capacidade de cultivar a
interrogação da vida e da existência na perspectiva de idéias historicamente valorizados” (M.
Silva, pág 62).
Essas questões se tornam ainda mais prementes quando pensamos o lugar do ensino de
filosofia nas escolas e nas universidades, já que a hipervalorização de atividades mais
técnicas atacam constantemente a necessidade e a validade do estudo filosófico.
Diante deste cenário, cumpre agora pensar formas de educação que possam, talvez, não só
dialogar mas também contestar as estruturas sociais e os conceitos básicos da educação em
nossa sociedade contemporânea.
A liberdade não é somente algo presente em nossa natureza humana, liberdade da qual nos
servimos para alcançar nossa capacidade de pensar por nós mesmos. A liberdade dentro da
perspectiva anarquista está entrelaçada com um gesto de crítica social e está repleta de
intenção transformadora. Não apenas a mudança de mentalidade é necessária para que se
expanda a autonomia individual, mas também as mudanças estruturais da sociedade, de modo
que palavras e atos de se irmanam num devir fundamentalmente revolucionário.
As intenções de emancipação do ideário iluminista, que não são contestáveis em essência,
talvez não tenham resistido às contradições acima mencionadas e tenham sido
instrumentalizadas pelas leis do mercado e pelos interesses próprios à sociedade burguesa.
Isto pois
“A história nos mostra que os assim chamados sistemas públicos de ensino são bastante
recentes: consolidam-se junto com as revoluções burguesas e parecem querer contribuir para
transformar o "súdito" em "cidadão", operando a transição política para as sociedades
contemporâneas. Outro fator importante é a criação, através de uma educação "única", do
sentimento de nacionalidade e identidade nacional, fundamental para a constituição do
Estado-nação” (1996, S.Gallo )
A vinculação da educação como uma tarefa do Estado nacional estruturado pela economia de
mercado parece trazer consigo uma contradição insolúvel para uma formação que visa a
emancipação do sujeito. Esta tendência talvez se deva ao não enfrentamento contundente e
consciente das estruturas políticas e econômicas das sociedades modernas.
Silvio Gallo defende uma concepção de liberdade na educação libertária que assume ela
como finalidade do processo formativo, não como um meio, como defendem outros autores
anarquistas. Nesse sentido, a liberdade do indivíduo não é tomada como dado ou como
essência, ela é aqui entendida como o destino da atividade educacional, como uma obra
socialmente construída, como resultado de um processo gradual de aumento da autonomia.
Como citado, um aspecto fundamental da educação libertária é a ação direta. A ação direta
está vinculada com a autonomia individual e coletiva, posto que a aquisição de liberdade
implica na ação eticamente consciente para com a coletividade, com vistas a superar as
condições sociais e econômicas que restringem, subalternizam e exploram o corpo e o
espírito humano de diversas formas.
A conjugação destes elementos é fundamental para pensar uma educação que direcione para a
liberdade social e coletiva e que saia das compulsões e dominações impostas pelo mercado,
pelo Estado e pelo frenesi informático-comunicacional pós-moderno. Nesse sentido,
Bibliografia:
- HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções. Europa, 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2007 (1977).