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ISBN 978-65-87145-45-7

CONSEQUÊNCIA
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Capa-Zona-Portuária-do-Rio-de-Janeiro.indd 1 15/05/2022 11:55:05


Zona portuária do Rio de Janeiro
Múltiplos olhares sobre um espaço em mutação
LETÍCIA GIANNELLA
JOÃO CARLOS MONTEIRO
(ORGANIZADORES)

Zona portuária do Rio de Janeiro


Múltiplos olhares sobre um espaço em
mutação

CONSEQUÊNCIA
© 2022, dos autores

Direitos desta edição reservados à


Consequência Editora
Rua Alcântara Machado, nº 40, sala 202
Centro - Cep: 20.081-010
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Contato: (21) 2233-7935
ed@consequenciaeditora.com.br
www.consequenciaeditora.com.br

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação,


no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98).

Conselho editorial
Alvaro Ferreira
Carlos Walter Porto-Gonçalves
João Ferrão
João Rua
Marcelo Badaró Mattos
Márcio Piñon de Oliveira
Marcos Saquet
Martina Neuburger
Ruy Moreira
Timo Bartholl

Coordenação editorial e projeto gráfico: Consequência Editora


Revisão: Cristiane Fogaça
Diagramação: Oliveira e Filho
Edição de imagens: Diego Barreiros
Capa: Letra e Imagem
Imagem de capa: Foto da coleção "Instantes Cruzados" (2018) de Luiz Baltar

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

R425 Zona portuária do Rio de Janeiro: múltiplos olhares sobre um espaço


em mutação / organizado por Letícia Giannella, João Carlos Monteiro. -
Rio de Janeiro : Consequência Editora, 2022.
438 p. : il. ; 15,5 x 23cm.
Inclui bibliografia e índice.
ISBN: 978-65-87145-45-7
1. Geografia. 2. Zona portuária. 3. Rio de Janeiro. 4. Espaço. 5. Mutação. I. Gian-
nella, Letícia. II. Monteiro, João Carlos. III. Título.
2022-1494 CDD 910
CDU 91

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/941


SUMÁRIO

PREFÁCIO............................................................................................................ 9
Márcio Piñon de Oliveira

AGRADECIMENTOS..................................................................................... 15

APRESENTAÇÃO. Porto Maravilha 10 anos: passado, presente e futuro


da zona portuária do Rio de Janeiro............................................................... 19
Letícia Giannella e João Carlos Monteiro

CAPÍTULO 1. Zona portuária do Rio de Janeiro: entre modelos


urbanos e paradigma de requalificação.......................................................... 35
Gabriel Silvestre

CAPÍTULO 2. Uma aposta especulativa no futuro: o mercado imobiliário


comercial como âncora do projeto Porto Maravilha ................................... 67
Daniel Sanfelici

CAPÍTULO 3. Formatos institucionais e os limites redistributivos


de grandes projetos urbanos: uma análise comparada a partir
do Porto Maravilha........................................................................................... 91
Betina Sarue

CAPÍTULO 4. Passados ideais, futuros encantados: patrimonialização e


regimes de tempo no Porto Maravilha......................................................... 113
Leopoldo Guilherme Pio

CAPÍTULO 5. Quem pode falar em nome da cidade? Arquitetos e


urbanistas e as intervenções na zona portuária do Rio de Janeiro........... 139
Heitor Vianna Moura

CAPÍTULO 6. Em busca de um amanhã global: museus na regeneração


da zona portuária do Rio de Janeiro............................................................. 159
Renata Latuf Sanchez
CAPÍTULO 7. Museu do Amanhã, museu de possibilidades: arquitetura
icônica e produção neoliberal (progressista) de lugares no
Porto Maravilha............................................................................................... 183
Kevin Funk

CAPÍTULO 8. “A ver navios”: descaminhos da turistificação da zona por-


tuária do Rio de Janeiro.................................................................................. 203
João Carlos Monteiro

CAPÍTULO 9. Do porto “moderno” ao Porto Maravilha: políticas urba-


nas, habitação e o lugar dos pobres na cidade ............................................ 231
Rafael Soares Gonçalves e Mario Brum

CAPÍTULO 10. Espaço generificado em resistência pelo direito ao


espetáculo, apesar do Porto Maravilha......................................................... 257
Rossana Brandão Tavares

CAPÍTULO 11. Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de


Janeiro: um olhar a partir da perspectiva do racismo e da injustiça
ambiental.......................................................................................................... 281
Yana Moysés, Flávia Fontes Tostes e Larissa de Moura Porto

CAPÍTULO 12. "Nossos mortos têm voz": descolonização e luta


espacial antirracista na Pequena África........................................................ 309
Denilson Araújo de Oliveira

CAPÍTULO 13. Valongo, o lugar dos excluídos......................................... 329


Tania Andrade Lima

CAPÍTULO 14. Movimentos sociais na Pequena África: reflexões sobre


dinâmicas, processos e perspectivas............................................................. 345
Rita de Cássia Montezuma e Miriam Generoso

CAPÍTULO 15. Porto Maravilha: alegoria de um Brasil que se nega a


encontrar o Brasil............................................................................................ 371
Aercio Barbosa de Oliveira
CAPÍTULO 16. A cidade que atravessa....................................................... 393
Luiz Baltar

CAPÍTULO 17. Mostra Muitos Portos: o projeto como dispositivo


aberto de construção coletiva de futuros..................................................... 401
Clarissa da Costa Moreira, Fernanda Sánchez, João Carlos Monteiro,
Bárbara Lopes, Giovana Cruz, Pedro da Luz, Anna Carolina Peres,
Marina Pires e Thiago Fonseca

CODA. Porto Maravilha, um urbanismo inóspito...................................... 417


Ester Limonad

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES.................................................... 433


PREFÁCIO

Márcio Piñon de Oliveira

Chegamos ao termo do balanço crítico do nosso evento “10 anos de


Porto Maravilha: passado, presente e futuro da zona portuária”, conden-
sado neste livro. Foram quatro dias de seminário, de 23 a 26 de outubro
de 2019.
Ponto de chegada ou de partida, chegada e partida igualmente. Essa
foi a nossa “roda-gigante” durante quatro dias, não a da contemplação
da paisagem do alto, do sobrevoo do turista, de contemplação da Baía
de Guanabara e do velho porto, mas da avaliação da existência da nos-
sa raiz de cidade, nas suas entranhas, nas suas dobras, artérias e veias.
Percorremos, nesse período, o tecido urbano da zona portuária do Rio
de Janeiro, nos permitimos porosidade, reviramos a sua história, revol-
vemos suas práticas urbanas, multiplicamos nossos olhares sobre a sua
geografia.
Quem pode afirmar que a chuva acaba depois da tempestade, quem
pode afirmar que o rio acaba no mar? O fim é só aparente, o início ou
reinício é sempre iminente. E a vida na zona portuária não acabou,
como preconizavam, nem acabará pela outorga autoritária, para não di-
zer despótica, de uma operação urbana.
Movemos um pouco mais a nossa “roda-gigante” da existência, na
nossa dança dos sentidos, dizia uma amiga querida e de luta dos “qui-
lombos urbanos” de hoje.
Realizamos um pouco mais a nossa utopia experimental, onde a ci-
dade real e ideal se encontram como um nexo insolúvel, contraditório,
na metacidade, onde se encontram continuidades e descontinuidades.
As “ruínas”, ao modo benjaminiano, sobrevivem ao tempo e às intempé-
ries, com toda a sua força histórica e seus fragmentos.

9
10 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A zona portuária sobrevive e pulsa, no Cais do Valongo, na Pedra


do Sal, no Morro da Conceição, no Largo da Prainha, na Gamboa, no
Morro da Providência, no Morro do Pinto. Como na cidade de Ifé, do
Império Iorubá, a sua ancestralidade, mesmo que pisada, deita-se no
chão que subjaz no Cemitério dos Pretos Novos. Centenas de milhares
de africanos ali aportaram, em forçada diáspora, e reterritorializaram a
sua cultura, edificando a chamada “Pequena África”, berço do samba,
do lundu, da capoeira, dos terreiros de santos. A zona portuária não
morreu, ela está entranhada em toda a cidade. Quem vai aí um angu,
um cuscuz ou uma feijoada? Onde será o pagode ou o partido alto hoje?
A zona portuária e toda a sua gente vive e respira, vida e cultura, seus
bairros são espaços de raridade na cidade. Se assim não os fossem não
seriam tão disputados pelo capital, por empresas turísticas, museus e
megaeventos. Sua história está presente no aqui e no agora, mas sua ori-
gem está no nascimento da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro,
nos seus morros e no seu mar, formadores da Baía de Guanabara.
Diz-se que o morro desceu para a planície e tomou a cidade, mas só
pode descer o que já subiu e veio do alto. De fato, e literalmente, o Rio de
Janeiro nasceu nos morros e entre os morros, em meio ao mar. E a zona
portuária é parte constitutiva disso. Em consequência da ocupação da
Baía de Guanabara pelos franceses, a cidade seria fundada em 1565 por
Estácio de Sá, no Morro Cara de Cão, na entrada da baía, e, dois anos
depois, transferida para o Morro do Castelo.
Os morros, o mar e, em decorrência, o porto são categorias fundan-
tes da cidade e estão na sua certidão de nascimento. Os morros, estabe-
lecimento de edificações e vida urbana; o mar, fonte de recursos, víveres
e navegação; e o porto, ligação com outras áreas coloniais, a metrópole e
o mundo. Não há como pensar o Rio de Janeiro na sua origem sem esses
três elementos: os morros, o mar e o porto. Não há como separar a sua
história da sua geografia, dos contornos tão marcantes que a emoldura-
ram e lhe deram condições de existência.
Com o passar dos tempos, a cidade se movimentou nos e entre os
morros até começarem os seus arrasamentos, na segunda metade do
século XIX, com o Morro do Senado. Depois, vieram os desmontes do
Morro do Castelo, nos anos 1920, e o do Morro de Santo Antônio, na
década de 1950. Com o arrasamento dos morros, cria-se solo urbano
Prefácio 11

para a cidade, tomando áreas do mar, de brejos e lagoas, e efetuam-se


sucessivos aterramentos, expandindo-se a área central e o centro de ne-
gócios e serviços.
Mas se a cidade se movimentou nos morros e entre morros, e depois
entre desmontes e aterros, o porto ou a função portuária do Rio de Ja-
neiro também, com seus cais, alfândegas e armazéns. Do Cais Pharoux,
junto ao Chafariz do Mestre Valentim e o Paço Imperial (atual Praça
XV), o porto se movimentou para o Cais do Valongo (depois Cais da
Imperatriz), saltando para os trapiches da Saúde e da Gamboa, e desses
foram alçados, mediante aterro, ao novo porto – o píer da Praça Mauá,
sua alfândega e seus armazéns – construído por Rodrigues Alves, no
início do século XX. Após 1950, os armazéns se estenderam, para além
do Santo Cristo e Praia Formosa, ampliando a zona portuária até a pon-
ta do Caju.
Ao contrário do destino dos demais morros da cidade do Rio de Ja-
neiro, que foram desmontados para a promoção de aterros e reformas
urbanas, os morros do espigão rochoso da zona portuária – alvo da re-
cente operação urbana denominada Porto Maravilha –, dentre eles os
morros da Conceição, Saúde, Providência (Favela), Pinto e Santo Cristo,
resistiram e não sofreram desmontes. A população aí estabelecida, atra-
vés dos séculos, com suas moradias, deu origem, no seu conjunto, aos
bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, cristalizando-se junto à área
central. Podemos dizer, assim, que cristalização e resistência é uma das
representações presentes no imaginário social que atravessou séculos,
recompondo-se e recriando-se como espaço urbano encravado no co-
ração da cidade.
Os supracitados bairros foram os primeiros subúrbios da cidade, ar-
rabaldes imediatos, que se estendiam até as praias de São Cristóvão e
Caju, com litoral recortado por pequenas praias e enseadas, de águas
calmas e, portanto, desde o início, com nítida vocação portuária. Ainda
hoje, persiste na memória da zona portuária, entre os habitantes de seus
morros, alguns topônimos e referências às praias e aos cais ali existentes,
que perderam suas formas e funções, ao longo do tempo, mas deixaram
vestígios em suas antigas estruturas da espaço-temporalidade do Rio de
Janeiro colonial-mercantil-escravista. Poderíamos citar como exemplos
a Praia Formosa, o Largo da Prainha, a Pedra do Sal, o Cais do Valongo,
12 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

esse último pela importância ímpar no tráfego de escravos que movi-


mentou no século XIX a economia do país, com o crescimento da cida-
de-capital e expansão das atividades, após a transferência da família real
portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. A diáspora africana marcou
(e marca) fortemente a formação dos bairros da zona portuária, sua his-
tória de resistência e lutas por gerações, desde a sua ancestralidade.
Os bairros portuários e sua gente resistiram à criação da Cidade
Nova pela Comissão de Melhoramentos (na década de 1870); ao "bo-
ta-abaixo" dos cortiços e lugares insalubres, de Pereira Passos (1902-
1906); à abertura da Avenida Presidente Vargas e o fim da Praça Onze
(anos 1940), por Getúlio Vargas; à política de remoção de favelas exe-
cutada pelo governador Carlos Lacerda (na década de 1960); e, mais
recentemente, ao projeto neoliberal de cidade para o mercado mundial,
promovido através da operação urbana consorciada do Porto Maravilha
(2009), objeto do balanço crítico de nosso evento. Tal projeto/interven-
ção foi motivado/justificado como preparação da cidade aos megaeven-
tos da Copa do Mundo de Futebol de 2014 e às Olimpíadas Rio 2016.
“Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem co-
mer, que eu não mudo de opinião. Daqui do morro eu não saio não”.1
Assim dizia um velho e saudoso poeta e compositor carioca que nos
anos 1960, durante a ditadura militar, cantou esses espaços populares e
liminares de cara vitalidade urbana.
Os 10 anos do Porto Maravilha – esforço de reflexão crítica, de reen-
contro com a zona portuária, seus bairros, seu cotidiano, sua ancestra-
lidade, sua sociabilidade, sua espiritualidade, sua história e sua resis-
tência – ressalta o que há de mais genuíno e enraizado na origem desse
espaço e sua gente, a saber, a luta pelo direito à cidade, direito esse que

[...] não pode ser concebido como um simples direito de visita ou de


retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à
vida urbana, transformada, renovada (Lefebvre, 1991, p. 116-117).

1 Letra da música “Opinião”, composição de Zé Keti, que deu título ao show de mesmo
nome, estrelado por ele em 1964, ano do golpe militar no Brasil, ao lado de Nara Leão
e João do Vale.
Prefácio 13

O direito à cidade significa, portanto, a reconstituição de uma unidade


espaço-temporal, de uma reunião, no lugar de uma fragmentação. Ele
não elimina os confrontos e as lutas. Ao contrário! Essa unidade poderia
ser nomeada segundo as ideologias: o ‘sujeito’ (individual e coletivo)
numa morfologia externa que lhe permite afirmar sua interioridade – a
realização (de si, do ser) – a vida – o par ‘segurança-felicidade’ (Lefeb-
vre, 2016, p. 34).

A luta continua! Continua com toda força, aparentemente adormeci-


da, inativa. Mas quem pode dizer o que é mais importante, a expiração
ou a inspiração? O movimento ou o repouso? Não estamos mortos, nós
do porto (e do morro), nunca estivemos tão vivos! É só um estio, uma
pausa para a respiração, de tomada de ar, de reinvenção da nossa luta
por uma outra cidade! Livre, justa, diversa e democrática em sua condi-
ção de existência!
A realização deste seminário é uma prova disso! Estamos vivos! A
luta de e por um porto livre continua! Sempre! Muito Axé para todos
vocês!
Continuamos a tecer o fio das heterotopias e por espaços de espe-
rança!

Referências

LEFEBVRE, H. (1991). O direito à cidade. São Paulo: Moraes.


LEFEBVRE, H. (2016). Espaço e Política. O direito à cidade II. 2ª edição
revisada e ampliada. Belo Horizonte: Editora UFMG.
AGRADECIMENTOS

Este livro é fruto do apoio de diversas instituições e indivíduos no de-


correr dos três últimos anos, período que compreende desde os primei-
ros encontros para a organização do evento “Porto Maravilha 10 anos:
passado, presente e futuro da zona portuária” até o momento atual de
finalização desta publicação, tendo como marco central a própria reali-
zação do evento, em outubro de 2019.
Assim, gostaríamos de iniciar esta seção agradecendo às instituições
e indivíduos cujo apoio foi fundamental para esse acontecimento tão
marcante para nós. Foram contribuições generosas, acima de tudo, de
indivíduos que reconheceram a importância de realização de um de-
bate sobre os dez anos do Porto Maravilha. Ressalta-se, ainda, que os
aportes financeiros dessas mesmas instituições e indivíduos, somados,
tornaram possível a realização do evento, uma vez que não contamos
com o financiamento de agências de fomento, e tivemos como princípio
desde a sua concepção a ausência de cobranças de taxas de inscrição
para participantes.
Agradecemos, primeiramente, ao professor Márcio Piñon de Olivei-
ra, que lançou a pedra fundamental para o evento e participou ativa-
mente de todo o processo de organização, reunindo ideias, pessoas e
espalhando entusiasmo, sempre com sensibilidade, escuta e parceria.
Agradecemos também pelo belo prefácio que compõe este livro.
À professora Ester Limonad direcionamos um agradecimento espe-
cial, uma vez que seu apoio foi integral desde as primeiras reuniões,
auxiliando-nos na mobilização de recursos humanos e financeiros para
que tudo acontecesse da melhor forma possível.
A professora Anne-Marie Broudehoux, representando a Université
du Québec à Montréal, também foi essencial para a realização do even-
to, apoiando-nos incondicionalmente, mesmo a milhares de quilôme-
tros de distância.

15
16 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A FASE-Rio, nas pessoas de Aercio Barbosa de Oliveira, Bruno Fran-


ça, Rosilene Miliotti e Guilherme Pereira da Silva, participou de diversas
etapas do processo de organização do evento, atuando na mobilização
de coletivos e ativistas da zona portuária e na produção de vídeos e foto-
grafias nos dias da sua realização. Ao Aercio devemos menção especial
devido à sua atuação como curador da mostra “Porto em Cena”, mas
igualmente pelo diálogo constante, entusiasmo e reflexões permanentes
sobre os rumos e objetivos do evento.
Aos funcionários do Museu da História e Cultura Afro-brasileira,
que acreditaram no projeto e nos receberam com muito empenho e de-
dicação. Um agradecimento especial aos colaboradores Fábio Costta e
Hioran Barcala, que estiveram conosco desde o princípio, fazendo de
tudo para que o evento acontecesse da melhor forma possível.
Ao Observatório das Metrópoles, especialmente na pessoa de Or-
lando dos Santos Júnior, que se disponibilizou desde o princípio para
colaborar com a organização do evento.
Ao Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Fe-
deral Fluminense, sob a coordenação da professora Rita Montezuma,
que também esteve presente em todos os momentos.
À Escola de Arquitetura e Urbanismo e ao Programa de Pós-gradua-
ção em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense,
que, especialmente nas pessoas de Clarissa Moreira e Fernanda Sánchez,
nos apoiaram fortemente na organização e curadoria da mostra “Muitos
Portos” e das exposições fotográficas. Estendemos esses agradecimentos
aos(às) alunos(as) que participaram da mostra e da montagem das ex-
posições.
Na esteira da organização da mostra “Muitos Portos”, agradecemos
ao Sindicato dos Arquitetos do Rio de Janeiro, à seção local do Instituto
de Arquitetos do Brasil e ao Conselho de Arquitetura e Urbanismo do
Rio de Janeiro.
Aos(às) artistas e expositores(as) – Maurício Hora, Thereza Carva-
lho, Laura Burocco, Luiz Baltar, Thiago Vianna, Lizza Dias, Miriam Ge-
neroso – e a todos(as) os(as) cineastas presentes na mostra “Porto em
Cena”, que abrilhantaram os quatro dias de evento ao trazer à tona os
sonhos e a potência dos espaços vividos da zona portuária por meio da
arte.
Agradecimentos 17

Aos(às) estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade


Federal Fluminense e da Escola Nacional de Ciências Estatísticas que
voluntariamente trabalharam como equipe de apoio ao longo dos qua-
tro dias de evento. Agradecemos especialmente ao Renato Lopes, par-
ceiro incansável e sempre presente.
Aos(às) professores(as) e pesquisadores(as) que participaram das
mesas de debate e das sessões temáticas, bem como aos(às) expositores
de trabalhos, que trouxeram reflexões teórico-conceituais e análises ri-
quíssimas sobre a zona portuária. Um agradecimento especial à profes-
sora Raquel Rolnik que encontrou um espaço em sua disputada agenda
para agraciar-nos com uma potente fala de abertura do evento.
No que tange à organização do livro, agradecemos, primeiramente,
a cada autor(a) que generosamente nos brindou com reflexões e textos
inéditos e de alta qualidade.
Ao fotógrafo Luiz Baltar, pela cessão generosa das belíssimas ima-
gens que compõem o livro.
À Escola Nacional de Ciências Estatísticas, do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística. Agradecemos especialmente à Maysa Sacramen-
to de Magalhães, Coordenadora-Geral; e à Coordenação de Pós-Gra-
duação, nas pessoas de César Augusto Marques da Silva e Angelita Alves
de Carvalho. Tais parceiros não mediram esforços para possibilitar o
financiamento de boa parte desta publicação pela instituição. Possivel-
mente, não teríamos este livro hoje em mãos sem esse apoio.
Por fim, à Consequência Editora, nas pessoas de Isabella Mota e
Luís Octaviano, que foram parceiros do evento e agora, com dedicação,
profissionalismo e leveza nos permitiram ter em mãos, após esse longo
período de gestação, este livro que é fruto de muito trabalho, parceria e
esperanças.
Letícia de Carvalho Giannella
João Carlos Carvalhaes dos Santos Monteiro
APRESENTAÇÃO

Porto Maravilha 10 anos


Passado, presente e futuro da zona portuária
do Rio de Janeiro
Letícia Giannella
João Carlos Monteiro

Em 2019, o projeto Porto Maravilha completou dez anos. Anunciada


como a maior parceria público-privada da América Latina, com recur-
sos bilionários, a operação previa a transformação completa da zona
portuária do Rio de Janeiro por meio de obras viárias e de infraestrutu-
ra, da criação de equipamentos culturais e de ações sociais.
Após uma década de intervenções, quais os resultados desse mega-
projeto que prometia a “revitalização” da zona portuária?
De um lado, observa-se o despertar de manifestações individuais e
coletivas que compõem os ativismos locais, instigados tanto pela defesa
do direito à cidade e à moradia digna quanto pelo respeito à herança
africana e ao passado negro da região.
De outro, a grandiosidade das intervenções anunciadas e os impac-
tos socioespaciais que vieram na esteira das ações estimularam pesqui-
sadores das mais diversas áreas do conhecimento a buscar compreender
a implementação e os desdobramentos desse projeto.
É nesse sentido que, ao completar uma década de implementação
do projeto Porto Maravilha, propusemos a realização de um evento que
permitisse o diálogo entre os sujeitos envolvidos nessa problemática,
fossem eles acadêmicos, líderes comunitários, ativistas ou gestores pú-
blicos, com o intuito de refletir sobre o passado, o presente e o futuro da
zona portuária.

19
20 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A ideia de organizar o livro que o(a) leitor(a) tem hoje em mãos sur-
giu no decorrer da organização do evento “Porto Maravilha 10 anos:
passado, presente e futuro da zona portuária”, realizado entre os dias 23
e 26 de outubro de 2019 no edifício que abriga o Museu da História e
Cultura Afro-brasileira (Muhcab), no bairro da Gamboa.
A história da zona portuária está diretamente atrelada a aconteci-
mentos marcantes da história brasileira, e as recentes intervenções no
âmbito do projeto Porto Maravilha corroboram e reatualizam a relevân-
cia deste espaço como expressão de processos, modelos, paradigmas e
contradições que se reproduzem em escala global. Ao mesmo tempo, o
desenvolvimento urbano da zona portuária aponta para idiossincrasias
que exigem análises e respostas singulares.
O evento em questão, portanto, caracterizou-se como uma oportu-
nidade para a realização de debates críticos a respeito das transforma-
ções e rumos deste espaço tão emblemático da cidade do Rio de Janeiro.
A partir do encontro de pesquisadores(as), agentes públicos, ativistas,
artistas e representantes da comunidade, o objetivo do evento foi cons-
truir um espaço de reflexão calcado na pluralidade de ideias e na diver-
sidade social, valorizando a multidisciplinariedade.
Para além de um encontro estritamente acadêmico, o evento foi mar-
cado pela celebração das ricas manifestações culturais da zona portuá-
ria, contando com apresentações de artistas locais, como o ator e diretor
Thiago Vianna, da “Cia. de teatro do Porto”; a cantora e dançarina Lizza
Dias, que conduziu uma oficina de jongo para os participantes do even-
to; o grupo “Meninas da Gamboa”, do “Galpão Gamboa”, que apresentou
uma amostra do espetáculo “Nossas histórias”; e o coletivo “Pretitude
Territorial”.
Além das apresentações culturais, foram organizadas exposições fo-
tográficas e instalações de artistas que se relacionam de formas distintas
com a zona portuária, como Maurício Hora, Thereza Carvalho, Laura
Burocco e Luiz Baltar, este último que nos brinda com uma seleção in-
crível de fotografias que abrem cada um dos capítulos deste livro, so-
madas a um texto de sua autoria inspirador sobre a relação entre arte e
desenvolvimento urbano.
O projeto Porto Maravilha foi marcado por conflitos, violações e re-
sistências de diversas ordens. Contrapondo-se ao discurso e à propos-
Apresentação 21

ta oficial, moradores e moradoras, organizações, movimentos sociais


e integrantes de instituições acadêmicas produziram, com diferentes
meios e de diferentes formas, uma outra versão dos fatos. Entre essas
outras narrativas, destaca-se a produção de vídeos capazes de captu-
rar as contradições do projeto Porto Maravilha materializadas na vida
cotidiana da população local. Com o objetivo de exibir alguns desses
vídeos e promover um debate sobre essas produções, o evento incluiu
em sua programação a mostra Porto em Cena, que selecionou e exibiu
os seguintes vídeos: “Coautoria urbana” (Gabrielle Rocha); “Casas mar-
cadas” (Adriana Barradas, Alessandra Schimite, Ana Clara Chequetti,
Carlos R. S. Moreira “Beto”, Ethel Oliveira e Juliette Lizeray); “Território
ocupado” (Ziza Dourado e Aercio Barbosa de Oliveira); “ExPerimetral”
(Daniel Santos); e “O Rio de Janeiro continua lindo?” (Émilie B. Gué-
rette). A exibição e debates contaram com a presença dos realizadores
e realizadoras dos vídeos e constituíram-se como espaços férteis de re-
flexão e trocas.
O evento foi também um espaço facilitador da comunicação entre
moradores e ativistas locais. Nos meses que antecederam a sua realiza-
ção foram organizadas rodas de conversas, permitindo que esses repre-
sentantes contribuíssem com a concepção e desenho das atividades pro-
postas. Como um dos resultados diretos deste processo, encontra-se o
texto das autoras Rita de Cássia Montezuma e Miriam Generoso. A feira
Pretitude Territorial, descrita e analisada no texto em questão, teve um
espaço do edifício reservado para a sua instalação no decorrer de todo
o evento. Ademais, a alimentação do público do evento foi preparada e
comercializada todos os dias por moradores da Gamboa, utilizando a
cozinha e estrutura do museu para as refeições, configurando-se como
mais uma contribuição para a promoção da articulação entre partici-
pantes e entorno.
Como parte do evento, ainda, a mostra “Muitos Portos” expôs pro-
postas no campo da arquitetura e urbanismo, do design e das artes con-
cebidas por estudantes e profissionais de diferentes áreas, selecionadas a
partir de uma chamada de trabalhos. São propostas de presentes/futu-
ros alternativos para a zona portuária, que carregam como eixo central
a realização de transformações urbanas pautadas na justiça social e no
respeito à diversidade. A mostra, que contou com a curadoria de Cla-
22 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

rissa da Costa Moreira e Fernanda Sánchez, está representada no livro e


pormenorizada num dos capítulos.
Finalmente, o evento contemplou também um seminário multidis-
ciplinar de caráter acadêmico formado por seis mesas redondas e uma
roda de conversa compostas por pesquisadores(as) que realizam estu-
dos sobre a zona portuária, além de seis sessões temáticas que contaram
com uma seleção prévia de trabalhos submetidos a partir de uma cha-
mada pública. A abertura do evento contou, ainda, com a conferência
da pesquisadora Raquel Rolnik.
Este livro constitui-se, em parte, como um registro desse evento. Ele
não só nasce do processo de sua organização, mas tem como um dos
seus objetivos centrais contribuir para a construção da memória daque-
le momento que consideramos ter sido significativo para as reflexões so-
bre a zona portuária da cidade. Assim, foram convidados(as) para esta
publicação todos(as) os(as) pesquisadores(as) que participaram das me-
sas de debate e roda de conversa. Ademais, foram selecionados alguns
textos submetidos e apresentados nas sessões temáticas cuja qualidade
da forma e conteúdo, bem como possíveis implicações teóricas, técnicas
e políticas, requeriam, segundo o nosso entendimento, a oportunida-
de de torná-los mais amplamente disseminados. Complementarmente,
como dito acima, contamos também com a colaboração do fotógrafo
Luiz Baltar e da equipe organizadora da mostra “Muitos Portos”.
De outra parte, porém, o livro expande-se para além do evento. Con-
sideramos esse encontro de saberes, reflexões e questionamentos que
foi o seminário um ponto de partida e uma oportunidade para que pu-
déssemos, nesta publicação, reunir pesquisadores(as) que tem dedicado
parcelas das suas trajetórias acadêmicas e de vida à compreensão e in-
tervenção sobre esse espaço paradigmático da cidade. Assim, buscamos,
com a organização deste livro, estabelecer um horizonte de debates para
pensar sobre as transformações, os rumos e os projetos de outros futu-
ros para a zona portuária que, como o próprio título do livro nos diz,
encontra-se em permanente mutação.
Inúmeros relatórios, teses e artigos sobre o Porto Maravilha foram
produzidos na última década, frequentemente em estreita colaboração
com os atores locais, subsidiando os ativismos e contribuindo para des-
velar os processos em curso. A partir de convites a pesquisadores de di-
Apresentação 23

ferentes áreas do conhecimento, esta publicação foi uma oportunidade


de reunirmos tais estudos que se encontravam dispersos.
A estruturação da diversidade e riqueza de temas e abordagens pre-
sentes nos textos dentro de uma sequência lógica ou mesmo a divisão
dos mesmos em blocos tornou-se um grande desafio para os organiza-
dores deste livro. Há um permanente entrecruzar-se de reflexões entre
os textos que tornam o livro um grande conjunto articulado. Ainda as-
sim, foi possível identificar linhas sutis que atravessam os artigos, possi-
bilitando a organização do livro segundo a seguinte sequência.
O livro inicia-se com o capítulo de autoria do professor Gabriel Sil-
vestre, “Zona portuária do Rio de Janeiro: entre modelos urbanos e
paradigma de requalificação”. Silvestre promove uma discussão funda-
mental sobre as propostas que vieram se desenhando para a renovação
da zona portuária desde os anos 1980, até culminar no Porto Maravilha.
Neste percurso, o autor relaciona tais propostas aos modelos globais de
desenvolvimento a partir dos Grandes Projetos Urbanos e questiona se
o modelo estabelecido com o Porto Maravilha teria se tornado um novo
paradigma de requalificação.
O capítulo seguinte, “Uma aposta especulativa no futuro: o merca-
do imobiliário comercial como âncora do projeto Porto Maravilha”,
de Daniel Sanfelici, traz para o debate a dimensão da financeirização
urbana envolvida no projeto Porto Maravilha a partir dos empreendi-
mentos imobiliários comerciais. O professor conclui que a operação
se constituiu em uma aposta especulativa que, até o momento, acabou
sendo frustrada, transferindo o ônus da operação a diversos agentes, e
propõe, a partir de tais conclusões, linhas básicas sobre as quais as po-
líticas de renovação urbana devem se basear para atender aos anseios e
necessidades da população local.
Betina Sarue contribui com o capítulo “Formatos institucionais e
os limites redistributivos de grandes projetos urbanos: uma análise
comparada a partir do Porto Maravilha”. Resultado de uma pesquisa
de fôlego no campo da Ciência Política, a exposição da autora evidencia
as estratégias e articulações institucionais no âmbito do Porto Maravilha
a partir de uma perspectiva comparada com as experiências de Londres
e São Paulo. São colocadas em tela, assim, as implicações das diretrizes
políticas e institucionais sobre o planejamento urbano e sobre a lógica
24 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

de valorização crescente da terra, resultando em profundos déficits re-


distributivos.
Consideramos que esses três primeiros capítulos possuem como fio
condutor comum a pormenorização do mecanismo de estruturação e
funcionamento do projeto Porto Maravilha, suas articulações institu-
cionais e econômicas, bem como os paradigmas e modelos que orien-
tam a sua concepção. Além disso, os textos apresentam os limites de tais
mecanismos, evidenciando a injusta distribuição dos ônus advindos da
operação.
Os quatro capítulos seguintes orientam-se por uma perspectiva de
análise atravessada pela dimensão do patrimônio e turismo na zona
portuária, vinculando-se mais especificamente ao projeto Porto Mara-
vilha.
O capítulo de Leopoldo Guilherme Pio, “Passados ideais, futuros
encantados: patrimonialização e regimes de tempo no Porto Mara-
vilha”, aborda a necessidade de vincular as narrativas sobre a história
e a memória da zona portuária, construídas/acionadas no contexto do
projeto Porto Maravilha, às relações de poder presentes no processo de
patrimonialização. O autor coloca luz à seguinte questão: quais são os
enquadramentos da memória promovidos pelo Porto Maravilha, isto é,
o que deve ser preservado, disciplinado e transformado na zona por-
tuária da cidade? A conclusão a que Pio chega é que a memória carrega
ambiguidades e, portanto, está em permanente disputa. Assim, é preciso
compreender que legados e ruínas a patrimonialização daquele espaço
pelo Porto Maravilha teria nos deixado.
Em seguida, na esteira das discussões a respeito do patrimônio no
campo urbanístico, Heitor Vianna Moura, em seu capítulo “Quem
pode falar em nome da cidade? Arquitetos e urbanistas e as inter-
venções na zona portuária do Rio de Janeiro”, coloca em evidência
o papel das associações de arquitetos e urbanistas, como o Instituto
de Arquitetos do Brasil, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo e o
Instituto Rio Patrimônio da Humanidade na definição dos rumos para
a zona portuária desde as primeiras tratativas para a sua requalificação
até o Porto Maravilha. O autor apresenta as possibilidades e impossi-
bilidades de intervenção desses profissionais no âmbito da construção
e implementação dos projetos urbanísticos, mostrando em que mo-
Apresentação 25

mentos se tratam de perspectivas articuladas ou não às demandas da


população local.
Renata Latuf Sanchez, no capítulo “Em busca de um amanhã glo-
bal: museus na regeneração da zona portuária do Rio de Janeiro”,
promove uma análise sobre o papel dos museus no chamado urbanismo
estratégico, trazendo para o debate a proposta fracassada de construção
de uma filial do Museu Guggenheim, apresentada em 2003, e a instala-
ção do Museu de Arte do Rio e do Museu do Amanhã, já no contexto
do Porto Maravilha. Tais equipamentos culturais, em linhas gerais, ao
mesmo tempo em que conferem legitimidade e aceitação da população
em geral em relação às transformações urbanísticas, podem gerar frag-
mentações urbanas e acentuar conflitos sociais e territoriais. Entretanto,
Sanchez aponta para implicações distintas no território entre a proposta
do Museu do Amanhã, que carregaria em si objetivos mais mercadoló-
gicos, voltados a discussões globais, e a proposta do Museu de Arte do
Rio, que até o momento parece ter tido mais êxito em relação à aproxi-
mação das necessidades e histórias locais.
Na trilha das pesquisas envolvendo o papel dos museus vinculados
ao Porto Maravilha, encontra-se o inovador capítulo do pesquisador
Kevin Funk, “Museu do Amanhã, museu de possibilidades: arquite-
tura icônica e produção neoliberal (progressista) de lugares no Porto
Maravilha”. Funk elege como foco da sua análise o Museu do Amanhã,
inserindo-o primeiramente como estratégia de transformação do Rio de
Janeiro em uma cidade global através da iconicidade. Todavia, a análise
de Funk não para aí. Seu olhar se direciona à função do museu – que
tem entre seus patrocinadores a Fundação Roberto Marinho, o Banco
Santander e a petrolífera Shell – como produtora de uma sensibilidade
neoliberal (progressista) a partir das narrativas vagas a respeito da de-
sigualdade e degradação ambiental. Narrativas que não se propõem a
revelar as estruturas de poder que impedem mudanças significativas,
“obscurecendo as causas político-econômicas de como chegamos aqui,
e/ou meramente nos deprimindo sem oferecer um caminho para o fu-
turo”.
Finalizando este segundo bloco, o capítulo “'A ver navios’: desca-
minhos da turistificação da zona portuária do Rio de Janeiro”, de
autoria do pesquisador João Carlos Monteiro, inverte a perspectiva
26 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

dos capítulos anteriores, ao mostrar o avesso do “sucesso” do Museu


do Amanhã. Embasado em visitas de campo e entrevistas qualitativas,
o autor aponta para os indícios de “naufrágio” do Porto Maravilha em
seu intuito de converter a zona portuária em um cluster turístico glo-
bal. Suas conclusões derivam da análise de três iniciativas distintas de
turistificação daquele território: o turismo diaspórico em torno da va-
lorização da cultura e memória afro-brasileira no Cais do Valongo; o
turismo em favela no Morro da Providência; e o Boulevard Olímpico,
inspirado em fórmulas difundidas internacionalmente de renovação de
waterfronts. Embora a zona portuária pareça ter se tornado um polo
de atração turística para visitantes domésticos, as projeções dos pro-
motores do Porto Maravilha em relação à sua internacionalização não
se efetivaram. Com isso, trabalhadores com expectativa de obter algum
bônus com as transformações urbanísticas da zona portuária permane-
cem “a ver navios”.
Os quatro capítulos seguintes compõem um bloco de reflexões que
começa a trazer para o centro do debate os processos históricos de des-
territorialização – em suas diversas dimensões – associados às políti-
cas urbanas voltadas para a zona portuária desde o período colonial.
Articuladas às perspectivas sobre as múltiplas violações trazidas pelo
desenvolvimento urbano ao longo da história, são abordadas também
as variadas formas de resistência construídas por múltiplos sujeitos que
veem suas vidas transformadas por esse processo. A Pequena África en-
tra em cena e os corpos negros e periféricos tornam-se protagonistas.
E assim são colocadas as potências para um devir descolonizador que
aponta para outros futuros possíveis para a zona portuária do Rio de
Janeiro.
No capítulo “Do porto 'moderno' ao Porto Maravilha: políticas
urbanas, habitação e o lugar dos pobres na cidade”, Rafael Soares
Gonçalves e Mario Brum abrem essas reflexões ao abordarem o proces-
so de desenvolvimento urbano da zona portuária a partir de três marcos
principais: as reformas empreendidas no início do século XX; as inter-
venções vinculadas ao Porto Maravilha; e o intervalo entre essas duas
grandes intervenções. Analisando as semelhanças entre esses momen-
tos, os autores evidenciam uma característica central que os atravessa,
qual seja, a “falta de uma política habitacional consistente em conso-
Apresentação 27

nância com um planejamento urbano adequado e democrático à área”,


acrescida por uma sistemática expulsão de moradores, principalmente
negros e pobres.
Seguindo a trilha dos debates que envolvem a questão habitacional
na zona portuária, o capítulo de Rossana Brandão Tavares, “Espaço ge-
nerificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto
Maravilha”, ocupa-se em analisar o processo de resistência contra as
remoções no Morro da Providência, no contexto do programa Morar
Carioca. O lócus de enunciação de Tavares parte da experiência junto
ao Fórum Comunitário do Porto, a partir da qual sobressaíram-se as
lutas das mulheres moradoras da favela, cujos corpos foram colocados
em cena no enfrentamento às políticas remocionistas. Apoiada nessa
experiência e na articulação entre teorias sobre o espaço urbano e abor-
dagens interseccionais das teorias feministas, a autora promove uma
análise sensível e potente sobre espaços generificados em resistência
contra um “projeto urbano que suspende corpos não aderentes à paisa-
gem social hegemônica e heteropatriarcal, racista e colonizada”.
Yana Moysés, Flávia Fontes Tostes e Larissa de Moura Porto, pes-
quisadoras atuantes no campo da Engenharia Ambiental e Sanitária,
trazem ao livro uma contribuição direcionada especialmente aos téc-
nicos, estudantes e investigadores das engenharias como um todo.
O capítulo “Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Ja-
neiro: um olhar a partir da perspectiva do racismo e da injustiça
ambiental” convoca este público a refletir sobre as implicações so-
cioambientais – especialmente para a população pobre e negra – de
discursos e práticas técnicas dissociadas de visões holísticas (e polí-
ticas) sobre o território. A argumentação das autoras é construída a
partir de uma análise histórica do desenvolvimento urbano da zona
portuária, identificando a ancoragem das intervenções urbanas em
discursos sanitaristas e, no contexto do Porto Maravilha, no ideário
do desenvolvimento sustentável. Todavia, tais intervenções teriam,
na prática, instaurado um processo histórico de racismo e injustiça
ambiental no território em questão. Questiona-se, assim, se o projeto
Porto Maravilha seria, tal como é veiculado, um projeto verdadeira-
mente sustentável. Como desdobramento da análise, as autoras dis-
correm também sobre os processos de r-existência às variadas formas
28 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

de opressão que podem resultar de intervenções urbanas pautadas em


discursos com forte capacidade de legitimação social.
O capítulo “'Nossos mortos têm voz': descolonização e luta espa-
cial antirracista na Pequena África”, de Denilson Araújo de Oliveira,
promove uma análise sobre a inscrição espacial do racismo e da luta
antirracista na Pequena África. Mergulhado nas disputas de sentido
travadas pelo Movimento Negro em torno das escavações do Cais do
Valongo e seus desdobramentos sociopolíticos, o texto evidencia, de um
lado, as formas de gestão racista do espaço, cujo objetivo é construir um
imaginário de “confinamento, interdição, controle e constrangimento
na produção, apropriação e uso do espaço pelos/dos negros”, e, de ou-
tro lado, as estratégias antirracistas que afirmam o conteúdo diaspórico
presente nas formas espaciais da zona portuária, politicando a produção
do espaço por meio da produção de “outras políticas de memória”. Sua
abordagem nos provoca a refletir sobre a necessidade de descolonizar o
espaço e as lutas empreendidas neste sentido. Para Oliveira, “descoloni-
zar é recuperar e (re)criar as agências negras na produção do espaço”,
desafio que se apresenta de forma urgente no contexto brasileiro atual,
onde o racismo estrutural parece estar sendo reatualizado de forma
atroz.
O texto de Oliveira abre passagem para os próximos e últimos capí-
tulos do livro que, juntos, conformam uma reunião de ensaios onde são
colocadas reflexões que apontam para a construção de agendas neces-
sárias de investigação e atuação militante na zona portuária. Trata-se de
capítulos mais desatados do rigor da escrita acadêmica, porém prenhes
de provocações fundamentais sobre os rumos e as potências desse espa-
ço paradigmático para as lutas urbanas no país, quiçá no mundo.
Tendo ministrado uma comovente palestra no evento, a arqueóloga
Tania Andrade Lima contribui com a publicação a partir do texto “Va-
longo, o lugar dos excluídos” que, em parte, compreende a transcri-
ção da sua fala em outubro de 2019. Seu relato expressa as expectativas,
frustrações e aprendizados florescidos no decorrer da sua atuação como
pesquisadora da equipe de investigação arqueológica sobre o Cais do
Valongo. Lima discorre sobre a relação entre as escavações do cais, um
“lugar de memória sensível que evoca um passado doloroso, pesado e
opressor”, e a dinâmica da sua apropriação como forte referência simbó-
Apresentação 29

lica pelo movimento negro em sua luta por reconhecimento, reparação


e justiça. Trata-se de uma relação que gerou expectativas, frustrações,
mas, acima de tudo, aprendizados, na medida em que foi o uso do cais
como referente espacial para manifestações da religiosidade afro-brasi-
leira que despertou na autora o entendimento de que o cais é um lugar,
acima de tudo, sagrado. Após as reflexões sobre os dez anos decorridos
entre o início das escavações e o evento em questão, a arqueóloga con-
clui que é “fundamental encorajar a aquisição, pelos negros, das ferra-
mentas necessárias para a construção da sua própria história através da
arqueologia”.
Em “Movimentos sociais na Pequena África: reflexões sobre dinâ-
micas, processos e perspectivas”, Rita de Cássia Montezuma e Miriam
Generoso direcionam nosso olhar para algumas mobilizações e iniciati-
vas que se desenharam na Pequena África no decorrer da última década.
Montezuma e Generoso são mulheres negras com inserções distintas
na zona portuária, que se encontraram no seio das lutas por repara-
ção e justiça. O ensaio das autoras e ativistas, que, conforme dito ante-
riormente, também é fruto da dinâmica de organização e realização do
evento, carrega como premissa fundamental a consideração da Pequena
África – que compreende e ultrapassa a zona portuária – como um ter-
ritório negro que mantem pulsante as forças ancestrais. Baseadas, assim,
nas escrevivências de Conceição Evaristo, as autoras discorrem sobre
suas trajetórias individuais e coletivas no território, apresentando ao(à)
leitor(a) movimentos sociais diversos com os quais estiveram envolvi-
das na última década. Para as autoras, a Pequena África desde sempre
foi marcada por movimentos, organizações e estratégias de resistência,
tanto aquelas expressas em revoltas quanto aquelas “cotidianas, persis-
tentes e aglutinadoras” que atuam em diversas dimensões “frente a um
poder estatal que nega e/ou subtrai direitos”. Assim, conforme o texto é
concluído, somos colocados frente aos desafios dessa caminhada, mas
também somos apresentados à necessidade vital da população negra de
lutar e resistir, pois, como as autoras reiteram, “a vida não permite o
lento caminhar” (Conceição Evaristo).
O ensaio de Aercio Barbosa de Oliveira, “Porto Maravilha: alegoria
de um Brasil que se nega a encontrar o Brasil”, parte de uma provo-
cação epistemológica e ontológica: talvez mais do que nunca, no Brasil,
30 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

em tempos sombrios como o que vivemos atualmente, e onde a palavra


de ordem parece ser a “retomada”, a tarefa de construir molduras inter-
pretativas próprias para a solução dos nossos imensos problemas apre-
senta-se como um desígnio urgente. O Porto Maravilha aparece, aqui,
como uma alegoria, um elemento que evidencia a “repetição da miséria
intelectual de uma elite que vive de cócoras para as classes dominan-
tes internacionais”. Oliveira direciona sua provocação especialmente
para os jovens estudantes, clamando pela busca de teorias que possam
encontrar a sociedade brasileira em seus próprios termos, e retoman-
do esforços intelectuais que teriam sido abandonados – com exceções,
naturalmente – a partir especialmente dos anos 1980. “Como explicar
tanta solidariedade e violência? Como é possível, explicável, brotar tanta
criatividade no meio de tanta miséria? Como se suporta tanta contradi-
ção?” são questões fundamentais para delinear esta tarefa. Todos estão
convidados!
O livro chega ao fim com três textos especiais que se entrelaçam com
todo o conjunto da publicação. “A cidade que atravessa”, do fotógrafo
Luiz Baltar, que gentilmente nos cedeu as fotografias para a capa do livro
e abertura dos capítulos, é um texto cuja tessitura está na dimensão dos
espaços vividos e representados por Baltar. Em poucas páginas, o fotó-
grafo consegue expressar a vida cotidiana da cidade do Rio de Janeiro,
seus elementos estéticos e contradições. Seu texto promove uma costura
entre arte e espaço urbano que se coloca com força política e estética, na
medida em que, a partir da sua trajetória como fotógrafo, que se inicia
retratando mobilizações populares diversas, Baltar vai adentrando os
espaços da fotografia com reflexões potentes sobre a cidade.
Em seguida, o(a) leitor(a) encontrará o já citado conjunto de proje-
tos nos campos da arquitetura e urbanismo e design selecionados para
a mostra Muitos Portos, que aconteceu durante o evento. Na mesma
seção, os pesquisadores Clarissa da Costa Moreira, Fernanda Sánchez,
João Carlos Monteiro, Bárbara Lopes, Giovana Cruz, Pedro da Luz,
Anna Carolina Peres, Marina Pires e Thiago Fonseca, com o texto “Mos-
tra Muitos Portos: o projeto como dispositivo aberto de construção
coletiva de futuros”, nos brindam com uma análise do processo de or-
ganização da mostra e seus resultados, despertando-nos para possíveis
futuros para a zona portuária.
Apresentação 31

Por fim, o texto da professora Ester Limonad, "Porto Maravilha, um


urbanismo inóspito" cumpre o papel de fechamento (relativo) das re-
flexões presentes no livro ao discutir o caráter altamente seletivo confe-
rido aos espaços públicos no contexto da neoliberalização urbana, que
resulta na constituição de cidades com paisagens homogênas, repeti-
tivas e indistintas, destituídas de identidade e memória. Assim, tendo
o Porto Maravilha como exemplo paradigmático, a autora discorre so-
bre a tomada das cidades pelo espaço abstrato do capital e do Estado,
que impossibilita o florescimento dos elementos e processos mais caros
à urbanidade: o encontro, a festa, a diversidade, a criação... Por outro
lado, Limonad apresenta as diversas formas de reapropriação do espaço
público sendo construídas como forma de tensionamento frente à pre-
sença de objetos de design urbano hostil, levando-nos a refletir sobre a
emergência de múltiplas formas de luta pelo espaço na cidade contem-
porânea.
33
Foto: Perimetral, Luiz Baltar
CAPÍTULO 1

Zona portuária do Rio de Janeiro


Entre modelos urbanos e paradigma de requalificação
Gabriel Silvestre

Introdução

Ao longo de sua história, diversos modelos urbanísticos foram propos-


tos para a modernização da zona portuária do Rio de Janeiro. Guarda-
das suas diferenças quanto às técnicas, agentes e níveis de investimento,
em comum argumentou-se a necessidade em adequar-se às demandas
externas. Dentre estas, destacam-se o desenvolvimento da infraestru-
tura portuária para melhor servir o comércio marítimo internacional
e competir com outros portos regionais como os de Buenos Aires e
Montevidéu no início do século passado (Abreu, 2008), assim como
responder, ao final daquele século, aos imperativos da globalização e
dotar seu espaço com o mais avançado em tecnologia da informação
e torres corporativas para atrair investimentos e empresas multinacio-
nais. Longe de serem discussões meramente técnicas, estas promoviam
uma transformação radical em grande escala que reimaginava a paisa-
gem portuária com novos usos e funções. Assim, o porto era visto como
uma oportunidade para uma operação de tábula rasa a dar lugar a um
cenário de modernidade (Moreira, 2004). Frequentemente, a inspira-
ção para estas propostas vinha de fora: world trade centers como nas
cidades norte-americanas, teleportos japoneses, e museus de inspiração
europeia. Cada modelo era referendado pelos feitos alcançados em seus
territórios de origem e apoiados por redes de saberes sustentadas por
profissionais, agências multilaterais, promotores imobiliários, consul-
tores e figuras de renome capazes de mobilizar, traduzir, e adaptar o

35
36 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

conhecimento necessário para sua reprodução. Após inúmeros ensaios,


o atual projeto de requalificação urbana, o Porto Maravilha, conseguiu
alinhar vontade política, interesse do capital privado e instrumentos de
planejamento para uma operação em grande escala. Ainda que marcado
por escândalos de corrupção envolvendo o parceiro privado, políticos e
a Caixa Econômica Federal em seu financiamento (MPF, 2018), o proje-
to passou a circular como paradigma de Operação Urbana Consorciada
para outras cidades brasileiras.
Este capítulo examina a passagem da zona portuária de destino de
ideias para referencial de Grande Projeto Urbano. Em particular, exami-
na-se o período desde a década de 1980, quando se acumularam estu-
dos, propostas e planos, do megalomaníaco ao possível, que sedimenta-
ram conhecimentos sobre programas de requalificação de grande porte.
De forma não linear, as propostas feitas por diversos grupos privados,
políticos e técnicos, demarcaram uma perspectiva sobre a condição
existente da região, seus problemas e abordagens para sua transforma-
ção. Uma análise longitudinal permite identificar como questões fun-
diárias, institucionais e de financiamento foram entendidas e finalmente
articuladas no projeto atual. A primeira seção discute o marco teórico
sobre Grandes Projetos Urbanos e a perspectiva relacional sobre trans-
formações urbanas, destacando a circulação de modelos e políticas, seus
agentes e processos. A seguir é apresentada a análise do recorte históri-
co entre o final da década de 1970 e 2000 quando diferentes propostas
foram apresentadas. A seção seguinte analisa os referenciais utilizados
na concepção do projeto Porto Maravilha e sua incipiente constituição
como paradigma de requalificação urbana para outras cidades brasilei-
ras. Finalmente, apresenta-se a conclusão com a retomada da discussão
teórica inicial e reflexões sobre a trajetória de políticas para a zona por-
tuária do Rio de Janeiro.

Grandes Projetos Urbanos e modelos de requalificação

Os Grandes Projetos Urbanos (GPUs) contemporâneos atraem a aten-


ção de analistas, em parte, por sua dinâmica relacional entre as escalas
de produção local e global: processos globais de circulação de modelos
Zona portuária do Rio de Janeiro 37

urbanos influenciam políticas locais que, por sua vez, remodelam a


forma como a primeira é conceituada e compreendida antes de ser no-
vamente reforçada em outro lugar. Como “mecanismos por excelência
por meio dos quais a globalização se torna urbanizada” (Moulaert et
al., 2003, p. 3), a “nova onda” de GPUs visa grandes áreas “obsoletas”
de localização central nas cidades para uma transformação estrutural
caracterizada por usos mistos que combinam habitação, empreendi-
mentos comerciais, lazer e áreas naturais (Diaz Orueta e Fainstein,
2008; Lehrer e Laidley, 2008). Apoiado pela atuação de incorporado-
ras multinacionais, consultorias, escritórios globais de arquitetura,
planejamento e engenharia, agências multilaterais e redes de cidades,
discursos e imagens de paisagens icônicas e cosmopolitas são promo-
vidas e circulam internacionalmente incentivando o aprendizado e
a reprodução de mecanismos de planejamento, financiamento e go-
vernança (Sánchez, 2003). Os programas de requalificação de frentes
marítimas são exemplos paradigmáticos de GPUs e sua “semelhança
notável entre si, sugere que uma fórmula ou ‘receita instantânea’ de
requalificação urbana está sendo seguida” (Brownill, 2013, p. 45). A
análise crítica sobre GPUs ressalta a mobilização de altos volumes de
investimento público em projetos imobiliários especulativos, a falta
de transparência nos arranjos de governança, a “excepcionalidade” em
torno dos processos de planejamento, a privatização do espaço urbano
e o agravamento das desigualdades sociais (Cuenya et al., 2012; Swyn-
gedouw et al., 2002). Os GPUs, são, portanto, vistos como veículos do
urbanismo neoliberal e do desenvolvimento espacial desigual (Peck et
al., 2009).
Uma qualidade estratégica dos GPUs reside em seus efeitos de ima-
gem. Empreendimentos emblemáticos – muitas vezes fazendo uso de
ícones arquitetônicos e de “arquitetos de grife” – são empregados como
símbolos de programas mais amplos de forma a conferir uma identida-
de instantânea e reconhecível globalmente (Sklair, 2017). No entanto,
como Harvey (1989, p. 10) afirmou décadas atrás, o que tende a ser visto
é a “reprodução repetitiva e serial de certos padrões de desenvolvimento
(como a reprodução em série de world trade centers ou de novos centros
culturais e de entretenimento, de construções à beira do mar ou do rio,
de shopping centers pós-modernos etc.)”.
38 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Sob a justificativa de “revitalizar” espaços urbanos degradados em


áreas de “nível internacional”, estes padrões de intervenção obedecem “à
visão de mundo daqueles que, ao se imporem como atores dominantes
nos processos de produção do espaço, passam também a ocupar posição
privilegiada para dar conteúdo ao discurso sobre o espaço” (Sánchez e
Moura, 1999, p. 97). Deste modo, experiências mobilizadas como “boas
práticas” tornam-se modelos a serem estudados e potencialmente re-
produzidos, despidos de seu complexo contexto político e social para
fins de maior circulação e alcance (Vainer, 2014).
A análise crítica sobre como certas “políticas atingem o status de
‘modelos’ ou objetos de reprodução” (Peck e Theodore, 2010, p. 170)
tem sido o foco da literatura sobre circulação de políticas, uma pers-
pectiva que transcende os debates sobre GPUs. Em particular, há ênfa-
se na agência e no papel dos “mobilizadores de políticas” e “agentes de
transferência” (McCann, 2011) na facilitação da circulação e troca de
conhecimento entre as cidades. Isso inclui categorias como consultores
internacionais (Prince, 2014), arquitetos, engenheiros e planejadores
(Larner e Laurie, 2010), grupos imobiliários (Grubbauer, 2015), “gurus”
e “embaixadores” de políticas (McCann, 2013; Porto Oliveira, 2016),
e instituições internacionais posicionadas como centros de referência
para políticas específicas (Peck e Theodore, 2015).
Embora a análise sobre o papel de tais intermediários seja crucial para
entender como certas ideias de políticas adquirem “licença para viajar”
(Pow, 2014), destacamos a importância de analisar a atuação de agentes
locais que também estão inseridos em redes distintas e desempenham ta-
refas importantes na tradução, promoção e negociação necessárias antes
que uma determinada política seja reproduzida (Silvestre, 2021; Silvestre
e Jajamovich, 2021; Temenos e McCann, 2012). Isso requer uma análise
longitudinal mais ampla que o período imediato que cerca a implementa-
ção de uma política. Estudos recentes têm se engajado criticamente com
o aspecto temporal da formulação de políticas, relativizando análises pre-
maturas quanto ao “sucesso” ou “fracasso” de políticas e demonstrando os
efeitos contínuos, incrementais e “ausências presentes” de políticas que,
embora não venham a se materializar em um primeiro momento, podem
ter implicações em como temas serão debatidos e analisados (Baker e Mc-
Cann, 2020; Robin e Nkula-Wenz, 2021; Ward, 2018). Ao acompanhar a
Zona portuária do Rio de Janeiro 39

trajetória de uma política a longo prazo, independentemente de seu re-


sultado inicial, é possível analisar como esta é transformada ou ressigni-
ficada ao longo do tempo, com efeito sobre políticas futuras. As seções a
seguir examinam as diferentes propostas e modelos para a requalificação
da zona portuária do Rio de Janeiro nas últimas quatro décadas. O obje-
tivo é explicitar os agentes envolvidos no processo, os referenciais de ur-
banismo mobilizados e os encadeamentos entre os eventos, não lineares,
que vieram a resultar no projeto Porto Maravilha.

Modelos para a zona portuária

As dificuldades em adaptar o porto do Rio de Janeiro à nova tecnologia de


operação de contêineres a partir da década de 1970 e a construção do Por-
to de Itaguaí em 1982 levaram ao declínio das atividades portuárias e ao
abandono da paisagem urbana. Planos de requalificação foram produzi-
dos em série, mas não foram capazes de superar os conflitos de interesses
públicos, a resistência institucional por parte da autoridade portuária e a
demanda insuficiente de investidores privados. Em comum, estas propos-
tas apontavam a obsolescência da zona portuária e argumentavam a ne-
cessidade em aprender com experiências internacionais de recuperação
de frentes marítimas. Durante este período, diversos modelos urbanísti-
cos foram mobilizados, assim como foram firmados acordos de coope-
ração internacionais, e circularam arquitetos e promotores imobiliários
estrangeiros. Uma análise das propostas elaboradas entre as décadas de
1980 e 2000 é relevante para explicitar como os desafios foram identi-
ficados, interesses articulados e modelos de intervenção propostos. Es-
tas experiências sedimentaram aprendizados, tanto por parte dos órgãos
públicos como por interesses privados que influenciaram no desenho do
projeto Porto Maravilha décadas mais tarde.

As propostas dos grupos empresariais

No final da década de 1970 e durante a década de 1980, empresários


locais propuseram uma série de visões e planos para reverter o declí-
40 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

nio econômico da cidade e do estado por meio de uma maior inserção


da região nos fluxos financeiros globais. Em 1979, com a nomeação do
industrialista Israel Klabin para a prefeitura, anunciou-se um plano
para criar um centro financeiro internacional, que retomava estudos
anteriores com referências a Nova York e Cingapura. O plano Rio-Dó-
lar propunha a criação de uma zona econômica especial com incenti-
vos fiscais para os bancos estrangeiros que na época tinham restrições
para operar no país.1 A ideia foi continuada por uma articulação de
empresários autodenominada Clube do Rio, que se apresentava como
um lobby do estado por políticas de desenvolvimento regional, porém,
não prosperou.2 No entanto, o grupo constituiu uma empresa de cap-
tação de investimentos para projetos indutores de desenvolvimento,
como a criação de um Centro de Comércio Internacional a ser cons-
truído na zona portuária, que servisse como showroom de produtos
de exportação nacionais.3
Tendo a Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) como es-
paço de articulação, este grupo promoveu ao longo da década de 1980,
uma série de eventos, como as semanas “Rio Internacional”, na qual fo-
ram promovidos, entre outras propostas, projetos para a requalificação
da zona portuária à luz de experiências internacionais. Por exemplo, ao
anunciar um concurso nacional urbanístico em 1982, especificou-se:

O projeto exige a criação de um showroom, hotéis projetados exclusiva-


mente para executivos ligados ao comércio de exportação-importação,
centro de comércio internacional, áreas de lazer, shoppings, marina,
aquário, museu, e preservação de áreas habitacionais ligadas intima-
mente a este conjunto, nos moldes do que conseguiu realizar, recente-
mente o Porto de Baltimore, nos EUA.4

1 “Klabin explica sua viagem aos correspondentes estrangeiros no Rio”, Jornal do Brasil,
25 mai. 1979, p. 7.
2 “Empresários planejam Clube do Rio para evitar esvaziamento”, Jornal do Brasil, 14
dez. 1980, p. 40.
3 “Empresário quer reurbanizar o Porto do Rio”, Jornal do Brasil, 17 out. 1982, p. 36.
4 “Rio Internacional teve 34 eventos que reuniram 100 mil participantes”, Revista da
Associação Comercial do Rio de Janeiro, 43, n. 1180, 1982, p. 4-15.
Zona portuária do Rio de Janeiro 41

O concurso acabou por não ocorrer, porém a ideia de reproduzir


experiências internacionais seria reiterada nos anos seguintes. Em ma-
téria do jornal O Globo sobre a proposta da ACRJ para promover uma
“reciclagem urbanística” no cais do porto, Praça XV e Praça Mauá, além
dos bairros da Gamboa, Santo Cristo e Saúde, especulou-se:

Se depender da ACRJ, a reurbanização teria como modelo o projeto im-


plantado em Londres, onde os prédios antigos da zona portuária foram
aproveitados para a instalação do World Trade Center, que abrange um
hotel de primeira classe, restaurantes e boates de luxo, áreas de lazer e
centros de cultura.5

Durante estes anos, diversos profissionais e promotores imobiliá-


rios foram consultados para fomentar a discussão, desde os arquite-
tos Jaime Lerner e John Portman, como o promotor imobiliário James
Rouse, responsável pelo projeto de Baltimore, nos Estados Unidos. A
proposta de requalificação em grande escala ganhou nova visibilidade
em 1985, quando o conceito de Teleporto de Tóquio foi apresentado,
“um complexo portuário com avançada tecnologia de telecomunica-
ções com transmissão de informações via satélite, ligando a cidade
ao mundo e permitindo maior eficiência e rapidez no comércio exte-
rior”.6 Um masterplan e uma maquete foram apresentadas na Semana
Internacional do Rio (Figuras 1 e 2) elaboradas por uma consultoria
japonesa que previa um centro internacional de comércio, centro de
conferência, área central de telecomunicações e energia, um passeio à
beira-mar, o uso de carros elétricos, um trem de alta velocidade ligan-
do a área aos aeroportos internacionais e domésticos, e redes de fibra
óptica.

5 “Temporal quer aproveitar Porto do Rio como ponto turístico”, O Globo, 03 fev. 1983,
p. 26.
6 “Teleporto Rio: conexão com o mundo”, Revista da Associação Comercial do Rio de
Janeiro, 47, n. 1215, 1985, p. 24-28.
42 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Figura 1. Proposta do Teleporto do Rio

Cortesia de Paulo Protásio


Zona portuária do Rio de Janeiro 43

Figura 2. Masterplan do Teleporto do Rio

Cortesia de Paulo Protásio

Ao final da década, o lobby empresarial diminuiu. Apesar de todos


os esforços para definir um plano para transformar a zona portuária,
quatro questões se colocaram no caminho. Em primeiro lugar, os mo-
radores da região com o apoio de arquitetos, técnicos da prefeitura e o
IPHAN iniciaram um movimento para a preservação do conjunto his-
tórico dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo em resposta aos
temores de despejo, finalmente concedido pelo município em 1988
(Sampaio, 1994). Em segundo lugar, a Companhia Docas do Rio de Ja-
neiro (CDRJ), ofereceu um apoio ambíguo que limitou o andamento
do projeto. A instituição federal era a maior proprietária de terras da
área e com o declínio das atividades portuárias relutava em abrir mão
de parte das docas e armazéns e apoiar integralmente os planos propos-
tos (Ministério das Cidades, 2005). Terceiro, a complexa propriedade
fundiária da área envolvia o município, o estado, o governo federal e
outras instituições, fazendo assim com que apenas uma coordenação
capaz de conciliar diversos interesses poderia levar adiante um projeto
integral. Finalmente, a crise econômica que marcou a maior parte da
década não foi um cenário positivo para atrair investimentos privados
para um programa de desenvolvimento em grande escala. O projeto do
44 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Teleporto minguou até o primeiro mandato de Cesar Maia na prefeitura


(1993-1996), quando o nome foi usado para designar um empreendi-
mento de escritórios no bairro Cidade Nova, muito distante do conceito
original de infraestrutura intensiva. Somente no início dos anos 2000,
outras tentativas com maior coordenação foram feitas para estimular a
requalificação da zona portuária, ainda que tentativas isoladas e especu-
lativas tenham sido produzidas ao longo da década de 1990.

Planos e intervenções pontuais na década de 1990

Durante a década seguinte uma série de anúncios foram feitos, ora a par-
tir da prefeitura, ora vindo da CDRJ, com vistas a uma recuperação inte-
grada da zona portuária (Quadro 1). Esta falta de entendimento explici-
tava como a articulação intergovernamental e institucional era essencial
para que um programa de requalificação em grande escala pudesse
ocorrer. Por parte da prefeitura, grupos de trabalho foram estabelecidos
por decretos municipais na Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU)
para estudar mudanças no uso do solo e no zoneamento, incluindo uma
cooperação internacional com o Instituto de Planejamento e Urbanis-
mo da Região de Paris (IAURIF, 1994). Por outro lado, poderes foram
transferidos à CDRJ após a dissolução da Portobrás em 1993, o órgão
federal responsável pela coordenação das atividades dos portos brasi-
leiros, e a aprovação da Lei federal 8.630/1993, a Lei de Modernização
dos Portos, que possibilitava o arrendamento das instalações portuárias
para fins comerciais. Consultorias foram contratadas para avaliar a li-
beração de propriedades ociosas de “potencial econômico inexplorado”
que pudessem dar lugar a “empreendimentos e iniciativas que valorizem
adequadamente o patrimônio da Companhia” (MINFRA, 1991, p. 6).
Foram assinados memorandos de entendimento entre o município, a
autoridade portuária, a ACRJ e o Ministério dos Transportes, mas ne-
nhum progresso significativo foi observado.
Durante os governos dos prefeitos Cesar Maia (1993-1996) e Luiz
Paulo Conde (1997-2000), algumas propostas foram feitas que se rela-
cionavam à circulação de políticas e de profissionais. Dentre estas pode-
-se destacar a candidatura aos Jogos Olímpicos de 2004 elaborada entre
Zona portuária do Rio de Janeiro 45

1995 e 1996 a partir de uma encomenda feita à profissionais da cidade


de Barcelona que trabalhavam no Plano Estratégico do Rio de Janeiro.
Uma das propostas previa a recuperação urbanística, ambiental e patri-
monial entre a Quinta da Boa Vista e a zona portuária passando pelo
bairro de São Cristóvão (Silvestre, 2017a). Ainda que mal-sucedida,
Conde teria a assessoria do arquiteto catalão Orial Bohigas para estudos
de intervenção na Praça XV, que previa a reordenação da estação hidro-
viária e a construção de um aquário.
A mudança mais significativa no uso do solo foi o arrendamento do
Píer Mauá, do terminal de passageiros de cruzeiros e dos armazéns 1
a 4 para o Consórcio Píer Mauá em 1997. A desativação do píer como
terminal de cargas levou a estudos e encomendas tanto por parte da pre-
feitura como da CDRJ para a criação de espaços de lazer e equipamen-
tos culturais propostos por arquitetos locais e estrangeiros (SMU-CAU,
2002). A ideia em utilizar o píer para uma intervenção de grande vulto
que funcionasse como elemento catalizador para a requalificação da
região ganharia maiores proporções com a proposta de construir uma
filial do Museu Guggenheim.

Quadro 1. Cronologia de propostas para a requalificação da zona


portuária do Rio de Janeiro (1980-2000)

RIOPART e ACRJ organizam a I Rio International Week propondo o


Out. 1982
World Trade Center
Seminário Internacional Desenvolvimento de Áreas Portuárias no IAB/
Jan. 1983
RJ
Maquete do Teleporto do Rio de Janeiro pela Nippon T&T apresentada
Nov. 1985
no IV Rio International Week
Projeto de desenvolvimento de escritórios da CBPO ​​(Odebrecht) apre-
1986
sentado à Secretaria de Desenvolvimento Urbano
Decreto municipal 7.531 cria o projeto Área de Proteção Cultural - Sa-
Jan. 1988 gas, dando status de tombamento a 1.782 edificações nos bairros portuá-
rios da Saúde, Gamboa e Santo Cristo
Estudo Planave encomendado pela Portobrás “Plano de Desenvolvimen-
Dez. 1989
to Urbano da Retaguarda do Porto do Rio de Janeiro”
Jan. 1990 Memorando de entendimento ACRJ e CDRJ
Estudo IplanRio “O Porto do Rio de Janeiro: condições atuais, a questão
Jun. 1990
da sua modernização e o papel da Prefeitura na sua gestão”
46 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Estudo TCI encomendado pelo CDRJ “Área Portuária da Gamboa: pro-


Ago. 1991
posta de revitalização”
Mar. e Decreto municipal 10.057 cria Grupo de Trabalho e Decreto 10.381 cria
Ago. 1991 Câmara Técnica para a revitalização da área portuária
Out 1991 Relatório CDRJ “Plano Estratégico de Desenvolvimento”
Relatório da câmara técnica “Projeto de Estruturação Urbana da Área
Mar. 1992
Portuária”
World Trade Center Rio, projeto de estudo de massa de Paulo Casé e
Mai. 1992
Luiz Acioli encomendado pela ACRJ
Jan. 1993 Audiência pública para o Projeto Píer Mauá
Decreto municipal 12.069 cria grupo de trabalho para estudos de revita-
Mar. 1993
lização da área portuária
Estudo IplanRio “Relatório Básico - Área de Especial Interesse Urbanís-
Jul. 1993
tico da Zona Portuária”
Fev. 1993 Lei federal 8.630, a “lei de modernização dos portos”
Portaria federal 908 do Ministério dos Transportes cria o Programa
Out. 1993
Nacional de Revitalização de Áreas Portuárias (REVAP)
Proposta do arquiteto francês Jacques Rougerie “Cidade Oceânica” en-
Mar. 1994
comendada pela prefeitura
Consórcio Rioporto (Engepasa/Lix da Cunha/IESA/Conter) pré-qualifi-
Mar. 1994
cado para locação do Píer Mauá
Mai. 1994 Estudo Iplanrio “Revitalização da Zona Portuária”
Jun. 1994 Estudo IAURIF “La revitalisation de la zone portuaire de Rio de Janeiro”
Memorando de Entendimento da Prefeitura e do Ministério dos Trans-
Jul. 1994
portes
Candidatura para os Jogos Olímpicos de 2004 previa a revitalização da
1996
portuária a partir de intervenções no bairro de São Cristóvão
Seminário Internacional de Revitalização de Zonas Portuárias - Rio de
Jul. 1995 Janeiro Projeto, organizado pelo Ministério dos Transportes, CDRJ e
prefeitura
Píer Mauá, terminal de cruzeiros e armazéns 1 a 4 arrendados ao Con-
Nov. 1997
sórcio Píer Mauá
Projeto CDRJ dos arquitetos Índio da Costa e Ricardo Villar para o
1997
Consórcio Rioporto
Fundação Guggenheim avalia localidades na América do Sul e visita o
Nov. 2000
Rio de Janeiro
Estudo IPP “Porto do Rio: plano de reabilitação e revitalização da zona
2001
portuária do Rio de Janeiro”
Apresentação da proposta Museu Guggenheim Rio pelo arquiteto fran-
Out. 2002
cês Jean Nouvel
Zona portuária do Rio de Janeiro 47

Abr. 2003 Prefeitura e Fundação Guggenheim assinam contrato


Mai. 2003 Contrato suspenso pela 8a Vara da Fazenda Pública
Criação do Grupo de Trabalho Interministerial pelo governo federal
Fev. 2004
para avaliar propostas da prefeitura
Assinatura de Acordo de Cooperação Técnica entre governos federal e
Mar. 2006
municipal com apoio da CDRJ, BNDES e Caixa Econômica Federal
Fonte: elaboração própria

Museu Guggenheim e o Programa Porto do Rio

No início dos anos 2000, a prefeitura voltou a produzir estudos detalha-


dos sobre intervenções na zona portuária. Elaborado pela Secretaria de
Urbanismo e pelo Instituto Pereira Passos (IPP), continha propostas de
intervenções de pequeno e médio porte para a reabilitação dos espaços
públicos, a conversão de edifícios subutilizados em instituições cultu-
rais e melhorias na mobilidade da região. Na apresentação do Programa
Porto do Rio em 2001, o então secretário de urbanismo Alfredo Sirkis
justificou a necessidade do programa em relação a outros lugares do
mundo:

O centro da cidade precisa de um processo de revitalização semelhante


ao dos centros de outras grandes cidades do mundo. [...] Numerosas ci-
dades portuárias pelo mundo afora apresentam bem-sucedidos projetos
de revitalização de suas velhas docas para novos usos de lazer, escri-
tórios, comércio, cultura e residência. Londres, Baltimore, Nova York,
Buenos Aires, Barcelona. Por que não o Rio?7

No entanto, para o prefeito Cesar Maia que voltava ao cargo, o pro-


grama de requalificação só seria viável com uma grande intervenção
capaz de atrair interesses e investimentos. Influenciado pela experiên-
cia da cidade espanhola de Bilbao, a prefeitura entrou em negociação
com representantes do Museu Guggenheim de Nova York, que na época
prospectavam novos mercados para expandir as operações do museu.

7 “Propostas de gestão urbanística para o período 2001-2004”, Blog Alfredo Sirkis, 15


jan. 2001. Disponível em: https://bit.ly/3mtehpU. Acesso em: 27 mar. 2015.
48 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Entre 2001 e 2003, consultores produziram estudos para a criação de


uma filial do museu no Píer Mauá projetado pelo arquiteto francês Jean
Nouvel (Figura 3).

Figura 3. Proposta do arquiteto Jean Nouvel para o


Museu Guggenheim do Rio de Janeiro

Fonte: Ateliers Jean Nouvel (jeannouvel.com)

Críticas ao projeto foram refletidas nas páginas dos jornais da cida-


de, por meio das cartas dos leitores e artigos de opinião de arquitetos,
artistas e políticos. Em um artigo intitulado “Guggenheim: falta visão”,
o diretor da Fundação Guggenheim, Thomas Krens, respondeu aos crí-
ticos pedindo que considerassem o museu como parte fundamental do
programa de requalificação à exemplo de outras cidades e a possibilida-
de de se reproduzir o “efeito Bilbao”:

O modelo para o museu Guggenheim Rio é o projeto iniciado há uma


década na região basca da Espanha, na cidade de Bilbao. [...] O governo
basco investiu mais de 3,8 bilhões de euros (14 bilhões de reais) em 14
projetos que visavam a transformar a região [...]. Apesar da importân-
Zona portuária do Rio de Janeiro 49

cia do somatório dos projetos, foi o museu Guggenheim que arrematou


a imaginação internacional; foi o museu Guggenheim que se tornou o
símbolo da revitalização do País Basco; foi o museu Guggenheim que se
tornou o ponto de atração para turistas visitando Bilbao.8

A proposta gerou uma campanha de vereadores da oposição para in-


terromper as negociações devido ao nível de compromissos financeiros
a serem assumidos pela prefeitura. Foi movida uma ação civil pública e
a 8a Vara da Fazenda Pública determinou a suspensão do contrato, con-
cluindo que se criavam compromissos financeiros não previstos no or-
çamento municipal, que seriam levados além do atual mandato do pre-
feito, e que a existência de cláusulas de confidencialidade na arbitragem
de potenciais conflitos era contrária aos princípios de soberania.9 O caso
foi visto como uma derrota para o prefeito e teve uma implicação direta
no programa de requalificação mais amplo. Segundo Sirkis, o prefeito
deliberadamente esvaziou todas as outras propostas de intervenções na
região, incluindo projetos em vias de licitação.10
Os estudos da prefeitura identificaram três elementos essenciais para
o desenvolvimento integrado da zona portuária. Em primeiro lugar,
destacavam a importância de se chegar a um acordo e trabalhar em con-
junto com o governo federal e suas instituições, já que estes possuíam
a maior parte dos terrenos e propriedades disponíveis. Nesse sentido,
as discussões avançaram lentamente com a constituição de um grupo
de trabalho federal para analisar as propostas, linhas de financiamento
público, arranjo institucional e financiamento (Ministério das Cidades,
2005). O segundo elemento identificado era atrair a classe média, pois
o secretário concluiu que as chances de criar uma área de uso misto só
prosperariam se moradores de camadas médias fossem convencidos a
morar na área.11 Finalmente, havia a necessidade de coordenar todos os
programas em uma instituição separada e dedicada, uma corporação

8 “Guggenheim: falta visão”, O Globo, 19 set. 2003, p. 7.


9 “Ação tenta impedir construção do Gug”, O Globo, 15 mai. 2003, p. 20.
10 “Sirkis fala sobre o Porto Maravilha”, Blog Alfredo Sirkis, 11 ago. 2009. Disponível em:
https://bit.ly/3ehhGDU. Acesso em: 27 mar. 2015.
11 “Sirkis fala sobre o Porto Maravilha”, Blog Alfredo Sirkis, 11 ago. 2009. Disponível em:
https://bit.ly/3ehhGDU. Acesso em: 27 mar. 2015.
50 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

de desenvolvimento urbano, seguindo a experiência de Buenos Aires e


Paris.

Os estudos que ainda necessitariam ser feitos são os atinentes ao mer-


cado imobiliário privado e a modelagens institucionais que venham a
permitir a constituição de um ente público-privado capaz de conduzir o
programa de revitalização com agilidade e com uma continuidade que
transcenda o limitado tempo das administrações municipal e federal.
[...] A engenharia político-institucional-jurídica para tanto será um dos
grandes desafios dos próximos anos.12

Foi exatamente esse tipo de engenharia prevista pelo secretário que


seria o foco de um estudo realizado por algumas das maiores constru-
toras do Brasil que finalmente pressionaram para que o programa de
requalificação fosse lançado.

As referências da OUC Porto Maravilha

As operações urbanas de São Paulo

A primeira manifestação séria de interesse da iniciativa privada ocor-


reu em agosto de 2006 em resposta ao Decreto municipal 26.852/2006
que instituiu a Área de Especial Interesse Urbanístico Portuária
(PCRJ, 2006). Com essa denominação, a área passou a ser objeto de
estudos para requalificação urbana e, em atendimento à Lei federal
11.079/2004 que regulamenta a constituição de parcerias público-pri-
vadas (PPPs), um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI)
foi publicado. O PMI para a zona portuária incluiu uma ampla gama
de tópicos a serem estudados, tais como análises técnicas e jurídicas,
estudo de ocupação e uso do solo, modelagem financeira, orçamenta-
ção, licenciamento ambiental e controle de avaliação e desempenho de
projetos (PCRJ, 2006, p. 3).

12 “O Programa Porto do Rio”, Blog Alfredo Sirkis, 21 out. 2005. Disponível em: https://
bit.ly/3J4dcyy. Acesso em: 01 ago. 2013.
Zona portuária do Rio de Janeiro 51

Uma única manifestação de interesse foi expressa por um consór-


cio de empresas formado para o fim específico do estudo. O consórcio
Rio Mar e Vila era composto por algumas das maiores construtoras do
país: OAS, Odebrecht, Carioca Christiani-Nielsen e Andrade Gutierrez,
embora esta última tenha deixado o consórcio durante a elaboração do
estudo. O estudo de viabilidade foi realizado entre fevereiro e setembro
de 2007 e o consórcio teve acesso a relatórios e dados municipais com o
apoio de um grupo de trabalho formado por representantes das secreta-
rias de Fazenda, Urbanismo e IPP (PCRJ, 2007).
O relatório final deu prioridade ao estabelecimento de uma arquite-
tura financeira e institucional a partir de duas premissas centrais (Rio
Mar e Vila, 2007). Em primeiro lugar, argumentava pela instituição de
uma Operação Urbana Consorciada (OUC), a exemplo das experiências
na cidade de São Paulo e regulamentada pela Lei federal 10.257/2001,
o Estatuto da Cidade. A OUC se valeria do interesse imobiliário e da
flexibilização dos controles de planejamento como condição para atrair
investimentos, como a redefinição dos usos do solo, do parcelamento
e da área útil. A proposta financeira do Rio Mar e Vila baseou-se, as-
sim, inteiramente na venda de certificados de direitos de construção que
permitiriam a construção de torres acima dos limites de altura existen-
tes – os Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs)
– para cobrir todas as obras necessárias de infraestrutura e na prestação
de serviços públicos. O financiamento do projeto dependia, portanto,
da demanda imobiliária a qual o relatório previa, com segurança, ser de
24,5 milhões de metros quadrados até 2024 em “um cenário conserva-
dor” (2007, p. 76). Na justificativa da opção pela operação urbana, ficou
explícita a experiência a servir de referência:

Após o Estatuto da Cidade, apenas duas operações urbanas consorcia-


das foram realizadas, ambas em São Paulo, envolvendo a emissão de
CEPACs. Os resultados alcançados foram positivos, especialmente ten-
do em vista seu pioneirismo. O sucesso da experiência paulista reco-
menda que se siga, em linhas gerais, aquele modelo. Quaisquer elemen-
tos que deixarem de ser contemplados não deixarão de ser percebidos
pelos investidores, o que poderá comprometer a atratividade dos títulos
(Rio Mar e Vila, 2007, p. 6-7).
52 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A modelagem do projeto, portanto, precisava ser cuidadosamente


elaborada para reproduzir as características das operações urbanas de
São Paulo e se adaptar às regulamentações do Rio de Janeiro. A questão
foi ainda mais enfatizada, juntamente com a atratividade para o inves-
timento:

Para um título novo como o CEPAC, certamente as principais fontes de


incerteza são as de natureza jurídica. Por essa razão, procurou-se, no
âmbito do presente trabalho, apontar sempre a modelagem institucio-
nal mais cautelosa [...]. Trata-se, tão somente, de levar em conta, como
prioridade absoluta, o interesse do investidor, de quem depende o finan-
ciamento da operação (Rio Mar e Vila, 2007, p. 7).

Em segundo lugar, e em contraste com os programas de São Paulo,


o relatório defendeu a instituição de uma Sociedade de Propósito Espe-
cífico como “condição essencial” (Rio Mar e Vila, 2007, p. 8) para coor-
denar a complexa propriedade fundiária e os interesses das diferentes
instituições dos três níveis de governo. Argumentava como vantagens
para este arranjo a possibilidade de reunir todas as diferentes institui-
ções envolvidas no programa em uma única instituição, a facilidade
de “segregar” o programa dos “riscos e futuros ingressos das entidades
públicas envolvidas”, e uma gestão mais flexível e tomada de decisão
simplificada (p. 25). A instituição seria uma empresa pública de caráter
privado com ativos formados pelas terras transferidas dos governos e os
CEPACs a serem comercializados.
Diferentemente dos estudos anteriores, o foco da proposta estava
no modelo financeiro e de governança e não no aspecto urbanístico do
projeto. Argumentava que eram incorporados os estudos desenvolvidos
pela prefeitura nas décadas anteriores e as recomendações do grupo fe-
deral interministerial sobre instrumentos de planejamento adequados
para a área (Sarue, 2016). A proposta foi a base do projeto Porto Mara-
vilha, carro-chefe ao lado dos Jogos Olímpicos de 2016, das duas gestões
do prefeito Eduardo Paes (2009-2016).
Zona portuária do Rio de Janeiro 53

Ícones arquitetônicos e experiências internacionais

Após décadas de estudos, lobismo e propostas, a requalificação da zona


portuária do Rio de Janeiro foi anunciada em junho de 2009 em ceri-
mônia oficial com a presença do presidente Lula, do governador Sérgio
Cabral e do prefeito Eduardo Paes. A presença dos governantes simbo-
lizou uma coalizão política capaz de superar as barreiras jurisdicionais
e transformar o megaprojeto em realidade. O projeto Porto Maravilha
prometia transformar 5 milhões de m² em um novo bairro de uso misto.
O anúncio dos Jogos Olímpicos de 2016 meses após, deu novo impulso
com a entrega de projetos-chave alinhados aos preparativos para o me-
gaevento.
Uma vez oficializado, houve um esforço para posicionar o projeto ao
lado de projetos de requalificação de áreas portuárias internacionais. A
publicação “Porto Maravilha + 6 Casos de Sucesso de Revitalização Por-
tuária” encomendada pela prefeitura em 2010, comparava a proposta
com as experiências de Baltimore, Barcelona, ​​Buenos Aires, Cidade do
Cabo, Hong Kong e Rotterdam. O projeto foi apresentado como “uma
das experiências urbanas mais importantes dos nossos tempos, um ver-
dadeiro marco histórico no desenvolvimento das cidades portuárias la-
tino-americanas” (Dias, 2010, p. 231).
Ao passo que as obras de infraestrutura eram iniciadas, uma série de
novos empreendimentos imobiliários e equipamentos culturais foram
anunciados. Neste momento, o contexto político e econômico do país e
da cidade dava garantias aos promotores do projeto que uma interven-
ção em grande escala era possível, ao contrário dos avanços limitados
das décadas anteriores. Enquanto a economia nacional apresentava altas
taxas de crescimento, a indústria de óleo e gás foi impulsionada pela
descoberta de reservas do pré-sal ao longo da costa do Rio de Janeiro
com um potencial estimado de gerar quatro vezes mais petróleo do que
a produção nacional e tornar o país o sexto maior produtor mundial até
2035 (IEA, 2013). A contribuição da indústria de petróleo e gás para o
PIB regional do Rio de Janeiro cresceu de 1,25% em 1995 para 12,03%
em 2005 e 17,65% em 2012 (CEPERJ, 2014). A crescente demanda por
espaços corporativos por empresas do setor foi um importante ponto de
inflexão. Segundo estudo da Colliers International Real Estate (2009),
54 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

a taxa de vacância local de 0,64% estava entre as mais baixas do mun-


do. Havia uma pressão particular no centro da cidade, especialmente na
demanda de empresas que tinham como clientes a Petrobrás e outros
órgãos federais. O estudo concluiu que o Rio de Janeiro possuía o maior
preço médio por metro quadrado dos principais espaços corporativos
do país.
Os primeiros anos da operação urbana no período pré-olímpico
foram acompanhados de anúncios imobiliários de torres corporativas
de alto padrão, que incluía incorporadoras nacionais e estrangeiras, e
empreendimentos assinados por “arquitetos de grife” como o britânico
Norman Foster. Equipamentos culturais também viriam a reproduzir
imagens icônicas de arquitetos globais, como o Museu do Amanhã, pro-
jetado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava no Píer Mauá, mesmo
local do malfadado Guggenheim Rio. Os planos iniciais para o museu
previam a reforma dos modestos armazéns 5 e 6, mas, em janeiro de
2010, a prefeitura anunciou uma parceria com a Fundação Roberto Ma-
rinho para a construção do equipamento, sendo o arquiteto espanhol
escolhido diretamente pelo prefeito.13 O museu foi integrado ao projeto
de requalificação, com seus custos incluídos no orçamento da operação
urbana por meio de aditivos.
Impulsionado pelo crescimento econômico e facilitado pela coalizão
de governantes, o projeto Porto Maravilha começou a alterar profunda-
mente a paisagem da zona portuária. A combinação de instrumentos de
planejamento, alinhamento político e reprodução de referenciais glo-
bais passou a despertar interesse em outras partes e sugerir que a zona
portuária do Rio de Janeiro passaria de um destino de modelos urba-
nísticos em circulação para se tornar um paradigma de requalificação.

Porto Maravilha: um modelo para exportação?

A rapidez com que foi lançado o projeto Porto Maravilha e como a fase
inicial de intervenções em infraestrutura foi concluída, despertaram o

13 “Museu do Amanhã, no Píer Mauá, será marco da Rio+20”, O Globo, 19 jan. 2010.
Disponível em: https://glo.bo/32rRIL6. Acesso em: 22 dez. 2021.
Zona portuária do Rio de Janeiro 55

interesse de instituições internacionais e brasileiras. Em 2014, o projeto


ficou em segundo lugar na premiação anual oferecida pela Metropolis,
uma rede global de cidades e autoridades regionais, com elogios à sua
modelagem financeira (Metropolis, 2014). Em 2020, o Banco Mundial
o incluiu em sua série de estudos de caso com o propósito de “desti-
lar boas práticas e lições aprendidas” (World Bank, 2020). A instituição
deu mérito ao desenho institucional com destaque à PPP e ao papel da
Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de
Janeiro (CDURP). A zona portuária do Rio de Janeiro logo se tornou
um destino de policy tourism (González, 2011), e passou a receber mis-
sões de outras cidades brasileiras, como Belo Horizonte, Salvador, Porto
Alegre, Florianópolis, Niterói e cidades do estado de São Paulo. Para
compreender como o programa passou a circular como um modelo de
operação urbana, é necessário analisar a articulação desempenhada pela
parceria privada.
Em outubro de 2010, o Consórcio Porto Novo formado pelas mes-
mas construtoras envolvidas no estudo de viabilidade de 2006 foi sele-
cionado no processo licitatório para implantação da PPP. As construto-
ras foram atraídas por duas oportunidades que elas mesmas definiram
no plano que elaboraram. Primeiramente foi a construção de túneis,
vias expressas, espaços públicos e modernização da infraestrutura. Em
segundo lugar, o projeto também incluiu concessões para a entrega de
serviços públicos por um prazo de quinze anos. Estes incluíam ilumi-
nação pública, limpeza de ruas, coleta de lixo, manutenção de vias, ge-
renciamento de tráfego e paisagismo. Apesar da experiência destas em-
presas em algumas dessas áreas, a entrega de todos os serviços de forma
integrada foi um fator pioneiro, como destacou um porta-voz do grupo:

Aqui, na verdade, as empresas enxergam como um laboratório desse


modelo de negócio. Isso aqui tem a capacidade de ser aplicado em várias
cidades brasileiras. [...] Então, esse know-how que é um ativo da empre-
sa, isso daí no fim do dia não vai ser transferido para o poder público.14

14 Informação verbal fornecida por gestor do Consórcio Porto Novo, em 2015, citado
em Silvestre (2017b).
56 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

O pagamento pela entrega de obras e serviços foi estimado em R$8


bilhões a serem pagos em quinze anos. Diferentemente da operação
urbana em São Paulo, onde as vendas dos CEPACs foram realizadas
por um longo período e negociadas a cada empreendimento, todos
os certificados do Porto Maravilha – correspondentes a direitos de
construção de mais de 4 milhões de m2 – foram leiloados em lote
único em 2011 vendido ao FGTS e administrado pela Caixa Econô-
mica Federal. O fluxo financeiro entre a CDURP, parceiro público, e
a Caixa – envolvendo certificados, terrenos e pagamentos ao parceiro
privado – foi regulado por meio da criação de dois fundos de investi-
mento imobiliário representando cada uma das partes. Desta forma,
garantiu-se antecipadamente o pagamento da totalidade das obras e
serviços.
De acordo com um gestor financeiro da CDURP, a experiência tinha
muito a oferecer a outros lugares:

É replicável? É. Talvez não com tudo. Posso levar o pacote do Porto Ma-
ravilha para Recife, para Salvador? Não sei, não sei responder porque
talvez aí você não precise de fundo, talvez não precise fazer leilão de
lote único, talvez não precise de PPP para intervenções menores, não é
um empreendimento de R$8 bilhões, não tem serviços. Então, tudo isso
precisa ser examinado em cada caso.15

O depoimento sugere que o Porto Maravilha passou a ser entendi-


do como o paradigma de OUC no Brasil, dada sua escala e combina-
ção de diferentes instrumentos. Em seu cerne está o instrumento de
planejamento da operação urbana consorciada, um extenso programa
de obras de infraestrutura e prestação de serviços, o financiamento
por meio de CEPACs e a possível garantia de um órgão estatal em as-
sumir os riscos da operação. A institucionalização das relações públi-
cas e privadas por meio de fundos de investimento imobiliário procu-
rou mitigar os riscos representados pelos ciclos eleitorais, ao mesmo
tempo que garantiu o pagamento das obras e serviços ao parceiro pri-

15 Informação verbal fornecida por gestor da CDURP, em 2013, citado em Silvestre


(2017b).
Zona portuária do Rio de Janeiro 57

vado. As construtoras nacionais desempenharam um papel central na


concepção e implementação deste modelo e passaram a se beneficiar
diretamente do conhecimento adquirido para prospectar oportunida-
des de envolvimento a longo prazo na entrega concertada de obras e
serviços em outros lugares.
Desde então, essas empresas se dedicaram a circular o modelo
Porto Maravilha pelo país. Como Stroher e Dias (2019) demonstra-
ram, as construtoras e consultores envolvidos participaram em es-
tudos de viabilidade realizados em outras cidades brasileiras com
propostas que defendiam de forma semelhante o uso de PPPs, CE-
PACs e outras características do projeto Porto Maravilha. Roadsho-
ws promovidos em 2017 pela Caixa Econômica Federal e pela Câ-
mara Brasileira da Indústria da Construção apresentaram o Porto
Maravilha como um modelo de sucesso e forneceram detalhes sobre
como acessar recursos do FGTS (Stroher e Dias, 2019). No entanto,
a crise econômica brasileira dos últimos anos e os desdobramentos
do escândalo de corrupção relevados na Operação Lava Jato, desa-
celeraram a circulação do modelo. Entre as evidências encontradas,
há notas datadas de 2007 em que o presidente da construtora OAS
comunicava que o presidente do país e o governador do estado es-
tavam cientes da proposta do projeto de requalificação e se com-
prometiam a darem os passos necessários para que fosse realizado.16
Representantes de outra empresa do consórcio de parceria privada, a
Carioca Engenharia, admitiram terem pago propina ao presidente da
Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, para fazer lobby pelo uso
de recursos do FGTS para financiar a operação.17 Apesar dos riscos
de tais atividades ilícitas, a estreita relação entre grandes interesses
privados e políticos é uma característica de longa data da política
brasileira (Campos, 2014).

16 “Empreiteiro relata lobby para fazer obra no porto do Rio”, Folha de São Paulo, 07
dez. 2014. Disponível em: https://bit.ly/32s49H2. Acesso em: 01 abr. 2016.
17 “Eduardo Cunha cobrou R$ 52 mi em propina para liberar dinheiro do FI-FGTS,
diz PGR”, Revista Época, 16 dez. 2015. Disponível em: https://glo.bo/3EgMFdN. Acesso
em: 01 abr. 2016.
58 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Conclusão

A noção de “modelo”, em sua mais corrente acepção, sugere sua repro-


dutibilidade: objeto digno de ser reproduzido por imitação. Ora, efe-
tivamente, essa noção, quando associada às cidades, está submetida à
lógica das “best practices”, que, em muitos casos, passam a integrar os
documentos oficiais das agências multilaterais de desenvolvimento, in-
dicando procedimentos, maneiras de ser, lições e até mesmo “decálo-
gos” que incitam a repetição por parte dos governos locais (Sánchez e
Moura, 1999, p. 100).

A OUC Porto Maravilha passou, em um curto período de tempo,


da mobilização de outras experiências a modelo de Grande Projeto Ur-
bano para cidades brasileiras, assim como best practice em manuais do
Banco Mundial. Entretanto, não há nada “natural” no processo em que
cidades e políticas são alçadas à condição de modelos (McCann, 2011).
Como apontam Peck e Theodore (2010), há uma política por trás da
circulação de políticas, e, em grande medida, circulam-se experiências
que reforçam abordagens hegemônicas e que ao mesmo tempo sirvam
de elemento aglutinador às coalizões de interesses locais (Silvestre e
Jajamovich, 2021). Assim, Grandes Projetos Urbanos nos servem para
compreender como as políticas contemporâneas para o desenvolvimen-
to das cidades são relacionalmente produzidas. Como se demonstrou,
diversas propostas para a transformação da zona portuária foram pau-
tadas pelas experiências de outras cidades e, uma vez atingida, somou-
-se a este portfólio reforçando a abordagem dominante e servindo de
novo referencial.
Sob esta ótica, o argumento confirma a observação feita por Har-
vey (1989) sobre a produção repetitiva e serial de certos padrões de
desenvolvimento urbano. Entretanto, é necessário aprofundar a aná-
lise para evitar a crítica superficial de reprodução de “não lugares”
(Ponzini, 2020). Um exame longitudinal das propostas para o porto
do Rio de Janeiro nos permite entender como interesses público e
privados são articulados e buscam dar resposta aos obstáculos para
um projeto de grande porte. Os interesses especulativos de agentes
Zona portuária do Rio de Janeiro 59

privados locais na década de 1980 ou o “empreendedorismo” político


em atrair uma filial de um museu de renome concebido por arqui-
tetos do star system, encontraram limites nas questões fundiárias e
institucionais, assim como no financiamento e absorção do risco. Foi
somente em um contexto de aquecimento da demanda imobiliária
no Rio de Janeiro e na estreita relação entre grandes grupos de cons-
trução nacionais com chefes de governo de todos os níveis que foi
possível chegar a um modelo institucional e financeiro como a libe-
ração de terras públicas e investimento por parte de capital estatal.
Além disso, como aponta a investigação Operação Sépsis conduzida
pelo Ministério Público Federal e a Polícia Federal, constatou-se cor-
rupção na máquina pública ao aprovar o uso de fundos destinados
ao desenvolvimento de infraestrutura no país para assumir riscos
de projetos especulativos imobiliários de grande porte. Sintomático
deste processo foi o recente depoimento da Caixa Econômica Fede-
ral sobre a conhecida inviabilidade do investimento feito no projeto
Porto Maravilha desde seu início.18
Por último, ainda que não tenha sido foco da análise apresentada,
o exame longitudinal também é revelador dos “silêncios” e “ausên-
cias” nas propostas feitas ao longo dos anos. Ainda que a zona por-
tuária seja conhecida como local de moradia de população de baixa
renda, a produção de habitação de interesse social em uma cidade
com alto déficit habitacional foi em momento algum elemento cen-
tral de estudos. Confirma-se assim como o emprego das Operações
Urbanas Consorciadas aprofunda a segregação social como anterior-
mente constatado com a experiência de São Paulo (Fix, 2004). Assim,
entender o projeto Porto Maravilha como um modelo de “sucesso”
ou “fracasso” depende da perspectiva e imperativos políticos adota-
dos. Sua circulação como modelo para outras cidades brasileiras não
é natural e demanda uma intervenção crítica para que seja pautada
por políticas mais inclusivas.

18 “Caixa diz que Porto Maravilha do Rio era inviável desde o início”, Folha de São Pau-
lo, 04 jun. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3Fo0jNx. Acesso em: 25 ago. 2020.
60 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

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65
Foto: Série Fluxos, Luiz Baltar
CAPÍTULO 2

Uma aposta especulativa no futuro


O mercado imobiliário comercial como âncora do
projeto Porto Maravilha
Daniel Sanfelici

Introdução

Cidades são complexos sistemas de usos do solo interrelacionados su-


jeitos a contínuas transformações sob o efeito de forças econômicas he-
terogêneas e decisões políticas de natureza e origem diversa. Ao longo
das últimas décadas, transformações de larga escala na estrutura social
e ocupacional, ocasionadas pela transição para uma economia centra-
da no conhecimento e na inovação, favoreceram uma reconfiguração
dos usos do solo nas principais metrópoles do mundo. Funções indus-
triais, logísticas e portuárias, que outrora ocuparam extensos períme-
tros territoriais no seio das principais metrópoles, se deslocaram seja
para as franjas metropolitanas, seja para cidades menores no interior,
seja, ainda, para outros países, com custos de mão de obra mais baixos.
Ao abandonarem áreas bem localizadas nas metrópoles, essas atividades
tornaram obsoletos os espaços que até então as haviam abrigado, como
galpões logísticos e fábricas situados em terrenos de grandes dimensões,
muitas vezes a poucos metros das áreas centrais das metrópoles. Com
a expansão concomitante de atividades terciárias diversas – serviços fi-
nanceiros, funções de gestão e administração, mídia e produção cultu-
ral, tecnologias da informação, etc. – bem como em virtude da escassez
de moradias em regiões com boa acessibilidade, essas áreas tornaram-se
foco de políticas de regeneração urbana promovidas pelo poder público,
muitas vezes em parceria com a iniciativa privada. São políticas públicas
que visam estimular a reconversão de usos do solo para adequá-los às

67
68 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

funções econômicas atualmente dominantes nas metrópoles, geralmen-


te sob a justificativa urbanística de conter a expansão desmesurada (e
ambientalmente nociva) do tecido metropolitano e favorecer a maior
densidade de ocupação do solo em fragmentos urbanos bem servidos
de equipamentos e serviços públicos.
O estímulo à reconversão do solo urbano sem dúvida faz sentido
como princípio geral: substituir espaços tornados obsoletos pela rees-
truturação econômica por espaços funcionais à nova economia permite
otimizar o uso do solo, gerando toda sorte de benefícios coletivos. Para
além do princípio geral, contudo, é preciso analisar as políticas concre-
tas que efetivam essa reconversão, e essas últimas têm sido pautadas,
muitas vezes, por uma visão estreita acerca de quais atividades econô-
micas e quais segmentos sociais devem ocupar as áreas “revitalizadas”
ou “regeneradas”. Em virtude do elevado potencial de valorização do
solo nessas áreas, interesses econômicos se perfilam em prol de políticas
públicas que potencializem os ganhos com rendas imobiliárias, deixan-
do de lado uma concepção mais inclusiva de cidade. A preferência por
políticas urbanas conduzidas por meio de parcerias público-privadas
muitas vezes resulta em intervenções conduzidas à margem de uma dis-
cussão mais ampla sobre os benefícios sociais dos projetos.
Esse capítulo procura contribuir para o debate sobre as políticas ur-
banas lançando um olhar sobre o projeto Porto Maravilha, no Rio de
Janeiro. O objetivo, porém, não é analisar em detalhe as características
do projeto, sua engenharia financeira e sua implementação, visto que
já existe uma infinidade de estudos que se debruçaram sobre esses as-
pectos (Broudehoux e Monteiro, 2017; Giannella, 2013; Gaffney, 2016;
Sarue, 2016; Sánchez e Broudehoux, 2013; Pereira, 2015; Mosciaro e
Pereira, 2019; Stroher, 2017). Em vez disso, pretende-se aqui destacar
uma característica do projeto Porto Maravilha enquanto proposta de
regeneração urbana: a sua aposta especulativa no mercado imobiliário
comercial como âncora para gerar os recursos financeiros para as obras,
serviços e melhorias na área de intervenção. Como veremos, é preciso
situar o projeto Porto Maravilha em um contexto de crescente partici-
pação e interesse de investidores financeiros no mercado imobiliário co-
mercial: atores como fundos imobiliários, fundos de pensão e property
companies têm ganhado proeminência no investimento em segmentos
Uma aposta especulativa no futuro 69

como edifícios de escritórios, shopping centers e armazéns logísticos


(Sanfelici, 2018; Sanfelici e Halbert, 2019; Sanfelici e Magnani, 2021a).
Em princípio, esses investidores enxergariam o projeto como uma opor-
tunidade excepcional para a extração de rendas imobiliárias, tendo em
vista as tendências observadas no Centro da cidade nos anos que ante-
cederam o projeto. No entanto, a convergência de tendências negativas
para economia local e regional a partir de 2015 acabou por frustrar as
expectativas de crescimento do mercado imobiliário local, trazendo à
luz a vulnerabilidade do projeto Porto Maravilha às flutuações do ciclo
imobiliário e expondo as contradições do discurso sobre sua natureza
autofinanciável.
O capítulo divide-se em três partes. Na primeira seção, discutiremos
brevemente as políticas de regeneração urbana, voltadas para a recon-
versão do uso do solo em antigas áreas industriais ou portuárias. Em
seguida, apresentamos brevemente algumas características mais salien-
tes do Porto Maravilha, situando o projeto no contexto urbanístico em
que está inserido. Na terceira e última seção, apresentamos alguns dados
sobre os investimentos realizados por atores financeiros no perímetro
do projeto, mas também em áreas adjacentes, identificando a dinâmica
imobiliária local e discutindo a aposta de autoridades políticas e formu-
ladores de política pública no extravasamento da expansão imobiliária
da área central. Por fim, concluímos com algumas considerações sobre
as alternativas abertas para políticas urbanas em antigas áreas indus-
triais ou portuárias.

Reestruturação econômica e as políticas de regeneração urbana

O ponto de partida para situar historicamente as transformações que


têm ocorrido, em muitas metrópoles, em áreas portuárias desativadas e
em antigas áreas industriais consiste no reconhecimento das forças de
reestruturação da economia global vigentes desde pelo menos os anos
1980. A transição para uma economia fortemente centrada na dimensão
cognitiva (Scott, 2014), integrada em redes de produção territorialmen-
te dispersas (Coe et al., 2014) e articulada por um sistema financeiro
fortemente globalizado (Dixon, 2014) configurou uma divisão interna-
70 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

cional do trabalho bastante distinta daquela que caracterizara o período


de expansão keynesiano-fordista, deflagrando novas forças de transfor-
mação no uso do solo urbano nas principais metrópoles do mundo –
ainda que, deve-se ressaltar, de forma bastante diferenciada a depender
da maneira pela qual cada cidade se integrou à economia globalizada.
O principal vetor de mudança consistiu na perda gradativa de im-
portância das atividades industriais nas economias mais avançadas, mas
também em economias de renda média como o Brasil e a maior parte
da América Latina, que se mostraram vulneráveis ao processo de de-
sindustrialização precoce, ou seja, à perda de participação da ativida-
de industrial no produto interno bruto como resultado de dificuldades
macroeconômicas e institucionais diversas. À tendência de diminuição
da participação da indústria manufatureira na economia combinou-se
uma busca por redução dos custos de produção nos setores industriais
remanescentes, favorecendo o deslocamento das instalações industriais
para as franjas metropolitanas ou para cidades médias e pequenas no
interior. Acrescente-se que, com o crescimento das metrópoles, diversas
atividades complementares e intensivas em uso do solo, como as ativi-
dades portuárias e de armazenamento logístico, encontraram obstácu-
los crescentes para permanecer em áreas mais centrais, seja por conta
de limitações físicas para expansão (caso frequente das instalações por-
tuárias), seja em virtude da elevação do preço do solo urbano em áreas
mais bem localizadas.
Essas tendências de perda de participação da atividade industrial na
economia e de deslocamento de atividades intensivas em uso do solo
para fora das metrópoles tiveram, contudo, um lado reverso: nas prin-
cipais economias do mundo, e principalmente nas suas metrópoles, ob-
servou-se, desde os anos 1980, um crescimento expressivo de setores e
de funções econômicas ancoradas em diferentes modalidades de traba-
lho cognitivo ou cultural: desde aquelas funções de gestão e administra-
ção, passando por setores como produção cultural, serviços financeiros,
marketing, design, tecnologia da informação e incluindo, também, a
pesquisa científica e tecnológica realizada por universidades e institutos
de pesquisa. Esses setores e atividades, todos fortemente dependentes
de economias de aglomeração para atingir máxima eficiência (Tinoco,
2003; Vale, 2012), revigoraram a demanda por solo urbano em áreas
Uma aposta especulativa no futuro 71

degradadas, mas de grande acessibilidade nas adjacências dos centros


das metrópoles. Daí que aqueles fragmentos abandonados pelas ativi-
dades da economia fordista, e as rendas imobiliárias que sua renovação
promete gerar, se tornaram alvo do interesse de investidores e incorpo-
radores imobiliários.
Em que pese, contudo, o elevado potencial de captura de rendas
imobiliárias potenciais – nos termos de Smith (2007) –, as incertezas
que permeiam as decisões de investimento nesses fragmentos desvalo-
rizados do tecido urbano são bastante elevadas, criando obstáculos ao
mercado imobiliário. É comum se formarem, nas metrópoles, cinturões
de desvalorização imobiliária que atraem toda sorte de atividades consi-
deradas socialmente indesejáveis ou degradadas (prostituição, tráfico de
drogas, crimes patrimoniais, etc.) ou então configuram extensos bolsões
de pobreza, com a ocupação irregular de edifícios e galpões abandona-
dos (Singer, 2017). Resulta disso que poucos investidores assumem in-
dividualmente o risco de aplicar seus capitais na requalificação do solo
urbano em tais fragmentos da cidade. A partir dos anos 1980, multipli-
caram-se coalizões de atores públicos e privados que, visando encontrar
caminhos para a revalorização desses fragmentos urbanos, desenvolve-
ram propostas de políticas de regeneração ou revitalização urbana as-
sentadas em investimentos na requalificação dos equipamentos e ser-
viços urbanos, na expansão de redes de infraestrutura e na oferta de
incentivos para o investimento privado na renovação ou reconversão
dos usos do solo. Sob a influência de uma visão de governança urbana
alargada, que ganhou força após a crise do Estado keynesiano preconi-
zando uma maior participação da sociedade civil em arenas decisórias,
essas políticas foram frequentemente levadas a cabo por meio de par-
cerias público-privadas em que os segmentos imobiliários assumiram
um protagonismo na concepção e viabilização financeira dos projetos
(Healey, 1991; Mendes, 2013).
Os resultados dessas intervenções urbanas foram objeto de extensos
debates na literatura urbana ao longo das últimas três décadas, a partir
de diferentes tradições teóricas. Os autores mais vinculados à tradição
da economia política (neo)marxista – desde o conhecido trabalho de
Harvey (1989) sobre o empreendedorismo urbano – têm destacado o
fato de que os projetos de intervenção urbana assentados na regeneração
72 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

de áreas desvalorizadas/degradadas expressam uma transição de uma


concepção mais holística de gestão urbana, vigente na era keynesiana,
para uma concepção mais estreita de planejamento urbano estratégico
(neoliberal) capitaneado pelo mercado. Muitas pesquisas nessa tradição
demonstraram que esses projetos urbanos foram justificados pela ne-
cessidade de atrair investidores externos ou visitantes (turistas) em um
ambiente de acirrada competição interurbana e interregional suscitada
pela globalização, o que acabou por imprimir certas características re-
correntes aos projetos dessa natureza em cidades mundo afora.
Convém destacar, nesse sentido, a aposta na construção de equipa-
mentos culturais ou de entretenimento como ancoragem dos projetos
(estádios esportivos, museus, aquários, etc.) e como veículo simbólico
para promover uma nova imagem para a cidade; a extensão e comple-
xidade da intervenção, com o estímulo ao uso misto do solo; o uso de
fontes variadas (públicas e privadas) para o financiamento dos projetos,
incluindo os mecanismos de captação de recursos mediante a venda do
direito de construir; a flexibilização da legislação de uso do solo urbano
e os incentivos fiscais para a atração de investidores do mercado imo-
biliário; a expansão dos investimentos em infraestrutura de transporte
conectando o perímetro de intervenção com as principais centralida-
des das cidades. Todas essas características, voltadas para atrair o in-
vestimento privado, acabaram por moldar os projetos de regeneração
urbana em um sentido que exacerba as desigualdades territoriais ao
concentrar investimentos em fragmentos seletos do território. Acres-
cente-se, ainda, que muitos desses projetos foram implementados em
áreas ocupadas por moradores de baixa renda, que se beneficiavam da
proximidade com os serviços e equipamentos das áreas centrais das ci-
dades. Em muitos projetos dessa natureza, a população de rendas mais
baixas que residia nas áreas de intervenção foi substituída por grupos
sociais de renda média e alta, seja diretamente por meio de remoções,
seja em um prazo mais longo, em virtude do encarecimento da moradia
e dos custos de vida em geral.
Ainda que reconhecendo esses traços em comum em tantos projetos
de regeneração urbana, autores mais ligados à teoria dos regimes ur-
banos ou ao institucionalismo advertem, porém, para a necessidade de
reconhecer a heterogeneidade dos arranjos políticos e institucionais que
Uma aposta especulativa no futuro 73

alicerçam tais projetos. Em outras palavras, ainda que se identifiquem


determinadas tendências globais de mudança suscitadas por paradig-
mas de política pública que circulam entre gestores e policy-makers, é
preciso atentar para os contextos locais e nacionais e como esses últi-
mos moldam algumas das características e dos impactos sociais e terri-
toriais dos projetos. Ao falar em contextos, referimo-nos a aspectos tão
variados como a coalizão de atores públicos e privados que torna viável
determinado projeto; os interesses e recursos de poder que esses atores
mobilizam para atingir seus objetivos; as combinações de fontes de fi-
nanciamento que alavancam a execução dos projetos; a existência ou
não, bem como a efetividade, de canais para a participação social; a le-
gislação de uso do solo vigente em determinada localidade e os esforços
e constrangimentos no sentido de modificá-la; a natureza dos capitais
que investem na área, etc. A atenção aos contextos oferece um caminho
analítico profícuo, e muitas vezes pouco explorado no âmbito de análi-
ses da economia política sobre o neoliberalismo urbano, para iluminar
a singularidade das transformações socioterritoriais promovidas pelas
políticas de regeneração urbana em cada realidade.
No contexto dessa preocupação maior em especificar a diversida-
de de forças que imprime certas características urbanísticas e morfo-
lógicas aos projetos de desenvolvimento urbano, muitos pesquisadores
têm investigado, nos anos recentes, o papel de investidores financeiros
em influenciar o desenho e implementação de projetos de regeneração
urbana. Com efeito, na esteira da crise subprime de 2008, as pesqui-
sas sobre a influência dos mercados financeiros na produção urbana se
multiplicaram. Ao revisar a literatura sobre a relação entre mercados
financeiros e projetos de desenvolvimento urbano, Guironnet e Halbert
(2014) identificaram três vertentes de análise prevalentes: a primeira se
refere às pesquisas sobre a evolução do financiamento ao desenvolvi-
mento urbano, que passou a recorrer, de modo crescente e sobretudo
nos Estados Unidos, ao mercado de capitais à medida que minguavam
os recursos do orçamento público, seja por dificuldades fiscais, seja por
redução de transferências de outros níveis de governo; a segunda ver-
tente remete às pesquisas que investigaram as inovações no mercado
de hipotecas securitizadas, que estiveram por trás do boom e depois do
colapso imobiliário nos Estados Unidos na década de 2000 e que deixa-
74 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

ram para trás um rastro de imóveis desocupados, sobretudo em bairros


majoritariamente habitados por minorias étnico-raciais; e, por fim, as
pesquisas que se debruçaram sobre a reestruturação dos mercados imo-
biliários à medida em que investidores financeiros passaram a adquirir
fatias relevantes do ambiente construído urbano, desde imóveis isola-
dos, como torres de escritório, até shopping centers, equipamentos de
infraestrutura, armazéns logísticos, etc.1
Pretende-se aqui contribuir com essa última vertente lançando um
olhar sobre a expansão do investimento imobiliário no Centro do Rio
de Janeiro e, em particular, sua tendência ao extravasamento em direção
ao perímetro do projeto Porto Maravilha. Argumentamos que, embo-
ra a realidade brasileira exiba muitas diferenças de contexto com a de
países como os Estados Unidos, recomendando, portanto, cautela ao se
adotar esquemas interpretativos como o da “máquina urbana de cresci-
mento” ou do “empreendedorismo urbano” (Marques, 2017), o projeto
Porto Maravilha possui características que permitem traçar um paralelo
com a realidade de casos paradigmáticos de intervenção urbanística em
países do Norte global. Isso porque o desenho e engenharia financeira
do projeto foram concebidos de tal maneira que seu sucesso depende,
fortemente, da concretização de um fluxo de investimentos imobiliários
que permitam financiar a criação e manutenção da infraestrutura e ser-
viços públicos no perímetro de intervenção. Com isso, como veremos,
o projeto ficou particularmente vulnerável à retração dos investimentos
imobiliários na esteira da recessão econômica enfrentada pelo país a
partir de 2015, sem que esse contexto tenha sido aproveitado para mo-
dificar a natureza do projeto em um sentido mais social.

O projeto Porto Maravilha: breves considerações sobre seu dese-


nho e condições de viabilidade

Um primeiro ponto a ser destacado com o fim de contextualizar históri-


ca e geograficamente o surgimento do projeto Porto Maravilha refere-se
ao papel que o Centro da cidade do Rio de Janeiro desempenha em re-

1 Para outra revisão da literatura recente, ver Klink e Souza (2017).


Uma aposta especulativa no futuro 75

lação ao conjunto da metrópole. Em contraste com outras metrópoles,


como São Paulo, o Centro do Rio de Janeiro continuou desempenhan-
do o papel de distrito principal de negócios da cidade, mesmo depois
da forte expansão da malha urbana em direção ao oeste e sudoeste do
município ao longo das últimas cinco décadas. Essa particularidade se
explica, em parte, pelas características topográficas do município, que
colocam obstáculos a expansão da ocupação para novas áreas próxi-
mas. Enquanto a topografia de São Paulo deixou a cidade em grande
medida desimpedida para sua expansão horizontal, no Rio de Janeiro, a
topografia acidentada e o limite imposto pela Baía da Guanabara e pelas
praias dificultou o surgimento de distritos secundários de negócios. A
partir dos anos 1980, o bairro da Barra da Tijuca tem emergido como
um polo secundário de negócios da cidade, mas a distância em relação
aos aeroportos da cidade (Santos Dumont, no Centro, e Galeão, na Ilha
do Governador) e ao polo principal de negócios dificultam a atração de
mais empresas para a região.
Essas características fizeram com que surgissem muitas iniciativas
bastante originais, no contexto brasileiro, para viabilizar o crescimen-
to da oferta do estoque imobiliário empresarial de alto padrão na área
central. A título de exemplo, o Rio de Janeiro tem sido uma das princi-
pais cidades brasileiras em investimentos de retrofit de edifícios antigos
ou obsoletos, termo que designa uma ampla renovação da estrutura do
imóvel com o propósito de adequá-lo às exigências mais atuais das em-
presas para o exercício de atividades de negócios. Tal operação enfrenta
dificuldades no Brasil devido à pulverização da propriedade imobiliária
dos imóveis de grande porte, como edifícios de escritórios, que con-
tam com inúmeros proprietários. Ainda assim, a empresa de exploração
imobiliária São Carlos Empreendimentos, fundada no Rio de Janeiro e
cujo capital é hoje negociado na Bolsa de Valores, tornou-se uma das
pioneiras nas reformas do tipo retrofit e realizou inúmeros investimen-
tos no estoque imobiliário da área central da cidade. Investimentos se-
melhantes foram depois realizados por outras empresas e organizações,
incluindo o fundo de pensão Previ, dos funcionários do Banco do Brasil.
Apesar dessas iniciativas, a oferta de estoque imobiliário novo re-
velar-se-ia, cedo ou tarde, insuficiente para atender ao crescimento da
demanda por espaço empresarial na área central. Assim, desde a década
76 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

de 1990, ainda na gestão do prefeito Cesar Maia, havia planos do mu-


nicípio de renovar a zona portuária da cidade como um espaço de ex-
pansão do distrito de negócios da cidade. A intervenção era justificada
como necessária diante da saturação do estoque imobiliário comercial
do Centro e como oportuna diante da obsolescência dos usos do solo
na zona portuária. Sua pertinência também era apontada devido à pro-
ximidade dessa área com o Centro, com o aeroporto Santos Dumont e
com o Terminal Rodoviário Novo Rio.
As condições para a viabilização de tal projeto, porém, só viriam a
se concretizar nos anos 2000. Naquela década, o Rio de Janeiro assistiu
a uma parcial reversão da trajetória de estagnação econômica experi-
mentada pela cidade desde a transferência da capital para Brasília. Essa
reversão foi predominantemente capitaneada pelo boom da cadeia de
petróleo e gás no Estado, cuja produção experimentou um crescimento
bastante expressivo entre 2000 e 2013 (Oliveira e Melo, 2015), mas tam-
bém contou com a forte expansão do emprego no setor público federal
durante os governos Lula (2003-2010). Com a arrecadação em alta, e a
demanda imobiliária das empresas em ascensão, o governo municipal
enxergou uma oportunidade de articular com os demais entes federa-
tivos um novo projeto para a renovação do antigo porto. Esse projeto
era parte de um conjunto mais abrangente e ambicioso de intervenções
urbanísticas, todas relacionadas à preparação do município para rece-
ber os jogos da Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016
(Vainer et al., 2016).
O desenho do modelo implementado no projeto Porto Maravilha
reflete essa articulação entre escalas políticas.2 Fruto de negociações en-
tre os governos municipal, estadual e federal, o projeto Porto Maravilha
combinou, de forma bastante original, uma série de instrumentos ur-
banísticos e financeiros já utilizados isoladamente em outros contextos.
Destaque-se, aqui, o uso de uma operação urbana consorciada, uma
parceria público-privada e um fundo de investimento imobiliário cons-
tituído para dar lastro financeiro à operação.
No que se refere à Operação Urbana Consorciada (OUC), o instru-
mento foi aprovado em 2009 e incluiu a criação de uma sociedade de

2 Para maiores detalhes, consultar Pereira (2015).


Uma aposta especulativa no futuro 77

economia mista para coordenar a implementação do projeto – a Com-


panhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janei-
ro (CDURP). O perímetro delimitado compreendeu uma área de mais
de 5 milhões de m2, acrescidos de um estoque adicional de construção
de 4 milhões de m2, na forma de Certificados de Potencial Adicional
de Construção (CEPACs). Acrescente-se que foram definidos parâme-
tros urbanísticos bastante flexíveis em algumas partes da operação, bem
como foi prevista a isenção de tributos municipais (ITBI, IPTU e ISS)
para empreendimentos imobiliários no perímetro de intervenção. Um
ponto importante a ser sublinhado é a forma como a operação urbana
foi apresentada, pelas autoridades políticas, como autofinanciável, ten-
do em vista que a venda de CEPACs para empreendedores imobiliários
geraria os recursos necessários para a execução das obras de infraestru-
tura e para os serviços de manutenção dos equipamentos e áreas públi-
cas. Voltaremos a esse ponto mais adiante.
O segundo pilar do modelo de intervenção consistiu na aprovação
de uma parceria público-privada (PPP) que acabou sendo dividida em
duas etapas. A primeira etapa, cuja licitação foi concluída em 2010, li-
mitou-se a um perímetro reduzido (uma espécie de piloto) da área de
intervenção, com o objetivo de realizar obras de requalificação da in-
fraestrutura urbana (redes de água e esgoto, pavimentação, calçadas)
nos bairros da Saúde, Gamboa e na área do morro da Conceição. Essa
licitação foi vencida por um consórcio formado pelas empresas Ode-
brecht, OAS e EIT. Como ressalta Pereira (2015), “[e]ssa primeira roda-
da de intervenções foi custeada com recursos do orçamento municipal,
dando já os primeiros sinais de incongruência entre os discursos de que
o projeto de revitalização seria integralmente realizado sem o uso de
recursos públicos e o que efetivamente aconteceu” (p. 187).
Uma segunda etapa da operação, que incluiria a maior parte da área
de intervenção, foi licitada em 2010 à Concessionária Porto Novo S.A.,
consórcio entre as empresas Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia.
Essa etapa envolveu um conjunto de intervenções maiores, dentre os
quais a demolição do Elevado da Perimetral, a construção de novas vias,
incluindo trechos subterrâneos (túneis), redes cicloviárias, a restaura-
ção de sítios arqueológicos e a construção do Museu de Arte do Rio
de Janeiro (MAR). A concessão também incluiu serviços públicos de
78 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

limpeza, coleta de lixo, iluminação pública e manutenção viária por um


período de quinze anos.
O terceiro e último pilar que caracterizou a intervenção consistiu na
venda integral dos CEPACs a um fundo de investimento imobiliário (FII)
que tem como único cotista a Caixa Econômica Federal, por meio do
Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). O FII Porto Maravilha,
como foi denominado, se constituiu com um aporte inicial de R$3,5 bi-
lhões, com recursos do FGTS, para a aquisição da totalidade dos CEPACs
emitidos pela CDURP – uma operação inédita no Brasil, uma vez que
não há outro caso de FII constituído para o investimento em CEPACs. A
venda da totalidade dos CEPACs para um único fundo também foi uma
iniciativa inédita no âmbito das Operações Urbanas no Brasil, que haviam
sido executadas por meio de leilões sucessivos com o objetivo de explo-
rar ao máximo o potencial de valorização dos certificados no tempo. A
venda antecipada, porém, foi considerada oportuna pela CDURP, tendo
em vista a previsão de dispêndios elevados com obras de infraestrutura
já no início do período de intervenção. Além disso, convém destacar que
a operação de venda de CEPACs veio atrelada também ao repasse, pela
CDURP, de terrenos públicos localizados no perímetro de intervenção,
sem os quais não teria sido possível, ao FII Porto Maravilha, aproveitar
as CEPACs adquiridos com a transação. Esses terrenos, conforme mostra
Pereira (2015), pertenciam aos três entes federativos, embora a maioria
estivesse em posse de diferentes órgãos da União.
Essa breve síntese das características do modelo de intervenção im-
plementado no Porto Maravilha permite destacar dois aspectos que são
relevantes para entender a dinâmica do projeto e sua evolução recente.
Um primeiro aspecto a ser observado refere-se ao modo como se deu
a participação do Estado na operação. Muito embora a operação tenha
sido exaltada como um exemplo de intervenção autofinanciada com re-
cursos da iniciativa privada, o que se observou foi que, em diferentes
etapas de sua consecução, o poder público em suas diferentes escalas
políticas direcionou recursos ou liberou ativos para amparar a operação.
Destaque-se aqui os aportes feitos pela Prefeitura do Rio de Janeiro à
CDURP, mas também a liberação, por meio de leilões, de terrenos pú-
blicos na região, sem os quais a venda dos CEPACs e, por conseguinte,
o mercado imobiliário ficaria inviabilizado.
Uma aposta especulativa no futuro 79

Relacionado a esse primeiro aspecto se vincula um segundo, que


concerne à partilha de riscos no âmbito da operação. Como ressalta Pe-
reira (2015), a decisão da Caixa Econômica Federal, por meio da criação
do FII Porto Maravilha, de adquirir a totalidade das CEPACs emitidas
pelo Porto Maravilha permitiu à CDURP financiar as obras de infraes-
trutura e serviços que dariam suporte à valorização fundiária e imo-
biliária da região. Nesse sentido, o contrato estabelecido entre a Caixa
Econômica Federal e a CDURP deu garantias à primeira de que os in-
vestimentos em infraestrutura necessários para rentabilizar o FII criado
seriam executados e os terrenos que permitiriam o aproveitamento dos
CEPACs seriam transferidos ao fundo. Esse expediente minimizou, de
uma parte, o risco da Caixa Econômica Federal de ver os investimentos
públicos em infraestrutura não se concretizarem, o que inibiria a va-
lorização dos CEPACs. Por outro lado, e apesar dessas garantias, o FII
Porto Maravilha assumiu, ainda assim, um risco importante: a revenda
(com ágio) dos CEPACs e, portanto, o sucesso do fundo só se efetivaria
se o mercado imobiliário efetivamente se interessasse e propusesse in-
vestimentos na área. É aqui que entra em jogo uma expectativa coletiva
de crescimento do mercado imobiliário carioca, baseada na extrapola-
ção de tendência já visível nos anos precedentes: a do extravasamento
do centro de negócios da cidade do Rio de Janeiro em direção à área
do Porto Maravilha. Essa expectativa estava fundamentada no interesse
crescente de investidores financeiros em edifícios corporativos e de es-
critórios na área central da cidade, em resposta à demanda de empresas,
profissionais liberais e atividades comerciais. Mas, conforme veremos,
essa expectativa se realizou apenas parcialmente, acarretando proble-
mas para o projeto de intervenção.

O mercado imobiliário comercial como âncora do projeto Porto


Maravilha

Conforme discutimos nos parágrafos precedentes, a cidade do Rio de Ja-


neiro experimentou, a partir dos anos 2000, uma atmosfera de euforia em
decorrência dos investimentos crescentes na cadeia de petróleo e gás, do
crescimento do setor público federal, que tem forte representação na cida-
80 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

de, e da sua escolha como sede para os megaeventos esportivos, a começar


pelos Jogos Pan-americanos de 2007. Essa euforia se refletiu no crescente
interesse de investidores financeiros no mercado imobiliário comercial
carioca, sobretudo nos segmentos corporativo, de escritório e de varejo.
Como a demanda de novos empresas por espaço crescia, mais e mais in-
vestidores financeiros se interessavam por adquirir edifícios corporativos
que pudessem gerar um fluxo de receitas regulares no longo prazo, bem
como rendimentos na forma de ganhos de capital em decorrência da va-
lorização dos imóveis no tempo. O Mapa 1 registra os ativos imobiliários
de propriedade de investidores institucionais e financeiros na área central
do Rio de Janeiro, para o ano de 2020. O mapa também delimita o perí-
metro de intervenção do projeto Porto Maravilha.

Mapa 1. Propriedades imobiliárias detidas por grandes investidores corporativos e


financeiros na área central do Rio de Janeiro (2020)

Elaborado a partir de: Relatórios anuais dos fundos imobiliários; Relatórios anuais dos
fundos de pensão; e Relatórios Trimestrais das empresas listadas

É importante destacar que se trata, aqui, somente de um recorte da


dinâmica do mercado imobiliário local, baseada nos investimentos de
Uma aposta especulativa no futuro 81

três grupos de investidores corporativos e financeiros: as property firms,


empresas com capital aberto na B3 (Bovespa); os Fundos de Investimen-
to Imobiliário (FII) abertos, ou seja, também listados na bolsa de valo-
res; e os fundos de pensão, a maioria estatais. Esses investidores com-
partilham algumas convenções e práticas de investimento, mas também
se diferenciam em relação ao horizonte temporal dos investimentos,
preferências de risco e retorno, gestão ativa ou passiva dos imóveis etc.
(Sanfelici e Magnani, 2021b). O que importa assinalar, contudo, é o in-
teresse desses grupos de investidores na aquisição de estoques imobi-
liários localizados na área central do Rio de Janeiro e, em particular, a
tendência observada de uma concentração de investimentos em direção
ao perímetro de intervenção do Porto Maravilha. Essa tendência vinha
sendo observada há mais tempo e serviu de substrato para o desenho da
modelagem do projeto e para a decisão de investimento da Caixa Eco-
nômica Federal, via FII Porto Maravilha, na aquisição da totalidade dos
CEPACs emitidos pela CDURP.
Argumentamos que o projeto Porto Maravilha superestimou as ten-
dências de crescimento da demanda por imóveis comerciais no curto e
médio prazo e, principalmente, subestimou a natureza cíclica do mer-
cado imobiliário comercial, já bastante conhecida na literatura existen-
te (Lizieri, 2009; Weber, 2015). Ao fazê-lo, o projeto ficou vulnerável
às oscilações de baixa do mercado imobiliário, que se revelaram ainda
mais severas ao longo da década de 2010 em virtude da convergência
de variáveis macroeconômicas negativas, forçando, assim, uma trans-
ferência de riscos da operação para o poder público. Acrescente-se que
a insistência em um projeto monofuncional, que excluiu, em grande
medida, usos residenciais em favor do segmento comercial corporati-
vo, tornou a área ainda mais suscetível às dificuldades enfrentadas pela
economia do estado do Rio de Janeiro na esteira da crise de 2015-16.
Fortemente dependente do petróleo, essa unidade da federação experi-
mentou uma recessão ainda mais severa do que o restante do país, com
aumento recorde das taxas de desemprego, queda nos investimentos e
recuo no PIB.
Essas características do projeto e o agravamento da recessão após
2015 esgarçaram, em diversas ocasiões, as relações entre os parceiros
no projeto. Em 2017, por exemplo, a concessionária Porto Novo (Ode-
82 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

brecht, OAS e Carioca) determinou a paralisação dos serviços de limpe-


za, manutenção dos espaços públicos e controle de tráfego. Esses servi-
ços tiveram que ser assumidos pela prefeitura, que havia desde o início
enaltecido o projeto como autossuficiente do ponto de vista financeiro.
A interrupção na manutenção e serviços se deveu ao fato de que o FII
Porto Maravilha, da Caixa Econômica Federal, às voltas com dificul-
dades na revenda dos CEPACs adquiridos, não conseguira repassar à
CDURP os recursos que deveriam ser transferidos à concessionária para
a execução dos serviços.3 Durante essa crise, cogitou-se até mesmo da
prefeitura recomprar os CEPACs da Caixa Econômica Federal para dar
liquidez à operação, o que acabou rejeitado na Câmara de Vereadores.
O Gráfico 1 registra (com uma pequena lacuna no ano de 2019 por
falta de dados) as taxas de vacância (porcentual desocupado) do seg-
mento imobiliário de escritórios em áreas selecionadas da cidade do Rio
de Janeiro. Observa-se que a taxa de vacância se manteve relativamente
baixa no Centro e na Zona Sul da cidade, subindo apenas alguns pontos
percentuais na esteira da crise econômica do Estado. No entanto, no
perímetro do Porto Maravilha a taxa de vacância explodiu, elevando-se
a patamares superiores a 40% e mantendo-se em tais níveis até hoje.
Mesmo outras áreas de escritórios que sofreram com a recessão, como a
Barra da Tijuca, já registram queda nas taxas de vacância depois da crise
de 2015. Isso indica que a expectativa de crescimento rápido da deman-
da imobiliária para a zona portuária não se concretizou e que a aposta
especulativa no futuro dinamismo do mercado revelou-se profunda-
mente descolada da realidade. Com efeito, a própria Caixa Econômica
Federal declarou recentemente, em estudo apresentado para subsidiar
ação na Justiça Federal, que a estimativa de absorção dos CEPACs pelo
mercado imobiliário foi grosseiramente superestimada. O banco ainda
criticou o fato de a prefeitura ter direcionado tantos investimentos e
projetos para a Barra da Tijuca, inviabilizando o sucesso da interven-
ção na área portuária.4 Os dados mais recentes do mercado imobiliário

3 “Prefeitura assumirá serviços no Porto Maravilha durante paralisação da concessio-


nária”, O Globo, 04 jul. 2017. Disponível em: https://glo.bo/3eJSAxT. Acesso em: 27 dez.
2021.
4 “Caixa diz que Porto Maravilha era inviável desde o início”, Folha de São Paulo, 04 jun.
2020. Disponível em: https://bit.ly/3sBczXo. Acesso em: 27 dez. 2021.
Uma aposta especulativa no futuro 83

sugerem que os preços dos imóveis corporativos continuam em queda,


embora nesse segmento tenha havido alguma recuperação mais recente
da taxa de vacância.5

Gráfico 1. Taxa de vacância do segmento office em áreas


selecionadas do Rio de Janeiro

Fonte: Revista Buildings (buildings.com.br/revista). Elaborado por Guilherme Muniz


Filho

Em síntese, o projeto Porto Maravilha atrelou seu eventual êxito ao


dinamismo e vitalidade do mercado imobiliário carioca, em particu-
lar no segmento comercial de escritórios. Essa escolha teve uma série
de implicações não apenas para os participantes diretos no projeto,
incluindo um banco público, mas para a sociedade mais ampla. Em
primeiro lugar, a escolha por ignorar as demandas e carências de ha-
bitação na cidade, e sobretudo de habitação social, não apenas resulta-
ram em um projeto mais elitizado e monofuncional – repetindo os co-
nhecidos equívocos do urbanismo modernista – mas também tornou
o projeto mais vulnerável ao ciclo imobiliário comercial e à amplitude
de suas flutuações. Como vimos, a desaceleração do mercado imo-

5 “No Porto Maravilha, três anos de queda livre no preço dos imóveis corporativos”,
O Globo, 29 jul. 2021. Disponível em: https://glo.bo/3JfBlSS. Acesso em: 27 dez. 2021.
84 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

biliário de escritórios na área expôs as fragilidades de concepção do


projeto de intervenção. Um projeto que apostasse em maior diversida-
de de ocupação, incluindo uma mescla de habitação social, habitação
a preços de mercado, comércio varejista e atividades do setor público,
além de investimentos maiores em requalificação dos assentamentos
informais, poderia se mostrar mais resiliente aos ciclos econômicos.
Em segundo lugar, o projeto resultou em forte transferência de riscos
(e, no fim das contas, ônus) da iniciativa privada para o setor público,
tendo em vista que a prefeitura precisou socorrer a operação a fim
de evitar a paralisação dos serviços básicos de manutenção. Ademais,
ressalte-se que, ao comprar todos os CEPACs, a Caixa Econômica Fe-
deral, por meio do FGTS, assume, com o uso de recursos de trabalha-
dores, os riscos de uma operação mal concebida desde o início. Assim,
o projeto de regeneração da área – sem dúvida desejável se tivesse se-
guido um plano mais inclusivo e abrangente – revelou-se refém de
concepções muito estreitas de regeneração urbana que circulam entre
redes de políticas públicas internacionais, com foco na valorização
imobiliária, no branding urbano, no turismo e nos megaeventos es-
portivos (Raco, 2014; Degen e Garcia, 2012).

Considerações finais

Nas últimas décadas, as metrópoles vêm experimentando um conjun-


to de transformações econômicas e sociais que intensificaram pressões
para adaptações e mudanças nos usos do solo urbano. Com o advento
de uma economia mais dependente dos serviços, muitas áreas que ha-
viam desempenhado funções vitais à cidade, abrigando seja atividades
manufatureiras, seja instalações de logística e armazenamento, se vi-
ram sujeitas a um esvaziamento funcional e/ou obsolescência física.
Na medida que a iniciativa privada frequentemente se mostrou relu-
tante em investir nessas áreas consideradas degradadas, em decorrên-
cia do risco que esses investimentos embutem, surgiram, assim, pro-
postas de intervenção do poder público no sentido de coordenar os
capitais privados para “revitalizar” tais espaços ou, alternativamente,
de investir diretamente em infraestrutura e equipamentos culturais na
Uma aposta especulativa no futuro 85

esperança de atrair investidores e turistas. Tendo como foco a análise


da regeneração da zona portuária do Rio de Janeiro, argumentamos
que o projeto Porto Maravilha, uma parceria público-privado fruto
de uma articulação inédita entre escalas políticas em um contexto de
expectativas econômicas otimistas, apostou no extravasamento do
investimento imobiliário comercial do Centro em direção ao Porto
Maravilha – previsão que acabou por não se concretizar nos anos sub-
sequentes. Esse resultado acabou transferindo o ônus da operação a
outros agentes e setores da sociedade, ao mesmo tempo que as rei-
vindicações de grupos sociais, mobilizados em canais de participação,
para que o projeto incorporasse empreendimentos de moradia social
foram ignoradas.
A lição a ser extraída desse caso não é a de que se deveria recusar
todo e qualquer projeto para reconversão de usos do solo obsoletos,
visando adequá-los a usos mais condizentes com a economia atual. As
grandes metrópoles hoje dispõem de consideráveis estoques de ter-
renos subutilizados em áreas bastante acessíveis aos seus principais
polos de emprego, como resultado da evasão histórica da atividade
industrial e outras afins em direção às franjas metropolitanas. Essas
áreas deveriam ser adensadas, pois assim contribuem para uma cidade
mais compacta, reduzindo as distâncias percorridas diariamente pelos
moradores, aproveitando melhor a infraestrutura e gerando benefícios
ambientais com a redução das emissões de gases de efeito estufa. No
entanto, é imprescindível que tal adensamento incorpore princípios
que promovam uma cidade mais plural, com maior atenção às neces-
sidades habitacionais dos grupos mais vulneráveis e uma diversidade
de atividades comerciais e serviços públicos voltados para a população
residente. Esses princípios, contudo, dificilmente se coadunam com
uma proposta que aposte na expansão do mercado imobiliário comer-
cial para financiar equipamentos e infraestrutura.
86 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

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89
Foto: Série Fluxos, Luiz Baltar
CAPÍTULO 3

Formatos institucionais e os limites


redistributivos de grandes projetos urbanos
Uma análise comparada a partir do Porto Maravilha
Betina Sarue

Introdução

Grandes projetos urbanos têm amplo impacto no contínuo urbano e


servem como laboratórios de modelos de governança urbana tornan-
do-se uma plataforma privilegiada para análise do jogo político e da
política pública nas cidades. Daí a importância de compreender como
as combinações e variações nos seus arranjos institucionais distribuem
riscos e ampliam ou restringem benefícios aos atores envolvidos e im-
pactados por eles. Embora exista uma considerável literatura investi-
gando grandes projetos de renovação urbana, apenas alguns estudos
utilizam abordagens comparativas a partir da ciência política, analisan-
do formatos institucionais e suas relações com contextos políticos locais
e nacionais, para além das estruturas macroeconômicas que explicam a
sua disseminação. A análise comparada se torna ainda mais importante
quando as críticas aos impactos negativos e à baixa redistribuição dos
projetos se repetem nas diferentes cidades onde são realizados, sejam
no Norte ou no Sul global, e com contextos institucionais e políticos dos
mais variados.
Esse capítulo explora questões de redistribuição e participação a par-
tir da análise do projeto Porto Maravilha no Rio de Janeiro em perspec-
tiva comparada analisando questões de ordem institucional da política
pública e do contexto político. Aborda a relação entre atores privados e
públicos em modelos de governança urbana de grandes projetos urba-
nos a partir de uma comparação de usos do instrumento de Operações

91
92 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Urbanas Consorciadas, adotado no Porto Maravilha, e gestado e larga-


mente empreendido em São Paulo, e de uma comparação pontual com
o modelo de “governança contratual” (Raco, 2014) estabelecido pelo
projeto olímpico de Londres.
O capítulo é fruto de uma pesquisa aprofundada sobre políticas de
renovação urbana no Rio de Janeiro e em Londres (Sarue, 2021) buscan-
do compreender a política e as políticas por trás dos grandes projetos
da zona portuária do Rio de Janeiro e do entorno do Parque Olímpico
de Londres. A comparação entre os dois casos tem como objetivo com-
preender as suas similaridades e diferenças, dado que estão inseridos
em contextos diversos. Por fim, busca analisar quais as variáveis que
interferem nos aspectos redistributivos desse tipo de política urbana,
presente em diversas cidades do mundo.
Os aspectos redistributivos se referem à adoção (ou não) de políticas
coordenadas para reduzir desigualdades urbanas e mitigar processos de
gentrificação, que incluem políticas de habitação social, emprego e ren-
da, ampliação do acesso a infraestrutura urbana e, por fim, da criação de
interfaces socioestatais (Isunza Vera, 2006) para promover participação
da população impactada sobre os momentos de decisão dos projetos. A
proposta metodológica do trabalho parte do framework de governança
urbana (Le Galès, 2000), que propõe um enquadramento mais flexível
em relação à interação entre os diferentes atores urbanos, sendo, por-
tanto, especialmente útil à análise comparada. Nesse sentido, mantenho
uma linha teórica que busca compreender os arranjos locais em oposi-
ção à produção voltada essencialmente aos processos macroeconômicos
(Brenner, 2002). O conceito de governança urbana busca extrapolar os
limites das institucionalidades do Estado, e abordar a interpenetração
entre Estado e setores privados nas decisões e implementação de po-
líticas. Embora concorde com a combinação entre agência e estrutura,
a abordagem da governança urbana tem como foco a análise de pro-
cessos locais em resposta ao contexto macroeconômico de reprodução
capitalista amplamente analisado pela literatura (Harvey, 1989). Busca,
com isso, abranger diferentes estruturas nacionais e históricas e com-
preender os interesses em jogo na política e como eles se delimitam no
território, ou como esses processos se traduzem em arranjos formais de
política pública.
Formatos institucionais e os limites redistributivos de grandes projetos urbanos 93

O capítulo está organizado em três partes. Inicialmente apresento o


marco teórico sobre o qual repousa a análise de projetos de regeneração
urbana aqui adotada, e suas considerações quanto à utilização de tais
projetos como laboratório de governança e política urbana. Em seguida,
apresento os aspectos do arranjo carioca que delineiam o seu poten-
cial distributivo em comparação com o mesmo instrumento de política
urbana – a Operação Urbana Consorciada – utilizado em São Paulo.
Busco localizá-los à luz da trajetória política dos projetos, conectando a
análise a um quadro resumo da trajetória de formulação da política de
renovação urbana na zona portuária do Rio de Janeiro. Por fim, apre-
sento a comparação com o projeto londrino, e conclusões que vão no
sentido de sugerir continuidades para a pesquisa em sua metodologia
comparativa e histórico-institucional.

Laboratório urbano

O olhar para as cidades suscita questões a respeito das especificidades


da política de nível local. A ideia de que o que acontece na cidade não é
apenas uma reprodução em escala reduzida do funcionamento da po-
lítica nacional é cada vez mais aceita e defendida no campo dos estu-
dos urbanos (Marques, 2017). As especificidades da política do urbano
são importantes e devem ser compreendidas tanto por seus impactos
na produção e entrega de políticas, como nas dinâmicas políticas e in-
terações entre atores e instituições. O papel do local nas políticas ur-
banas, inclusive seus processos históricos ou dinâmicas políticas, vem
sendo debatido também por urbanistas, geógrafos, sociólogos e cientis-
tas políticos. O termo propinquidade (John, 2009) designa justamente
essa vinculação ao território que é característica da política do urbano
e incide sobre os processos locais. Nesse sentido, o olhar para as cida-
des como laboratórios de arranjos institucionais e experiências para
reformas e modelos de governança é um caminho de análise que vem
se constituindo a partir das experiências diversas em especial quanto à
organização de papeis entre Estado e mercado, com a crescente função
das parcerias público-privadas, cujos resultados e impactos devem ser
conhecidos (Lowndes e Skelcher, 1998). Os grandes projetos urbanos
94 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

são centrais para compreender essa reorganização e os seus impactos


para as cidades.
O Porto Maravilha no Rio de Janeiro é um grande projeto urbano
de magnitude territorial e orçamentária sem precedentes no Brasil. Mas
além da escala e dos impactos sociais e políticos, há também um impac-
to decisivo produzido pelo projeto ao introduzir um modelo de gover-
nança inédito no país. Trata-se de um modelo que, embora centrado no
instrumento das Operações Urbanas Consorciadas, que foi desenvolvi-
do e largamente utilizado em São Paulo, apresenta inovações fundamen-
tais em termos de governabilidade, institucionalidade e financiamento.
Vale ressaltar que o projeto foi pioneiro ao experimentar a concessão
a um consórcio privado de serviços urbanos básicos – como coleta de
lixo, iluminação e controle de tráfego em perímetro urbano com limites
delineados por legislação específica –, algo já bastante experimentado
no Reino Unido (Lowndes e Skelcher, 1998). Por outro lado, a engenha-
ria institucional construída no Rio de Janeiro, inclusive a concentração
do desenvolvimento imobiliário (fruto da renovação urbana) em um
banco público federal, mostram um processo de controle institucional
robusto, que seria esperado nas cidades do Norte global. Para que possa-
mos compreender como (e se) essas inovações implicam em restrições
às políticas redistributivas, é importante analisar como interferem na
governança da política.
O olhar para os projetos de renovação urbana como laboratórios para
governança urbana está presente na literatura britânica. O megaprojeto
olímpico de Londres é debatido por Raco (2014) a partir da relação entre
grandes projetos urbanos e megaeventos, sugerindo que a preparação de
Londres para as Olimpíadas de 2012 serviu como laboratório para um
novo modelo de governança híbrido público-privado, que implica uma
redução da responsabilização dos governos envolvidos, ainda que o in-
vestimento seja público. Nesse modelo, atores privados regulam em nome
do Estado e são, ao mesmo tempo, regulados por ele em um tipo de go-
vernança que o autor chama de “governança contratual”, cada vez mais
organizada por contratos vinculativos de forma que o Estado mantém
funções de “formulação”, mas delega ao mercado as funções de “imple-
mentação”. Assim, acontece uma delegação de poder de representantes
eleitos a especialistas contratados pelo Estado que atuariam como repre-
Formatos institucionais e os limites redistributivos de grandes projetos urbanos 95

sentantes indiretos (não eleitos) e de segundo nível (Levi-Faur, 2005).1 No


contexto da realização de grandes projetos urbanos, os contratos vincula-
tivos são também uma forma de “trancar” projetos uma vez que vinculam
o investimento público, reduzindo os riscos aos investidores privados que
dependem do fundo público para obterem as taxas de lucro previstas em
seus investimentos. Ao reduzir os riscos aos parceiros privados, a vincula-
ção contratual e a delegação da gestão ao segundo nível insulam a política
pública de disputas políticas internas ou externas aos governos.
Por outro lado, embora exista uma percepção clara na literatura so-
bre a dependência de grandes projetos urbanos em relação a recursos
externos aos governos locais, que por si só não dispõem de orçamento
para tanto, a análise se restringe a evidenciar a necessidade de lobby jun-
to aos governos centrais para direcionamento de investimento por meio
de relações verticais entre cidades e países2 e a ressaltar o crescimento
de parcerias público-privadas (Fainstein, 2008) em busca de recursos
privados. Faz-se necessário, no entanto, debater modelos, instrumentos
e mecanismos de coordenação política intragovernamental e em par-
cerias público-privadas para compreender as suas implicações sobre a
política pública em cada caso.
Para além de uma análise sobre as limitações distributivas do Porto
Maravilha, o ganho teórico da pesquisa que circunscreve esse capítulo
é fruto da apreciação comparativa das estruturas de governança em ci-
dades do Norte e do Sul global, buscando estabelecer paralelismos que
têm a ver com as dinâmicas de grandes metrópoles, e de entendimentos
sobre os modelos adotados (Sarue, 2021). Os resultados da comparação
dos projetos no Rio de Janeiro e em Londres aproximam não apenas as
políticas, mas também os seus produtos do ponto de vista redistributivo,
sendo ambas pautadas por coalizões políticas público-privadas vincula-
das à política econômica nacional, que levaram à utilização de grandes
quantidades de recursos públicos para conjuntos de áreas centrais, con-
tíguas e qualificadas com infraestrutura (Sarue, 2021).

1 Levi-Faur (2005) introduz uma divisão histórica do sistema capitalista em três ordens
caracterizadas pela separação entre steering (liderança, ideias e direcionamento) e ro-
wing (provisão de serviços) no âmbito do mercado e do Estado.
2 Em especial no caso norte-americano (Altshuler e Luberoff, 2004).
96 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Para compreender esses processos, é necessário analisar a trajetória


política em cada cidade, a formação de coalizões locais e nacionais, e a
forma como atores privados se inserem nas coalizões. Por fim, é neces-
sário compreender como esses acordos produzem encaixes ou desencai-
xes com modelos de desenvolvimento locais, pautados pelas demandas
dos territórios, e o quanto se inserem em uma lógica de gentrificação.
Mais do que apenas destacar tais aspectos para cidades do Sul global em
que o debate tende a ser pautado por narrativas de fragilidade institu-
cional, corrupção e ausência de planejamento, ao abordar as mesmas
estruturas em uma cidade do Norte, se tornou possível traçar parale-
lismos comuns a grandes metrópoles, ainda que com especificidades
locais (Sarue, 2021).
Compreender como os projetos de renovação urbana na região se
relacionam com as realidades específicas dos territórios e suas vulne-
rabilidades é uma forma de analisar o seu compromisso com projetos
redistributivos. Há um pressuposto que permeia projetos de renovação
urbana em casos como Canary Wharf no Reino Unido (Sarue, 2021) de
que o desenvolvimento viria como fruto da renovação física e infraes-
trutural do território, iniciando um ciclo de investimentos e oportuni-
dades que deveriam ser agarradas pelos empreendedores locais como
parte de política nacional de crescimento econômico e bem-estar so-
cial (Imrie et al., 2009). Trata-se, portanto, de depositar nos próprios
cidadãos o ônus de se capacitarem para poder surfar junto na onda do
crescimento econômico, em um processo que inclui uma percepção de
pessoas como parte do objeto da regeneração, inclusive prevendo a re-
moção de alguns grupos.
Se em Londres isso se refletiu em bolsões de riqueza em meio a
distritos empobrecidos e com altas taxas de vulnerabilidade, inclusive
mantendo taxas de desemprego, no Rio de Janeiro, embora dispomos
de poucos dados para analisar os impactos da política no território su-
perados os primeiros dez anos da criação do projeto Porto Maravilha,
a sobreposição de vulnerabilidades no local, inclusive do ponto de vista
de infraestrutura e a ausência de políticas intersetoriais e integradas vi-
sando o desenvolvimento local e a manutenção da população evidencia
uma ausência de políticas para mitigar processos de gentrificação. Essa
análise é compatível com a ausência no orçamento dos projetos para a
Formatos institucionais e os limites redistributivos de grandes projetos urbanos 97

realização de políticas integradas e intersetoriais que tenham como ob-


jetivo manter a população no local a despeito da valorização imobiliária
na região. Para compreender essas sobreposições, seria necessário levar
em consideração os planos de habitação, os planos de incentivo à eco-
nomia local e a ocupação e construção dos grandes empreendimentos
(Sarue, 2021). Nesse capítulo, no entanto, vamos nos restringir à análise
do arranjo institucional da política a partir do instrumento da Operação
Urbana Consorciada.

Para entender o arranjo: os três pilares da política

O Porto Maravilha se estrutura a partir de três pilares: a Operação Urba-


na Consorciada (OUC) para a zona portuária do Rio de Janeiro; a parce-
ria público-privada entre a agência de desenvolvimento local – Compa-
nhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro
(CDURP) – e um consórcio privado – Consórcio Porto Novo, formado
por três das principais empresas de construção civil, incorporadoras e
agentes imobiliárias, dentre outros ramos –; e a criação de dois fundos
de investimento imobiliários – Fundo de Investimento Imobiliário do
Porto Maravilha (FIIPM), controlado e administrado pela Caixa Econô-
mica Federal, e Fundo de Investimento Imobiliário da Região Portuária
(FIIRP), controlado pela CDURP e pela Caixa Econômica Federal. Não
cabe aos propósitos desse texto apresentar uma explicação detalhada
do arranjo, bastante complexo. A análise a seguir tem, no entanto, o
intuito de permitir uma comparação direta com outros modelos a fim
de compreender as suas limitações, dentro de um contexto de projetos
de renovação urbana, sejam eles grandes projetos urbanos ou não (ver
Figura 1).
98 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Figura 1. Arranjo institucional do Porto Maravilha

Elaborado pela autora.


Leia-se: AEIU – Área de Especial Interesse Urbanístico; CEF – Caixa Econômica Fe-
deral; CEPAC – Certificado de Potencial Adicional de Construção; CDURP – Compa-
nhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro; FIIPM – Fun-
do de Investimento Imobiliário do Porto Maravilha (controlado e administrado pela
CEF); FIIRP – Fundo de Investimento Imobiliário da Região Portuária (controlado pela
CDURP e administrado pela CEF); PCRJ – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; e
SECPAR – Secretaria de Parcerias.

Instrumentos de planejamento urbano

Os mecanismos de acesso à terra, instrumentos de contrapartida e as


temporalidades são elementos de planejamento urbano fundamentais
para a comparação, uma vez que determinam vantagens a atores espe-
Formatos institucionais e os limites redistributivos de grandes projetos urbanos 99

cíficos na disputa pelo excedente produzido pela valorização fundiária


oriunda dos projetos, inclusive mediante mecanismos de compensação
ou disputa direta no mercado.
O instrumento da OUC seria a principal fonte de recursos da políti-
ca, sendo que a operação do Porto Maravilha delimita uma Área de Es-
pecial Interesse Urbanístico (AEIU) com cerca de 5 milhões de metros
quadrados, e autoriza a emissão de mais 4 milhões de metros quadrados
em air rights, negociados por meio de Certificados de Potencial Adicio-
nal de Construção (CEPACs).3
O instrumento OUC surgiu em São Paulo em meados da década de
1980, antes da aprovação em nível federal do Estatuto da Cidade que
em 2001 difundiu o instrumento para o restante do país (Sarue e Pagin,
2018). Parte importante da literatura nacional entende que o instru-
mento não teve êxito em conter a exclusão das famílias de baixa renda,
e que agrava essas condições ao concentrar investimentos públicos em
infraestrutura nas áreas já privilegiadas da cidade, portanto, reforçando
desigualdades (Fix, 2001, 2009; Sarue e Pagin, 2018). São importantes
também as críticas às Operações Urbanas em São Paulo que alegam que
o instrumento incentiva a administração municipal a operar como es-
peculador imobiliário (Fix, 2009) e aquelas que apontam para a insu-
ficiência das políticas de habitação social no contexto do instrumento.
Argumento, no entanto, que embora existam limitações redistribu-
tivas inerentes ao modelo que é dependente da valorização fundiária,
uma rápida comparação do histórico de OUCs em São Paulo com a
OUC em vigor no Rio de Janeiro evidencia que alterações nas normas
internas ao instrumento tiveram impacto progressivo sobre a sua esfera
redistributiva.
O caso de São Paulo evidencia a possibilidade de um processo de
planejamento que se torna gradualmente mais redistributivista dentro
de suas limitações (Sarue e Pagin, 2018). Existem distinções importan-
tes entre os casos, como o tamanho das operações e a localização dos
projetos em termos de apetite de mercado, mas ainda assim argumento
que para explicar esse elemento redistributivo é fundamental analisar
elementos políticos – tal como a alternância de poder em eleições locais

3 Ver mais sobre as dimensões do instrumento em Sarue e Pagin (2018).


100 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

competitivas – e da política pública, tal como a institucionalização de


processos. Reforço portanto que se trata de considerar que o potencial
redistributivo existe a partir da análise do instrumento em meio a um
contexto político e institucional local, e não de vincular ao instrumento
em si um caráter progressista ou redistributivista (Sarue e Pagin, 2021).
Para além dos aprendizados sobre o instrumento específico, a com-
paração em duas cidades do Sul global torna evidente que a posição das
cidades em relação ao capitalismo global e aos fluxos de financeirização
não são explicações suficientes para compreender o progressivismo de
suas políticas. Ainda que os projetos de renovação urbana em São Paulo,
Londres ou Rio de Janeiro em alguma medida sejam excludentes, uma
vez que são estruturados em políticas de valorização do solo urbano
beneficiando grupos políticos e econômicos específicos, considero rele-
vantes as nuances de progressividade e redistribuição e argumento que é
fundamental conhecer as variáveis que resultam nessas diferenças.
Na cidade de São Paulo, desde 2003, foi inserida na regulamenta-
ção do instrumento de OUC a obrigatoriedade de investimento de ao
menos 10% dos recursos arrecadados pela operação em habitação de
interesse social, e esse percentual subiu para 25% em 2014 na gestão de
Fernando Haddad. Do ponto de vista político, é importante considerar
que esses dois avanços se deram em gestões de esquerda na prefeitura,
e que a institucionalização desse progressivismo na regulamentação do
instrumento ocorreu em um contexto político local de competitividade
eleitoral significativo. Ou seja, analisando por um ângulo institucional
da política pública, esses patamares de obrigatoriedade devem vigorar
em todas as OUCs da cidade, vigentes e futuras, independendo do go-
verno e atribuindo um progressivismo sobre o instrumento. Já no Rio
de Janeiro, apesar do enorme volume de recursos públicos investidos,
inexiste na lei de criação e em outras regulamentações posteriores qual-
quer reserva de investimento para habitação de interesse social dos va-
lores arrecadados com a venda de CEPACs. Embora tenha havido uma
proposta de reserva de 10% (Projeto de Lei 963/2011), essa não chegou
a ser votada pelo legislativo municipal, e tanto o processo da política
que nesse caso passa pela articulação junto ao governo federal, como o
contexto político eleitoral local devem ser analisados para compreender
essa ausência (Sarue, 2021).
Formatos institucionais e os limites redistributivos de grandes projetos urbanos 101

É importante a ressalva de que a definição em termos percentuais e


não em unidades absolutas também pode ser limitadora uma vez que
mantém a dependência em relação ao processo de valorização da terra
na região, fazendo com que a priorização dos investimentos seja um
tema central para análise das OUCs em São Paulo, daí a importância de
analisar a instituição gestora da operação e os mecanismos de partici-
pação social estipulados por ela, e que tem também importantes distin-
ções entre as duas cidades. Ainda que o instrumento da OUC preveja a
criação de um Conselho Gestor com participação da sociedade civil, é
fundamental considerar um debate sobre a sua efetividade.
Do ponto de vista da participação social, São Paulo regulamentou
a convocação em conselhos de OUC da sociedade civil organizada por
meio de eleição ou de indicação por pares, ao passo que no Rio de Janei-
ro a representação da sociedade civil pode ser indicada pelo presidente
do conselho, representante do poder público. Adicionalmente, se uma
importante função a ser exercida pelos conselhos participativos das
OUCs é o acompanhamento e em alguns casos a priorização de inves-
timento dos recursos arrecadados, no Rio de Janeiro, dada a contratua-
lização dos investimentos arrecadados para pagamento da parceria pú-
blico-privada, restam poucos recursos para que o comitê gestor interfira
na priorização ou deliberação sobre investimentos. Ou seja, no modelo
carioca na prática a priorização dos investimentos foi feita sem qualquer
instrumento participativo quando o valor de contrapartida pública –
arrecadado com a venda de CEPACs – foi destinado ao pagamento da
parceria público-privada de obras e serviços na região, em um contrato
de 15 anos.
Esse “congelamento” do destino da arrecadação segue o modelo de
governança contratual (Raco, 2014) abordado anteriormente, e é be-
néfico ao mercado reduzindo riscos aos investidores. No entanto, para
a população significa a impossibilidade de participar da definição de
como será usado o recurso da contrapartida pública. Isso é ilustrativo
em especial no caso das favelas localizadas no perímetro da OUC, que
não são contempladas nem com os investimentos em infraestrutura bá-
sicos como saneamento ou energia.
Com isso, ainda que em ambos os casos os recursos obtidos com a
venda de CEPACs sejam majoritariamente alocados em infraestrutura,
102 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

existe em São Paulo além de um percentual mínimo para habitação de


interesse social, algum espaço para participação pública sobre a deli-
beração dos investimentos, como é o caso da Operação Urbana Con-
sorciada Água Branca (OUCAB),4 ao passo que no Rio de Janeiro esse
recurso está previamente “bloqueado”.
Sarue e Pagin (2018, 2021) apresentam um levantamento de deci-
sões sobre a operação urbana que influenciam o montante de recursos
arrecadados na forma de contrapartida pública, bem como as definições
sobre o seu destinamento, impactando, portanto, o potencial redistri-
butivo das operações. Essas características dão um mapa da disputa de
interesses associados ao mercado da terra urbana.
Por fim, no caso do projeto olímpico em Londres, a competência
para o planejamento (e, portanto, negociação de contrapartidas com
investidores) passou a uma agência semipública, ligada à prefeitura de
Londres, e criada especialmente para promover o desenvolvimento da
região no entorno do parque olímpico, chamada London Legacy Deve-
lopment Corporation (LLDC). Para entender a atuação da empresa é
preciso compreender que no caso britânico os terrenos que abrigam o
parque e seus entornos não eram públicos, e foram comprados por meio
de um mecanismo específico para desapropriação de terras chamado
Compulsory Purchase Order (CPO), que determina a venda de terras
privadas para fins de desenvolvimento econômico mediante negocia-
ções individuais para a realocação dos pequenos proprietários (Davis
e Thornley, 2010; Newman, 2007; Raco e Tunney, 2010; Rogers, 2005).
Para tanto, houve um longo e controverso processo de desapropriação
dos terrenos que gerou, além de críticas, um endividamento junto ao
Tesouro e à Loteria Nacional, uma vez que os custos previstos foram ex-
trapolados. Essa dívida foi herdada pela LLDC, que tem o compromisso
de pagar de volta uma parte do valor acordado a partir da comerciali-
zação de terrenos após a realização dos Jogos Olímpicos. A diferença

4 “Entre as inovações da OUCAB, destacamos a criação do Grupo de Gestão, consti-


tuído de forma paritária entre o poder público e a sociedade civil – são 9 membros da
prefeitura e 9 membros da sociedade civil, incluindo representantes do mercado imobi-
liário –, e de caráter deliberativo. Os moradores da área, inclusive, elegeram seus repre-
sentantes em eleição direta que contou com a participação de 2 mil votantes” (Santoro,
2015).
Formatos institucionais e os limites redistributivos de grandes projetos urbanos 103

entre o valor de compra das terras no momento de CPO e da posterior


venda ou comercialização após os Jogos Olímpicos é fundamental para
compreender o investimento público naquela região (Sarue, 2021). A
LLDC deve, então, planejar suas atividades considerando um cálculo
entre o desenho de unidades que sejam mais ou menos rentáveis ou
adequadas às necessidades da comunidade, de forma a maximizar a sua
arrecadação. Esse cálculo impacta não apenas o desenho das unidades,
como a negociação de contrapartidas junto aos investidores privados, e
é constantemente refeito a partir de diretrizes definidas politicamente.
Essa alienação do poder de planejamento do distrito para uma agência
que estabelece diferentes modelos de negócio – inclusive joint ventures –
junto aos investidores privados, é comparável no caso do Porto Maravilha
à atuação do Fundo de Investimentos Imobiliários do Porto Maravilha
que arrematou em um leilão de lote único o total de CEPACs da operação,
e passou a ter controle sobre o processo de especulação sobre o solo vir-
tual, negociando diretamente com o mercado, inclusive sem a separação
de lotes residenciais ou comerciais, como se dá nas OUCs em São Paulo.
Coube também a esse mesmo fundo de investimento imobiliário capturar
a mais-valia por meio da negociação direta com o mercado para recu-
perar o recurso investido e lucrar com a operação, ou seja, maximizar a
renda da terra para que o fundo possa pagar a parceria público-privada e
então arrecadar para o Estado. Logo, ambos os casos tratam de operações
nas quais os gestores públicos e os investidores privados têm o objetivo
comum de promover a valorização fundiária dos terrenos.
Ainda que mediante instrumentos distintos, em contextos institu-
cionais diferentes, cabe aqui uma breve comparação com a dinâmica es-
tabelecida no Reino Unido para negociação de contrapartidas cobradas
pela Estado sobre empreendimentos. Em Londres, houve uma variação
importante na determinação de investimento mínimo em affordable
housing entre gestões da prefeitura de Londres progressistas e conser-
vadoras, passando de 35% na gestão Ken Livingstone para 20% com o
conservador Boris Johnson e retomando a 50% com Sadiq Khan. Além
desses patamares estabelecidos pela prefeitura, instrumentos como Sec-
tion 106 Agreements e Community Infraestructure Levy, criados no
país respectivamente nos anos 1990 e em 2010, estabelecem diretrizes
para a negociação de valores de contrapartida pagos pelo setor privado
104 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

para a exploração da terra, por meio de compensação em recursos dire-


tos e investimentos para a comunidade afetada. Essa negociação é feita
pelo governo dos distritos (a cidade de Londres conta com 32 distritos,
com autoridade sobre o planejamento urbano em suas regiões) “lote a
lote” cada vez que um investidor privado apresenta uma proposta de um
novo empreendimento imobiliário. Há no debate local, no entanto, o
argumento de que a negociação lote a lote deixaria o poder público local
mais suscetível a pressões exercidas pelo investidor privado que pode,
por exemplo, decidir investir recursos em outro distrito, reduzindo com
isso a arrecadação daquele local. Nesse sentido, muitas vezes as nego-
ciações se tornam suscetíveis às flutuações no mercado, de forma que a
margem de lucro do empreendedor fique garantida, e o poder público
assuma os riscos (Raco et al., 2018).
No Brasil, desde a criação do instrumento da OUC com comerciali-
zação de CEPACs, a negociação das contrapartidas não é feita lote a lote,
mas seguindo parâmetros pré-estabelecidos, que devem ser aprovados
pelo poder legislativo local, e são regulados pela Comissão de Valores
Mobiliários. Essas características representam a principal distinção en-
tre a OUC e o instrumento de renovação urbana vigente até então, de-
nominado Operação Interligada, que previa a negociação de contrapar-
tidas em potencial construtivo por lote, sem a aprovação no legislativo
de diretrizes pré-estabelecidas, e que foi suspenso em 1998.
Portanto, a OUC institucionaliza um mecanismo de negociação de
contrapartidas que apesar de ter valor flutuante e dependente do mer-
cado, estabelece a recuperação de parte do investimento. No entanto, a
redistribuição desse recurso – apesar de determinada por uma restrição
geográfica (os recursos arrecadados devem ser investidos no perímetro
da operação) – não estabelece necessariamente processos consultivos de
deliberação, ou ainda, no caso carioca, percentuais mínimos de investi-
mento em habitação social ou equipamentos públicos.

Instituições, insulamento, setor privado e risco político

O insulamento é um tema recorrente nos grandes projetos urbanos, e


já analisado no caso dos Jogos Olímpicos em Londres (Raco, 2014), em
Formatos institucionais e os limites redistributivos de grandes projetos urbanos 105

que os contratos vinculativos são produzidos de forma a reduzir riscos


– sendo que nesses casos as demandas de participação podem ser con-
sideradas como riscos políticos. Vimos como no caso do Rio de Janeiro
o processo decisório e a implementação da política se dão em ambientes
relativamente fechados à participação social (Sarue, 2021).
No Brasil, o Porto Maravilha inovou ao criar uma empresa mista
municipal responsável pelo desenvolvimento da região. Essa inovação
se deu à semelhança da LLDC. Em ambos os casos, é criada uma estru-
tura de governança na qual as decisões são removidas de instituições
com representantes eleitos diretamente, e levadas para agências “de se-
gundo nível” no que Levi-Faur (2005) denomina de “custo de liberdade”,
referindo-se ao custo gerado pela transferência de processos decisórios
a termos técnicos e contratuais, no marco do capitalismo regulatório.
Também nos dois casos há um misto de atuação via diretrizes políticas
e via mercado, no qual o planejamento urbano se torna insulado em
agências que buscam arrecadar recursos via agenciamento de terras ou
serviços na região. No caso britânico, essa arrecadação se dá diretamen-
te pela agência de desenvolvimento local – a LLDC – e por meio de uma
empresa mista de desenvolvimento urbano chamada London and Con-
tinental Railway, vinculada ao governo nacional. No caso carioca, esse
poder de arrecadação foi transferido ao banco público federal (Caixa
Econômica Federal) gestor do fundo de investimentos imobiliários da
região (FIIPM).
Cabe destacar, por fim, que no caso carioca, ao privatizar por meio
de concessão administrativa o conjunto de serviços urbanos da região
(com exceção da segurança pública), a população local também deixa
de recorrer ao poder executivo local para demandas relacionadas a ser-
viços urbanos básicos, como saneamento, coleta de lixo e iluminação
pública, e novamente a interface com a sociedade é repassada a atores
indiretos – nesse caso a CDURP.
É novamente útil para entender esse arranjo, a análise do modelo de
governança contratual de Raco (2014) usado para descrever a parceria
entre o consórcio privado e a agência pública criada para coordenar os
investimentos públicos do megaevento, que incluiu funções estratégicas
como a gestão de orçamento e da cadeia de fornecedores, tornando o
consórcio privado uma espécie de escudo protetor do ente público, ao
106 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

mesmo tempo em que atividades de regulação são concentradas dentro


do arranjo de parceria, de forma que uma monitora as atividades da
outra.

Conclusões

Esse capítulo buscou destrinchar as limitações do arranjo institucional


que viabilizou a política de renovação urbana da zona portuária do Rio
de Janeiro, a partir de uma metodologia comparativa, que analisa tópi-
cos de política urbana, contextualizando processos históricos e traje-
tórias político-institucionais. A proposta de contribuir com o entendi-
mento dos marcos do projeto Porto Maravilha é o mote para a pesquisa
comparada, que nos permite destacar os principais aspectos que devem
ser analisados no contexto da política local.
A comparação entre os três casos aqui abordados nos permite reforçar
alguns argumentos sobre o redistributivismo em projetos de renovação
urbana. Quando comparamos contexto político e de tomada de decisões
em relação a um mesmo instrumento de planejamento urbano utilizado
no Rio de Janeiro e em São Paulo, verificamos a importância do processo
eleitoral competitivo e com alternância de projetos na prefeitura de São
Paulo, corroborando a tese da centralidade da competição eleitoral entre
projetos políticos distintos e do processo de política pública para explicar
como São Paulo produziu de forma incremental políticas urbanas mais
redistributivas (Marques, 2021). Se compararmos o arranjo carioca com o
de Londres, veremos que em ambos há uma forte incidência de governos
nacionais sobre as políticas de renovação urbana, e que ainda que o proje-
to britânico tenha reservado habitações de interesse social em percentual
que variou de acordo com a alternância de projetos políticos na prefeitura
de Londres, o contexto de tomada de decisões foi influenciado por uma
lógica especulativa. Nos dois casos, diretrizes políticas têm implicações
sobre o planejamento urbano no território, e sobre a lógica de maximi-
zação do valor da terra que deve ser operada por agências gestoras do
planejamento em cada caso (Sarue, 2021).
Argumentamos que a comparação entre arranjos institucionais e
contextos políticos de tomada de decisões em cidades do Norte e do
Formatos institucionais e os limites redistributivos de grandes projetos urbanos 107

Sul global é importante também para compreender os aspectos redis-


tributivos de políticas de renovação urbana, que seguem dinâmicas de
disputas de interesse comum a grandes metrópoles.
A análise do modelo institucional aqui apresentada busca somar-se a
um leque amplo de estudos sobre o Porto Maravilha, visando contribuir
com o entendimento sobre os impactos da política na cidade e na vida
das pessoas, a partir de um olhar sobre as limitações redistributivas des-
se arranjo. Oferece, nesse sentido, uma perspectiva oriunda da ciência
política e da política comparada, com contribuições para estudos sobre
as cidades tanto na comparação entre o Sul e o Norte, como também em
um contexto de política nacional brasileira; e interdisciplinar, a partir de
uma perspectiva da política pública.

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111
Foto: Luiz Baltar
CAPÍTULO 4

Passados ideais, futuros encantados


Patrimonialização e regimes de tempo no
Porto Maravilha
Leopoldo Guilherme Pio

“Uma crítica do instante é a condição lógica de uma nova experiên-


cia de tempo.”
Giorgio Agamben

Patrimônio e experiência de tempo

As estratégias de valorização do patrimônio têm sido utilizadas nas úl-


timas décadas como instrumento de revitalização de áreas históricas,
especialmente zonas portuárias, articulando modernização urbana e
preservação histórica. Neste ensaio, discuto a utilização do patrimônio
como categoria estratégica do projeto Porto Maravilha, no intuito de
compreender enquadramentos temporais estabelecidos pela revitaliza-
ção histórica e cultural da região, considerando os deslocamentos de
sentido das revitalizações culturais em áreas históricas.1
Os fundamentos do Porto Maravilha derivam de certos modelos ur-
banos, museológicos, políticos e econômicos, que influenciam direta ou
indiretamente sua constituição. Assim, para compreender os sentidos e
os usos contemporâneos do patrimônio nos processos de revitalização
cultural, é preciso identificar as ideias políticas e urbanas que reorien-
tam os significados da memória e da cultura no espaço urbano. Parto
do princípio de que a efetividade desse tipo de projeto depende de um

1 As reflexões aqui apresentadas têm por base a pesquisa de doutorado desenvolvida


entre 2009 e 2014 a respeito das estratégias de revitalização e patrimonialização da zona
portuária do Rio de Janeiro (Pio, 2017).

113
114 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

complexo processo de reenquadramento de memória e ressignificação


do tempo histórico. Grandes intervenções urbanas como o Porto Ma-
ravilha estabelecem valores e representações a partir das quais noções
específicas de patrimônio e passado são disseminadas, práticas culturais
específicas são modeladas e uma ideia de ordem pública é legitimada.
Da mesma forma, intervenções urbanas não devem ser interpretadas
somente como meios de transformação na estrutura material ou na ló-
gica econômica da cidade, mas, igualmente, como projetos que sugerem
uma forma de ser para seus moradores e um ideal do que a cidade é ou
deve ser. Há sempre uma percepção do passado e um projeto de futuro
por trás deles.
Nessa mesma lógica, os processos de revitalização e patrimoniali-
zação desempenham um papel fundamental na elaboração do tempo
presente. Nesses contextos estão presentes múltiplas historicidades e
diversas concepções de patrimônio, produzidas pelo poder oficial, mo-
vimentos sociais locais e coletivos culturais, órgãos multilaterais como
a UNESCO, projetos acadêmicos e pedagógicos, bem como pelas cone-
xões ideológicas ou linguísticas que aproximam o patrimônio local às
iniciativas preservacionistas de outros países.2
A revitalização da zona portuária sinaliza uma complexa mudança
nos objetivos e estratégias dos projetos de preservação e revitalização
urbana, que tem por base uma alteração significativa nos usos e sentidos
da memória coletiva e no regime de historicidade predominante. Como
discurso que se propõe hegemônico (e que muitas vezes obscurece a
existência e a ressonância de outros discursos patrimoniais), o projeto
foi capaz de organizar e potencializar uma agenda urbanística e patri-
monial para a cidade, ao direcionar fluxos culturais e modos de relacio-
nar passado, presente e futuro.

2 A noção de patrimonialização designa o conjunto intervenções de natureza técnica


e legal que visam obter, mediante o tombamento formal, um estatuto patrimonial ou
operações de natureza diversa – arquitetônica, paisagística, urbanística, política, cul-
tural, comercial, estética – cujos objetivos, independentemente de um reconhecimento
formal, se fundamentam na exacerbação do valor patrimonial articulado ao consumo
visual ou em experiências de lazer e entretenimento (Leite, 2003). Convêm lembrar que
o uso informal da categoria transcende cada vez mais tal definição, por conta do seu
crescente caráter dinâmico e polissêmico. O patrimônio faz parte de um processo pre-
sente, incessante e conflituoso de reconstrução (Gonçalves, 2007).
Passados ideais, futuros encantados 115

Em suma, a patrimonialização da zona portuária faz parte da con-


solidação de uma nova percepção de tempo e espaço urbano, implican-
do em uma gestão complexa do tempo, ou como diz Koselleck (2012),
dos horizontes de expectativa – o passado atual, fundado nos aconteci-
mentos incorporados e passíveis de serem lembrados – e dos espaços
de experiência – o futuro presente, voltado para aquilo que ainda não
foi experimentado. Acrescente-se o fato de que os processos de patri-
monialização têm sofrido nas últimas décadas uma diversificação de
usos e sentidos em diversos países. Para Heinich (2014), a ampliação
do conceito de patrimônio possui um caráter cronológico – que deixa
de se concentrar em períodos históricos mais recuados para abranger
o presente –, topográfico – não somente o bem isolado, mas também
seu entorno –, tipológico – na medida em que transcende a valorização
da arquitetura monumental e eurocêntrica, como era praxe – e concei-
tual – superando os critérios da unicidade ou excepcionalidade do bem
cultural.
Com base em tais contextos discursivos, é possível perceber nuances
e valores específicos atrelados ao conceito de patrimônio, que tornam
singular seu uso no Porto Maravilha.3 A discussão do presente ensaio
se orienta a partir de quatro significados principais atribuídos ao pa-
trimônio no contexto do projeto: o patrimônio como oportunidade
de transformação material e simbólica, como um capital de inovação,
como instrumento de gestão do espaço público e como símbolo de har-
monia social e qualidade de vida (Pio, 2017). Tendo em mente esses
argumentos, proponho em primeiro lugar uma resumida comparação
entre o Porto Maravilha e o projeto Corredor Cultural – projeto pio-
neiro na revitalização de áreas históricas no país –, para demostrar em
que medida o projeto revitalizador da zona portuária sinaliza um modo
renovado de lidar com a modernização de áreas históricas “degradadas”.

3 Destacam-se, entre os personagens centrais na formulação do papel do patrimônio


no projeto, o economista Jorge Arraes, presidente da Companhia de Desenvolvimento
Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP) até 2013; Alberto Silva, ex-ge-
rente do Projeto Porto Cultural e ex-presidente da CDURP; e, especialmente, o arqui-
teto Washington Fajardo, ex-presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade
(IRPH) e responsável pelo desenvolvimento da recuperação de edificações e sítios his-
tóricos da região.
116 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Em seguida, apresento as maneiras pelas quais o Porto Maravilha se uti-


liza do patrimônio dentro de um regime de historicidade “presentista”,
ao propor uma relação orgânica entre as heranças do passado (no caso,
os traços da memória da cidade) e os interesses econômicos e políti-
cos contemporâneos, supostamente sem conflitos ou contradições. Por
fim, analiso como a categoria patrimônio é discursivamente construída
de modo a justificar certos usos e funções das características urbanas e
históricas da região. Tal abordagem permite compreender de maneira
mais refinada os fundamentos do discurso legitimador e os resultados
desse megaprojeto que prometeu a “revitalização” da zona portuária e
por consequência da cidade do Rio de Janeiro.

Do Corredor Cultural ao Porto Maravilha

O arquiteto e urbanista Washington Fajardo, principal idealizador da


política urbana e patrimonial durante a gestão do prefeito Eduardo
Paes,4 costuma defender a existência de uma continuidade de intenções
entre o Corredor Cultural e o Porto Maravilha. Contudo, os dois pro-
jetos produzem diferentes sentidos do patrimônio. Em suas origens, o
projeto Corredor Cultural orientava suas ações com base na necessida-
de da salvaguarda de um patrimônio em vias de desaparecer, enquanto
as ações culturais do Porto Maravilha são discursivamente construídas
com base na ideia de que a ameaça do desaparecimento ou degradação
dos bens culturais foi superada.
Cabe, portanto, uma breve reflexão a respeito das categorias e discur-
sos que fundamentam as políticas patrimoniais no Brasil. Estas operam
com recursos narrativos específicos, que utilizam determinadas concep-
ções de tempo e cultura para definir e classificar os patrimônios culturais.
Segundo a interpretação de Gonçalves (1996), um dos princípios estrutu-
radores dessas narrativas é a “retórica da perda”, segundo a qual a histó-
ria aparece como “um processo inexorável de destruição, em que valores,

4 Fajardo é arquiteto e desempou diversas funções nas duas primeiras gestões de Eduar-
do Paes, todas relacionadas as políticas urbanas e de preservação histórica e cultural.
Com a vitória de Paes nas eleições para prefeito em 2020, Fajardo retorna à gestão mu-
nicipal, como secretário de Planejamento Urbano.
Passados ideais, futuros encantados 117

instituições e objetos associados a uma ‘cultura’, ‘tradição’, ‘identidade’ ou


‘memória’ nacional tendem a se perder”. Nessa forma de discurso, o pa-
trimônio é elaborado como uma reação à ameaça da perda da tradição,
a partir de “um enquadramento mítico para o processo histórico, que é
equacionado, de modo absoluto, à destruição e homogeneização do pas-
sado e das culturas” (p. 22). As práticas de apropriação e de preservação
desses objetos são articuladas por um sentimento de perda que, por sua
vez, provoca um anseio pela autenticidade. Portanto, a ameaça do desa-
parecimento definitivo do passado é um elemento constitutivo dos atos
e discursos de patrimonialização, ou seja, uma perspectiva que coexiste
com o esforço de preservação. O distanciamento dos objetos no tempo e
no espaço os transforma em “objetos de desejo” marcados pela unicidade,
os quais devem ser resgatados como parte representativa de um patri-
mônio cultural ou de uma tradição nacional. O patrimônio evoca, dessa
maneira, um desejo de autenticidade que se vincula simbolicamente ao
suposto distanciamento do passado e ao seu iminente desaparecimento.
A proposta de patrimonialização presente no Porto Maravilha repre-
senta um afastamento da retórica da perda que orientou a formação e a
legitimação do patrimônio no Brasil desde a criação do Instituto do Pa-
trimônio Histórico e Artístico Nacional. Embora tal retórica ainda este-
ja presente nos discursos a respeito do patrimônio, entendo que, simul-
taneamente, outras retóricas ou categorias passam a definir os sentidos
da relação entre passado e presente nos processos de patrimonialização.
O uso sistemático de termos como “conteúdos tradicionais contem-
porâneos”, “novos patrimônios”, “legado” ou “vocação” por políticos e
técnicos envolvidos no projeto supõe um novo regime de historicidade
diferente da temporalidade tipicamente moderna, de cunho “futurista”,
pois tende a diferenciar claramente presente e futuro e a privilegiar este
em detrimento do presente daquele. O discurso característico do Porto
Maravilha se enquadra em um regime “presentista” de tempo, que se-
gundo Hartog (2013), evidencia a presença de um “presente onipresen-
te” que visa incorporar o passado e controlar o futuro. O presentismo se
opõe ao regime futurista, como

[...] a expressão de um profundo questionamento do regime moder-


no de historicidade. O futuro, o progresso e as ideologias que a ele se
118 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

prendem perderam sua força de convicção no momento mesmo que a


distância entre horizonte de espera e campo da experiência tornaram-se
máximos (Hartog, 1996, p. 152).

A ameaça do desaparecimento dos bens históricos não aparece nos


discursos e ações do Porto Maravilha como categoria central, pois o pa-
trimônio não é mais visto como um bem a ser salvo, mas algo a ser
construído ou planejado para o futuro. A presentificação do passado e
do futuro se realiza também nas ações discursivas que expressam um
desejo de um futuro que se realize contemporaneamente. A respeito do
presentismo, Hartog (2006) salienta:

Nós [contemporâneos] gostaríamos de preparar, a partir de hoje, o mu-


seu de amanhã e reunir os arquivos de hoje como se fosse já ontem,
tomados que estamos entre a amnésia e a vontade de nada esquecer.
[...] Se o patrimônio é doravante o que define o que nós somos hoje, o
movimento de patrimonialização, este imperativo, tomado ele mesmo
na aura do dever da memória, permanecerá um traço distintivo do mo-
mento que nós vivemos ou acabamos de viver: uma certa relação com o
presente e uma manifestação do presentismo (p. 271).

Se o Corredor Cultural se estrutura a partir da contenção ou da neu-


tralização de um processo de modernização que “ameaçava o patrimô-
nio da cidade”, a zona portuária é interpretada como “novo vetor de
crescimento” urbano, isto é, uma nova área de expansão urbanística,
habitacional e econômica.
O Corredor Cultural se destaca na história do urbanismo do Rio de
Janeiro por representar uma mudança da visão progressista/modernis-
ta, hegemônica até então, para o modelo de preservação ou recupera-
ção dos vínculos entre habitantes e memória urbana. Desde a reforma
urbana de Pereira Passos, no início do século XX, até as obras viárias
da década de 1970, a área central da cidade foi alvo de transformações
radicais para a inserção de novas estruturas urbanas e arquitetônicas, e
a construção de grandes obras viárias – entre elas, o Elevado da Perime-
tral, a demolição do Morro de Santo Antônio, que permitiu a abertura
da Avenida República do Paraguai e da Avenida Chile, e a construção
Passados ideais, futuros encantados 119

da linha do metrô que serviu como pretexto para o arrasamento de im-


portantes edifícios da área, como o Palácio Monroe.5 Somente a partir
do fim dos anos 1970, com a gestação do projeto Corredor Cultural, é
possível detectar o início de uma inversão na lógica das intervenções
para a área central. É nesse contexto que o projeto foi gestado, a partir
da oposição entre “progresso” e “preservação”. O progresso representa-
va, na percepção dos urbanistas e outros técnicos que defendiam a pre-
servação da área central, o impulso pelas transformações urbanísticas
radicais e o consequente desprezo pelos aspectos históricos da cidade.
O projeto foi elaborado com base num discurso que legitima a preser-
vação histórica ao perceber o risco de desaparecimento do passado, por
conta da perspectiva rodoviarista e modernizadora da cidade, que ainda
prevalecia como oposta à visão “preservacionista” (Pio, 2017).
Segundo as narrativas elaboradas por seus criadores – como o urba-
nista Augusto Ivan Pinheiro de Freitas, personagem central na idealiza-
ção do projeto Corredor Cultural6 pela atuação na Secretaria Municipal
de Planejamento nos anos 1970 –, a proposta de preservação do centro
histórico da cidade se estruturou a partir do risco da perda da monu-
mentalidade decorrente da política de alargamento de ruas e da con-
sequente degradação ou desaparecimento de edificações e ambientes
históricos. É contra esse processo de “destruição do passado” em termos
ideológicos e simbólicos que o projeto vai se legitimar. Embora o proje-
to já considerasse a aliança entre preservação, modernização e renova-
ção dos usos dos espaços urbanos, não é possível perceber no discurso

5 De fato, a demolição de antigos imóveis da Lapa para a implantação da Avenida Repú-


blica do Paraguai suscitou o interesse pela preservação do centro histórico por parte do
urbanista Augusto Ivan Pinheiro de Freitas e de outros técnicos da Secretaria de Obras,
bem como a preocupação dos pequenos comerciantes da região do Largo da Carioca.
6 A maturação das ideias acerca da preservação do centro da cidade foi reforçada com a
ida de Augusto Ivan, em 1974 e 1978, a Rotterdam, Holanda, onde desenvolveu estudos
no Institute for Housing Studies. Tais estudos dão origem ao trabalho “Multi-functional
development of the inner city”, que analisa a resistência de certas áreas no centro do Rio
de Janeiro e as razões de sobrevivência daquelas antigas morfologias (Freitas, 2002).
Ao retornar em 1979, justamente num período de mudanças dentro da administração
municipal, o arquiteto (que anteriormente havia sido membro da Secretaria de Obras)
foi chamado a participar do trabalho que estava sendo desenvolvido na Secretaria Mu-
nicipal de Planejamento, que fazia referência à preservação de áreas no centro da cidade.
120 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

oficial do Corredor Cultural uma conexão mais intensa entre o patri-


mônio e o desenvolvimento socioeconômico da cidade. Na medida em
que a categoria patrimônio passa a ser associada ao desenvolvimento
social e econômico das cidades, o argumento de que a preservação sig-
nificaria necessariamente o “engessamento da cidade” passa a ser cada
vez mais relativizado, conquanto possa ainda ser utilizado em situações
específicas. Assim, a modernização imobiliária e o avanço econômico
funcionariam como fator de desarticulação social e incivilidade contra
o qual o projeto se insurgiria.
Na medida em que o patrimônio é utilizado como marca da sin-
gularidade local, os bens tombados passam a ser vistos como sinal de
modernização social e econômica, ou como um “capital de inovação”.
Esse termo é utilizado por Peixoto (2003) para enfatizar a pretensa ca-
pacidade do patrimônio de produzir novos efeitos econômicos, sociais
e comportamentais. Entendo que essa noção sintetiza a crença presente
nos relatos analisados de que o patrimônio é um elemento capaz de agi-
lizar transformações econômicas e transformar o imaginário a respeito
de certa área. Mas indica também uma ideia presentista de patrimônio,
que se apresenta mais como um instrumento contemporâneo de organi-
zação e renovação do tecido urbano que permita reconstrução criativa
do passado e redefinição do presente da cidade. Um dos resultados des-
sa perspectiva é a lógica de classificação da região, que diferencia áreas
reguladas pelo patrimônio de áreas não patrimonializadas, presente na
percepção de técnicos e agentes políticos envolvidos no projeto.
As áreas históricas são também identificadas como oportunidade de
empreendimentos e negócios, uma espécie de riqueza invisível que deve
ser potencializada. Essa perspectiva pode ser percebida quando Jorge
Arraes, presidente da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Re-
gião do Porto do Rio de Janeiro (CDURP) na época, remete à funciona-
lidade do patrimônio local: “A área de patrimônio está mantida, e o que
precisa ser enfrentado é a área de atividade monofuncional, [...] porque
essa área é uma bola de ferro amarrada à área histórica”.7 É interessante

7 Informação verbal fornecida por Jorge Arraes durante o Seminário “Patrimônio Cul-
tural e Intervenção Urbana”, realizado no Clube dos Engenheiros em 22 de setembro de
2011.
Passados ideais, futuros encantados 121

notar o uso da metáfora “bola de ferro” para designar não o patrimô-


nio, mas as atividades econômicas consideradas defasadas e os espaços
considerados ociosos ou degradados da região. No caso, são as áreas
históricas qualificadas como ativos que reforçariam a transformação de
usos, enquanto as atividades econômicas tradicionais e originais, espe-
cialmente a função portuária, passam a ser vistas negativamente.
Trata-se, portanto, de uma retórica que neutraliza estrategicamente
as possíveis tensões entre passado e presente, bem como os previsíveis
conflitos entre diferentes interesses sociopolíticos ou culturais. Como
veremos a seguir, mesmo as narrativas tradicionais sobre a perda da ca-
pitalidade da cidade são ressignificadas. Todo o processo de revitaliza-
ção da imagem da cidade, orientado por projetos como a revitalização
da zona portuária, sinalizou também a necessidade de ajustar as contas
com as glórias e as perdas do passado da cidade, para afinal, saber se o
Rio de Janeiro continua sendo protagonista político e cultural para o
país.

Porto Maravilha: retóricas renovadas

Pode-se falar em retóricas renovadas no Porto Maravilha na medida em


que o passado da região não é visto a partir de sua exemplaridade ou de
um viés necessariamente nostálgico. Nesse sentido, Washington Fajardo
assinala:

O Porto Maravilha traz infraestrutura, investimentos, mas também


recupera esse patrimônio. O novo tem valor agregado, identidade ou
aspecto cultural que pode qualificar, no futuro, tombamento ou preser-
vação. Passado e futuro combinados conferem dinamismo à cidade.8

No projeto não se percebe a intenção de resgatar emergencialmente


a memória da região, uma vez que, dentro de uma lógica contempo-

8 Informação verbal fornecida por Washington Fajardo durante o Seminário “Patri-


mônio Cultural e Intervenção Urbana”, realizado no Clube dos Engenheiros em 22 de
setembro de 2011.
122 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

rânea e presentista, torna-se desnecessário pensar o patrimônio como


reação a uma possibilidade de desintegração do passado. Ao descrever
o papel da preservação histórica no Porto Maravilha, Washington Fa-
jardo ilustra esse imaginário: “Tudo é histórico, por isso trabalhamos
de acordo com o tempo presente. O que fazemos é selecionar o passa-
do. Construímos hoje o que será patrimônio do futuro” (Fajardo, 2012).
Ao predizer a importância dos novos patrimônios históricos da zona
portuária, Fajardo expressa mais do que uma frase de efeito. Como se
quisesse antecipar o futuro desses bens, ele revela a intenção de desenca-
dear um processo de patrimonialização mais identificado com o tempo
presente do que com a preservação do passado. O mesmo ocorre com
outros enunciados utilizados no projeto, como o termo “conteúdos tra-
dicionais contemporâneos”9 ou o slogan “Um passeio na história com
jeito de futuro”, para se referir à “nova” Praça Mauá.10
Nota-se que a visão anterior, que opunha preservação e moderni-
zação dá vez gradualmente a uma perspectiva francamente presentis-
ta, que tenta conciliar memória e contemporaneidade. A “nova cidade”
proposta pelo projeto não tem como demanda principal salvaguardar
o passado, mas produzir novos patrimônios como legados projetados
para o futuro, segundo interesses econômicos e políticos sem relação
necessária com o bem-estar dos moradores ou a qualidade da preser-
vação.
A prefeitura do Rio de Janeiro durante a gestão de Eduardo Paes se
notabilizou por investir fortemente na criação de uma marca para a ci-
dade por meio de reformas urbanas de grande escala e a utilização de
estratégias específicas de marketing urbano e animação cultural,11 no
sentido de permitir novas possibilidades econômicas e culturais. A cul-
tura e a própria historicidade do espaço urbano tornaram-se naquele

9 O termo foi utilizado por Fajardo em palestras e conversas informais.


10 A frase foi utilizada particularmente na promoção da Orla Conde, que liga a Praça
XV à zona portuária.
11 Vale lembrar que a conformação desse ideário urbano remonta às gestões de Cesar
Maia e Luiz Paulo Conde, entre os anos de 1993 e 2008. Eduardo Paes iniciou sua car-
reira política no início dos anos 1990 como integrante da Juventude Cesar Maia, e logo
depois foi nomeado Subprefeito da Zona Oeste do Rio de Janeiro por Maia, seu então
padrinho político.
Passados ideais, futuros encantados 123

momento aspectos fundamentais na ressignificação da imagem da cida-


de, e um modo de agenciar um novo modelo de capitalidade para o Rio
de Janeiro. O conceito de capitalidade, ou seja, a função de uma cidade
de representar a unidade e a síntese da nação, dando coesão interna e
singularidade ao país, é uma categoria importante para compreender a
importância da reelaboração da memória neste momento de transfor-
mação material e simbólica da cidade. O passado de capital do Rio de
Janeiro é um campo privilegiado para perceber as disputas em torno do
enquadramento de sua memória.12
Além da ressignificação de certos mitos de origem importantes na
história da cidade, planos estratégicos dos últimos quadriênios reme-
tem a um uso metonímico de capitalidade, vinculada ao oferecimento
de serviços, formas de consumo e práticas culturais. Nestes documen-
tos, a cidade é apresentada como a capital da bicicleta, da moda, do
turismo de negócios, das indústrias criativas, entre outras referências.
Assim, a relação com o passado e com a “perda” assume uma nova con-
figuração: trata-se da “redenção” da cidade por meio de um discurso de
superação da perda de sua centralidade política e econômica, não pela
mera recuperação de seu passado glorioso, mas pela criação de novos
legados e competências, alimentadas evidentemente por uma memória
cultural idealizada.
Assim como a reforma da zona portuária, o fato de a cidade ter sido
escolhida como sede de diversos megaeventos estabeleceu a oportuni-
dade política e cultural singular, fundamental no equacionamento de
um horizonte de expectativa que demarcaria idealmente uma nova era.
Megaeventos13 viabilizam diversas intervenções materiais e simbólicas
de grande escala. Mas permitem também a configuração de uma ex-
periência temporal singular e com alto poder de criar aderência emo-
cional e consensos fabricados. Os grandes eventos esportivos (melhor
seria dizer “culturais”, independentemente de serem esportivos ou não)

12 Interessante notar que, já nos anos 1990, tomou forma um projeto de descapitaliza-
ção de Brasília por meio do movimento “Rio Capital”, que defendia que a transferência
da capital havia provocado a perda de referências culturais da identidade nacional.
13 Refiro-me à Copa das Confederações (2013), à Jornada Mundial da Juventude
(2013), ao Rock in Rio (2013 e 2015), à Copa do Mundo de Futebol (2014) e aos Jogos
Olímpicos (2016).
124 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

afetam a historicidade local muito antes do seu início e seus efeitos du-
ram muito tempo após seu fim. No caso em questão, os Jogos Olímpicos
Rio 2016 agenciaram metáforas poderosas a respeito do papel do Rio
de Janeiro como “caixa de ressonância” do Brasil, ao mesmo tempo em
que se tentou destacar a oportunidade imperdível para a cidade alcançar
definitivamente o status de cidade global.
Sintomaticamente, a potencialidade turística e econômica é vista
como um princípio inquestionável pelos técnicos da prefeitura e fator
fundamental para o sucesso das intervenções urbanas na zona portuá-
ria. Mas a novidade não reside no turismo cultural ou na valorização
da sustentabilidade financeira das ações culturais,14 e sim na atuali-
zação do imaginário da cidade a partir de uma lógica econômica que
valoriza a oferta de experiências históricas e culturais (Heinich, 2014;
Peixoto, 2009; Kirshenblatt-Gimblett, 1998). Trata-se de potencializar
a vivência singular de um presente historicizado, orientado menos
pela lógica da monumentalidade das grandes obras (estas componen-
tes também desse tipo de projeto) do que pelo registro do cotidiano
das experiências da cultura local renovada, o que demonstra que o
critério do turismo cultural deixou de ser visto como atividade suple-
mentar para se tornar um componente fundamental para a promoção
das cidades. Como explicita a seguinte apresentação do projeto Porto
Maravilha:

Uma Zona Portuária diferente. Um Rio de Janeiro diferente. Esta


será a nova realidade existente ao final do Projeto Porto Maravilha. A
transformação de um espaço abandonado e degradado em num ce-
nário condizente com a beleza e a importância mundial da cidade do
Rio. [...] Importante porta de entrada da cidade, o Porto do Rio passa
agora de elemento coadjuvante no visual bonito da Baía de Guana-
bara para parte principal desse processo de construção de uma nova
imagem do Rio. O projeto volta a integrar o porto à cidade, ficando

14 Durante sua gestão no IPHAN (1937-1967), Rodrigo Melo de Andrade já se preo-


cupava com a viabilidade financeira dos sítios históricos. O fenômeno da urbanização
e da valorização imobiliária levou Andrade a solicitar à UNESCO uma consultoria em
turismo cultural que daria origem ao Programa de Preservação e de Utilização de Cida-
des Históricas com Fins Turísticos, em 1973.
Passados ideais, futuros encantados 125

em pé de igualdade com os principais centros urbanos do mundo


que também revitalizaram suas zonas portuárias, como Barcelona e
Buenos Aires.15

Essa visão totalizante e triunfante se torna evidente nas narrativas


que assinalam a necessidade de superação da suposta decadência da
área. Segundo André Trigo, em editorial da Revista Inteligência Em-
presarial, a “principal proposta do Porto Maravilha é transformar dois
séculos de decadência em progresso. Retirar o porto do Rio do mapa
que aponta áreas abandonadas, sujas e perigosas na cidade maravilhosa”
(2011, p. 35). A retórica baseada na necessidade da reversão da “degra-
dação” da área era uma constante nas narrativas dos técnicos envolvidos
no projeto, e dependia tanto da seleção dos elementos específicos da his-
tória local quanto da invenção de identidades e vocações coerentes com
o interesse de modernização econômica da região, isto é, da atribuição
de novas características mediante a introdução de qualidades urbanas,
de acessibilidade ou centralidade da área, com a construção e a recupe-
ração de equipamentos urbanos.
Outro ponto importante a destacar é o interesse da prefeitura em
fazer uma integração entre a zona portuária e outras duas regiões his-
tóricas do Centro da cidade: Lapa e Praça Tiradentes, transformando a
Avenida Rio Branco numa hipercentralidade. A associação com a Lapa
não é gratuita, considerando que a revitalização da área desenvolvida a
partir dos anos 1990 é vista como bem-sucedida pelo poder municipal.
Além disso, trata-se de uma região dotada de imagem forte consolida-
da no imaginário local e nacional. Tratava-se de um discurso comum
aos técnicos da prefeitura afirmar que a conexão entre a zona portuária
e outras áreas históricas do Centro da cidade é construída pelo patri-
mônio cultural. É em virtude desse tipo de representação que a relação
entre patrimônio, regulação fundiária e gestão da cidade fica evidente.
Não é por outra razão que, nos discursos analisados, é significativa a
presença da oposição entre o processo de patrimonialização e a expan-
são urbana desorganizada. Mesmo de forma mascarada, o processo de

15 Disponível em: https://blogportomaravilha.wordpress.com/page/5/. Acesso em: 05


nov. 2021.
126 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

patrimonialização desempenha o papel de modernizar a dinâmica imo-


biliária local (limitando ou estimulando este mercado, dependendo do
contexto). Assim, não se trata somente de enfatizar a “função mercantil”
dos bens culturais urbanos, mas de compreender o patrimônio como
recurso do planejamento urbano. Ainda segundo Fajardo, em palestra
de 2014, a preservação histórica deve ser vista como um modo de ma-
nutenção das qualidades espaciais urbanas e como um método de evitar
a “expansão desordenada e predatória”:

No arco de desenvolvimento da cidade que vai de São Cristóvão até o Le-


blon, temos um universo de 125 mil imóveis protegidos e 22 mil preser-
vados. Corresponde a quase 40% desse território. Isso tem, sem dúvida,
um impacto na dinâmica da cidade. Acreditamos que esse impacto leve a
uma situação positiva na cidade, na medida em que existe um instrumen-
to, uma ferramenta, que pretende o gerenciamento da transformação pela
ótica da qualidade, com o objetivo de construção de uma cidade, de um
espaço público, uma paisagem construída mais harmônica e que, atrelada
à proteção de outras áreas da cidade, justificaria o ganho do título de Pa-
trimônio da Humanidade na categoria paisagem cultural.16

A atuação do patrimônio sobre áreas ou unidades residenciais movi-


menta novos conflitos entre interesses públicos e privados, e nem sempre
o resultado da patrimonialização é percebido como o incremento do sen-
timento de pertencimento a uma comunidade ou aumento de qualidade
de vida. Presta-se também para a formação de uma ideia de cidade sus-
tentável, ou seja, para a promoção do uso dos recursos ambientais, cul-
turais e sociais da cidade. O reconhecimento da cidade pela UNESCO
como Patrimônio da Humanidade na categoria Paisagem Cultural, em
2012, reforçou um imaginário relacionado à centralidade cultural e histó-
rica da cidade, contraposta à expansão urbana e imobiliária desordenada.
A superação da perda de centralidade, por meio dos mecanismos já
indicados, tem por base uma percepção discursivamente elaborada que
opõe “decadência” – vinculado às “fragilidades” ou ociosidades do espaço

16 Informação verbal fornecida por Washington Fajardo durante a palestra “Porto Ma-
ravilha”, realizada no Instituto Pereira Passos em 2 de março de 2014.
Passados ideais, futuros encantados 127

“degradado” – à “transformação” da área. A recuperação da zona portuá-


ria passa a representar metonimicamente a recuperação da cidade, e o
patrimônio torna-se símbolo dessa transformação urbana e econômica.

Então essa cidade que abandonou sua região central [...] ao mesmo tem-
po preservando estes ambientes na medida em que eles perdem densi-
dade, perdem população, eles entram em processo de degradação mais
acelerada. É isso que observamos como “fragilidades”. [...] O esgarça-
mento do território, a perda de vitalidade, a ausência de instrumentos
legais de preservação histórica. A atuação do patrimônio e do estado é
relativamente confortável entre o “selecionar” e “proteger”, mas preci-
samos criar novos marcos jurídicos, como apoiar essa proteção, como
apoiar os proprietários privados, como fazer com que os imóveis te-
nham realmente preservação, como fazer com que o patrimônio tenha
promoção e visibilidade antes mesmo do tombamento. Entendendo que
o instituto do tombamento é o ato inicial, e não o ato essencial.17

A ênfase no valor de exibição dos bens patrimoniais e a relativização


da importância do tombamento como critério de definição e valorização
do patrimônio podem ser vistos como sinais de uma nova sensibilidade
com relação aos vínculos entre memória e história. Sintomaticamente, o
tombamento não era um termo utilizado com frequência pelos técnicos
do Porto Maravilha. O processo do tombamento é tradicionalmente o
instrumento de reconhecimento que atribui regime jurídico especial ao
bem reconhecido como patrimônio e, historicamente, constitui-se como
a primeira ação a ser tomada para a preservação dos bens culturais e im-
pedir legalmente a sua destruição. Como a iminente perda do passado
deixa de ser um argumento central para a legitimação do patrimônio, a
categoria perde espaço nos discursos legitimadores do patrimônio. Na
perspectiva sintetizada por Fajardo, o patrimônio vale mais pela sua ca-
pacidade de ser exibido e de promover a nova imagem da cidade do que
pela sua excepcionalidade ou monumentalidade. Tais transformações
guardam relação com o reposicionamento do vínculo entre memória e

17 Informação verbal fornecida por Washington Fajardo durante o Seminário “Porto


Maravilha” realizado no Instituto Pereira Passos em 21 de janeiro de 2014.
128 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

nacionalidade, pois a relação história-memória nacional tem cada vez


mais a concorrência das “memórias parciais, setoriais, particulares [...]
(de grupos, associações, empresas, coletividades, etc.), que querem se
fazer reconhecer como legítimas, tão legítimas, até mesmo mais legí-
timas” (Hartog, 2013, p. 270). O relatório de pesquisa arqueológica da
zona portuária, de setembro de 2012, explicita esse contexto:

Mais do que apenas “lembranças do passado”, o Patrimônio Cultural é o


elemento central que garante a manutenção das comunidades ao longo
do tempo, transmitindo, de geração em geração, os princípios fundamen-
tais de sua cultura. É o que nos ajuda a aprender quem somos, como nos
tornamos assim e para onde vamos. O programa tem, assim, como meta
final, contribuir para o fortalecimento da herança cultural das comuni-
dades, em especial, na valorização de sua diversidade. Um dos principais
desafios da atualidade na realização de programas científicos é identificar
situações e oportunidades para aumentar a comunicação entre as par-
tes interessadas, buscando o envolvimento das comunidades locais sob
as quais o patrimônio arqueológico, histórico e cultural se compartilha
numa responsabilidade social, legal e política. Neste enfoque, o progra-
ma contempla a participação da comunidade no reconhecimento de seu
patrimônio, respeitando as singularidades das experiências históricas de
cada cultura e de cada grupo social (CDURP, 2012, p. 9).

Territórios da memória cultural

O processo que aqui mapeamos remete à ressignificação da categoria


patrimônio e da memória cultural das cidades, mas igualmente às no-
vas relações entre políticas urbanas e ações culturais.18 O Porto Mara-

18 Remeto à diferença proposta por Assmann (2018) entre dois tipos de memória: a co-
municativa, relacionada à transmissão difusa de lembranças no cotidiano, e a memória
cultural, referente a lembranças objetivadas e institucionalizadas, que podem ser arma-
zenadas, replicadas ou reincorporadas, constituindo heranças simbólicas materializadas
por meio de textos, imagens, monumentos, celebrações, memoriais e outros dispositivos
que sirvam para acionar significados associados ao passado.
Passados ideais, futuros encantados 129

vilha tem como parâmetro estratégias de revitalização próximas do que


Broudehoux (2011) denominou de “regeneração cultural das cidades”,
que se apoia em quatro ações: a busca de status oficiais atribuídos por
organismos internacionais como a UNESCO, que demonstrem a adap-
tação da cidade ao turismo e ao consumo cultural; a valorização do pa-
trimônio histórico, cultural e arquitetônico urbano, especialmente em
centros históricos, e das áreas portuárias abandonadas; a construção de
infraestruturas culturais e megaprojetos arquitetônicos que possibilitem
a criação de uma nova imagem de áreas requalificadas; e a promoção da
cidade como anfitriã de uma série de eventos culturais ou festivais que a
tornem atraente para investidores e turistas. Todas as ações se utilizam
da patrimonialização em alguma medida, o que demonstra o caráter
estratégico da categoria patrimônio.
As teorias a respeito do uso da cultura urbana no âmbito do merca-
do cultural capitalista podem servir como um ponto de partida para o
entendimento de tal contexto, mas o uso que se faz da memória cultural
em projetos de revitalização urbana não pode ser compreendido suficien-
temente do ponto de vista das teorias que enfatizam a globalização e a
mercantilização da cidade, sob risco de perder certas nuances políticas e
históricas que transcendem essa perspectiva. Me parece mais produtivo
considerar a relação ambígua que o patrimônio estabelece com o mer-
cado do que afirmar de modo simplista a sua conversão em mercadoria.
Como bem inalienável, a categoria “parece constituir-se liminarmente a
partir do mundo do mercado e ao mesmo tempo em contraposição a ele”
(Gonçalves, 2007, p. 242). Tal ambiguidade remete a diversas formas de
uso, contemplação e experiência proporcionadas pelas diversas formas de
patrimônios urbanos (memoriais, circuitos, monumentos, museus, bares
tradicionais ou determinadas paisagens). Há diversos modos de vínculo
com o mercado: incorporação imobiliária, comercialização de relíquias,
eventos culturais públicos e privados, relações com a indústria cultural
e a indústria criativa, entre outros fenômenos. Tais mediações muitas
vezes são mascaradas de modo que os patrimônios aparecem como se
não fossem construções culturais dinâmicas que podem assumir diversos
contornos semânticos e evocar forças culturais complexas no seu fruidor.
Neste sentido, os processos de patrimonialização não dependem somente
das iniciativas estatais ou do mercado para existirem.
130 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

O desenvolvimento radical de formas de exposição dos bens pa-


trimonializados é visível na rede de experiências e consumo cultural
associada aos discursos do patrimônio: visitações turísticas, circuitos
históricos, memoriais, postais, vídeos institucionais, reproduções de re-
líquias e circulação de revistas e livros sobre o tema. Essa dimensão eco-
nômica do patrimônio é enfatizada constantemente, como comprova a
caracterização do papel da preservação histórica no Estudo de Impacto
de Vizinhança (EIV) da região:

O patrimônio cultural não se restringe apenas a imóveis oficiais isola-


dos, igrejas ou palácios, mas, na sua concepção contemporânea, se es-
tende a imóveis particulares, trechos urbanos e até ambientes naturais
de importância paisagística, passando por imagens, mobiliário, utensí-
lios e outros bens móveis. Por esse motivo é possível realizar uma das
mais importantes distinções que se pode fazer com relação ao Patrimô-
nio Cultural, pois, sendo ele diferente das outras modalidades da cultura
restritas apenas ao mercado cultural, apresenta interfaces significativas
com outros importantes segmentos da economia, como a construção civil
e o turismo, ampliando exponencialmente o potencial de investimentos
(CDURP, 2009, p. 350, grifos meus).

Esse trecho destaca o caráter singular do patrimônio histórico tan-


to do ponto de vista do mercado cultural tradicional – a indústria edi-
torial ou fonográfica, por exemplo – quanto das atividades artísticas
tradicionais. Não há aqui, igualmente, a utilização ostensiva da cate-
goria como algo organicamente ligado à história e em contraposição
ontológica ao mercado. A princípio, um patrimônio foge às regras do
mercado e da produção em série porque não pode ser vendido ou so-
frer alterações. Sua singularidade e suposta autenticidade, entretanto,
o transformaram num fator dinamizador de relações econômicas e
de consumo (Gonçalves, 2007; Kirshenblatt-Gimblett, 1998). A base
dessa rede de consumo atrelada ao patrimônio é a requalificação de
áreas e edificações ociosas para novos usos, “mais adequados ao de-
senvolvimento econômico e turístico que se deseja para a nova área
portuária – restaurantes, bares, casas noturnas, centros comerciais,
centros culturais” (CDURP, 2009, p. 28-29). A afirmativa de Fajardo
Passados ideais, futuros encantados 131

sinaliza os vínculos entre os ambientes patrimonializados e a indústria


do turismo e do lazer:

A Região Portuária tem posição interessante na cidade. [...] Todos os


tesouros encontrados na primeira fase de obras, a criação do Circui-
to de Herança Africana, o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu
do Amanhã trarão diversidade de arte e conhecimento a essa área com
grande movimento e fluxo de pessoas. A população residente da Região
do Porto cria uma dinâmica urbana diferente do atual centro histórico
da cidade. É essa matriz de interesses que criará o turismo cultural do
Rio. Mas a prioridade tem de ser o morador. Mostrar a importância de
preservar a área e seu patrimônio. Espaços culturais baseados em tecno-
logia são muito interessantes, mas a força da materialidade da história é
insuperável (Fajardo, 2012).

O importante a reter aqui é a ideia de que o impacto dessas práticas


não depende tanto de uma especificidade histórica do bem cultural ou
do seu poder de representar um momento específico da história. Re-
fere-se principalmente à elaboração da história como “entidade pouco
diferenciada, que se afirma mais como sensação do que narrativa, mais
participação e experiência do que análise” (Hartog, 2013, p. 236-237).
Essa percepção do patrimônio tem contornos presentistas, uma vez que
sua relação com a realidade contemporânea prevalece sobre sua relação
com a tradição, a monumentalidade ou a dimensão imaterial dos bens
culturais.19
No discurso oficial, as representações do passado geralmente são
tratadas como categorias consensuais quando, na verdade, o processo
de patrimonialização de áreas históricas implica na formação de um

19 Destaco neste ponto a ausência de discursos ou projetos mais significativos com


relação ao patrimônio imaterial, categoria que poderia ser utilizada para qualificar e
valorizar sociabilidades locais e os dinamismos culturais da região. Da mesma forma, a
Igreja da Nossa Senhora da Saúde, um dos marcos originais da zona portuária fundada
em 1742 e tombada pelo IPHAN em 1938 (curiosamente situada próxima a atrações
como o aquário AquaRio e a roda-gigante Rio Star) nunca recebeu grande atenção na
retórica ou nos documentos oficiais do projeto, nem ao menos como arquitetura passí-
vel de ser contemplada.
132 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

campo de disputa, caracterizado por estratégias de legitimação e desle-


gitimação de ações políticas e valores culturais. Tal leitura do passado
produz efeitos sobre a representação de passados traumáticos, que pode
ser visto no caso do desenterro do Cais do Valongo e do processo de pa-
trimonialização e incorporação desse espaço como ícone da revitaliza-
ção da zona portuária.20 Inicialmente não parecia haver nenhuma inten-
ção particular da prefeitura em valorizar a “memória afrodescendente”
na construção do sítio histórico. A ênfase na história negro-africana do
cais só ocorre por conta da pressão de segmentos do movimento negro
e de outras organizações da sociedade civil. A criação, pela prefeitura,
do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana e o reconhe-
cimento do sítio histórico pela UNESCO como Patrimônio da Humani-
dade fazem com que as dinâmicas e as disputas patrimoniais da região
tomem novos rumos (Vassallo, 2012).
No Circuito, propõe-se uma narrativa que visa englobar diversos
marcos e lugares de memória em num grande sistema de represen-
tação da “memória africana”, sintetizando nesses lugares de memória
uma suposta ideia de passado comum e de tradições compartilhadas.
Produz-se nesse processo uma relação metonímica com a cidade, des-
considerando-se as singularidades históricas e urbanísticas dos pontos
selecionados. O sítio histórico é, portanto, incorporado ao projeto mo-
dernizante da cidade. Os efeitos de tais ações tem sido alvo de inten-
sos debates e disputas por significados. No momento, estão em pauta
as condições de salvaguarda e valorização não só do Cais mas de seu
entorno. A questão reside no restauro do Galpão Docas Pedro II, onde
deveria ser implantado o Centro de Interpretação do Cais do Valongo,
segundo acordo a obrigações assumidas pelo país quando da concessão
do título de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. O atraso neste
processo demonstra, além de problemas burocráticos e institucionais
internos, o desinteresse político na construção de políticas culturais e
sociais que que considerem devidamente a importância de memórias

20 O Cais do Valongo foi construído em 1811 e durou oficialmente até 1831, quando o
tráfico negreiro foi proibido. Em 1843, o Cais da Imperatriz foi construído sobre o Va-
longo, para o desembarque da imperatriz Tereza Cristina, futura esposa de Dom Pedro
II. Com a reforma do prefeito Pereira Passos, na primeira década do século XX, o Cais
da Imperatriz foi aterrado.
Passados ideais, futuros encantados 133

sensíveis na sociedade civil21 e na viabilização de experiências culturais


que transcendam o uso meramente contemplativo do Cais.
O exemplo acima ilustra como uma experiência particular do pas-
sado da região pode ser incorporada em um projeto de ressignificação
da importância cultural da cidade. Essa espécie de retórica da “recon-
quista da memória” (Pio, 2017) é um componente importante para a
construção das imagens oficiais de bens culturais e artísticos em que
uma componente performativa e teatralizada pretende definir a cidade.
Nesse processo de organização de eventos históricos, corre-se sempre
o risco de constituir uma visão superficial da memória local, eficaz na
consagração de um conceito genérico de patrimônio e na construção de
locais propícios ao turismo cultural, mas incapaz de provocar identifica-
ção e ressonância em moradores e frequentadores da região. Isso pare-
ce justificar a pouca permeabilidade dos discursos oficiais ao lidar com
problemas socioculturais mais complexos, como é o caso de processos
de reparação histórica.

Considerações finais

Nesta exposição, pretendi ressaltar a utilidade da categoria patrimônio


para compreender permanências e mudanças de perfil da zona portuária,
após mais de uma década de implementação do projeto Porto Maravilha.
Os processos de patrimonialização presentes no projeto refletem para-
doxos e tensões de seus usos, embora esses nem sempre sejam eviden-
tes. Tenho argumentado que a atuação dos atores sociais participantes de
revitalização da zona portuária (moradores a pesquisadores, de usuários
a representantes do poder público) não podem ser compreendidas sem
entendermos as estratégias políticas e culturais agenciadas, teorias urba-
nísticas e tendências culturais e patrimoniais aqui apresentados.
É fundamental, portanto, que as narrativas da história e da memória
presentes no projeto não sejam desvinculadas do contexto presente e

21 Vale lembrar que o monumento integra a lista dos onze sítios considerados sensíveis,
que remetem a episódios traumáticos e dolorosos da história, como Hiroshima, no Ja-
pão, Auschwitz, na Polônia, e Robben Island, na África do Sul.
134 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

das relações de poder que orientam a patrimonialização. O uso da ca-


tegoria nas políticas culturais e urbanas produziu diversas mediações
entre temporalidades diferenciadas de objetos, eventos e coletividades,
bem como enquadramentos de memória e debates a respeito dos bens
patrimoniais, arqueológicos e museológicos. No que diz respeito ao de-
safio de compreender os usos e os sentidos do patrimônio na contem-
poraneidade, é necessário ter em mente que a categoria não é apenas um
mediador entre passado e presente, mas reflexo de interesses sociocultu-
rais, econômicos e políticos contemporâneos, bem como o sinal da crise
do tempo e ao mesmo tempo uma tentativa de estabilizar essa crise. Só
assim é possível compreender os efeitos e os limites do processo de revi-
talização da zona portuária do Rio de Janeiro.
O que esse processo nos ensina é que o legado do Porto Maravilha é
ambivalente. O anseio do projeto de aliar a elaboração de legados para o
futuro e evocar heranças do passado abriu um campo de possibilidades
e uma disputa por significados culturais, radicalizando modos de segre-
gação preexistentes e mascarando o caráter conflituoso e ambíguo dos
processos de patrimonialização.
Na medida em que os discursos oficiais de patrimonialização sele-
cionam visões específicas do que deve ser preservado, disciplinado e
transformado na zona portuária e formam uma memória ímpar de cer-
tos espaços em detrimento de outros, tais discursos provocam reações
de grupos que não encontram identificação no regime de autenticida-
de e legitimação proposto formalmente. Não se pode esquecer que, a
despeito das tentativas de formalizar a memória, esta é incontrolável
e pode eclodir de modos imprevisíveis. É exatamente a ambiguidade
da memória que permite a existência de diversos enquadramentos do
patrimônio. Passada a euforia política e econômica daquele momento,
resta entender quais são os “legados” e quais são as “ruínas” que a res-
significação da zona portuária nos deixou.
Hoje, vive-se um ponto de inflexão da revitalização da área. Consi-
derando o retorno do grupo político responsável pela reforma da área à
gestão municipal, é possível que um novo capítulo da história da região
esteja sendo escrito enquanto esse ensaio é lido. É preciso estar atento
para acompanhar com o olhar crítico quais ideais de cidade, memória
e cultura farão parte dessa possível nova fase, e quais espacialidades e
Passados ideais, futuros encantados 135

temporalidades serão estimuladas. Pois, se “uma crítica do instante é a


condição lógica de uma nova experiência de tempo”, como afirma Gior-
gio Agamben (2005, p. 122), cabe a nós fazer essa crítica, no desenrolar
do próprio instante.

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137
Foto: Série Favelicidade, Luiz Baltar
CAPÍTULO 5

Quem pode falar em nome da cidade?


Arquitetos e urbanistas e as intervenções na zona
portuária do Rio de Janeiro
Heitor Vianna Moura

O Porto Maravilha e o saber técnico autorizado

Mais de cem anos se passaram e hoje, em 2010, o porto do Rio está


prestes a se transformar em um novo paradigma para o país, des-
sa vez integrado ao movimento das cidades mundiais. O objetivo é
transformar suas centenárias e decadentes regiões portuárias – tor-
nadas obsoletas pela velocidade da evolução das técnicas e dos pro-
cessos de produção de riqueza – em dinâmicos centros irradiadores
de desenvolvimento econômico, social e cultural.
Eduardo Paes1

Espaço de contato entre um meio aquático (porto, mar aberto, rio,


canal ou lago) e o meio urbano, o waterfront apresenta característi-
cas urbanísticas especiais no que tange ao meio ambiente e à paisa-
gem as quais requerem considerações e planejamento específicos.
[...] As transformações dos seus usos, com a composição de ativi-
dades econômicas, de lazer e de turismo, costumam gerar impacto
positivo na estrutura urbana (novos espaços públicos e abertura das
frentes marítimas) e na economia local (potencialização do turismo
e criação de postos de trabalho).
Verena Andreatta2

1 Andreatta (2010, p. 5).


2 Andreatta (2010, p. 13).

139
140 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Eduardo Paes, então prefeito do município do Rio de Janeiro, e Ve-


rena Andreatta, arquiteta e doutora em urbanismo pela Universidade
da Catalunha e pesquisadora da relação porto-cidade, apresentaram
contribuições ao livro “Porto Maravilha. Rio de Janeiro + 6 casos de
sucesso de revitalização portuária”. Publicada em 2010, a obra teve o
Instituto Pereira Passos, autarquia da Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro, como principal patrocinador. Por seu título, é possível deduzir
a proposta do material: reunir relatos e análises sobre as experiências de
cidades que tiveram seus waterfronts redesenhados e que, em alguma
medida, poderiam servir como referência ao projeto Porto Maravilha
– que naquele momento estava em fase de implementação na zona por-
tuária da cidade.
No livro, para a descrição e a análise dos casos estrangeiros, foram
convidados profissionais brasileiros que participaram da implementa-
ção de projetos urbanísticos no município3 e considerados aptos a de-
senvolver uma “avaliação técnica e especializada” in situ das referidas
experiências. Classificados como “especialistas” pelos organizadores da
publicação, os autores dos capítulos têm suas trajetórias acadêmicas de-
talhadamente descritas nas últimas páginas do livro. Eles são mestres e
doutores em universidades brasileiras e estrangeiras nas áreas de arqui-
tetura, urbanismo ou planejamento urbano. Suas experiências profissio-
nais são variadas, abarcando ensino e pesquisa em universidades, par-
ticipação em escritórios de arquitetura, consultorias urbanas ao poder
público e atuação em institutos, autarquias e secretarias que fazem parte
da estrutura organizacional da prefeitura do Rio de Janeiro.
As análises, atravessadas por um elevado grau de entusiasmo, são
apresentadas ao leitor como avaliações técnicas e objetivas sobre as ex-
periências observadas, o que só é possível na medida em que os autores
são representados como habilitados e socialmente autorizados a cum-
prir a função de avaliadores das intervenções no território da cidade e
fora dele. Ao terem suas trajetórias individuais marcadas por passagens
em instituição reconhecidas como produtoras legítimas de discursos
sobre a cidade, assumem a pretensa capacidade de enunciar problemas

3 Tais como Corredor Cultural, Rio Orla, Rio Cidade, Favela Bairro, Plano de Revitali-
zação do Porto do Rio, dentre outros.
Quem pode falar em nome da cidade? 141

públicos; não se apresentam apenas como arquitetos e urbanistas, mas


como sujeitos que falam a partir das e pelas referidas entidades.
Ao fazer convergirem a necessidade de o poder público municipal jus-
tificar suas ações sobre a zona portuária e o intento de certos arquitetos
e urbanistas converterem suas palavras em ações eficazes de autoridade,
esse livro representa o fenômeno analisado em minha pesquisa doutoral
(Moura, 2021). Interessado em compreender a atuação de agentes e en-
tidades do campo da arquitetura e do urbanismo na construção da zona
portuária enquanto um problema público da cidade, investiguei como
arquitetos e urbanistas que ocupavam posições de poder atuaram nas dis-
putas em torno de tal tema, visando a definir e legitimar a prática profis-
sional do grupo e, ao mesmo tempo, a intervir nas propostas elaboradas
pela prefeitura. A seguir, compartilho alguns achados significativos dessa
investigação, fruto da análise de um conjunto plural de suportes discursi-
vos, como intervenções e publicações nos meios de comunicação, docu-
mentos institucionais, entrevistas e anotações de campo.

O Estado, as entidades do campo da arquitetura e do urbanismo e


os seus porta-vozes: uma relação de interdependência

Em uma reflexão tardia sobre sua trajetória intelectual, Pierre Bourdieu


desenvolveu uma teoria do Estado que se concentra em sua dimensão
simbólica, isso é, em sua capacidade de construir princípios de repre-
sentações legítimas do mundo social pelo poder simbólico nele investi-
do. Nessa perspectiva, o Estado, apesar de sua existência ilusória – uma
vez que só existe pela crença que depositamos em sua própria existência
–, funcionaria como produtor e canonizador de classificações sociais
que organizam o mundo e, por conseguinte, o constroem (Bourdieu,
2014, p. 38). O Estado atuaria, portanto, como um “banco central de
créditos simbólicos”, que, ao distribuí-los, validaria posições e discursos
determinados (Swartz, 2017).
Para escapar de uma análise meramente teleológica, o sociólogo pro-
curou compreender o Estado não pelas suas funções, mas pelas medidas
e ações operadas por homens de carne e osso que contribuem com as
operações de desparticularização e universalização do oficial atuantes no
142 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

interior e no exterior da estrutura estatal. Faz parte desse processo aquilo


que ele identificou como “comissões estatais”; grupo, nomeado pelo re-
presentante estatal, cujos membros devem aparentar estar fora do espaço
social, ou seja, acima das contingências, dos interesses e dos conflitos pró-
prios daqueles que fazem parte do mundo social (Bourdieu, 2014, p. 58).
A ideia de “comissões estatais” permite pensar o conjunto de profis-
sionais que compõem ou transitam pela administração pública, cons-
truindo uma percepção de si, para si e para os outros que sugere que
suas ações respondem ao interesse público. É o caso, por exemplo, dos
arquitetos e urbanistas que integram o campo burocrático e administra-
tivo da prefeitura ou que por ele transitam por meio de suas entidades
de representação, estabelecendo – ainda que circunstancialmente – uma
relação de interdependência com o Estado. Por um lado, esses profissio-
nais permitem que o seu saber técnico seja acionado para legitimar ou
justificar as ações do poder público. Por outro, eles se beneficiam com
o acúmulo dos lucros simbólicos dessa operação, garantindo a projeção
de suas agendas e demandas na esfera pública.
Para compreender esse processo, busco relacionar três dimensões
de análise: a administração municipal sob a gestão do prefeito Eduardo
Paes (2009-2016), as entidades vocalizadoras de agendas do campo da
arquitetura e do urbanismo que atuaram no debate público sobre a zona
portuária e os seus porta-vozes. O Instituto dos Arquitetos do Brasil -
Departamento do Rio de Janeiro (IAB-RJ) foi escolhido como entidade
externa ao campo estatal cuja atuação se marcou por um movimento de
aproximação e afastamento com a administração municipal. Já o Insti-
tuto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), presidido por um arqui-
teto e urbanista desde a sua fundação, exemplifica a luta empreendida
no interior do campo administrativo e burocrático do poder municipal,
em que agentes diversos disputam a autoridade de definir os problemas
públicos da cidade.
Em comum, as entidades e seus representantes tiveram um relativo
protagonismo no debate público em questão, ora fornecendo um argu-
mentário que contribuía com sua justificação pública, ora se afastando
das decisões oficiais, revelando as disputas e os dissensos dentro e fora
do poder municipal. Com essa escolha, pretendo fazer das referidas en-
tidades mediações reveladoras do processo que o Estado estabelece com
Quem pode falar em nome da cidade? 143

grupos profissionais que reivindicam um lugar privilegiado entre aque-


les que disputam o monopólio de enunciação dos problemas da cidade,
fazendo de seus porta-vozes operadores de “atos estatais”. Por essa razão,
foram deixados de fora todos aqueles que, por razões diversas, não tive-
ram a mesma sorte em suas tentativas de interferir de modo mais efetivo
no debate público e nas políticas urbanas locais.

O IAB-RJ e a sua atuação no debate público

Fundado no ano de 1921 com o nome de Instituto Brasileiro de Arquite-


tura, o IAB é a mais antiga livre-associação de arquitetos e urbanistas do
país. Sua criação fez parte de um processo de profissionalização da área,
antecedido pela fundação das primeiras instituições de ensino voltadas
para formação desse profissional e seguido pela criação de um conselho
que passou a regular o seu exercício.4 Em comum, essas entidades esta-
belecem uma relação ambígua com o Estado: por um lado, sua autori-
dade em ensinar, diplomar, selecionar, regular e estabelecer limites aos
profissionais da área é resultado de autorizações concedidas pelo Esta-
do; por outro lado, a sua criação expressa um processo de construção de
uma gradual autonomia em relação ao mesmo, diminuindo a influência
de princípios externos no seu funcionamento.
Desde a sua fundação, os representantes do IAB compreenderam
que a defesa da institucionalização da profissão e a atuação política não
são atividades antagônicas.5 Quando desempenhadas simultaneamente,
permitem a acumulação de recursos socais (capitais) que ultrapassam
os limites e as disputas do próprio campo, uma vez que a possibilidade
de influenciar o processo político dá a elas prestígio e legitimidade so-
cial.6 É exemplar, nesse sentido, a presença de seus representantes em

4 Inicialmente representado pelo Conselho Federal e Regionais de Engenharia, Arqui-


tetura e Agronomia (1933), até a fundação do Conselho de Arquitetura e Urbanismo
em 2010.
5 Ver Serran (1976), Carvalho (2014), França e Leite (2018) e Dedecca (2018).
6 Essa leitura é compartilhada por outros autores que, ao contrário de abordagens mais
funcionalistas, entendem que a relação das entidades profissionais com o Estado vai além
da mera concessão do monopólio legal de seu controle e exercício (ver Petraca, 2013).
144 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

comissões de elaboração e avaliação de planos, na organização de con-


cursos públicos, na contestação de decisões tomadas pelo poder público
e na formulação de propostas alternativas.7
A articulação entre a atuação profissional e os investimentos na esfe-
ra política também pode ser notada quando se volta o olhar para a tra-
jetória dos seus porta-vozes, escolhidos pelos membros associados em
função de uma dupla capacidade. Por um lado, eles precisam encarnar
e defender o sistema de valor e os princípios que organizam o funciona-
mento do campo. Por outro, devem se colocar a serviço da heteronomia
desse campo, realizando trocas, mediações e negociações com agentes
situados em campos sociais diversos. Esse é caso de Sérgio Ferraz Ma-
galhães, presidente do IAB-RJ por dois mandatos consecutivos (2010-
2011; 2012-2013), período em que chegou a acumular a função de pre-
sidente nacional do instituto (2012-2014; 2015-2017). Além de ocupar
posições de destaques em espaços de prestígios do campo – o disputado
mercado de projetos públicos e o restrito espaço acadêmico –, tem o seu
itinerário profissional marcado por passagens na gestão pública, expe-
riência que mostra a sua intimidade com os princípios que organizam
o campo político.8
Feitas tais ponderações sobre a proximidade entre o campo da po-
lítica e o campo do exercício profissional, relação representada pela
conversão dos capitais profissionais em recursos políticos e pelo uso
da participação política em recurso nas lutas profissionais por postos
e posições, pode-se avançar para a consideração da atuação do IAB-RJ
no debate público sobre as intervenções na zona portuária da cidade. É
possível observar que a instituição procurou uma atuação ativa no deba-
te público, promovendo ou participando de eventos sobre as suas trans-
formações. Na sua sede, foram organizados debates com representantes

7 Algumas das intervenções mais marcantes da instituição no debate público e nas


políticas territoriais do município são listadas no livro que registrou a exposição que
celebrou em 2001 os oitenta anos de fundação do departamento do Rio de Janeiro (ver
Pinheiro e Freitas, 2001).
8 Sérgio Ferraz Magalhães é autor de projetos de arquitetura e de urbanismo voltados
para a habitação e educação e professor e pesquisador da UFRJ desde 1989. Na gestão
púbica, ele foi subsecretário Municipal de Desenvolvimento Urbano (1986-1988), secre-
tário Municipal de Habitação do Rio de Janeiro (1993-2000) e secretário de Estado de
Projetos Especiais do Rio de Janeiro (2001-2002).
Quem pode falar em nome da cidade? 145

do poder público, acadêmicos e/ou associados, realizados lançamentos


de livros e exibições de filmes, promovidos eventos com profissionais
estrangeiros e anunciados concursos para a região. Tais eventos, apesar
de também revelarem divergências internas, serviram como espaço de
aglutinação da categoria em prol da construção e da difusão de certas
plataformas – como a defesa da ocupação da zona portuária em detri-
mento das regiões mais afastadas da área central.
Nesse período, também tiveram um papel importante na publici-
zação das posições do instituto as intervenções de seus representantes
nos meios de comunicação. No jornal O Globo, por exemplo, a partir
de 2010, dois dos seus porta-vozes passaram a publicar artigos mensal-
mente: Sérgio Magalhães e Luiz Fernando Janot, ex-presidente do IAB
Nacional e membro do conselho deliberativo do IAB-RJ desde 1993.
Enquanto articulistas, eles não representavam a entidade. No entanto,
suas ideias estavam quase sempre em sintonia com as posições públicas
do instituto ou, ao menos, representavam posicionamentos que encon-
travam eco entre os seus associados. Entre os temas debatidos em suas
colunas, as intervenções na zona portuária tiveram um relativo desta-
que, sendo frequentemente referidas como uma oportunidade de co-
locar em prática princípios hegemônicos do campo da arquitetura e do
urbanismo.
Entre as ideias frequentemente associadas às intervenções em curso,
destacaram-se a defesa de cidade densa e voltada para o seu centro, a
rejeição do planejamento rodoviarista, a valorização da escala pedestre,
o fomento à mistura de uso e à diversidade social e a preservação do pa-
trimônio material e imaterial. Por um lado, esses porta-vozes reconhe-
ciam os limites do Porto Maravilha na materialização desses princípios,
endereçando críticas às escolhas percebidas como equivocadas, suge-
rindo ajustes nas propostas com maior potencial urbanístico e promo-
vendo campanhas em torno de projetos percebidos como prioritários.
Por outro, tais ideias foram frequentemente acionadas para justificar a
necessidade de investir na zona portuária, contribuindo com o enga-
jamento público das comunidades interna (arquitetos e urbanistas) e
externa (população carioca) em torno do projeto.
Ainda que seja difícil precisar o real impacto que o IAB-RJ teve nos
desdobramentos do Porto Maravilha, pode-se afirmar que o poder mu-
146 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

nicipal manteve a entidade como interlocutora pública e, por vezes,


justificou suas ações a partir das demandas da instituição. O caso mais
exemplar nesse sentido aconteceu durante os preparativos dos Jogos
Olímpicos Rio 2016, quando Sérgio Magalhães, na época presidente do
IAB-RJ, concedeu uma entrevista ao jornal O Globo criticando a con-
centração dos equipamentos na Barra da Tijuca e a exclusão da zona
portuária de sua programação.9 Sua fala foi acompanhada por artigos
– sendo um de sua autoria10 –, editoriais11 e reportagens em apoio à pro-
posta. Poucos meses depois, a prefeitura anunciou o deslocamento da
Vila de Árbitros e de Mídia para a zona portuária e firmou uma parce-
ria com o IAB-RJ para a realização do concurso Porto Olímpico (2010-
2011). Apesar de o projeto vencedor não ter sido executado, o concurso
pode ser percebido como o auge da acomodação dos interesses do ins-
tituto na agenda municipal e, ao mesmo tempo, como a expressão do
interesse do poder municipal em ter a entidade como aliada, ainda que
circunstancialmente.
Podem-se acrescentar outros momentos, com menor impacto, em que
críticas por parte do instituto acabaram encontrando eco na administra-
ção pública, resultando, por exemplo, no cancelamento da construção do
píer em Y, na revisão do percurso do veículo leve sobre trilhos (VLT) e
do Bus Rapid Transit (BRT) e na reelaboração do plano de demolição de
casas no Morro da Providência. Ainda que não se possa afirmar que os
recuos e as alterações foram resultado do embate promovido ou estimu-
lados pelos porta-vozes do IAB-RJ, pode-se dizer que as estratégias de
publicização e sensibilização – intervenções nos meios de comunicação,
divulgação de projetos alternativos, promoção de debates públicos, elabo-
ração de pareceres críticos pelas comissões internas – contribuíram para
a transformação das questões colocadas por eles em um problema que,
sendo da cidade, deveria ser respondido pelo poder municipal.
Além de terem colaborado com o reposicionamento da região no
planejamento do município, as discussões deram ao instituto um lugar
relevante no debate público sobre a cidade. Isso permitiu que os discur-

9 Schmidt (2009).
10 Magalhães (2012).
11 O Globo (2009a, 2009b, 2010a, 2010b, 2010c, 2010d, 2010e).
Quem pode falar em nome da cidade? 147

sos de seus representantes ultrapassassem os limites do campo da ar-


quitetura e do urbanismo para assumir a forma de um discurso voltado
a uma audiência universalizada: o conjunto dos cidadãos locais. Parte
dos lucros simbólicos acumulados pelo instituto por meio dessas ope-
rações foi convertida em capital econômico (a realização de concursos
de arquitetura é uma de suas principais fontes de arrecadação12) e em
prestígio social, inclusive internacional – o que pode ser aferido com a
eleição da cidade como sede do congresso da União Internacional dos
Arquitetos em 2020/2021, candidatura que teve o patrocínio da prefei-
tura ainda no ano de 2014.

O IRPH e o fortalecimento de uma agenda do campo da arquitetu-


ra e do urbanismo

Fundado em 2012, o IRPH foi criado como resposta ao título de “pai-


sagem cultural” conferido pela UNESCO a uma parte da cidade. A sua
fundação coroou um processo iniciado em 2009 com a criação da Sub-
secretaria de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e
Design (SUBPC), ligada à Secretaria Municipal da Cultura (SMC). Se-
gundo Domingues (2016, p. 229), a aposta na articulação entre o patri-
mônio cultural e a intervenção urbana marcou o aprofundamento do
empreendedorismo urbano por meio de políticas culturais, não mais
concentrando os investimentos no “marketing urbano aplicado ao espa-
ço construído”, como fez Cesar Maia, mas explorando uma aproximação
com a “economia criativa”. Tal intenção fica clara com a introdução da
“arquitetura” e do “design” como objetos prioritários da subsecretaria e
com a escolha do bairro da Lapa e da Praça Tiradentes como foco das
ações mais significativas em seus primeiros anos de existência.

12 Em um país em que os concursos de arquitetura nunca foram os instrumentos prefe-


renciais de contratação de projetos por parte do poder público, não é desprezível o fato
de a prefeitura ter encomendado ao instituto quatro concursos de relevância nacional e
internacional durante o período investigado: Porto Olímpico (2010-2011), Morar Ca-
rioca (2010), Parque Olímpico (2011) e Sede do Campo Olímpico de Golfe (2012). O
governo federal, a título de comparação, não recorreu ao IAB na escolha do projeto de
nenhum dos 12 estádios construídos ou reformados para a Copa do Mundo de 2014,
restando à entidade a organização de concursos de menor peso no mesmo período.
148 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

No que tange à atuação do instituto na zona portuária, pode-se des-


tacar a promoção de uma série de ações voltadas para a valorização da
região, reforçando a retórica de sua importância na história da cidade.
Entre suas ações, o IRPH se envolveu na criação do Circuito Histórico e
Arqueológico de Celebração da Herança Africana, na elaboração do Pro-
jeto Paisagístico no Entorno do Cais do Valongo e da Frente Marítima,
na fundação do Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana do Rio de Ja-
neiro, na implantação do Museu de Arte do Rio, na reforma do conjunto
arquitetônico do antigo Moinho Fluminense, na restauração do Jardim do
Valongo e seus acessos ao Morro da Conceição e na elaboração de inven-
tário dos negócios tradicionais e de imóveis na região passíveis de terem
suas atividades ou estrutura física preservadas. Essas ações foram publi-
cizadas nos meios de comunicação de massa, na revista produzida pelo
instituto (intitulada Revista do Patrimônio Cultural da Cidade do Rio de
Janeiro) e em eventos organizados ou integrados por seus porta-vozes.
Ainda no âmbito do Porto Maravilha, em que a atuação do IRPH
precisou concorrer com o poder orçamentário e decisório da Compa-
nhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro
(CDURP), as políticas voltadas para a atração e para a fixação da classe
criativa13 também se mostraram oportunas (Pio, 2017; Wanis e Sánchez,
2018). Por demandarem um baixo volume de investimentos (sobretudo
quando comparadas com o recurso exigido pelas políticas culturais con-
vencionais, como o restauro de imóveis e a construção de novos equi-
pamentos culturais), suas ações puderam ser desenvolvidas de forma
relativamente autônoma – sem que o instituto dependesse excessiva-
mente dos recursos da operação urbana. Em termos de engajamento,
ter como público-alvo a classe criativa também trouxe vantagens, visto
que permitiu conquistar apoiadores estratégicos nos campos da cultura
e da inovação. Tal engajamento foi importante tanto para justificar as
intervenções realizadas, quanto para produzir o efeito pretendido pelo
órgão: a transformações da região em um cluster cultural e criativo.

13 Grupo formado por profissionais da arquitetura, do design, das artes, das mídias, do
entretenimento e de outras atividades que agregam valor econômico por meio de ideias,
tecnologias e conteúdos criativos. A sua mobilização no planejamento e na gestão da ci-
dade está cada vez mais presente graças a difusão do modelo das “cidades criativas” pelo
mundo a partir das décadas de 1990 e 2000 (Landry e Bianchini, 1995; Florida, 2005).
Quem pode falar em nome da cidade? 149

Além das ações do instituto na região, é interessante destacar o for-


talecimento da agenda representada pelo órgão na gestão do prefeito
Eduardo Paes, fenômeno expresso na projeção de Washington Fajardo,
que dirigiu o SUBPC/IRPH. Com experiência no campo da política e
da gestão pública,14 o arquiteto e urbanista foi convidado por Jandira
Feghali (adversária de Eduardo Paes no primeiro turno das eleições de
2008, que acabou apoiando sua candidatura no segundo turno) para
participar do governo de transição e, posteriormente, como subsecretá-
rio da Secretaria de Cultura, que tinha como secretária a própria Fegha-
li. Inicialmente focado em questões ligadas ao patrimônio cultural, ele
logo ampliou o seu campo de atuação e a sua área de influência, ocupan-
do a diretoria da nova SUBPC (2009-2012), a presidência do Conselho
de Patrimônio do Município (2009-2016) e, já no segundo mandato, o
posto de Assessor Especial para Assuntos Urbanos do prefeito (2013-
2016).
Mais que a representação de uma trajetória individual, o itinerário
de Fajardo na administração municipal sugere que a agenda do campo
de arquitetura e do urbanismo, antes dispersa em secretarias e institutos
– Secretaria de Urbanismo, Secretaria de Cultura, Secretaria de Infraes-
trutura e Habitação e Instituto Pereira Passos –, passou a ser acolhi-
da por um instituto com um programa mais definido e com relativo
protagonismo na estrutura burocrática administrativa.15 Ademais, as
questões do instituto ganharam grande visibilidade nos meios de comu-
nicação, o que pode ser atestado pelas intervenções recorrentes do seu
presidente nas páginas do jornal O Globo, primeiramente assinando ar-
tigos em apoio às intervenções na zona portuária junto com o Secretário
Municipal de Desenvolvimento, Felipe Góes,16 e, em seguida, atuando
como articulista fixo. Atuação a que ele deu continuidade após deixar

14 Integrou o Programa Jovens Urbanista criado na gestão Cesar Maia (2001) e foi
subsecretário e secretário de Projeto Urbano no município de Nova Iguaçu entre 2005
e 2008.
15 Como prova desse destaque, pode-se citar a incorporação do IRPH ao Gabinete do
Prefeito, colocando o instituto no centro da arena decisória municipal.
16 A parceria com Felipe Góes, incumbido da tarefa de atrair negócios e investimentos
para a localidade, também é reveladora da capacidade do arquiteto e urbanista conciliar
princípios do seu campo de origem com os interesses financeiros e fundiários dos agen-
tes envolvidos na operação urbana (Góes e Fajardo, 2010a, 2010b, 2011).
150 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

a presidência do IRPH, quando suas colunas deixaram de ser mensais


para se tornar quinzenais.
Suas colunas do período em que esteve à frente do IRPH podem
ser interpretadas como mediação reveladora das disputas em curso
no interior da agenda municipal, recurso estrategicamente mobiliza-
do pelo arquiteto e urbanista para sensibilizar um público mais am-
plo quanto aos problemas por ele eleitos como prioritários. Junto com
o IAB-RJ, Fajardo apoiou a transferência de parte dos equipamentos
olímpicos para o porto, defendeu políticas de valorização da área cen-
tral e seu entorno imediato, fez críticas contundentes à centralidade
do carro no planejamento da cidade, celebrou ações voltadas para
a escala pedestre ou (nas suas palavras) “andabilidade” e “qualidade
na pequena escala” e, acima de tudo, defendeu e elaborou políticas
voltadas para a valorização do patrimônio da região, entendido como
recurso estratégico para o fomento do desenvolvimento social e eco-
nômico local. O que não necessariamente significou um alinhamento
programático dessas entidades, mas, certamente, o compartilhamen-
to de ideias a que, em certa medida, as intervenções na região aparen-
tavam responder.
Nada disso se deu sem que Eduardo Paes e Washington Fajardo se
servissem mutuamente dessa relação. Ao conferir ao arquiteto e ur-
banista uma posição de relevo na sua gestão, Eduardo Paes projetou a
imagem de gestor sensível às demandas de grupos preocupados com a
dimensão histórica e cultural da região e se mostrou alinhado às ideias
hegemônicas do campo da arquitetura e do urbanismo, neutralizando,
assim, parte das críticas ao Porto Maravilha. O presidente do IRPH e
assessor de assuntos urbanos, por sua vez, ampliou a sua capacidade
de vocalização dos problemas da cidade, disputando posições domi-
nantes dentro do campo da burocracia e da administração municipal
e do campo da arquitetura e do urbanismo. Estratégia renovada recen-
temente com o retorno de Eduardo Paes à prefeitura em 2020, quando
Washington Fajardo foi convidado para comandar as ações da nova
Secretaria Municipal de Planejamento Urbano (SMPU), ampliando
ainda mais a sua influência nas políticas urbanas locais.
Quem pode falar em nome da cidade? 151

Conclusões

Eu acho que o que acontece é que, pelo fato de ser efetivo e ter de fato
realizações, esse órgão, que era irrelevante – [porque] o patrimônio
não é importante numa cidade complexa como o Rio de Janeiro, com
tanta desigualdade – ele passa a ficar relevante. O porto é um capítulo
especial da nossa conversa; ele abre espaço para o patrimônio cultural.
Mas, num certo momento, a gente passou... [...]. O prefeito me coloca
como assessor especial dele para assuntos urbanos. Eu não tinha ne-
nhuma responsabilidade na Secretaria de Urbanismo, mas o prefeito
me coloca numa posição bastante complexa, como uma espécie de
curador das intervenções da Prefeitura. Isso não significa que as coi-
sas que eu dizia eram obedecidas, mas que eu tinha espaço para dizer
coisas de uma maneira que até o secretário de urbanismo não tinha.
Washington Fajardo17

É típico da agenda política da cidade uma certa simplificação ou re-


dução da complexidade do discurso da cidade. Tá bem; houve obras
importantes na região portuária. Mas que tipo de empreendimento que
é lançado nessa área com investimento público maciço? São torres para
grandes corporações, que é o contrário do nosso discurso da cidade
multifuncional. Eu acho que você tem toda razão e a aproximação do
Washington Fajardo tem uma consistência nesse sentido. Mas ele perde
força quando ele não investe no uso habitacional no centro, por exem-
plo. [...] Tem sempre essa noção que o IAB é um player importante, que
influencia, mas que as grandes teses a gente não consegue emplacar.
Pedro da Luz18

Essas declarações dos representantes das entidades analisadas19 ex-


pressam com clareza o fenômeno que busquei analisar ao longo deste

17 Informação verbal fornecida ao autor em entrevista realizada em 8 de agosto de


2019.
18 Informação verbal fornecida ao autor em entrevista realizada em 29 de julho de 2019.
19 Após ocupar o posto de vice-presidente do IAB-RJ durante as gestões de Sérgio Ma-
galhães, Pedro da Luz assumiu a presidência do IAB-RJ de 2014 a 2019.
152 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

texto: diante das intervenções na zona portuária, entidades vocalizado-


ras de agendas do campo da arquitetura e do urbanismo procuraram
ampliar sua capacidade de intervenção no debate público. Ao elegerem
a zona portuária como problema prioritário, seus representantes lan-
çaram mão de estratégias de publicização e sensibilização para impor a
urgência de certos temas e, com isso, buscaram influenciar as políticas
urbanas municipais. Hoje se sabe que muitas das operações conduzidas
por esses agentes não tiveram o resultado esperado, seja pela falta de
compromisso por parte dos agentes externos, seja por uma alteração na
correlação de força da coalizão urbana.
O resultado, no entanto, não diminui a importância desses porta-vo-
zes como mediadores do campo da arquitetura e do urbanismo. Afinal,
em diversos momentos conseguiram converter posições hegemônicas
do campo em ações eficazes de autoridade. No caso do IAB-RJ, essa ca-
pacidade se expressou na realização do concurso Porto Olímpico, mo-
mento em que a entidade atestou a sua capacidade de intervir na geo-
grafia da distribuição dos recursos públicos e de influenciar o processo
de reconfiguração urbana em curso. Por sua vez, a inserção de Washin-
gton Fajardo no núcleo decisório da prefeitura permitiu que temas liga-
dos ao patrimônio, ao design e à arquitetura tivessem força na agenda
municipal de intervenções urbanas, sobretudo na zona portuária.
Os arquitetos e urbanistas em questão não foram, no entanto, os únicos
beneficiados por esse processo. Entendidos como instrumentos funda-
mentais nas operações de desparticularização e universalização do oficial,
os saberes técnicos-profissionais foram frequentemente mobilizados para
justificar e validar opções políticas de agentes de campos outros, mostran-
do a porosidade entre a técnica e a política. É exemplar, nesse sentido, a
maneira como a gestão Eduardo Paes mobilizou – e ainda mobiliza – o
discurso de arquitetos e de urbanistas para justificar uma operação urba-
na que, na prática, produziu ações e dinâmicas que não encontram cor-
respondência nas ideias hegemônicas desse campo. Como exemplo, po-
dem-se referir o uso especulativo do solo urbano, o esvaziamento político
do patrimônio cultural e o recrudescimento das desigualdades sociais.
Com o retorno de Eduardo Paes à prefeitura, a problemática anali-
sada neste trabalho ganha atualidade. Ao nomear Washington Fajardo
como secretário de Planejamento Urbano, o prefeito transferiu para o
Quem pode falar em nome da cidade? 153

domínio do arquiteto e urbanista questões que antes ele apenas tinha a


capacidade de influenciar como assessor: o ordenamento e a gestão do
território e a concepção de políticas urbanas ligadas às áreas de infraes-
trutura, mobilidade e habitação. A situação não lhe garante o monopó-
lio de tais políticas, mas lhe confere certa vantagem nas disputas no in-
terior do campo administrativo e burocrático do município, em especial
no que diz respeito à área de influência das secretarias de Habitação, de
Transporte e de Infraestrutura.
Entre as ações lideradas pela nova secretaria, chama a atenção o
projeto Reviver Centro, iniciativa que propõe o estímulo do uso resi-
dencial na região por meio da criação de uma Operação Interligada.
Principal articulador do projeto, Washington Fajardo tem recorrido às
ideias do campo da arquitetura e do urbanismo mobilizadas para justi-
ficar as ações na zona portuária. Desta vez, no entanto, a prefeitura não
tem encontrado no IAB-RJ um ambiente favorável para produção de
alianças. A nova diretoria do instituto, que tem a vereadora da oposição
Tainá de Paula como co-presidenta, tem optado por uma atuação mais
combativa na Câmara dos Vereadores. Com isso, a entidade mantém a
compreensão de que as demandas e as pressões da categoria devem ser
preferencialmente dirigidas ao Estado, mas altera a sua estratégia de in-
serção nas arenas decisórias do urbano, podendo comprometer, assim,
a aceitação social do projeto.

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na Barra, e não em áreas mais carentes de infraestrutura. O Globo,
06 out. Rio, p. 12.
157
Foto: Série Fluxos, Luiz Baltar
CAPÍTULO 6

Em busca de um amanhã global


Museus na regeneração da zona portuária do
Rio de Janeiro1
Renata Latuf Sanchez

Introdução

Como marcos do projeto Porto Maravilha, dois museus foram construí-


dos na zona portuária carioca: o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Mu-
seu do Amanhã. Localizados na Praça Mauá, que se tornou o ponto de
convergência e símbolo da operação urbana consorciada, eles marcam
uma primeira fase de intervenções urbanas ao longo da via de pedes-
tres denominada Boulevard Olímpico. A construção desses dois equi-
pamentos culturais insere-se em uma estratégia de utilização da cultura,
lazer, entretenimento e consumo (seja ele de produtos, experiências ou
lugares) como âncoras para a regeneração urbana, e representa novas
formas de espacialização de poder (Sassen, 2001). Típica de um pen-
samento pós-moderno da segunda metade do século XX, tal estratégia
acaba por determinar novas formas de se planejar o espaço urbano (As-
cher, 2010).
O chamado planejamento cultural, que surge paralelamente ao pla-
nejamento estratégico, apropria-se de um contexto marcado pela desin-
dustrialização, globalização, aumento do consumo, fortalecimento do
setor terciário, individualização, consolidação de diferentes estilos de
vida, além da ampliação da educação de massas (Zerlang, 2005; Zukin,
1998; Hamnett e Shoval, 2003). Ao invés de produtos físicos, a produ-

1 O presente capítulo é uma versão revista e ampliada de Sanchez (2018).

159
160 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

ção de “experiências” passa a ser o foco da economia urbana do final


do século XX, o que pode ser observado com clareza na utilização de
museus como elementos norteadores ou emblemáticos de “regeneração
urbana” (Hamnett e Shoval, 2003), uma vez que se tornam não mais
meros receptáculos e contêineres de arte, mas parte de uma experiência
turística e tátil da “cidade global”, envolvendo novas funções e atividades
e, geralmente, uma arquitetura espetacular (Arantes, 1993).2
Essa transformação do museu em uma iniciativa empresarial (Ham-
nett e Shoval, 2003) se apropriou da maior abrangência de público al-
cançada pelas instituições museológicas ao longo do século passado, re-
sultado do processo de ressignificação destas instituições, que passaram
por uma revisão em seu papel e por um processo de reformulação de
suas estruturas.3 Na segunda metade do século XX, move-se a ênfase
do acervo para a interface com o usuário, questões cotidianas e funções
educativas, contribuindo para um olhar crítico da sociedade (Julião,
2006).
À mutação de caráter dos museus corresponde também uma muta-
ção tipológica, como afirma Montaner (2003), em que um edifício de
organização estática passa a ser um local em constante transformação,
com múltiplas formas possíveis. O autor enuncia, ao mesmo tempo em
que sintetiza, oito posições formais preponderantes nos museus con-
temporâneos: “museu como organismo extraordinário”; “evolução da
caixa”; “objeto minimalista”; “museu-museu”; “museu voltado para si
mesmo”; “museu colagem”; “antimuseu”; e “formas de desmaterizaliza-
ção”. As análises aqui realizadas, a partir de estudo de caso do projeto
Porto Maravilha, identificam a presença das quatro primeiras posições,

2 Arantes (1993) critica a transformação dos museus contemporâneos em objetos de


consumo, com alguns espaços, como os cafés e lojas (geralmente com vistas cenográ-
ficas da cidade), mais atraentes que a própria coleção e acervo. Além disso, investe-se
cada vez mais em formas inusitadas e extraordinárias, que se tornam os objetos-desejos
de arquitetos para mostrarem sua criatividade da maneira mais livre possível. É evidente
aqui o exemplo do Museu Guggenheim de Bilbao, cuja arquitetura de destaque consa-
grou Frank Gehry como starchitect.
3 Montaner (2003) destaca novos modelos de museu a partir dos anos 1930 e 1940,
pautados em ideias modernas, como o Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova
York (1939) e o Museu Guggenheim de Nova York (1943). Neste contexto, é importante
também mencionar a criação do Conselho Internacional de Museus (ICOM) em 1946.
Em busca de um amanhã global 161

além da “museu-colagem”. Apesar de não serem classificações fechadas,


tais posições ajudam a compreender processos de significação dos mu-
seus em seus contextos urbanos, algo relevante no caso de seu uso como
âncora em regenerações urbanas.
A primeira posição formal corresponde ao museu como objeto sin-
gular e extraordinário, carregando também uma condição de ser irre-
petível (Montaner, 2003). O primeiro museu nesse sentido exemplifi-
cado pelo autor é o Museu Guggenheim em Nova York, de Frank Lloyd
Wright, que rompe com a paisagem urbana dos arranha-céus existentes.
Este museu teria inaugurado o “caminho do museu como entorno artís-
tico” (Montaner, 2003, p. 12), sendo baseado em formas orgânicas e em
um percurso de movimento. Oposto à posição do museu como caixa,
posição tradicional e adotada repetidamente na história da museologia,
o organismo extraordinário irrompe na paisagem e cria novas formas de
interação internas. Outro exemplo mencionado é o Museu Guggenheim
de Bilbao, por Frank Gehry, que “responde ao projeto de uma rede de
museus na sociedade global” (Montaner, 2003, p. 18), sendo o principal
marco da regeneração urbana pretendida pela cidade e posteriormente
desejado por outras, no chamado “efeito Bilbao” (Jencks, 2006). Mais
tarde, Montaner critica a reprodução formal deste edifício em outras
produções de Gehry, como a Fondation Louis Vuitton, em Paris (Mon-
taner, 2016), o que reforça a ideia de que o valor deste tipo de posição
formal está em ser uma condição única para cada contexto.
A “evolução da caixa” decorre de transformações no modelo do
museu como um contêiner (“gabinete de colecionador”), e é observada
tanto em novas edificações – em geral pautadas na arquitetura moder-
na, com planta livre –, quanto na reutilização de estruturas existentes
(como pavilhões fabris), envolvendo intervenções para torná-las adap-
tadas às necessidades de climatização, informação e circulação (Mon-
taner, 2003). A ideia do “cubo branco”, de um espaço neutro, torna-se
adequada à contínua evolução de usos, estratégias e fluxos de visitantes
nos museus com esta posição (Montaner, 2003).
A terceira posição formal, do “objeto minimalista”, pode ser observa-
da tanto em edificações com essa estética, quanto em intervenções pon-
tuais com tal apelo, isto é, intervenções que “com o mínimo de forma”,
conseguem “o máximo de transformação do museu existente”, como o é
162 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

o caso da pirâmide do Louvre, por I. M. Pei, mencionada por Montaner


(2003, p. 50 e 56). Parte deste princípio pode ser atribuído à intervenção
do escritório de arquitetura Bernardes + Jacobsen no MAR, como será
visto mais adiante.
A posição do “museu-museu”, segundo Montaner, foi consolidada
a partir dos anos 1970 com a crítica tipológica: “toda ênfase é colocada
na essência da própria disciplina arquitetônica, na estrutura espacial do
edifício, na tradição tipológica do museu” (2003, p. 62), sendo caracte-
rizados pela estrutura tipológica e pela integração à morfologia urbana.
Tal posição é vista frequentemente na remodelação de edificações exis-
tentes, em especial históricas, com estruturas tipológicas características,
que impõem restrições quanto às configurações e intervenções deseja-
das para os interiores. Para o autor, o projeto neste sentido deve “partir
de uma análise tipológica do edifício existente para revitalizá-lo e enri-
quecer sua dimensão urbana” (p. 73).
A quarta posição formal aqui adotada é a do “museu-colagem” (Mon-
taner, 2003, p. 94), que surge da “complexidade dos programas museísti-
cos atuais e em consonância com a fragmentação como condição contem-
porânea”, caracterizando-se por uma colagem de fragmentos. Este tipo
de museu reforça a aproximação da cultura ao consumo de massas e à
consolidação da imagem de “cidade global” e turística. Montaner (2003,
p. 106) afirma que tal posição formal se mantém como uma “solução con-
corde com nossos tempos”, entretanto adverte para seu acionamento caso
o objetivo do uso do fragmento seja meramente rentável.
Neste contexto, analisam-se aqui as intervenções de cunho cul-
tural promovidas pelo projeto Porto Maravilha, em especial, a inser-
ção urbana dos dois museus referidos e seu significado para a trans-
formação da imagem da cidade. Compara-se a proposta do Museu
do Amanhã com uma versão inicial apresentada em 2009 (antes da
instituição da Operação Urbana Consorciada) e com o projeto não
realizado do Museu Guggenheim do Rio de Janeiro, de 2003, desen-
volvido pelo arquiteto Jean Nouvel e proposto para o Píer Mauá. Uti-
lizam-se como metodologia as posições formais de Montaner (2003)
acima elencadas como auxílio à comparação desses museus em re-
lação à sua inserção urbana e caracterização tipológica e imagética,
destacando-se ainda sua relação com a ideia de espacializações do
Em busca de um amanhã global 163

poder por meio da cultura.


A ideia de espacializações do poder é utilizada neste capítulo no
sentido de entender como relações sociais e simbólicas se manifes-
tam em elementos físicos da paisagem urbana, aqui nomeadamente
por meio de equipamentos culturais – os novos museus. Pauta-se no
caráter simbólico da arquitetura e, entendendo-se a dimensão simbó-
lica do espaço como instrumento de poder, atrelada a processos de
identificação (Monnet, 2011), discute-se como a posição formal dos
museus reforça ou representa relações de hierarquia (financeira, polí-
tica, cultural, institucional) na transformação do ambiente construído
e na regeneração da zona portuária carioca. É interessante notar nesse
sentido a crítica de Montaner (2016) à repetição da iconicidade ar-
quitetônica de projetos no final do século XX em diferentes lugares,
ignorando os contextos locais. Essa crítica se alinha ao argumento de
Sassen (2001) de que a diminuição da importância do “lugar” (pla-
ce) pela globalização, pela economia da informação e pela telemática
na economia global (especialmente em contextos industriais, que se
aproveitam de novas dinâmicas espaciais de produção, não mais pau-
tadas em estruturas físicas em várias cidades, mas geralmente em uma
– a “cidade global”), resulta em enorme prejuízo para a multiplicidade
de ambientes culturais (cultural environments) nas cidades, forma-
dos por seus diferentes trabalhadores e atividades que são tão parte
do processo de globalização quanto as finanças internacionais. Neste
sentido, podemos dizer que a criação de novos símbolos ou imagens
“internacionalizadas” dentro de projetos de regeneração urbana não
só representa uma forma de “espacializar” o poder de quem produz
tais símbolos e imagens, mas também de alterar dinâmicas culturais e
sociais existentes.

Diferentes museus, uma só ideia: regenerar

Segundo Duarte (2005), a intenção de requalificar o centro do Rio de


Janeiro por meio da cultura e das artes ficou evidente a partir dos anos
1980. Em 1979, foi implementado o projeto Corredor Cultural, que
incentivou o surgimento de diversos centros culturais na região, como
164 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

o Centro Cultural Banco do Brasil, em 1989,4 e o Centro Cultural dos


Correios, em 1993 (Duarte, 2005). A estratégia alinhava-se a fenôme-
nos internacionais semelhantes naquele período em cidades europeias
e norte-americanas, como a transformação de alguns bairros centrais
decadentes em cultural quarters, voltados ao consumo e produção cul-
turais, à indústria criativa e à promoção do “lugar” urbano (Montgo-
mery, 2003).
A zona portuária carioca, vizinha ao Centro, mas dele bastante des-
conexa, atravessou um processo de declínio econômico, abandono e
degradação de suas estruturas físicas (e, por consequência, de seu am-
biente social) na segunda metade do século XX.5 A partir dos anos 1980,
surgem algumas propostas de revitalização, dentre as quais destaca-se o
projeto Rio Cidade, de 1993, baseado na experiência de planejamento
estratégico de Barcelona – e conectado às Olimpíadas de 1992 – e de
Buenos Aires – com inspiração do projeto da área de Puerto Madero
(Segre, 2004). As intervenções urbanas propostas focavam na reconver-
são dos armazéns portuários desativados e da faixa litorânea entre o Ae-
roporto Santos Dumont e a Praça XV em espaços multifuncionais, com
residências, empreendimentos luxuosos e equipamentos culturais. Em
1996, a Companhia Docas do Rio de Janeiro lançou uma concorrência
para revitalização do Píer Mauá e reciclagem dos armazéns portuários
para uso cultural e de lazer. O vencedor desta concorrência foi o arquite-
to Índio da Costa, cujo projeto criava uma promenade ao longo da baía
e dos armazéns e um enorme complexo no píer. Posteriormente, com a
possibilidade de destinação do píer para abrigar o Museu Guggenheim,
o projeto foi suspenso. Em 2001, um decreto criou o “Plano de Recupe-
ração e Revitalização da Região Portuária”, em que se ressaltava o “ca-
ráter estratégico” da região e a necessidade de novos usos e programas
de desenvolvimento. Foi constituído um grupo de trabalho, formado
pela Secretaria Municipal de Urbanismo e pelo Instituto Municipal de
Urbanismo Pereira Passos (IPP), para estabelecer parâmetros de uso e
ocupação do solo na então criada Área de Especial Interesse Urbanís-

4 Em 2013, este era o museu/centro cultural mais visitado do Brasil e o 17º do mundo,
de acordo com o ranking da publicação The Art Newspaper (Lucena, 2015).
5 Ver Farias e Trigo (2016).
Em busca de um amanhã global 165

tico da Região do Porto do Rio, um território de 3.177.000 m2 e 22.879


habitantes na época, abrangendo os bairros da Saúde, Gamboa e Santo
Cristo (Duarte, 2005). O plano pretendia integrar os três níveis de go-
verno, em especial os níveis municipal e federal, visto que diversos ter-
renos da zona portuária pertenciam à União (Duarte, 2005). À prefeitu-
ra caberiam obras de infraestrutura, restauros no patrimônio histórico,
além de obras voltadas ao campo cultural e de entretenimento, como a
reabilitação dos seis primeiros armazéns do cais do porto, destinados a
galerias, cinemas, exposições e eventos culturais, e a transformação do
Píer Mauá. O “Armazém do Rio”, no galpão 5, foi inaugurado em 2002,
funcionando como espaço para diversos eventos culturais. Posterior-
mente, tal armazém seria cogitado para abrigar parte do que viria a ser
o Museu do Amanhã, conforme será discutido adiante. Atualmente, no
entanto, o mesmo encontra-se aberto apenas para eventos temporários.

Guggenheim Rio

Durante a gestão do prefeito Cesar Maia (2001-2008), foram feitos es-


forços para implantar no Píer Mauá uma filial do Museu Guggenheim.
A discussão sobre o museu havia começado na gestão de Luiz Paulo
Conde (1997-2000), que pretendia implantar o museu na Praça XV,
como parte do projeto de recuperação da frente marítima da cidade,
integrando-o a outros equipamentos culturais do local, como o Museu
Histórico Nacional e a Casa França-Brasil.6 Previa-se a realização do
projeto por um arquiteto brasileiro renomado, como Oscar Niemeyer.
A proposta apresentada em 2003 por Maia, entretanto, não só alterou o
local do museu, como colocou a questão da contratação de um arquiteto
estrangeiro do star system, Jean Nouvel, pela própria instituição Gugge-
nheim Foundation, que também disponibilizaria seu acervo. O projeto
previa uma área construída de 21 mil m² com diferentes galerias exposi-
tivas e outras atividades, como auditórios, espaços multimídia, espaços
de arte-educação e arte contemporânea, bem como um restaurante com

6 “Guggenheim Rio de Janeiro”, Revista Projeto, 01 fev. 2003. Disponível em: https://bit.
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166 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

vistas privilegiadas no topo de uma torre para exposições temporárias


e um café. Além de uma galeria destinada à coleção de arte brasileira e
da América Latina, um edifício retangular em concreto com elementos
proeminentes piramidais na cobertura abrigaria a coleção permanente
Guggenheim, cedida graças aos acordos da Fundação Guggenheim, vi-
sando integrar o museu do Rio de Janeiro à rede internacional da marca.
O projeto previa acesso pela Avenida Rio Branco, por meio de uma
rampa que passava sob uma imensa tela branca digital de 39 metros
de altura feita para ser vista das vias rápidas do Elevado da Perimetral,
levando a um grande lobby subaquático, coberto por um espelho d’água
com fundo de vidro. Diversos espaços do museu estariam abrigados
abaixo do nível do mar, definindo o partido arquitetônico do museu
e, provavelmente, as previsões dos exorbitantes custos, que chegaram a
US$240 milhões7 (Pimenta, 2003).
A falta de transparência nas discussões sobre a implantação do
museu levou a diversas críticas, tanto em relação ao impacto urbano
(e possíveis processos de gentrificação pela valorização imobiliária do
entorno), quanto a questões relativas a conteúdo do acervo, curadoria,
exposições e gerenciamento. Falcão (2003) aponta ainda a questão do
impacto gerado pela utilização de recursos públicos da Lei Rouanet em
um projeto de tamanha magnitude, que inviabilizaria a realização de
projetos no restante do país, desequilíbrio denunciado por diversos au-
tores na época frente ao estado deplorável de inúmeras outras institui-
ções.8
Uma série de ações populares contra o projeto e de decisões judiciais,
que evidenciavam a falta de transparência no contrato e incongruências
constitucionais, acabou por suspender a realização do museu. Apesar de
um alto retorno econômico – previsto pelo então diretor da Fundação
Guggenheim, Thomas Krens, da ordem de R$1,5 bilhão à cidade do Rio
de Janeiro nos primeiros cinco anos de funcionamento (Pimenta, 2003)
–, em termos urbanos, o edifício representaria uma realidade fragmen-
tada e estanque em um complexo feito para grandes discursos e olhares.

7 “Guggenheim critica o Rio por veto ao museu”, BBC Brasil, 04 jul. 2003. Disponível
em: https://bbc.in/3pMOfyT. Acesso em: 10 dez. 2021.
8 Ver Falcão (2003) e Amendola (2002).
Em busca de um amanhã global 167

Tratava-se de um “museu-colagem”, porém voltado ao mercado, com


elementos distintos entre si e sem um devido diálogo com o entorno, na
época ainda mais prejudicado pela desconexão urbana provocada pelo
Elevado da Perimetral.

Em busca do Amanhã

Após os entraves à construção do Museu Guggenheim, a prefeitura


anunciou a construção do Museu do Amanhã em 2008. Notícias da
época em jornais, blogs e fóruns, indicam ter sido firmado um termo
de cooperação técnica entre a Fundação Roberto Marinho e a Compa-
nhia Docas do Rio de Janeiro para a construção do museu, tendo essa
última cedido os armazéns 5 e 6 do cais do porto e o governo estadual
o prédio da Polinter, localizado em frente aos galpões e desativado à
época, totalizando uma área de 20 mil m², com orçamento previsto de
R$100 milhões.9 Concebido para abrigar exposições midiáticas e inte-
rativas – tendo sido indicada à época a firmação de parcerias entre a
Fundação Roberto Marinho e algumas instituições como o museu de
ciência CosmoCaixa, em Barcelona10 –, o museu não possuiria acervo
material, reduzindo, portanto, os custos de funcionamento. A previsão
inicial de inauguração era 2012. Na época, ainda estava em discussão
a viabilidade da demolição do Elevado da Perimetral, devido à falta de
verba da prefeitura para as obras.
Desconhece-se a razão para a atual ausência de informações sobre
o projeto original do Museu do Amanhã nos galpões portuários, que
pode ser visto em uma apresentação do projeto Porto Maravilha,11 mos-
trando a reforma dos armazéns para o museu e um projeto paisagístico
para o Píer Mauá. Em 21 de junho de 2010, a prefeitura apresentou ou-
tro projeto para o Museu do Amanhã, transferindo-o para o Píer Mauá,

9 “Fundação Roberto Marinho e Docas assinam acordo para estudos do Museu do


Amanhã, na Zona Portuária”, Extra, 18 nov. 2011. Disponível em: https://glo.bo/3IB-
ml1o. Acesso em: 10 dez. 2021.
10 Idem.
11 Disponível em: https://pt.slideshare.net/viniciusmoro/projeto-porto-maravilha.
Acesso em: 10 dez. 2021.
168 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

local anteriormente pretendido para o Museu Guggenheim.12 As apre-


sentações seguintes já mostravam o projeto de Santiago Calatrava a ser
consolidado na área (PCRJ, 2011), diferindo de maneira abismal das
propostas iniciais. A primeira, apostava em uma intervenção de “evo-
lução da caixa” – aproximando o discurso às posições de Montaner –
em um edifício pré-existente de caráter industrial, de planta livre, não
pensado originalmente para abrigar usos culturais. O espaço expositivo,
evidenciado nas poucas imagens disponíveis sobre o projeto, dentro do
espaço longilíneo do galpão, tinha percurso criado por meio de estrutu-
ras em ziguezague, sobre as quais seriam colocados expositores digitais
e gráficos (Figura 1). Como temática, o próprio Rio de Janeiro, “ligando
sustentabilidade e desenvolvimento”.

Figura 1. Planos iniciais para o Museu do Amanhã, quando pensado


para ocupar os armazéns 5 e 6 do porto

Fonte: pt.slideshare.net/viniciusmoro/projeto-porto-maravilha

12 “O Guggenheim e o Museu do Amanhã no Píer Mauá”, Diário do Rio, 22 jun. 2010.


Disponível em: https://bit.ly/3pP3FCC. Acesso em: 10 dez. 2021.
Em busca de um amanhã global 169

Os armazéns geminados 5 e 6, situados próximos ao final do per-


curso do Boulevard Olímpico – que termina no Aquário Municipal
do Rio de Janeiro (AquaRio) inaugurado em 2016 –, encontram-se
mais distantes da efervescência comercial e cultural que veio a se
desenvolver nas proximidades da Praça Mauá, especialmente no pri-
meiro trecho da Rua Sacadura Cabral. O reaproveitamento de uma
estrutura existente, relativamente distante do ponto focal do proje-
to, não seria suficiente como força formal e imagética para a inter-
venção urbana. A praça e o Píer Mauá, semelhantemente, tinham
intervenções tímidas, em que ainda não figurava o MAR com sua
cobertura orgânica e monumental (a ser discutida posteriormente)
nem qualquer edificação no píer, que seria transformado em um par-
que público com jardins, quiosques, chafarizes, um anfiteatro e um
grande pátio de estacionamento na entrada, dividindo a praça do
parque – uma solução nada atraente para a ideia de reintegrar espa-
ços públicos que viria a ser o tema da operação. Apesar de diversas
cidades mundiais terem aproveitado edifícios com tipologia similar
aos galpões para criar espaços expositivos e museus de modo bas-
tante interessante, fica evidente que o projeto inicial do Museu do
Amanhã não corresponderia ao intuito de promover a imagem da
cidade internacionalmente, o que ocorreria mais facilmente com a
utilização de um starchitect ou uma grife. Com o fracasso da propos-
ta do Museu Guggenheim, restava trazer um nome famoso para criar
uma forma a um museu único.
O novo Museu do Amanhã, projetado por Santiago Calatrava e
também concebido em parceria com a Fundação Roberto Marinho,
já começou a ser divulgado em 2009, após o lançamento da operação
urbana, ocupando toda a extensão do Píer Mauá, como uma estrutura
branca única com painéis fotovoltaicos e coberturas de formas altamen-
te complexas e icônicas na paisagem (Figura 2).
170 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Figura 2. O Museu do Amanhã, de Santiago Calatrava, e o MAR ao fundo, no lado


esquerdo da foto. A Praça Mauá tornou-se um ponto de encontro para diferentes
usuários após sua renovação e retirada do Elevado da Perimetral

Foto da autora (mai. 2017)

Com uma metragem condizente com normas sobre altura de novas


edificações13 que respeita o gabarito da área, não visando marcos verti-
cais – o oposto da proposta do Museu Guggenheim de Jean Nouvel –,
o museu garante uma certa harmonia com o entorno, também criando
um percurso público ao redor do edifício, encarado como uma escul-
tura ao ar livre. O paisagismo constituído por diversos espelhos d’água,
além de algumas áreas com palmeiras e canteiros de vegetação rasteira,
flanqueia e define os espaços públicos do edifício. O enorme espelho
d’água na parte de trás do museu, de frente à Baía de Guanabara, ornado
por uma grande escultura metálica do artista americano Frank Stella,
reflete as formas sinuosas do museu, ao mesmo tempo em que pare-
ce dar continuidade à baía no encontro visual das águas – um perfeito
ponto para fotografias cenográficas. Os espaços internos do museu são
tratados como espaços neutros para exposições digitais e virtuais que
assumem configurações diversas, ainda que as formas arquitetônicas ar-
rojadas sejam evidentes ao longo de algumas salas, corredores e rampas.
Em certas áreas internas, é possível conectar-se ao exterior por meio de
janelas que seguem as formas inusitadas do edifício, revelando a paisa-
gem portuária em constante transformação. O grande mirante na parte
de trás, no andar superior, parece ser um respiro ao percurso, repleto de
vídeos e imagens feitos para impressionar, em salas às vezes demasiado
pequenas para o fluxo de visitantes.

13 Ver as cartas do ICOMOS: “The Venice Charter” (1964), “Washington Charter”


(1987) e “International Cultural Tourism Charter: Managing Tourism at Places of Heri-
tage Significance” (1999).
Em busca de um amanhã global 171

Partindo-se da prerrogativa de que museus possuem um importan-


te papel na educação e aproximação da herança cultural com a comu-
nidade e a sociedade (conforme apregoado pelo International Coun-
cil of Museums) reforça-se também o entendimento da cultura como
promotora de papel crítico da sociedade por meio do conhecimento e
do reconhecimento da inserção do indivíduo em seu meio, visto sua
aproximação ao objetivo da educação. Os museus, neste sentido, têm o
papel de situar as pessoas em seus contextos históricos e sociais, a partir
dos quais podem visualizar problemáticas e propor diálogos – um de-
safio frente à constante transformação da cultura em produto. Apesar
da enorme quantidade de alunos da rede pública que são levados ao
museu por meio de seu programa educativo, a aproximação do Museu
do Amanhã com a comunidade local (ou brasileira) não é refletida em
seu acervo ou exposições. Desde sua exposição permanente inicial até
a mais recente – intitulada “Coronaceno: Reflexões em tempos de pan-
demia” (março a agosto de 2021) –, o museu parece dedicar-se a con-
tar a história da vida no planeta Terra em uma grande narrativa com
aporte midiático, algo bastante alinhado ao caráter global almejado pela
renovação urbana da zona portuária, voltada especialmente a turistas,
brasileiros e estrangeiros.
Um exemplo do “museu como organismo extraordinário”, suas for-
mas visam a iconicidade e a ideia do próprio edifício como um objeto
museal. Um modelo, entretanto, alinhado à já muito criticada “arqui-
tetura do espetáculo”, por conta dos altos custos envolvidos no projeto,
execução e manutenção das edificações, além de denúncias de corrup-
ção.14
Em oposição a tal pensamento arquitetônico, diversas obras con-
temporâneas, especialmente no contexto europeu, buscam romper com
uma tipologia icônica e procurar uma inserção mais cuidadosa no te-
cido urbano e paisagem existentes (Montaner, 2016). Ressalva-se, en-
tretanto, em relação ao Museu do Amanhã, a aparente diminuta im-

14 Ver, por exemplo, sobre as denúncias a Santiago Calatrava por superfaturamento no


projeto da Cidade das Artes e Ciências em Valência (Tremlett, 2012) e pelos altos custos
das obras das Olimpíadas de Atenas 2004 (Brott, 2017) e, ainda, sobre corrupção em
grandes projetos para megaeventos (Zimbalist, 2015).
172 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

portância dada ao café e à loja internos, se comparada a outros museus


semelhantes mundialmente: sem vistas para o exterior, nem livros sobre
a arquitetura do museu que possam despertar maior interesse no espec-
tador-consumidor do que o próprio museu ou acervo em si.

O MAR voltado à cidade

Inaugurado em 2013, como o primeiro equipamento cultural símbolo


da regeneração da zona portuária, numa parceria entre a prefeitura e a
Fundação Roberto Marinho, o MAR contou com grande apoio privado
junto ao poder público (municipal e estadual), envolvendo o patrocínio
de organizações como o Grupo Globo, Vale e Itaú (Souza, 2015).
Apesar de claras distinções entre este museu e o Museu do Amanhã,
o projeto arquitetônico do MAR, de autoria do escritório de arquitetu-
ra Bernardes + Jacobsen, também cria um elemento escultórico e ex-
traordinário: uma cobertura orgânica (ainda que de concreto) conecta
dois edifícios pré-existentes reformados, tornando-se o grande marco
do museu. Essa intervenção pontual da cobertura transita entre as po-
sições de um “organismo extraordinário” e de um “objeto minima-
lista”, sendo ainda conjugada a outra posição definida por Montaner
para a remodelação dos edifícios existentes, a saber: o “museu-museu”.
Como visto, tal museu seria resultado da crítica tipológica que se colo-
ca a partir dos anos 1970, na essência da disciplina arquitetônica e na
estrutura espacial do edifício, com a tipologia tradicional do museu.
Evidente que os edifícios do MAR não foram originalmente planeja-
dos para seu uso museal, mas possuem uma tipologia bastante clara
decorrente de momentos em que a disciplina da arquitetura impunha
configurações formais específicas – o palacete do século XIX e a arqui-
tetura modernista, com seus cânones e princípios. Observa-se, assim,
que o museu é elaborado sobre uma estrutura de espaços existentes,
pensados com “critérios de análise tipológica” para atender ao caráter
das coleções, conforme descreve Montaner sobre essa posição (2003,
p. 62). Portando “diversos extratos arqueológicos e históricos à espera
de serem interpretados e inseridos em uma nova ordem tipológica”,
o projeto do museu-museu deve articular tais extratos e “reconstruir
Em busca de um amanhã global 173

criticamente uma tipologia que tenha a ver com a memória” (Monta-


ner, 2003, p. 74).
Tais aspectos aproximam-se da realidade projetual do MAR que,
apesar de contar com um elemento orgânico e icônico que atualiza a re-
lação entre os edifícios e destes com o entorno, ainda mantém os extra-
tos temporais de diferentes formas arquitetônicas no contexto urbano.
Ao ressignificar ambos, o palacete e o edifício modernista, conferin-
do-lhes novos usos e relações com o entorno, simbólicos e funcionais,
parece inserir-se exitosamente nas três posições formais descritas por
Montaner.
O aproveitamento das estruturas existentes não renega sua con-
temporaneidade, evidenciada nas atividades extra-expográficas ofe-
recidas, em que se destacam os espaços de café e loja no térreo, bem
como o lobby com bancos à frente da bilheteria e o terraço público,
no último andar, com vistas privilegiadas para a Praça Mauá refor-
mulada, ponto de início da visitação. Lá funciona ainda o restaurante
do museu, bastante distinto do perfil de restaurantes encontrados no
entorno. No edifício modernista, ficam abrigadas as atividades ad-
ministrativas do museu, a Escola do Olhar (programa educativo com
escolas municipais do Rio de Janeiro) e um auditório. Os espaços de
exposição, tradicionais, ficam no antigo palacete, que tiveram boa
parte de suas aberturas fechadas, para atender necessidades especiais
de climatização e iluminação, o que acabou, segundo Souza (2015),
eliminando as relações de tensão entre o museu e seu entorno, ao re-
negar a cidade e promover o “cubo branco” neutro em seu interior.
Ainda assim, a aproximação com temas mais relacionados ao contexto
social e urbano é mais evidente no MAR que no Museu do Amanhã,
desde sua exposição inaugural,15 que dialogava com a requalificação
urbana do entorno portuário, mas também nas exposições mais recen-
tes, compreendendo obras de artistas locais ou de relevante atuação
no contexto carioca e brasileiro.16 Dentre as obras, destaca-se a feita
pelo Coletivo Morrinho, uma espécie de maquete da Favela Pereira da

15 Sobre a exposição “O abrigo e o terreno”, de 2013, ver Gomes (2015).


16 Dentre elas, a exposição “Paulo Werneck – Murais para o Rio”, inaugurada em feve-
reiro de 2021.
174 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Silva, no bairro de Laranjeiras, transferida para o saguão público do


MAR, evidenciando a relação de conflito e gritante disparidade entre
o espaço da favela e do museu, bem como a questão de uma luta por
visibilidade de divergentes “poderes” (Figuras 3 e 4).

Figuras 3 e 4. Obra do Coletivo Morrinho, de 2013, expostas


permanentemente no saguão do MAR

Fotos da autora

Discussão e conclusões

O processo recente, ainda em desenvolvimento, de requalificação dos


espaços urbanos da zona portuária do Rio de Janeiro, possui muito a
revelar. Os museus inaugurados – MAR e Museu do Amanhã –, cor-
respondem à visão do museu típica do urbanismo estratégico em voga
no final do século XX, em que o poder público, juntamente com o se-
tor privado, busca promover a imagem da cidade por meio de equipa-
mentos culturais que, pela tradição de serem centros de formação de
conhecimento, em tese sempre terão relativa reputação e aceitação. En-
tretanto, a construção indiscriminada desses equipamentos, geralmente
de grandes proporções e impacto urbano, sem o adequado diálogo com
a comunidade local, a cidade e a nação – especialmente em casos que
envolvem recursos federais, como o do projeto Porto Maravilha –, pode
gerar fragmentações urbanas bastante delicadas, acentuando os confli-
tos já existentes na vida citadina.
Em busca de um amanhã global 175

Assim como em outros grandes projetos urbanos realizados em ci-


dades mundiais, que se propuseram a regenerar áreas antes degrada-
das e com processo de abandono, fica a dúvida se os benefícios desses
equipamentos atingem toda a população de maneira equilibrada. Farias
e Trigo (2016) questionam as implicações das intervenções do Porto
Maravilha no âmbito social, afirmando que “os interesses econômicos
podem se sobrepor aos símbolos de pertencimento das comunidades
locais”. Um conflito evidente está na visibilidade das duas instituições
construídas na Praça Mauá em relação a outros equipamentos culturais
da região, como o Instituto Pretos Novos, que também funciona como
um museu, ou o Centro Cultural José Bonifácio. Pela desconexão entre
as áreas que receberam maiores investimentos e o tecido existente, o
AquaRio também parece não receber a mesma atenção que os museus.
Todo o Boulevard Olímpico permanece em grande parte do tempo fe-
chado, com os galpões abrigando atividades temporárias que não dão
conta de gerar fluxos constantes ou criar um circuito cultural contínuo
para o pedestre, quase compelido a utilizar o veículo leve sobre trilhos
(VLT) para ir de um extremo (Praça Mauá) a outro (a praça do AquaRio
e, um pouco mais adiante, a roda-gigante Rio Star).
Neste sentido, questiona-se o que aconteceria caso o Museu do Ama-
nhã tivesse sido instalado no meio do Boulevard Olímpico, em alguns
dos antigos galpões, tal como previsto originalmente. Teria tal mudança
proporcionado um fluxo mais homogêneo ao longo do percurso? Co-
locado em um extremo, próximo ao MAR, o museu intervém na Praça
Mauá e a torna polo congregante, subjugando o restante do percurso
frente à nova centralidade. O AquaRio de um lado, os museus de outro.
E o meio? O papel do mercado será crucial para garantir a integração
entre as estruturas propostas pelo poder público e dar vida ao local. A
ideia de um percurso a céu aberto de grafite (museal?) ao longo do bou-
levard é, por si só, insuficiente para manter fluxos e dinâmicas constan-
tes na região. São necessários novos usos, que talvez os novos edifícios
de escritórios pudessem trazer, mas cujo processo foi interrompido pela
crise econômica nas diversas escalas, pela crise financeira da própria
operação urbana, e pela pandemia de Covid-19, a partir de 2020.
Enquanto alguns problemas para a revitalização da zona portuária fo-
ram em parte resolvidos pelo projeto Porto Maravilha, como a articulação
176 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

entre os poderes e a melhor conexão do tecido urbano pela demolição


do Elevado da Perimetral, a dificuldade imposta por um grande “conjun-
to de fixos espaciais” (Duarte, 2005), como os armazéns, que constituía
um problemático estoque de capital imobilizado e não possuía planos de
substituição por outras atividades de maior retorno, ainda hoje é observa-
da e, junto à crise econômica que afastou possíveis investidores, constitui
um grande entrave para a completa requalificação da região. Por outro
lado, se grandes projetos urbanos e ideais globais de cidade tendem a
substituir a cultura local existente por outras culturas e estilos de vida de
maior rentabilidade a investidores, pode-se pensar que um ritmo mais
lento de regeneração, decorrente do cenário econômico desfavorável, po-
derá permitir a absorção de aspectos populares pré-existentes e de sucesso
da região, como a tradição do samba e de um conjunto de estabelecimen-
tos locais, em grande parte ainda preservados.
Em todos os museus apresentados neste capítulo, ressaltam-se os
discursos de espacialização do poder por grandes instituições e corpo-
rações, desde a proposta do Museu Guggenheim até a consolidação do
Museu do Amanhã e do MAR – em especial, a Fundação Roberto Ma-
rinho, que encabeçou todos esses projetos –, interessadas não em pro-
mover a cultura e o conhecimento à população como forma redentora e
libertadora, mas em promover as instituições – uma delas uma franquia
internacional – como objetos mercadológicos, geradores de receitas e
promotores de imagens urbanas opostas àquelas por anos consolidadas,
ainda que por descaso dos governantes.
Entretanto, como vimos, a arquitetura e a posição formal adotada pe-
las instituições museológicas – no que as categorias propostas por Mon-
taner são de grande valia – possuem influência tanto na imagem da cida-
de quanto nas relações da sociedade com seu ambiente construído. Com
isso, as estruturas de poder econômico e político a que estão submetidos
reverberam de modo distinto nos locais, que, apesar de muito próximos
(na mesma praça), criam espacialidades (e espacializações de poder) tam-
bém distintas. Assim, o projeto do Museu do Amanhã de Santiago Ca-
latrava conseguiu uma melhor integração urbana do que a proposta de
Jean Nouvel para o Museu Guggenheim em 2003 – um museu-colagem
apenas a serviço do mercado sem perspectivas de qualquer inserção urba-
na –, graças à conjunção ao projeto de desenho urbano envolvendo a de-
Em busca de um amanhã global 177

molição do Elevado da Perimetral e a construção de túneis, e valorização


dos espaços públicos da orla. Entretanto, apesar do novo desenho urbano
na Praça Mauá encorajar novas possibilidades de interação social, a esco-
lha pela posição do Museu do Amanhã como “organismo extraordinário”,
em localização de destaque na praça, explicita objetivos mercadológicos
que podem divergir de processos de identificação e pertencimento locais.
Ainda que ambos os museus descritos estejam inseridos no contexto atual
do turismo e alinhamento da cultura ao consumo de bens e mercadorias,
o MAR, seja por seu programa, mas também pelas posições formais ado-
tadas, parece ter tido mais êxito em se aproximar das necessidades e his-
tórias locais, em comparação à história global e representação imagética
escolhida pelo Museu do Amanhã.
A extensão de influência que os museus estabelecem, entretanto,
além da praça e suas adjacências imediatas, ainda deve ser evidenciada,
seja com o desenvolvimento futuro da zona portuária como um todo,
seja com projetos de aproximação entre comunidades locais e as insti-
tuições culturais, que dependem também de boa gestão e tempo para
que sejam apropriadas pela sociedade.

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181
Foto: Série Anônima, Luiz Baltar
CAPÍTULO 7

Museu do Amanhã, museu de possibilidades


Arquitetura icônica e produção neoliberal
(progressista) de lugares no Porto Maravilha
Kevin Funk

Introdução

Mais de uma década após a sua implementação, o projeto Porto Maravi-


lha está enfrentando fortes ventos de proa. De acordo com um relatório
recente, quase metade dos escritórios de edifícios corporativos não está
ocupada, muitos investimentos esperados nunca se materializaram, e
é perceptível um aumento de criminalidade na região.1 Enquanto isso,
os empreendimentos residenciais planejados nunca foram concluídos
e projetos emblemáticos de alto padrão, como o projeto multiuso do
Moinho Fluminense, ainda estão em repouso. A coleta do lixo e os ser-
viços básicos de manutenção também passam por problemas. Em um
incidente particularmente representativo, em julho de 2019, um traba-
lhador local caiu em uma sarjeta de três metros de profundidade no
Boulevard Olímpico. Na época, a tampa do bueiro estava desaparecida
havia dois meses.2
Grande parte da análise acadêmica e não acadêmica existente sobre
o projeto se concentra precisamente nestas e em outras deficiências do
Porto Maravilha. Entretanto, ao avaliar sua primeira década, é igual-
mente importante prestarmos atenção a seus “sucessos”, bem como ao

1 “Quase a metade dos prédios do Porto Maravilha, no Rio, está sem uso”, G1, 03 jun.
2019. Disponível em: https://glo.bo/3qTW5r0. Acesso em: 27 dez. 2021.
2 “Homem cai em bueiro de três metros de profundidade na Zona Portuária”, O Globo,
23 jul. 2019. Disponível em: https://glo.bo/3qXWgl1. Acesso em: 27 dez. 2021.

183
184 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

que eles revelam sobre as nuances, contradições e limitações que inte-


gram a lógica operacional neoliberal deste megaprojeto.
Este ensaio analisa o pomposamente intitulado Museu do Amanhã,
que serve como a peça de exposição mais expressiva do projeto Por-
to Maravilha. Ocupando quase toda a extensão de um antigo cais, esta
estrutura maciça, flutuante, horizontal e cintilante de cantilever bran-
co – que, segundo o jornal britânico The Guardian, “parece um cruza-
mento entre um dinossauro movido a energia solar e uma gigantesca
unidade de ar-condicionado” e “um dos edifícios mais extraordinários
do mundo”3 – é o mais espetacular, e de certa forma “bem-sucedido”
elemento deste projeto. Concebido pelo espanhol Santiago Calatrava, o
museu – junto com a esplanada adjacente e a vizinha Praça Mauá – já se
tornou, mesmo antes de sua abertura em 2015, um cenário obrigatório
para turistas internacionais e brasileiros de classe média, os mesmos que
num passado recente consideravam esta área desinteressante e perigosa
para visitação.4 Seu foco temático ambientalmente consciente também
repercutiu na opinião pública, incluindo veículos de mídia como o The
Guardian, que se referiu ao Museu como “um convite cativante para
imaginar um mundo sustentável”.5
Mas o Museu do Amanhã é igualmente símbolo da lógica neoliberal
que está no cerne de todo o projeto Porto Maravilha. Neste sentido, este
ensaio analisa a concepção, conceituação e conteúdo do museu como
um exercício de produção neoliberal de lugares: ou seja, um processo
socioespacial por meio do qual um determinado local é transformado
tanto para facilitar a acumulação de capital quanto para gerar valores
culturais como a autossalvação individualista, a despolitização, a com-
petição, o empreendedorismo e o favorecimento de “soluções” para
problemas sociais baseadas no mercado (Brown, 2015). Neste caso,

3 “Museum of Tomorrow: A Captivating Invitation to Imagine a Sustainable World”,


The Guardian, 17 dez. 2015. Disponível em: https://bit.ly/32V7Cyu. Acesso em: 27 dez.
2021.
4 “Praça Mauá já virou ponto obrigatório de turistas e cariocas que querem conhecer
a cidade”, Extra, 04 out. 2015. Disponível em: https://glo.bo/3t7UArX. Acesso em: 27
dez. 2021.
5 “Museum of Tomorrow: A Captivating Invitation to Imagine a Sustainable World”,
The Guardian, 17 dez. 2015. Disponível em: https://bit.ly/32V7Cyu. Acesso em: 27 dez.
2021.
Museu do Amanhã, museu de possibilidades 185

naturalmente, e dado o foco ambiental do museu, a lógica neoliberal


convencional é dotada de uma reviravolta “progressista” – mas ainda
alinhada aos interesses do capital (Fraser, 2019).
Com base em visitas ao local, entrevistas com a equipe administra-
tiva e com mentores intelectuais do museu e análise textual de docu-
mentos, duas facetas particulares evocam mais claramente esta lógica:
primeiro, sua criação por uma elite político-econômica que consciente-
mente buscou construir um espaço “icônico” como parte de um esque-
ma de desenvolvimento liderado pela cultura para fortalecer o status do
Rio de Janeiro como uma cidade propriamente “global”; e segundo, suas
mensagens e materiais de curadoria, que sugerem que a mudança climá-
tica e outros desafios ambientais existenciais podem ser resolvidos por
escolhas comportamentais individuais e correções técnicas baseadas no
mercado, em oposição a mudanças estruturais no próprio capitalismo.
No contexto dos atuais ataques do Estado brasileiro às regulamenta-
ções ambientais, à ciência climática e à própria floresta tropical amazô-
nica, pode-se argumentar que na medida em que o Museu do Amanhã
tem promovido algum tipo de consciência ambiental, sua existência
deve ser comemorada. O que este museu representa não é, de fato, a
lógica de extrema-direita que rege a administração violenta e iliberal da
gestão Bolsonaro. Ao contrário, ele reflete mais de perto os princípios
operacionais do Partido dos Trabalhadores de centro-esquerda, tanto
em suas políticas urbanas quanto em aspectos mais gerais.6 A imple-
mentação por este último de uma agenda amplamente favorável ao mer-
cado – mas com uma “cara humana” – facilitou enormemente a consoli-
dação do meio “neoliberal progressista” a partir do qual surgiu o museu,
assim como o próprio projeto Porto Maravilha.
Trata-se, portanto, de demonstrar como esses enredos neoliberais
levaram à criação de um museu projetado por um starchitect, que apre-
senta um certo tipo de conteúdo e promove soluções baseadas no mer-
cado, individualistas e tecnologicamente orientadas para a crise climá-
tica, ao mesmo tempo em que evita fazer menção a alternativas mais
críticas ou radicais. Apesar das “possibilidades” invocadas pelo Museu

6 “Ministry of cities RIP: the sad story of Brazil’s great urban experiment”, The Guar-
dian, 18 jul. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3zGwXrz. Acesso em: 27 dez. 2021.
186 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

do Amanhã poderem ser compreendidas enquanto avanços em relação


ao desastroso status quo, somente uma interpretação mais completa e
estrutural nos permitirá evitar calamidades ambientais.

Tornando o Rio de Janeiro uma cidade “global”: a predileção da


coalizão de crescimento urbano carioca pela iconicidade

No contexto de um mercado capitalista global cada vez mais compe-


titivo, as elites urbanas se sentem compelidas a se posicionar constan-
temente no topo do ranking das “cidades globais”. Isto implica, entre
outras coisas, a criação de uma agenda regulatória favorável aos negó-
cios, difundindo um “imaginário” atraente para despertar o interesse de
investidores e visitantes, e facilitando a implementação de tipos particu-
lares de infraestrutura, tais como aeroportos de alta capacidade e distri-
tos comerciais modernos. A esperança é que as cidades aumentem sua
centralidade como um “nó” dentro do “espaço de fluxos” – por exemplo,
de capital, bens, serviços e turistas – que define a globalização capitalis-
ta contemporânea (Castells, 2010, p. 442). O objetivo das coalizões de
crescimento urbano nos dias atuais é, em outras palavras, tornar a cida-
de “global”, transformando-a num ambiente seguro para a acumulação
de capital.
No Rio de Janeiro e em outras cidades, uma estratégia desgastada,
porém ainda constitutiva do status de cidade global, gira em torno da
elaboração de projetos de desenvolvimento liderados pela cultura e pela
construção de edifícios arquitetônicos “icônicos”. Perseguido por coa-
lizões de crescimento urbano público-privadas em todo o mundo, este
modelo é encapsulado pelo “efeito Bilbao”, referindo-se aos processos
econômicos transformadores desencadeados pela abertura em 1997 de
um Museu Guggenheim, desenhado pelo arquiteto Frank Gehry, na ci-
dade do norte da Espanha (Beauregard, 2018; Sklair, 2017). No início
dos anos 2000, este mesmo cais que agora abriga o Museu do Amanhã
também previu um museu da grife Guggenheim (Sanchez, 2022). Para
rentabilizar, crescer e se tornar “global”, a cidade contemporânea cons-
trói assim certos tipos de espaços “icônicos” e “culturais” para públicos
particulares.
Museu do Amanhã, museu de possibilidades 187

É reconhecido que espaços construídos podem trazer “significados”,


assim como expressar ideologias específicas (Goodman, 1985; Yanow,
2013). Um corolário, embora menos explorado, é que eles podem re-
presentar interesses particulares de classe. Tal como Sklair (2017, p. 3)
argumenta, a “hegemonia capitalista, a expressão cotidiana do poder da
classe dominante, se torna visível pela criação de edifícios, de espaços,
de megaprojetos urbanos icônicos, as vezes cidades inteiras”. Isto acon-
tece especialmente durante a era “pós-moderna”, na qual as elites eco-
nômicas motivam cada vez mais o consumo por meio de espetáculos,
imagens, publicidade e produção cultural em geral (Funk, 2018; Harvey,
1991).
Mesmo antes do Museu do Amanhã e de outros projetos recentes, o
Rio de Janeiro tem sido particularmente bem-sucedido neste sentido. Da
estátua do Cristo Redentor ao Pão de Açúcar e seus bondinhos, assim
como praias – especialmente Copacabana e Ipanema –, e até mesmo algu-
mas favelas – tornadas mundialmente famosas, acionadas como atrações
turísticas, ou mesmo produtos culturais, como no caso da Cidade de Deus
–, a cidade possui uma linha diversificada de espaços “icônicos” que pou-
cas outras conseguiram igualar (Jaguaribe, 2014). A partir das reflexões
de Sklair, esta seção prossegue analisando a adição do Museu do Amanhã
à colagem de ícones do Rio de Janeiro. Além disso, explora como este
processo reflete e reifica a lógica do urbanismo neoliberal.
A ênfase de Sklair é analisar como a arquitetura “icônica” de hoje
seduz o público por meio de formas únicas e vernaculares – dialogando
assim com a propensão pós-moderna de privilegiar subjetividades indi-
vidualistas (Harvey, 1991). Na prática, porém, a soma de tantos espaços
construídos – supostamente únicos – é uma homogeneidade arquitetô-
nica rasteira – e impulsionada pelo mercado –, já que os novos e espeta-
culares arranha-céus, pontes e museus que iriam conformar identidades
particulares para lugares distintos muitas vezes se baseiam em esforços
“bem-sucedidos” já realizados em outros lugares (Harvey, 1991; Sklair,
2017). O que cada vez mais se adiciona, baseado num estudo sobre a
produção de Calatrava, é uma quantidade aparentemente infinita de
“arquitetura de assinatura onipresente” (Tarazona Vento, 2015). Daí a
conclusão de Ferreira (2011) de que o Rio de Janeiro se encaixa em uma
tendência de “banalização do espaço urbano”.
188 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Figura 1. Painel em restaurante do bairro do Flamengo, representando ícones arqui-


tetônicos do Rio de Janeiro, destacando o Museu do Amanhã

Foto do autor

Ao analisar o impulso contemporâneo em direção ao planejamento,


projeto e construção de estruturas “icônicas”, Sklair (2017, p. 3) identifica
duas características-chave que as definem como tais: “fama” e “significado
estético simbólico”. Estes são termos altamente relativos, e é natural consi-
derarmos que “quase tudo pode ser considerado icônico por alguém, em
algum lugar, em algum momento” (Sklair, 2017, p. 17). No entanto, existe
hoje uma economia política que tende a ser rotulada de “icônica”, um pro-
cesso que é conduzido em grande parte pelo setor empresarial e em parti-
cular pelas forças de mercado – e isto, em contraste com períodos anterio-
res, quando as autoridades políticas e religiosas definiam em grande parte
o zeitgeist. Como observa Sklair (2017, p. 3) com relação ao contexto atual,
“quanto maior o sucesso de um edifício em transmitir significados e de-
sign favoráveis ao consumidor, idealmente combinando o confortável com
o espetacular, mais valor ele terá no mercado”. E quanto maiores as chances
disso se efetivar, maior a probabilidade de ele ser considerado “icônico”.
Museu do Amanhã, museu de possibilidades 189

Neste sentido, para Sklair, o principal objetivo da iconicidade arqui-


tetônica na atualidade é promover a “cultura-ideologia do consumismo”.
Isto é alcançado pela implementação de enclaves explicitamente con-
sumistas em todo e qualquer espaço construído (incluindo aeroportos,
bibliotecas e museus). Além disso, estruturas “icônicas” devem servir
tanto como para-raios para investimentos, quanto para atrair turistas
que desejam “consumir” nesses espaços. Assim, sob a globalização neo-
liberal, quase todas as cidades – especialmente aquelas que alcançaram
um status “global”, ou que aspiram alcançá-lo – buscam vender-se e pu-
blicizar-se como os destinos mais atraentes para os fluxos de capital e
visitantes de alta renda (McDermott, 2019).
Um efeito desse esforço – que é sugerido, mas menos explorado es-
pecificamente por Sklair – é mudar a forma como as pessoas se relacio-
nam com o espaço, que cada vez mais se torna mais uma mercadoria
a ser consumida – e a ser postada via Instagram. Especificamente, o
objetivo é reconstituir os públicos participantes de acordo com as linhas
de uma nova subjetividade neoliberal. Brown (2015) traz uma reflexão
sobre o tema ao discutir como uma “ordem normativa” neoliberal e a
“racionalidade governante” ameaçam a cidadania democrática, assim
como a própria democracia:

O neoliberalismo transfigura cada domínio e esforço humanos, jun-


tamente com os próprios seres humanos, de acordo com uma visão
específica do mundo econômico. Toda conduta é uma conduta eco-
nômica; todas as esferas de existência são enquadradas e medidas por
termos e métricas econômicos, mesmo quando essas esferas não são
diretamente monetizadas. Na razão neoliberal e em setores governa-
dos por ela, somos apenas homo oeconomicus, que por sua vez possui
uma forma historicamente particular. Diferente da figura de Adam
Smith movida pelo desejo natural de “pechinchar, regatear, e trocar”,
o homo oeconomicus de hoje é um pedaço de capital humano forte-
mente estruturado e controlado, encarregado de melhorar e alavancar
seu posicionamento competitivo e de aumentar seu valor (monetário
e não monetário) de portfólio em todos os seus empreendimentos e
ambientes (p. 9-10).
190 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

O que está se desdobrando, portanto, é um processo de construção


de lugares e marcas em que os espaços construídos assumem um “valor
de mercado além de suas funções imediatas” por meio da construção
de cidadãos neoliberais (Sklair, 2017, p. 95). Assim, a arquitetura serve
como mais um – e particularmente importante – terreno sobre o qual
as elites capitalistas lutam agora para manter a “hegemonia” cultural
(Sklair, 2017, p. 9).
Aparentemente, estas descrições não ressoam fortemente com a rea-
lidade do Museu do Amanhã. Além de seu enquadramento idealista e
pró-ambiental (que é analisado em maior profundidade na seção se-
guinte), o museu oferece entrada gratuita para os moradores da zona
portuária, em sua maioria de baixa renda, abriga eventos que celebram
as raízes africanas da região, e possui apenas uma modesta loja de sou-
venirs. Tanto material quanto simbolicamente, ele se posiciona como
um “bom vizinho” e um guardião responsável pelo desenvolvimento
cultural e econômico do seu entorno.
O que é particularmente notável sobre o Museu do Amanhã a partir
de uma perspectiva “neoliberal”, então, não é exatamente sua promoção
do consumo material. Pelo contrário – e daí a necessidade de expandir
os limites da análise de Sklair –, é o fato de que este museu representa,
primeiro, uma lógica socioespacial distinta na qual o “espaço” se torna
um bem a ser consumido, fotografado e compartilhado por meio das
mídias sociais. E, segundo, que este museu, que é de propriedade da pre-
feitura, mas administrado por entes privados, foi construído a mando
de interesses econômicos particulares, e depois apoiado por agentes pú-
blicos que entenderam que seu papel como líderes políticos de uma ci-
dade globalizada exigia estimular o público interno e externo por meio
da arquitetura, cultura e arte.
Em relação ao primeiro ponto, o Museu do Amanhã e seu entorno
– agora inseridos nos itinerários das operadoras de turismo – foram
reestruturados como um espaço a ser consumido. Especialmente em
dias mais ensolarados, atravessar a Praça Mauá envolve esquivar-se dos
visitantes de diferentes classes sociais que estão agarrados a paus de sel-
fies, seus telefones celulares levantados e apontados para a entrada do
edifício. O interior do museu – que, como detalhado abaixo, valoriza
exibições audiovisuais em detrimento de um “conteúdo real” – também
Museu do Amanhã, museu de possibilidades 191

se presta ao consumo pela fotografia. Embora a maior parte dos textos


do museu seja publicado em três idiomas – português, espanhol e inglês
– observa-se muito mais o consumo de imagens do que textos reais. Um
crítico entre os entrevistados chega ao ponto de sugerir que o Museu do
Amanhã, por ser tão desprovido de “coisas”, não deveria realmente ser
chamado de “museu”.
Em relação ao segundo ponto, e mais fundamentalmente, o Museu
do Amanhã nasceu da iniciativa do capital privado e não existiria sem
seu patrocínio. Ele foi concebido pela Fundação Roberto Marinho, cujo
nome vem do magnata da mídia, proprietário do conglomerado Grupo
Globo, e seu principal patrocinador é o Banco Santander, uma impor-
tante instituição financeira mundial. Na lista de patrocinadores encon-
tram-se ainda o grupo Shell e, naturalmente, a própria Globo.
É suficientemente fácil criticar o Museu do Amanhã por estas razões.
Porém, em uma era neoliberal de declínio do financiamento estatal para
iniciativas culturais, de onde mais poderia vir o patrocínio de museus,
se não de atores privados? Este é especialmente o caso sob a gestão Bol-
sonaro, que implementou cortes profundos nos gastos com educação e
cultura e é profundamente hostil a qualquer tipo de retórica ambienta-
lista. Dado o contexto ideológico de extrema-direita do atual governo
brasileiro, as qualidades “progressistas” do museu são ainda mais palpá-
veis. Continuando com esta análise matizada deste exercício de elabo-
ração (progressista) de lugares neoliberais, a próxima seção discute as
tensões e contradições que constituem as mensagens pró-ambientais do
Museu do Amanhã.

Curadoria do tecno-futurismo neoliberal e limites do ambientalis-


mo corporativo

O espaço construído pode “significar” ao alcançar um status “icônico” –


por meio de estratégias de marketing e outros esforços promocionais –
entre o público local e global. O processo por meio do qual isto ocorreu
em relação ao Museu do Amanhã, como argumentado no início deste
ensaio, reflete uma lógica de construção de lugares neoliberais nos quais
coalizões de crescimento urbano orientadas globalmente competem
192 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

para construir imaginários atraentes. É importante notar que pode ha-


ver elementos “progressistas” no museu e esforços similares neste senti-
do. Entretanto, e de forma crucial, um projeto como o Museu do Ama-
nhã, por mais inocentes que sejam seus autores e projetistas, não pode
ser divorciado de seu contexto estrutural mais amplo. Particularmente
saliente a este respeito está o impulso para tornar a cidade atraente para
a acumulação de capital.
Como esta seção demonstra, a mesma lógica é evidente em relação
aos materiais que compõem o “acervo” do museu e sua conceituação in-
telectual. Aqui, é apropriado começar analisando os significados cons-
truídos por meio de sua autodescrição. Resumindo o propósito deste
espaço, como seu site oficial indica, em termos de convencimento:

Um novo ícone da modernização do porto do Rio de Janeiro, o Mu-


seu do Amanhã nasceu na Praça Mauá como um museu de ciências
destinado a explorar, imaginar e conceber todas as possibilidades para
construir o futuro.
Um museu experimental, onde o conteúdo é apresentado por meio de
uma narrativa que combina a exatidão da ciência com a expressividade
da arte, utilizando a tecnologia como suporte em ambientes interativos
e instalações audiovisuais e de jogos criados a partir de estudos cientí-
ficos realizados por especialistas e dados divulgados em todo o mundo.
Projetado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava, o edifício – cujas
formas orgânicas foram inspiradas nas bromélias do Jardim Botânico
da cidade – ocupa uma área de 15 mil metros quadrados, rodeado por
piscinas refletoras, jardins, uma ciclovia e uma área de lazer, totalizando
34,6 mil metros quadrados do Píer Mauá.
O Museu do Amanhã é um museu de Ciências Aplicadas que explora as
oportunidades e desafios que a humanidade será obrigada a enfrentar
nas próximas décadas a partir da perspectiva da sustentabilidade e do
convívio.7

7 “About the Museum”, Museu do Amanhã. Disponível em: https://bit.ly/3tanrvS. Aces-


so em: 27 dez. 2021.
Museu do Amanhã, museu de possibilidades 193

Aqui, vemos evidências dos dois fenômenos em discussão neste en-


saio: um desejo da elite de criar espaços “icônicos” e um ethos curatorial
que é motivado por um ambientalismo neoliberal. Evidentemente, este
último é também, pelo menos em parte, um produto dos entrelaçamen-
tos corporativos e políticos do museu, que são uma característica cons-
titutiva dos “projetos icônicos” atuais.
Talvez sem surpresas, a “forma” do Museu do Amanhã – incluindo
as qualidades estéticas do edifício, a sofisticação tecnológica e a natu-
reza imponente de suas exposições e conteúdos audiovisuais – parece
ter precedência sobre sua “função” – ou seja, educar o público em geral
sobre a ciência e a mudança climática. Isto é aparente a partir de re-
petidas observações sobre o engajamento do público. Como entendido
pelas elites corporativas e outros membros da coalizão de crescimento
do Rio de Janeiro, o museu, afinal, é um “espetáculo” a ser consumido.
O conteúdo específico inclui, na entrada, um gigantesco globo digi-
tal suspenso que projeta informações sobre incêndios florestais, tráfe-
go aéreo global e outros fenômenos relacionados. Estes são certamente
pontos de dados relevantes para alguma forma de mensagem pró-am-
biental, mas de forma reveladora nenhuma explicação acompanha tais
informações.
O percurso sugerido para as exibições principais envolve a contem-
plação de um filme de 12 minutos num ambiente que lembra um plane-
tário, para ser visto sentado, ou, mais comumente, deitado no chão. Seu
roteiro, reproduzido abaixo, é uma representação justa da mensagem
geral e do estilo discursivo do museu, que é rico em dramatização, mas
conciso em detalhes:
Somos o vazio.
Somos tempo e espaço.
Somos luz.
Somos energia.
Somos matéria.
Somos átomos.
Somos o Universo.
O Universo está constantemente se desdobrando.
Se desdobrando em matéria,
e matéria se desdobrando em vida.
194 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Vida que é mutação e evolução.


Vida que se desdobra em instinto.
Vida que se desdobra em pensamento.
Pensamento que imagina o Universo.
Somos vida.
Somos ritmo e movimento.
Diversidade.
Palavra e silêncio.
Somos memórias.
Conhecimento.
E invenção.
Somos Terra.
Somos o Universo se desdobrando.
Se desdobrando em matéria,
matéria em vida,
vida em pensamento.
Somos o pensamento que imagina o Amanhã,
Amanhã que é aqui e agora.8

O que é exatamente este “Amanhã” em relação ao qual o museu foi


conceitualizado? Como se diferencia do futurismo neoliberal evoca-
do pela propaganda corporativa, como a campanha “Olá Amanhã” da
Emirates Airlines? (Funk, 2018). Além disso, se, como observa um dos
cineastas, “a ideia do filme é levar o visitante a um estado de espírito
diferente, longe da Praça Mauá, e ajudá-los a baixar o ritmo cardíaco e
alterar suas ondas cerebrais”,9 então para onde exatamente estão sendo
levados? E, crucialmente, por quê?
Como observado, as exposições do Museu do Amanhã são comu-
mente percebidas como agradáveis numa perspectiva estética e retóri-
ca. Isto é evidente pela frequência com que o público as “consome” por
meio de selfies e fotografias familiares. Outra evidência desta positivi-

8 “Roteiro Portal Cósmico”, Museu do Amanhã. Disponível em: https://bit.ly/3zC2ZFg.


Acesso em: 27 dez. 2021.
9 “Cosmos”, Museu do Amanhã. Disponível em: https://bit.ly/3Ga125s. Acesso em: 27
dez. 2021.
Museu do Amanhã, museu de possibilidades 195

dade é a boa avaliação do museu pelos seus visitantes em sites de classi-


ficação. No entanto, além das invocações banais de nossa humanidade
compartilhada, da unicidade com o planeta e da vaga necessidade de
“fazer algo” para evitar mais catástrofes ambientais (ou, talvez, a des-
truição planetária), não está claro qual é o projeto político do Museu do
Amanhã: isto é, o que ele quer que façamos. Trata-se de um “museu de
perguntas”10 e/ou de “possibilidades” – como citado por La Barre (2013,
p. 52) –, mas fornece poucos recursos para gerar “respostas”.
Na verdade, a falta de uma mensagem clara ou metanarrativa – e o
tipo de paralisia política que isto pode gerar, talvez, para nosso zeitgeist
pós-modernista – não é totalmente acidental. Como comentou Luiz Al-
berto Oliveira, um físico que serve como curador do museu:

Queríamos trazer ao Museu do Amanhã um conceito diferente de tem-


po: a ideia de que no presente, você se prepara, você faz um caminho
diferente para diferentes futuros possíveis. Não é um rio no sentido de
que você tem uma fonte e um fim. Você tem, de fato, um delta de possi-
bilidades [...]. Este é o conceito principal do museu, que amanhã não é
uma data no calendário, amanhã não é um lugar onde você chegará. O
amanhã é uma construção. O amanhã está aberto para ser construído.11

De fato, é. Mas, para sairmos deste atoleiro, o que nos permite julgar,
entre as concorrentes reivindicações de verdade, sobre como proceder
para evitar a calamidade ecológica?
O Museu do Amanhã também não nos impulsiona a problematizar
processos maiores – o consumismo sem limites, as desigualdades e a
degradação ambiental – que deseja resolver, mas nos quais também se
encontra implicado. Seus financiadores, afinal de contas, estão ligados
às mesmas indústrias e ao modelo de crescimento sem fim que são em
grande parte responsáveis pela criação da crise ecológica sobre a qual
o museu pretende conscientizar em primeiro lugar. De fato, o museu
pode ter o oposto de seu efeito pretendido: ou seja, ao tornar “verdes”

10 “Um percurso de perguntas”, Museu do Amanhã. Disponível em: https://bit.ly/34tw-


ZaR. Acesso em: 27 dez. 2021.
11 “A Futuryst Look at the Museum of Tomorrow”, American Alliance of Museums, 03
nov. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3F9GZCT. Acesso em: 27 dez. 2021.
196 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

as imagens das corporações envolvidas, ele pode suavizar a determina-


ção pública de culpabilizar os próprios atores cujas maquinações são os
principais responsáveis pela crise climática.
O que mais se pode esperar de um espaço que implora aos visi-
tantes para contemplar um melhor “amanhã”, mas que é financiado por
um grande banco e uma das maiores empresas de petróleo do planeta?
De fato, em todo o museu, o “amanhã” funciona como um significante
vazio: constantemente invocado – como se para reforçar seu design fu-
turista, sua estética e suas mostras tecnológicas –, mas nunca definido.
O visitante é encorajado a diminuir sua pegada de carbono, consumir
menos, ser um visionário, um agente de mudança, até mesmo um “utó-
pico”. No entanto, fiel à forma neoliberal, as exibições de encanto e pla-
titude do museu são baseadas na agência individual e na mudança de
comportamento sem discussão sobre a estrutura – ou, é claro, sobre o
capitalismo. Assim, elas não podem fornecer aos visitantes as ferramen-
tas que lhes permitirão conceituar um futuro melhor.
Dada, mais uma vez, a falta de financiamento estatal para projetos
culturais, a questão não é precisamente ser muito crítico ao julgar a de-
cisão de aceitar o patrocínio corporativo. Sem ele, um museu de ciências
voltado para o meio ambiente certamente nunca teria sido construído.
E certamente, devemos avaliar nossos hábitos de consumo, nossas es-
colhas de estilo de vida e nossas políticas ambientais. Também são re-
levantes as “questões fundamentais” que o Museu do Amanhã procura
levantar: “Quais as dimensões da nossa existência? Como chegamos até
aqui? Que futuro desejamos?”.12
Apesar de todas as suas falhas, podemos assim considerar o Museu
do Amanhã como um espaço político potencialmente útil. Em especial
no contexto atual, dada a recente virada de extrema direita na políti-
ca brasileira, culminando na eleição de Bolsonaro e na nomeação do
seu ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, que acredita que a
ciência climática é um embuste perpetrado pelos “marxistas culturais”.13

12 “Um percurso de perguntas”, Museu do Amanhã. Disponível em: https://bit.ly/34tw-


ZaR. Acesso em: 27 dez. 2021.
13 “Brazil’s new foreign minister believes climate change is a Marxist plot”, The Guar-
dian, 15 nov. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3Fh0JVm. Acesso em: 27 dez. 2021.
Museu do Amanhã, museu de possibilidades 197

Neste contexto, seria negligente não reconhecer que o museu ao menos


dá um impulso para o diálogo racional, baseado na ciência.
Consideremos, por exemplo, a descrição passional de Oliveira do
questionável impeachment da então presidente Dilma Rousseff e a crise
política na qual o país foi mergulhado:

O governo legítimo foi derrubado por um golpe parlamentar e um ban-


do de gângsteres tomou o poder para si. Portanto, estamos em uma luta
pela própria democracia, o próprio núcleo da democracia, que é a elei-
ção [...]. Mas muitas pessoas nos dizem que o museu é um contraponto
a esta situação. Isto é algo inspirador. Queríamos inspirar as pessoas
- mas eu não sabia que seria neste sentido, que nos tornássemos um
símbolo de um futuro melhor para o país.14

De fato, o Brasil da era Bolsonaro precisa muito de “símbolos” es-


perançosos. No entanto, na medida em que o Museu do Amanhã não
apresenta análises sérias sobre como alcançar um amanhã mais susten-
tável, ou identificar que estruturas de poder estão impedindo mudan-
ças significativas (e não necessariamente questionar o que fazer com
elas), ele corre o risco de direcionar nossa energia para o nível indivi-
dual, onde a micropolítica se sobrepõe à ação coletiva, obscurecendo as
causas político-econômicas de como chegamos aqui, e/ou meramente
nos deprimindo sem oferecer um caminho para o futuro. Em todos es-
tes sentidos, incluindo o cultivo potencial de um espírito niilista entre
o público, o Museu do Amanhã reforça uma sensibilidade neoliberal
(Brown, 2019). No entanto, considerando os desenvolvedores, patroci-
nadores e impulsionadores do museu, até que ponto ele poderia fazer
algo diferente disso?
O objetivo não é emitir uma condenação geral do Museu do Ama-
nhã ou sugerir que ele faz parte de uma conspiração maquiavélica para
desviar a atenção do público das soluções “reais”. Ao contrário, é para
esclarecer seus significados, os interesses neoliberais e as ideologias que
neles se incorporam, e como o fato de atrair milhões de visitantes e al-

14 “A Futuryst Look at the Museum of Tomorrow”, American Alliance of Museums, 03


nov. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3F9GZCT. Acesso em: 27 dez. 2021.
198 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

cançar tantas críticas positivas contribuem para um esforço capitalista-


-hegemônico de dar visibilidade a certos entendimentos de nossa crise
climática, ao mesmo tempo em que evita as críticas sistêmicas que tanto
precisamos.

Conclusões

Enquanto o projeto Porto Maravilha parece estar suspenso em um es-


tado de “desenvolvimento reprimido”, o Museu do Amanhã continua a
atrair multidões para uma praça “revitalizada”. Neste último sentido, a
obra mais brilhante do projeto é uma história legítima de “sucesso”.
Trata-se de um exercício bem-sucedido de produção de um lugar
neoliberal (progressista). De fato, interrogar a economia política do mu-
seu revela que sua conceituação como um espaço “icônico”, bem como
seu conteúdo, está imbuída de uma lógica que se concentra em torno da
concorrência, da privatização, da afirmação dos interesses empresariais
e da concentração da autoridade decisória nas mãos das empresas, e da
promoção de discursos ambientalistas favoráveis ao capital. Isto é evi-
dente tanto em relação aos espaços externos como internos que formam
o museu.
Particularmente no contexto da gestão Bolsonaro, e com a Amazô-
nia queimando a taxas aparentemente sem precedentes, o tecno-futu-
rismo baseado na ciência do Museu do Amanhã parece uma alternativa
sedutora. Entretanto, fomentando uma lógica neoliberal, o museu corre
o risco de participar na produção de mudanças sociais mais amplas e
altamente problemáticas – relacionadas, por exemplo, à restrição da res-
ponsabilidade democrática e à limitação do entendimento coletivo do
“político” (Brown, 2019; Fraser, 2019). Fundamentalmente, estas estão
destinadas a exacerbar as mesmas calamidades ambientais às quais o
Museu do Amanhã procura, ostensivamente, explorar “possibilidades”
alternativas.
Tradução: João Carlos Monteiro.
Museu do Amanhã, museu de possibilidades 199

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201
Foto: Série Fluxos, Luiz Baltar
CAPÍTULO 8

“A ver navios”
Descaminhos da turistificação da zona portuária
do Rio de Janeiro
João Carlos Monteiro

Introdução

Durante os Jogos Olímpicos Rio 2016, multidões ocuparam o recém-i-


naugurado Boulevard Olímpico, uma via de pedestres construída às mar-
gens da Baía de Guanabara inspirada na Rambla de Barcelona. Apesar de
não acolher nenhuma modalidade esportiva, coube ao boulevard a fun-
ção de “sala de visitas” da cidade olímpica, abrigando atividades artísticas
e culturais, e de exibição das marcas de grandes empresas patrocinadoras
do evento. O sucesso da nova atração parecia consumado quando 150
mil pessoas visitaram o local num único fim de semana, provocando um
“congestionamento humano” que obrigou a prefeitura a montar bloqueios
com grades e a estabelecer uma mão única de circulação de pedestres.1
Após o encerramento do evento, as multidões engarrafadas não fo-
ram mais vistas, e a Rambla carioca ficou cada vez mais longe de ser um
espaço aglutinador de visitantes como a sua congênere catalã. As ativi-
dades comerciais e de serviços não decolaram, e os poucos empresários
que apostaram no potencial turístico se decepcionaram com os rumos
do “legado olímpico” encarnado na figura do boulevard. Ao longo da
via, as fachadas de imóveis vazios em sequência, cobertas por grafites,
mal escondem o fracasso da tentativa de inserir a zona portuária carioca
no circuito internacional de turismo. Um taxista à espera de clientes em

1 “‘Congestionamento humano’ faz prefeitura mudar Boulevard Olímpico”, Folha de


São Paulo, 15 ago. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3KT6Frz. Acesso em: 14 jan. 2022.

203
204 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

frente ao terminal de passageiros de transatlânticos do Píer Mauá resu-


me o sentimento de frustração: “Ficamos a ver navios, literalmente. As
promessas não duraram nem um verão”.2
Para além de uma vitrine das Olimpíadas, é preciso situar o boule-
vard como uma das principais intervenções do projeto Porto Maravi-
lha, uma operação urbana consorciada inspirada em experiências in-
ternacionais de “regeneração” de antigos bairros portuários e executada
com o aporte de investimentos públicos bilionários. O projeto funciona
como indutor de revalorização de um extenso perímetro da área central
do Rio de Janeiro e está amparado na captura de renda fundiária em ba-
ses especulativas. Para alcançar este objetivo, se baseou na implantação
de novas materialidades – vias expressas e túneis, um sistema de veículo
leve sobre trilhos (VLT), requalificação de espaços públicos, construção
de dois museus e um aquário municipal, entre outros – e está atrelado
à conformação de novas subjetividades – em especial a reversão dos
estigmas territoriais prevalecentes sobre a zona portuária, além da dis-
seminação de representações positivas com o intuito de atrair visitantes
e investidores. Nesse contexto, a configuração da área como um novo
polo turístico do Rio de Janeiro e sua inserção no circuito internacio-
nal de turismo aparecem como potencialidades compatíveis com os an-
seios dos promotores do Porto Maravilha, reproduzindo uma tendência
mundial de atrelar processos de “regeneração urbana” à turistificação.
Este ensaio tem como objetivo discutir os resultados de uma pesquisa
sobre a turistificação da zona portuária, avaliando os impactos do turismo
na produção do espaço e na dinâmica socioeconômica da área. Os conhe-
cimentos produzidos no âmbito desta investigação partiram de uma abor-
dagem etnográfica e, portanto, de viés qualitativo. Entre os anos de 2016 e
2020 foram realizados trabalhos de campo, entrevistas semiestruturadas,
coleta de reportagens e artigos de opinião na imprensa, levantamento em
redes sociais, em materiais de divulgação e na documentação oficial de
promotores do projeto Porto Maravilha e de entidades associadas.3 A co-

2 Entrevista no 21 (homem, 53 anos, taxista), realizada em 18 fev. 2018.


3 A pesquisa foi interrompida em fevereiro de 2020 em função do avanço da pandemia
do Covid-19 no Brasil. Os resultados apresentados não contemplam as possíveis trans-
formações na zona portuária do Rio de Janeiro após essa data. Os impactos da pandemia
deverão ser objeto de estudo futuro.
“A ver navios” 205

leta de dados demonstrou uma insatisfação de comerciantes locais, profis-


sionais do setor do turismo e turistas quanto às infraestruturas instaladas
e às atividades concebidas com o propósito de atrair visitantes para a zona
portuária. De modo geral, o principal resultado foi revelar que a euforia
inicial em relação ao potencial da turistificação de gerar um círculo vir-
tuoso de desenvolvimento deu lugar a questionamentos, confirmando a
hipótese inicial da pesquisa de que a inserção da zona portuária do Rio
de Janeiro no circuito de turismo era deficiente e incompleta uma década
após o lançamento do projeto Porto Maravilha.
Na primeira parte do texto, discutimos o conceito de turistificação e a
relação deste processo com os esforços de “regeneração urbana”. Em segui-
da, a partir do estudo de caso, ressaltamos as diferentes iniciativas do poder
público em promover a atividade turística no perímetro de intervenção do
projeto Porto Maravilha, destacando i) o turismo diaspórico em torno da
valorização da cultura e memória afro-brasileira, ii) o turismo em favela
direcionado a dinamizar economicamente o Morro da Providência, e iii)
o Boulevard Olímpico, conformado enquanto espaço de turismo inspira-
do em fórmulas internacionalmente difundidas de regeneração de water-
fronts. Em seguida, chamamos atenção para alguns elementos que indicam
o “naufrágio” do projeto Porto Maravilha em sua tentativa de conformar a
zona portuária como novo cluster do turismo internacional.

Figura 1. “Congestionamento humano” durante a inauguração do Boulevard Olím-


pico, às vésperas da abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016

Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro


206 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Turistificação e “regeneração urbana”

Na literatura especializada, a turistificação é definida como a transfor-


mação funcional do espaço mediada pela proliferação de atividades
vinculadas direta ou indiretamente ao acolhimento e consumo de vi-
sitantes. O crescimento do turismo e o papel instrumental que essa ati-
vidade desempenha nas múltiplas transformações do ambiente urbano
são, portanto, compreendidos como processos contínuos de “turistifi-
cação”. Este neologismo, no entanto, não deve ser interpretado como
um conceito bem-definido e estabelecido na literatura (Ojeda e Kieffer,
2020). Em muitos casos, o termo turistificação é mobilizado para com-
por juízos negativos de transformações socioespaciais, relacionando-o
a fenômenos de gentrificação e espetacularização. Nesse sentido, este
ensaio se alinha a uma perspectiva acadêmica no campo dos estudos
turísticos que discute a turistificação sem atrelá-la a um sentido dico-
tômico de positividade / negatividade, considerando o fenômeno um
processo complexo de transformação induzida pela atividade turística
sobre um determinado recorte espacial.
Num contexto de neoliberalização, em que as políticas urbanas se
mostram cada vez mais vinculadas às lógicas de extração de mais-va-
lia do solo urbano e à promoção do consumo dos lugares, a turistifica-
ção adquire novos significados. Historicamente, o turismo foi aciona-
do para promover o desenvolvimento social e econômico por meio da
criação de empregos, geração de renda, captura de divisas estrangeiras
e arrecadação de impostos. Nos marcos do atual regime de acumulação
pós-fordista, gestores locais lançam mão da atividade turística como
uma “boia salva-vidas” em contextos de crise e recessão.
A dificuldade de muitas localidades em se adequarem às novas de-
mandas suscitadas pelo advento da globalização e pela revolução tecno-
lógica-informacional, e a assimilação de uma racionalidade empresarial
na gestão pública, repercutem diretamente na produção do espaço ur-
bano (Harvey, 1989a). Para salvar as cidades da “crise urbana” – repre-
sentada pelas altas taxas de desemprego, pela queda das arrecadações de
impostos e consequente incapacidade das municipalidades em prover
serviços básicos para a reprodução social – observa-se um alinhamento
de gestores municipais e agentes econômicos em prol de medidas que
“A ver navios” 207

visem maximizar a atratividade de capitais. As iniciativas de “regenera-


ção urbana” despontam como um dos principais recursos mobilizados
para promover o desenvolvimento social e econômico locais. Em todo o
mundo, observa-se uma profusão de grandes projetos urbanos que bus-
cam a transformação do ambiente construído, em especial naqueles se-
tores das cidades que se qualificam pelo alto potencial de lucratividade
sob a forma de extração da renda da terra, adaptando-os às exigências
de potenciais investidores.
A literatura sobre o tema indica que projetos de regeneração urbana
estão pautados em grande medida por um receituário de ações em que
se destaca o desenvolvimento da atividade turística. Trata-se, portanto,
de enfatizar que além da atração de capitais e investidores, as transfor-
mações do espaço urbano assumem o compromisso de criar ambientes
compatíveis com desejos e demandas de turistas. Para tal objetivo, o
portfólio de ações contempla a criação de espaços públicos de lazer, a
valorização de edifícios históricos, a implementação de distritos patri-
moniais, a promoção de festivais e eventos de natureza esportiva, cul-
tural e artística, a requalificação de frentes marítimas, a construção de
cassinos, centros de convenções, museus, entre outros. Neste sentido,
“acima de tudo, a cidade tem que se apresentar como um lugar inovador,
excitante, criativo e seguro para se viver ou visitar, divertir-se e consu-
mir” (Harvey, 1989a, p. 9).
De diferentes maneiras, constata-se que o turismo permeia e in-
fluencia decisões relacionadas à política urbana e à produção do espaço
urbano, interferindo em deliberações de uso e ocupação do solo, re-
gulações urbanísticas e implementação de infraestruturas (Paquinelli
e Bellini, 2017). Soma-se a isso o investimento no marketing urbano,
lançando mão de estratégias para promoção de imagens positivas sobre
as cidades, operando na valorização de determinadas representações e
na invisibilização de outras, com o objetivo final de tornar os espaços
atraentes para visitantes.

O place marketing fez aumentar o apelo turístico. Lugares constituem a


essência da experiência turística e, portanto, são os produtos essenciais
desta indústria. Raramente é perceptível a evidência de que um local
deva ser visitado; portanto, algum significado precisa ser atribuído a ele
208 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

para que sua importância seja reconhecida [...]. Cidades são vendidas
como qualquer outro produto [...]. Cada cidade tenta se projetar como
um lugar maravilhoso para ser visitado, onde um fluxo incessante de
eventos se desdobra constantemente [...]. O produto deve se assemelhar
à representação, e assim as cidades muitas vezes se refazem em conso-
nância com a sua imagem anunciada. Caso não exista uma infraestru-
tura que atraia e estimule as expectativas dos turistas, ela deve ser então
construída. Como isto não pode ser confiado à própria sorte, o poder
público está inevitavelmente envolvido na coordenação, subsídio e fi-
nanciamento da transformação do ambiente urbano (Fainstein e Judd,
1999, p. 4).

Nesta simbiose entre transformação do ambiente construído e es-


tratégias de representação, a cultura – na forma do consumo cultural
– tem sido mobilizada como componente fundamental para o desen-
volvimento urbano, em especial naquelas cidades que não se mostram
bem-sucedidas na transição para o regime de acumulação pós-fordista
(Zukin, 1998). Neste sentido, no que tange propostas de “regeneração”,
Arantes (2000) discorre sobre como as políticas urbanas estão cada vez
mais entrelaçadas a políticas culturais, garantindo legitimidade ao “en-
contro glamuroso entre cultura e capital” e fortalecendo o papel da cul-
tura como “senha mais prestigiosa da revalorização urbana”.
A “virada cultural” nas políticas urbanas confere um novo papel à
atividade turística, em especial ao turismo urbano, que esteve histori-
camente associado com a dimensão da cultura. Desde o final do século
XX esta relação tem ganhado novos contornos, indissociáveis da condi-
ção pós-moderna descrita por Harvey (1989b). O visitante é hoje com-
preendido como um consumidor de “produtos culturais”, que vão desde
souvenirs de plástico made in China ou artesanato e culinária locais a
tickets de ingresso de espetáculos, festivais e museus, e todas as outras
formas de consumo derivados desta visitação, mesmo aquelas não mo-
netizadas como selfies em frente a ícones arquitetônicos. Num contexto
em que cultura e arte se tornam iscas de turistas, conferem ainda a sim-
bologia necessária para o reconhecimento da opinião pública de que
processos de “regeneração” alcançaram êxito. Neste sentido, a presença
de turistas tem o papel de neutralizar negatividades (estigmas) sobre um
“A ver navios” 209

determinado setor urbano, servindo como ponta de lança para que a


população local frequente um espaço antes percebido como degradado
– uma no-go area.
Compreende-se, portanto, que o estímulo à animação cultural, e a
turistificação a ela atrelada, não concorrem com as intenções rentistas
dos grandes projetos urbanos; pelo contrário, caminham juntos por
meio de uma retroalimentação entre valorização simbólica e valoriza-
ção fundiária. Sendo esta valorização uma importante fonte de conflitos
e contradições – em especial os conhecidos processos de gentrificação –,
políticas culturais são acionadas para suavizar tensões inerentes à lógica
de extração de renda em bases especulativas própria da racionalidade
neoliberal de produção do espaço urbano (Peck, 2010): trata-se de um
cúmplice ideal para a legitimação de projetos de regeneração, afinal,
quem se atreve a ser contra “a cultura”?
Ao “pacificar” os espaços para acomodar investimentos e atrair tu-
ristas, o álibi cultural induz à estetização e coreografização de manifes-
tações culturais locais e populares, além da espetacularização e padro-
nização dos lugares. Não é por azar vermos a reprodução em série de
elementos idênticos em cidades que investiram na regeneração pautan-
do-se no binômio cultura-turistificação: estruturas e edifícios icônicos
concebidos por arquitetos renomados que produzidos em série povoam
as paisagens urbanas em todo planeta.

A obsessão contemporânea com edifícios icônicos pode ser interpre-


tada como a última tentativa das cidades de usar a monumentalidade
como uma forma de afirmar e exibir o status do capital. Na atualidade,
os objetivos turísticos são frequentemente a principal justificativa para
estas novas estratégias monumentais. [...] Ao tentar se aproximar de
potenciais consumidores, em especial os turistas, a cidade contempo-
rânea depende da comunicação eficaz proporcionada por sinais e sím-
bolos urbanos, tanto quanto propiciar experiências agradáveis (Smith,
2007, p. 82).

Iconicidade, monumentalidade, privatização e securitização dos es-


paços públicos, estratégias de marketing etc. são componentes de um
mesmo receituário reproduzido em todos os continentes, transferido
210 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

de um lugar para o outro com a autoridade de uma “fórmula mágica”


capaz de salvar espaços urbanos em “crise”. O resultado é uma “reprodu-
ção repetitiva e seriada de certos padrões de desenvolvimento” (Harvey,
1989a), onde o turismo aparece como peça central da engrenagem de
“regeneração”.
Na próxima seção tratamos de colocar em debate este conteúdo teó-
rico com a tentativa recente de turistificação da zona portuária carioca.
Porém, antes de avançarmos nesse estudo de caso específico, é impor-
tante ressaltar que o projeto Porto Maravilha é o produto mais recente
de uma construção histórica de imaginários da/para a cidade do Rio de
Janeiro. A monumentalidade, a iconicidade arquitetônica, a valorização
de elementos da paisagem e da cultura e tantas outras estratégias de pro-
moção e construção simbólica não são uma novidade; elas fazem parte
de um repertório de iniciativas de atores hegemônicos desde o início do
século XX. Cristo Redentor, Pão de Açúcar, Arcos da Lapa e Praia de
Copacabana são elementos da paisagem transformados em símbolos da
cidade e explorados há décadas, seja para a construção de identidade lo-
cal, seja para fins mercadológicos e de promoção de atividade turística.
Neste sentido, cabe aqui ressaltar a novidade trazida pelo Porto Ma-
ravilha: pela primeira vez o intento de turistificação surge integrado a
um projeto de regeneração urbana. Ou seja, a concepção da operação
urbana funde-se com a promoção da atividade turística, e aparece mes-
mo como princípio da legislação que a institui – Lei 101/2009 que cria a
Área de Especial Interesse Urbanístico da Região do Porto do Rio.
A verdade é que há décadas os grupos hegemônicos que ditam os
rumos da cidade vêm buscando consolidar este objetivo. A tentativa de
articulação entre turismo e regeneração urbana já estava colocada desde
os anos 1980 em diversos projetos para os bairros centrais da cidade
propostos por diferentes entidades públicas e setores do empresariado.4
Na década seguinte, as recorrentes gestões de Cesar Maia e seus afilha-
dos políticos – Luiz Paulo Conde e Eduardo Paes – conformaram na
esfera municipal a obstinação pela tríade cultura-turismo-regeneração,

4 Destacam-se as propostas de criação de um world trade center (1982), um Teleporto


(1985) e uma filial do Museu Guggenheim (2002). Para mais informações sobre esses e
outros projetos, consultar Silvestre (2022).
“A ver navios” 211

tal como demonstram os “planos estratégicos” da cidade (PCRJ, 1996,


2009). Por um lado, observa-se uma tentativa de complexificação dos
“produtos” turísticos – leia-se, ofertar novas experiências para além do
tradicional pacote “carnaval-praia” – e, por outro, a inserção de novos
espaços no circuito turístico – rompendo a concentração espacial da
atividade turística, historicamente engessada nos bairros da Zona Sul
e em parte da área central. O incessante esforço de acolher na cidade
os “megaeventos turísticos” internacionais também é uma marca dessa
estratégia das gestões municipais nesse período.5 Os Jogos Olímpicos
Rio 2016 e o projeto Porto Maravilha devem ser entendidos, portanto,
como o ápice de um longo caminho percorrido pelas elites locais, con-
cretizado num momento em que as condições econômicas e políticas se
mostraram as ideais para realização.

Porto Maravilha e os novos produtos turísticos da Cidade Mara-


vilhosa

A turistificação é apenas uma das dimensões da aposta de transfor-


mação da zona portuária do Rio de Janeiro, mas assume relevância ao
imbricar-se com outros componentes do projeto, tais como a ressig-
nificação simbólica do lugar e o acionamento da cultura para fins de
“regeneração”. A escolha do nome comercial “Porto Maravilha” para
a operação urbana consorciada está em sintonia com este objetivo,
resgatando uma alcunha que há décadas exalta elementos culturais
e naturais da cidade. A “cidade maravilhosa” foi consolidada ao lon-
go do século passado como imagem-força atrelada a ícones da Zona
Sul carioca selecionados enquanto produtos turísticos. Neste sentido,
pelas intenções dos promotores do projeto Porto Maravilha, a zona
portuária estaria integrada aos “encantos mil” desta utopia romântica
explorada comercialmente.

5 Alguns exemplos são os Jogos Pan-americanos (2007), os Jogos Mundiais Militares


(2011), a Conferência Rio+20 (2012), a Jornada Mundial da Juventude (2013), a Copa
das Confederações (2013), a Copa do Mundo FIFA (2014), os Jogos Olímpicos e Pa-
raolímpicos (2016), uma candidatura mal-sucedida para os Jogos Olímpicos de 2004,
além de inúmeras edições do festival de música Rock in Rio.
212 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

No reduzido território do projeto Porto Maravilha, inúmeras “poten-


cialidades turísticas” afloram para os agentes da regeneração. Além do
waterfront com vista para alguns dos mais importantes cartões-postais
da cidade, e um patrimônio arquitetônico passível de destinação para
fins turísticos, a zona portuária conta ainda com um atributo que lhe
garante singularidade: a cultura local está historicamente povoada de
símbolos da brasilidade que agora fazem parte do imaginário brasileiro
ao redor do mundo, elementos da herança africana com alto potencial
de serem convertidos em produtos culturais originais.
Uma das principais características da turistificação na atualidade é
assumir múltiplas feições, tão diversificadas quanto o próprio espaço
geográfico. Pelo lado da demanda, trata-se de uma resposta a anseios de
determinados grupos por novos produtos turísticos; na perspectiva da
oferta, observa-se a criação de produtos turísticos por agentes e grupos
sociais em contexto de projetos de “desenvolvimento”. O resultado é a
diversificação e segmentação da atividade turística, criando uma infini-
dade de micronichos, e tornando a indústria do turismo cada vez mais
fragmentada. No caso da zona portuária do Rio de Janeiro, por exemplo,
a aposta dos promotores locais não se limita ao Boulevard Olímpico e
seu entorno, e a adaptação do espaço urbano para fins de acolhimento e
consumo turísticos se manifesta de diferentes formas.

Cais do Valongo e o turismo diaspórico

A poucos metros do Boulevard Olímpico, outro espaço de destaque nos


planos do complexo turístico da zona portuária revitalizada é o Cais do
Valongo, reconhecido como principal ponto de desembarque de afri-
canos escravizados das Américas. Como ressaltado acima, a cultura e a
geografia do local foram marcadas por uma forte presença de africanos
escravizados e libertos, e de seus descendentes, o que levou o escritor
Heitor dos Prazeres no início do século XX a representá-lo como a “Pe-
quena África” carioca.
Se, num primeiro momento, o passado negro e popular da zona por-
tuária não aparecia no hall de elementos selecionados pelos promotores
do projeto Porto Maravilha para fins de valorização cultural e de turisti-
“A ver navios” 213

ficação, este descaso ganha um novo rumo quando organizações estran-


geiras e a mídia internacional passam a visitar e noticiar a “descoberta”
do Cais do Valongo. Assessores do então prefeito Eduardo Paes foram
exitosos em convencer o gestor municipal e a presidência da Compa-
nhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro
(CDURP) sobre a importância de conservação do cais os benefícios de
seu enaltecimento para o intento de “regeneração” local.6
Trata-se, portanto, de reconhecer que o processo de homogeneização
– enquanto estratégia de replicar um receituário de desenvolvimento de
forma a minimizar riscos para investidores – é apenas uma faceta da tu-
ristificação: o sucesso para dinamização da atividade turística depende
também da valorização do “autêntico” e do “único”. O acionamento do
patrimônio material e imaterial é exemplar neste esforço de construção
da singularidade local. No caso do Porto Maravilha, a celebração da cul-
tura afro-brasileira foi vislumbrada como um produto para os visitan-
tes, instrumentalizando o passado negro da área como um elemento de
distinção frente a outras cidades que igualmente exploram o potencial
turístico de seus waterfronts. Assim, o esforço pelo reconhecimento do
sítio arqueológico do Cais do Valongo como patrimônio da humani-
dade pela UNESCO está atrelado à intencionalidade de desenvolver o
turismo diaspórico na zona portuária.
Na interpretação de Coles e Timothy (2004), o turismo diaspórico
teria como público-alvo prioritário os membros de comunidades dias-
póricas que buscam uma experiência de consumo e vivência de lugares
relacionada com a história de seus antepassados. No caso brasileiro, Pi-
nho (2018) demonstra como a Bahia se tornou um ponto nodal de um
nicho do turismo que atrai milhares de afro-estadunidenses interessa-
dos nas raízes culturais da diáspora negra no Atlântico. Neste sentido, a
patrimonialização do Cais do Valongo permitiria a integração da zona
portuária carioca neste “mapa da africanidade”, com repercussões po-
sitivas para a revalorização simbólica da área e impulsionando o seu
potencial turístico.

6 Originalmente, e seguindo os planos da CDURP, após a finalização dos trabalhos


arqueológicos, o Cais do Valongo seria novamente encoberto para a construção de uma
via de automóveis.
214 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

O incentivo de agentes públicos à criação de atrações destinadas a


celebrar a cultura e a história afro-brasileiras é abraçado por ativistas e
setores do movimento negro, que vislumbram nele a possibilidade de
alinhar o turismo étnico a debates mais amplos sobre desigualdade e
racismo. A equalização desses interesses, contudo, não ocorre sem ten-
sionamentos. Grupos locais criticam as iniciativas da prefeitura de pro-
mover a celebração do passado negro, acusando-a de optar por uma
abordagem com feições folclóricas e espetacularizada – e, portanto, des-
politizada e mercadológica.
Para um gestor público engajado na promoção local, o reconhecimen-
to patrimonial do Cais do Valongo teria “potencial de atrair a atenção do
mundo, do turismo internacional”, culminando com “milhares de turistas
americanos vindo visitar a zona portuária” nas próximas décadas:

O título de Patrimônio da Humanidade é importantíssimo para a cida-


de e para o projeto [Porto Maravilha]. Isso tem o potencial de atrair a
atenção do mundo, do turismo internacional para a zona portuária. [...]
Hoje o turismo étnico é a grande aposta do setor, movimenta muitos
dólares e só vem crescendo. [...] Nos Estados Unidos têm agências de
viagens que se especializaram nos roteiros afros para os negros america-
nos. Eles viajam para a África e fazem visitação nos espaços de memória
da escravidão, no Benin, em Gana, no Senegal. [...] O Rio de Janeiro tem
condições muito melhores de atrair esse público, vamos entrar na rota,
e eu vejo milhares de turistas americanos vindo visitar a zona portuária
nos próximos anos.7

Apesar da inscrição do cais na lista de patrimônios da UNESCO


em 2017, a expectativa de torná-lo uma atração internacional não foi
concretizada, e as entrevistas revelam que o sítio arqueológico é uma
localidade desconhecida ou ignorada pelos turistas que circulam pelo
Boulevard Olímpico. A falta de visitantes só não é constante em razão
da presença de grupos de estudantes dos ensinos fundamental e médio,
trazidos por seus professores em excursões escolares. Dessa forma, o in-
sucesso do cais em atrair “milhares de turistas” não apaga a sua relevân-

7 Entrevista no 12 (assessor do prefeito Eduardo Paes), realizada em 18 out. 2016.


“A ver navios” 215

cia para fins educacionais e como lugar de memória para a comunidade


negra e religiões de matriz africana.

Figura 2. Funcionários realizam manutenção do Cais do Valongo após sítio arqueo-


lógico patrimônio da humanidade ser alagado por chuva em 2018

Foto de Tânia Rêgo (Agência Brasil)

Morro da Providência e o turismo em favela

A zona portuária abriga também a comunidade reconhecida como a


primeira favela do Brasil, o Morro da Providência, um marco histórico
igualmente acionado para promover o Porto Maravilha como destino
turístico. No âmbito da operação urbana, a principal infraestrutura con-
cebida para a comunidade foi um teleférico, que, além de melhorar a
mobilidade urbana dos moradores, serviria para facilitar o acesso de
visitantes ao morro, permitindo a contemplação da paisagem em miran-
tes voltados para a Baía de Guanabara e o Cristo Redentor. O ambiente
seguro para os turistas foi garantido pela instalação de uma Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP da Providência), que manteve durante alguns
anos um aparente controle militarizado do tráfico de drogas na área.
A turistificação do Morro da Providência reproduz o formato slum
tourism, existente há pelo menos duas décadas nas favelas da Zona Sul
216 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

do Rio de Janeiro. Desde a Eco-92, quando representantes de delegações


estrangeiras mostraram interesse em conhecer as comunidades cario-
cas, os tours propostos por guias locais e agências especializadas se mul-
tiplicaram. O sucesso do filme “Cidade de Deus” (2002) consolidou o
turismo em favela como um novo produto a ser explorado na promoção
da cidade internacionalmente.
Aproveitando a onda de interesse pelas comunidades, em 2004, du-
rante a gestão Cesar Maia, foi concebido o projeto “Museu a Céu Aber-
to”, como parte integrante do programa Favela Bairro para o Morro da
Providência. A ideia foi criar um corredor cultural com diversos pon-
tos de visitação e a construção de três mirantes voltados para diferentes
ângulos da paisagem carioca. Nas palavras da arquiteta da prefeitura
responsável pelo projeto,

[...] o programa Favela Bairro pensou em fazer um corredor histórico


que é um museu. [...] Nós agregamos outros elementos da modernida-
de, como os mirantes, onde é possível ver a cidade quase que com uma
vista equivalente àquela do Pão de Açúcar e do Corcovado, e sem ter que
pagar nada por isso. E, ao mesmo tempo, conhecer um lado da cidade
que é pouco visitado. Esse é o museu. [...] Ao invés de construir um
prédio dentro de uma favela e chamar aquilo de museu, nós utilizamos
o morro como prédio. E o museu é a própria favela.8

Os investimentos realizados pelo poder público municipal não im-


pulsionaram a atividade turística na favela, e os edifícios que faziam
parte do circuito do museu a céu aberto permaneceram sem conser-
vação nos anos seguintes à implementação do projeto. Curiosamente,
os mirantes que deveriam atrair visitantes foram apropriados por nar-
cotraficantes da localidade, funcionando como pontos de observação
privilegiados em situações de conflito com as forças policiais.
Na década seguinte, em meio ao turbilhão de propostas estruturan-
tes do projeto Porto Maravilha, o poder público municipal foi especial-
mente atuante na tentativa de transformação do Morro da Providência

8 Informação verbal extraída de vídeo institucional da Prefeitura da Cidade do Rio


de Janeiro (sem data). Disponível em: https://bit.ly/3uYH4b3. Acesso em: 16 fev. 2022.
“A ver navios” 217

em atrativo turístico. O pacote de ações iria além da construção do te-


leférico mencionado acima, contemplando ainda a reestruturação dos
mirantes – os mesmos criados pelo programa Favela Bairro – e uma
cenarização do local, que, nas palavras de uma gestora municipal entre-
vistada, “buscou inspiração no projeto de revitalização do Pelourinho
de Salvador”.9 Para se ter uma ideia do impacto desta proposta, se todas
as intervenções previstas tivessem se concretizado, quase metade das
casas da favela seriam removidas.

Figuras 3 e 4. Projeto da prefeitura para o Morro da Providência

Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro

9 Entrevista no 07 (gestora municipal), realizada em 09 mar. 2016.


218 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A mobilização da população contra o processo de remoção for-


çada aliada a repercussão negativa na imprensa internacional sobre
as violações de direito à moradia fez a prefeitura abandonar a ideia
de conceber um “Pelourinho” para o Morro da Providência. Poucos
meses depois dos Jogos Olímpicos, o teleférico foi desativado e a UPP
da Providência passou por uma desestruturação que culminou com
a volta da atuação ostensiva de narcotraficantes. Em meio às dispu-
tas pelo controle do território, os tiroteios frequentes interrompem
com frequência a circulação do VLT nas ruas do entorno da favela.
A presença de turistas na Providência hoje é reduzida e esporádica.
Pequenos comerciantes locais, donos de bares e restaurantes, além
de moradores que investiram suas economias na conversão de seus
imóveis em hostels relatam frustração quanto à interrupção de seus
planos. Apesar desse cenário desolador para aqueles que previam a
geração de renda por meio da atividade turística, é preciso salientar
que esses moradores expressam juízo positivo quanto ao processo de
turistificação da favela. Nas entrevistas realizadas, observa-se que, no
curto período de intensa visitação, a presença de turistas garantiu em-
poderamento e amplificação de vozes da comunidade, além de uma
visibilidade midiática jamais presenciada na história da Providência.
Nesse sentido, é preciso reconhecer o turismo em favelas não só como
mera contemplação de espaços da pobreza, mas também como uma
atividade que fomenta a ação política de grupos sociais invisibilizados
e silenciados no espaço urbano.
É perceptível que o objetivo de turistificação da zona portuária – e
do Morro da Providência, especificamente – buscou angariar legiti-
madade por meio do acionamento de um discurso que inferia o de-
senvolvimento econômico da comunidade às oportunidades de em-
prego e renda decorrentes das realizações do projeto Porto Maravilha.
Alia-se a isso a mobilização de uma retórica neoliberal pautada no
discurso ideológico do empreendedorismo e na responsabilização dos
indivíduos pela sua situação de pobreza. As ações do programa deno-
minado “Porto Maravilha Cidadão”, por exemplo, eram destinadas à
profissionalização da população e dos microempreendedores da área,
especialmente por meio de parcerias com o Sebrae-RJ, sendo o turis-
mo considerado um fator propulsor de desenvolvimento comunitário.
“A ver navios” 219

Nas palavras de um assessor do prefeito Eduardo Paes, os moradores


deveriam “explorar a criatividade” de forma a fazer emergir “os talen-
tos existentes na favela”, e “o Porto Maravilha é bom para quem sabe
se aproveitar dele”.10
Mais de uma década após a operação urbana entrar em funciona-
mento, o insucesso da turistificação é verbalizado pelos moradores e pe-
quenos comerciantes entrevistados, e a memória das ameaças de remo-
ção e violação de diretos sofridas impõe-se aos supostos benefícios do
projeto de “regeneração” da zona portuária. Sem a pretensão de apro-
fundar este debate e pelas limitações impostas a este ensaio, cabe, no en-
tanto, questionarmos as reais intenções do projeto Porto Maravilha em
buscar uma compatibilidade entre lógicas especulativas de produção do
espaço e a permanência de grupos sociais de baixa renda no perímetro
de atuação da operação urbana consorciada.

De volta ao Boulevard Olímpico

Retoma-se aqui a análise do Boulevard Olímpico, ponto de partida des-


te ensaio. A opção em conceber essa via de pedestres como elemento
central do projeto Porto Maravilha alinha-se aos pressupostos de um
modelo consagrado em várias cidades do mundo nas últimas três dé-
cadas: converter antigos bairros portuários obsoletos e desvalorizados
em novos espaços de consumo, ressignificados por meio de instalações
culturais e de entretenimento. No caso da zona portuária carioca, o Mu-
seu do Amanhã, projetado pelo starchitect Santiago Calatrava, e o painel
“Etnias”, assinado pelo renomado grafiteiro Eduardo Kobra, são duas
das principais iscas culturais (Arantes, 2000) concebidas para compor
uma nova imagem da área. Um aquário municipal – AquaRio, “o maior
aquário da América do Sul” – e uma roda-gigante – Rio Star, “a maior
roda-gigante da América Latina” – completam as materialidades que
compõem esse novo polo turístico da cidade.
Em todo mundo, os espaços públicos são cada vez mais inseridos
nos circuitos de turismo urbano, especialmente pela inserção de ob-

10 Entrevista no 12 (assessor do prefeito Eduardo Paes), realizada em 18 out. 2016.


220 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

jetos arquitetônicos capazes de atrair visitantes. Neste sentido, as an-


tigas zonas portuárias acabam sendo alvos privilegiados de projetos
de regeneração, por um lado, por disponibilizarem amplos espaços
“vazios” e subutilizados, passíveis de acolher grandes edificações e ou-
tras amenidades de lazer e entretenimento, e, por outro, porque a in-
terface entre espaços urbanos e os waterfronts produzem um fascínio
de contemplação historicamente explorado e valorizado em diversas
culturas.
O Boulevard Olímpico foi concebido como um enclave turístico
desconectado de sua vizinhança direta, descumprindo, portanto, a pro-
messa dos promotores do Porto Maravilha de “integrar” as antigas ins-
talações portuárias ao tecido urbano carioca. Por ter recebido o maior
volume de investimentos destinados às obras de regeneração, o boule-
vard antagoniza a precariedade dos espaços de pobreza localizados a
poucos passos da promenade, onde os cortiços e o esgoto a céu aberto
parecem ter sido ignorados apesar dos bilhões de reais aplicados pela
operação urbana.
Se uma das principais características dos projetos de turistificação
tem sido a vigilância dos espaços públicos requalificados, com objeti-
vo de garantir a “segurança” e o “conforto” dos visitantes, essa tentativa
de enquadramento é refutada pela população local, que transformou o
waterfront num espaço de lazer. O boulevard hoje conta com uma forte
ocupação de pessoas “reais”, moradores de baixa renda da zona portuá-
ria, que se apropriam do espaço a partir de usos populares.
“A ver navios” 221

Figura 5. Grafites e intervenções artísticas cobrem as fachadas de imóveis vazios


localizados no Boulevard Olímpico

Foto de Marcos André Pinto

Naufrágio

Todos esses investimentos demonstram um real incremento da ativi-


dade turística na zona portuária, notadamente quando o cenário atual
é confrontado com o contexto de uma década atrás, antes das obras do
projeto Porto Maravilha: tratava-se de uma no-go area, um território
estigmatizado pela presença de sujeitos e grupos sociais indesejados e
fora da vista daqueles que buscavam o Rio de Janeiro como destino tu-
rístico. Por outro lado, é preciso chamar atenção para os descaminhos
do processo de turistificação e a incapacidade de gestores públicos em
cumprir a promessa de torná-la “mais famosa e mais visitada que o Cris-
to Redentor”.11
Nos fins de semana, a imagem de longas filas que se formam em
frente ao Museu do Amanhã – sem dúvida o mais bem sucedido dos

11 Entrevista no 12 (assessor do prefeito Eduardo Paes), realizada em 18 out. 2016.


222 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

equipamentos criados no âmbito do Porto Maravilha – pode induzir-


-nos a uma conclusão apressada de que o objetivo da turistificação
foi plenamente alcançado. Esta concentração de visitantes contrasta
com o “vazio” à medida que deixamos a Praça Mauá e percorremos
o boulevard. É preciso sublinhar ainda que boa parte do público fre-
quentador do novo equipamento é composta por moradores da região
metropolitana fluminense e, principalmente, grupos escolares em ex-
cursões organizadas por professores que desejam explorar o potencial
educativo do museu.12 Estamos distantes, portanto, do compromisso
original de dinamização do turismo internacional na área, idealizada
pelos promotores do projeto – segundo relatório de atividades do Mu-
seu do Amanhã, em 2018 apenas 3% dos visitantes eram estrangeiros.13
O efeito de “transbordamento” esperado a partir das intervenções
do Porto Maravilha até o momento não são visíveis na paisagem: o
Boulevard Olímpico é um grande deserto de atividades comerciais e
de serviços para os visitantes. Dos dois hotéis construídos na área,
um fechou as portas e o outro amarga baixas taxas de ocupação dos
quartos. Os comentários deixados por clientes estrangeiros em sites
de avaliação oferecem uma dimensão dos desafios encontrados pelos
visitantes:14

“O hotel fica numa área desértica”


“Não ande a pé pela região!”
“É preciso pegar Uber ou táxi para chegar a qualquer lugar”
“Precisa pegar um Uber se você quiser almoçar”
“Não é um lugar seguro para mulheres”

As entrevistas corroboram para o descontentamento generalizado


em relação aos esforços de turistificação da área. Em frente ao terminal

12 O Museu do Amanhã tem um forte apelo educativo ao procurar debater o futuro da


humanidade, em especial sobre temas relacionados ao meio ambiente. Para uma análise
crítica do museu, ver Funk (2022).
13 “Museu do Amanhã Três Anos”. Disponível em: museudoamanha.org.br. Acesso em:
18 fev. 2022.
14 Comentários extraídos dos sites Booking, Trivago e Google Meu Negócio.
“A ver navios” 223

de transatlânticos do Píer Mauá, uma guia de turismo nos confiou um


depoimento enquanto aguardava o desembarque de uma família fran-
cesa em visita à cidade:

Aqui na zona portuária eu não tenho muitas coisas a oferecer para um


turista. O que eu tenho para propor como visitação? [...] Essas pessoas
vêm passar duas ou três noites na cidade, elas já têm em mente o que
querem visitar: Pão de Açúcar, o Cristo [Redentor], Santa Teresa, as ve-
zes a Lapa, ou o [estádio do] Maracanã.15

Outro guia de turismo relatou:

Uma vez eu tive uma demanda de um grupo para visitar o boulevard.


Mas foi rápido, aproveitaram as últimas horas antes de o navio partir
[...]. Não tem nada de diferente para se ver aqui, é só um calçadão sem
árvores, não tem nem sombra.16

A proprietária de um food truck estacionado no entorno do Museu


do Amanhã discorreu sobre o esvaziamento do espaço após os Jogos
Olímpicos:

Eu investi todas as minhas economias neste food truck. Durante as


Olimpíadas, eu ganhei muito dinheiro. Todo o mundo que trabalhava
com alimentação aqui lucrou [...]. Depois, virou esse deserto que você
está vendo. De vez em quando, eles fazem algum evento aqui no bou-
levard, isso aumenta as vendas, mas eu estou pensando em sair, voltar
para o meu emprego anterior.17

Um comerciante local, proprietário de uma champanheria, aponta


que a solução para aumentar a frequentação de turistas seria “trazer a
Zona Sul” para a zona portuária, ou seja, reproduzir nela elementos do
consagrado espaço turístico carioca:

15 Entrevista no 32 (mulher, 33 anos, guia de turismo), realizada em 27 jan. 2019.


16 Entrevista no 33 (homem, 29 anos, guia de turismo), realizada em 27 jan. 2019.
17 Entrevista no 35 (mulher, 40 anos, microempresária), realizada em 27 jan. 2019.
224 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A maioria dos meus clientes são funcionários de escritórios, funcioná-


rios públicos que trabalham no Centro da cidade e frequentam nosso
espaço no happy hour. [...] Raramente entra um gringo aqui. [...] Eles
estão interessados em Ipanema, Copacabana, Santa Teresa, então a so-
lução talvez seja trazer a Zona Sul para cá. [...] O governo deveria fazer
um estudo para dizer por que esses turistas não têm interesse pela zona
portuária, e tentar reproduzir aqui as coisas que deram certo lá.18

Em 2018, o então prefeito Marcelo Crivella, surge com uma nova


fórmula mágica para resolver a crise econômica da cidade e, de quebra,
impulsionar o turismo na zona portuária: a construção de um cassino-
-resort, com recursos do magnata norte-americano Sheldon Adelson.
Nas palavras de Crivella:

A ideia dele [Sheldon Adelson] era comprar [a área do aeroporto] San-


tos Dumont. Tirei isso da cabeça dele, para ele comprar o Porto Maravi-
lha. E nós termos aqui um cassino tipo o que ele fez em Cingapura, onde
5% é o cassino, e tem centro de exposição, centro de convenções, hotel,
com duas torres enormes, de 50 metros, e piscina lá em cima. [...] Nós
estamos falando de um cassino, um só na cidade do Rio de Janeiro, que
tenha a capacidade de atrair milhões de turistas [...] Cingapura tinha 6
milhões de turistas e passaram para 20 milhões. O Adelson [...] me disse
que não há hipótese de não dobrarmos o número de turistas para cá.19

A proposta nunca foi levada a sério nem mesmo pelos gestores da


CDURP, e as notícias sobre o empreendimento desapareceram rapida-
mente da mídia. Crivella não foi reconduzido ao cargo de prefeito nas
eleições de 2019, e o empresário milionário faleceu em 2021.
A utilização de cassinos como indutores de regeneração urbana foi
uma estratégia amplamente utilizada por governos locais norte-ameri-
canos nos anos 1970 e 1980. Mostra-se hoje como uma estratégia in-

18 Entrevista no 47 (homem, 48 anos, empresário), realizada em 18 dez. 2019.


19 “Crivella sobre cassino no Porto: ‘Sou contra o vício, mas contra a miséria e o de-
semprego’”, O Globo, 17 dez. 2018. Disponível em: https://glo.bo/3gY2Mnu. Acesso em:
16 dez. 2022.
“A ver navios” 225

sustentável do ponto de vista econômico, social e ambiental, com sig-


nificativos impactos negativos para comunidades locais, e criticada por
policy-makers das mais diversas tendências ideológicas em todo mundo.

Conclusões

No campo dos estudos turísticos, um volume significativo de trabalhos


ressalta que a transformação funcional do espaço para atividades vincu-
ladas ao consumo e acolhimento de visitantes geram consequências nega-
tivas em muitas cidades, fazendo eclodir ondas de descontentamento de
moradores e comerciantes locais. Os motivos vão desde o aumento dos
preços dos aluguéis – ocasionado pela pressão da especulação imobiliária
e pelo aumento exponencial de imóveis disponibilizados em plataformas
digitais de aluguel por temporada, como o Airbnb – à privatização de es-
paços públicos – criando restrições à circulação nos espaços e corroendo
o sentimento de pertencimento de moradores aos seus bairros (Milano,
2018). Barcelona parece ser o exemplo mais notável dos impactos negati-
vos do processo de turistificação, que contribuíram para a eleição de uma
prefeita cujo plano de governo era pautado pelo decrescimento turístico.20
Apesar de adotar um receituário de produção do espaço urbano ins-
pirado na capital catalã, o projeto Porto Maravilha não alcançou até o
momento o mesmo êxito. Frente a essa situação, é necessário analisar as
ações futuras de agentes públicos e privados relacionadas à promoção
da atividade turística na área e avaliar se os impactos negativos iden-
tificados em cidades europeias e norte-americanas encontrarão eco no
contexto dos bairros portuários cariocas.
Neste ensaio não buscamos negar as evidências de que a zona por-
tuária se tornou um polo de turismo da cidade do Rio de Janeiro, mas de
identificar que as projeções criadas pelos promotores do projeto Porto
Maravilha não se efetivaram até o momento. Enquanto os visitantes es-
trangeiros não chegam, o naufragado Porto Maravilha continuará sendo
nas próximas décadas objeto de propostas – algumas delas mirabolantes
– com o intuito de alavancar o turismo internacional.

20 Prefeita Ada Colau, eleita em 2015 e reconduzida ao cargo em 2019.


226 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

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“A ver navios” 227

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tps://doi.org/10.1080/0042098984574
229
Foto: Série Favelicidade, Luiz Baltar
CAPÍTULO 9

Do porto “moderno” ao Porto Maravilha


Políticas urbanas, habitação e o lugar dos pobres
na cidade
Rafael Soares Gonçalves
Mario Brum

Introdução

A zona portuária do Rio de Janeiro apresenta marcantes contradições,


algumas antigas, outras recentes. A primeira é que o viajante que, che-
gando pelo mar, avista a cidade antes do porto, pois este está localizado
numa enseada na Baía de Guanabara. À contradição geográfica, se soma
uma outra: o Museu do Amanhã, equipamento inaugurado no âmbito
do projeto de revitalização da área em meio à preparação para os Jo-
gos Olímpicos Rio 2016, localiza-se perto de importantes espaços de
memória ou marcos do patrimônio que sofrem o abandono do Estado,
tais como o Cais do Valongo, a Pedra do Sal, o Instituto Pretos Novos
e o Morro da Providência, numa analogia prática em que o “amanhã”
continua a ser privilegiado em detrimento do passado.
A última contradição, em sintonia com a anterior, é que mesmo es-
tando localizada na área central da cidade, a região contou com pou-
quíssimos projetos habitacionais ao longo da sua história. Isso quando
as políticas urbanas não visaram exatamente a expulsão de moradores,
principalmente negros e pobres. O “futuro” da área é permanentemen-
te anunciado como substituto do passado, a ser superado ou ignorado.
E isso é uma permanência na história da região, como intentamos de-
monstrar nesse capítulo.
Assim, nesse texto, divido em três partes, optamos por direcionar
nosso olhar para três períodos históricos da zona portuária. O primeiro,
no início do século XX, quando a área passa por uma grande reforma
que moderniza o porto e a cidade do Rio de Janeiro, numa adaptação

231
232 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

aos novos tempos de fluxos econômicos mais dinâmicos advindos da


consolidação do capitalismo e da intensificação do uso de máquinas
pela Revolução Industrial. Desse modo, sob as bandeiras do “progresso”
e “civilização”, a população que habitava a região foi, via de regra, trata-
da como resquício de um passado incômodo que devia dar lugar a uma
modernidade, da qual pouco ou nada desfrutou.
O segundo período,1 ocupando menor espaço no texto, situa-se no
hiato entre as obras do início do século XX e as recentes intervenções. As-
sim, nas décadas seguintes às obras do porto, alguns projetos pontuais de
habitação serviram majoritariamente para demonstrar o pouco interesse
e esforço das autoridades em transformar a zona portuária num bairro
dotado de equipamentos, moradias e serviços acessíveis à maior parte
da população da cidade. O que a área vivenciou entre os dois momentos
abordados nesse capítulo foi uma sistemática ausência de políticas urba-
nas, quando não políticas e ações direcionadas exclusivamente para redu-
zir a quantidade de moradias. Estendendo isso ao conjunto da área central
da cidade, vemos que o que houve foi uma sistemática expulsão das clas-
ses populares, com a eliminação física de diversos espaços historicamente
habitados por elas, como os cortiços, a centralidade popular em torno da
Praça Onze, assim como o Morro do Castelo e o Morro de Santo Antônio.
Por fim, nosso foco estará no período recente de preparação do Rio
de Janeiro para os grandes eventos internacionais, com o projeto de mo-
dernização batizado de “Porto Maravilha”, em que uma vez mais a área
vive uma readequação aos “novos tempos”. Uma readequação diferente
de um século antes, quando a cidade tinha a primazia no comércio in-
ternacional e necessitava ter um porto moderno na capital da Repúbli-
ca, de acordo com a necessidade de se mostrar uma cidade civilizada e
saneada, que cumprisse papel na atração de estrangeiros, fossem esses
capitais ou pessoas que para cá migrassem.
No recente momento, a necessidade foi a captura de fluxos comer-
ciais, na era das tecnologias digitais e conectividade, impondo um di-
namismo capaz de atrair empresas, numa área então “abandonada”
próximo ao Centro, que funcione novamente como porta de entrada

1 A segunda e a terceira parte deste capítulo retomam parcialmente, atualizam e apro-


fundam questões abordadas por Gonçalves (2013).
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 233

de estrangeiros – dessa vez como turistas, não mais migrantes. Enfim,


numa área que precisou ser “requalificada” a partir de uma parceria pú-
blico-privada, que se configurou, como analisaremos, em investimentos
públicos direcionados à iniciativa privada – outra similaridade entre os
dois momentos abordados nesse estudo.

A zona portuária no começo da República

No início do século XX, ainda nos primeiros anos da República, a mo-


dernização da zona portuária era demanda urgente de uma economia
que se modernizava, numa sociedade que se industrializava e necessi-
tava de portos modernos para integrar as nações aos fluxos do mercado
internacional. O presidente Rodrigues Alves (1902-1906) impôs uma
série de reformas na zona portuária carioca, que ocorreriam em parale-
lo às obras executadas pelo prefeito Pereira Passos, cargo de indicação
do Executivo Federal, para a área central da cidade, visando não apenas
maior dinamismo econômico, mas também o seu saneamento, e que
ainda guardava, nessa época, traços do período colonial. Em 1903, um
editorial da revista semanal O Malho, sobre a reforma da área e a cons-
trução de um novo porto, apontava o quanto a cidade do Rio de Janeiro
estava “atrasada” e “defasada”:

O Rio de Janeiro ficou, durante quatro séculos, sem porto. O processo


de desembarque e embarque não se alterou nesses quatrocentos anos
de inércia e vergonha. E por isso que, a todos nós, ainda nos parecem
um sonho essa construção do porto e essa radiante promessa de longas
avenidas e de amplíssimos cais, saneando e aformoseando a cidade.2

Também o Jornal do Brasil saúda o que seria o novo porto, numa


matéria apresentada no dia da inauguração das obras, em 29 de março
de 1904, aludindo que a obra iria superar um atraso crônico que atra-
vanca o progresso do Brasil:

2 O Malho, n. 39, 13 jun. 1903, p. 4. Optamos por utilizar a ortografia atual em todos os
textos extraídos de fontes primárias.
234 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

O notável empreendimento que hoje, entre música e flores, vai ser inau-
gurado, é o resultado de múltiplos esforços que, de há 50 anos a esta
parte, procuram resolver um dos grandes problemas que afetam o de-
senvolvimento material do país.3

Ainda segundo essa reportagem, o “atraso” apontado se refere a um


projeto, datado de 1853, da construção de um novo porto que foi apre-
sentado ao governo brasileiro por um engenheiro inglês de nome Char-
les Noate, e acabou não saindo do papel. Assim como esse, vários ou-
tros projetos ao longo das décadas seguintes (projetos e/ou decretos em
1873, 1879, 1890 e 1900) não passaram de meros anúncios ou normas
sem aplicações efetivas.
A partir de 1902, com Rodrigues Alves na presidência e a consolida-
ção da oligarquia cafeicultora, a modernização do porto se vinculava ao
projeto de consolidação da República, sob os auspícios da civilização e a
superação do passado colonial na capital federal, sendo o Rio de Janeiro
compreendido como vitrine desse projeto republicano. Retornando à
reportagem do Jornal do Brasil no dia da inauguração das obras, nela é
dito que “da boa ou má reputação da cidade do Rio de Janeiro depende
a de todo o Brasil, refletindo-se sobre o conjunto tudo que, de bom e de
mau, o estrangeiro que aqui aporte possa pensar desta capital”.4
Um porto moderno, além de facilitar o fluxo de mercadorias, pos-
sibilitando maiores rendas à oligarquia no poder, tinha também como
consequência aumento da renda da União pela arrecadação de tributos
sobre a importação, uma das principais fontes de recursos do governo
federal (Azevedo, 2016).
Entre o anúncio das obras e seu início, a expectativa se misturava à
descrença. A revista O Malho, por exemplo, entre abril e início de ju-
nho de 1903, em diversas ocasiões criticou, de forma sempre mordaz e
bem-humorada, a morosidade do início das obras em diversas charges,
notas e crônicas. Enfim, no dia 29 de março de 1904, as obras se iniciam.
Além da retificação do cais e aumento da profundidade do porto para
atracação de navios maiores, o novo porto previa a construção de linhas

3 “Obras do Porto”, Jornal do Brasil, 29 mar. 1904.


4 “Obras do Porto”, Jornal do Brasil, 29 mar. 1904.
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 235

férreas, com guindastes “tendo aparelhado o serviço com os mais apare-


lhados e modernos ‘machinismos’”.5
Esse novo e retilíneo porto teria uma longa avenida paralela aos seus
3.500 metros de extensão, a Avenida Rodrigues Alves. Nas duas extre-
midades, modernas e largas avenidas com a função tanto de facilitar o
trânsito das mercadorias quanto sanear e embelezar a cidade no sentido
de tornar a capital da República uma vitrine do ideal republicano de
modernização e civilização: “Quem conhece hoje a zona da Gamboa,
Praia Formosa e Sacco do Alferes, ficará maravilhado com as transfor-
mações que vão sofrer aquelas ruas estreitas e imundas com esse melho-
ramento!”.6
Para a comissão que elaborou as obras, além da circulação de mer-
cadorias, uma das novas avenidas, saindo do Largo da Prainha e termi-
nando na praia de Santa Luzia, traria salubridade à cidade, pelo corre-
dor de ar vindo da entrada da baía. A salubridade era um componente
importante dessa reforma. O Rio Imperial era tido como a cidade das
epidemias, tal como a febre amarela, que vitimou expressivos contin-
gentes da população ao longo do século XIX, e dotava a cidade de má
fama aos olhos do mundo (Chalhoub, 1996).
Assim, além das melhorias materiais imediatas, a médio prazo as
obras conseguiam sanear o ambiente da cidade pela circulação de ar
com a abertura das vias e pela derrubada de antigos cortiços, enquan-
to, simbolicamente também saneava a imagem da capital federal e seu
principal porto de entrada de imigrantes, parte fundamental do projeto
das elites republicanas de construção de uma nação civilizada.
Dialogando com a bibliografia, Azevedo (2016) fez um importante
debate sobre o cotidiano das ruas do Rio de Janeiro no século XIX, des-
crevendo que mais de um terço dos cidadãos livres e pobres não tinham
profissão conhecida, ou seja, viviam na “economia da salvação diária”
(p. 195). Tratava-se de uma disputa diária por pagamentos nos trabalhos
que surgissem, o que tornava as ruas da cidade um espaço densamente
ocupado e disputado entre pobres livres, escravos de ganho e cativos.
Sobre esses últimos, cabe destacar a lógica de uma sociedade erguida

5 “Obras do Porto”, Jornal do Brasil, 29 mar. 1904.


6 O Malho, n. 39, 13 jun. 1903, p. 13.
236 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

sobre a mão de obra escrava, que legava a esses braços as tarefas bási-
cas de construção e manutenção da cidade e de suas edificações, como
por exemplo, tanto no abastecimento de água das residências quanto
no despejo de esgoto, com escravizados sendo parte fundamental da
infraestrutura urbana e elementos constantes da paisagem.
A estrutura socioeconômica e a lógica urbana da cidade demanda-
vam que os elementos na base da pirâmide social convivessem no mes-
mo espaço imediato das classes mais altas. E essas, ainda que olhassem
para aqueles com desprezo, dependiam do seu trabalho para as tarefas
mais comezinhas. Assim, ao mesmo tempo que havia uma necessidade
da presença próxima de pobres e negros, havia o permanente medo e
tensão entre as elites, e que imbuía as autoridades do sentido de perma-
nente controle e vigilância sobre eles.
Neste sentido, é fundamental entender o pensamento que guiava
as ações das autoridades da República e das elites que a compunham.
Ideias como o higienismo e a eugenia se estruturaram na segunda me-
tade do século XIX não apenas como um modo de perceber a popula-
ção pobre, mas como pilares das políticas públicas durante as décadas
subsequentes direcionadas ao território urbano, como no combate aos
cortiços e mesmo as sucessivas reformas urbanas na primeira metade
do século XX na área central da cidade. Ao imaginário das elites que
reservava a negros e pobres uma visão como elementos incômodos da
paisagem urbana, e que necessitavam ser superados, juntava-se o aspec-
to econômico que passou a vigorar nas políticas urbanas e tornou-se um
fator determinante na própria expansão urbana do Rio de Janeiro, traço
que permanece ainda hoje.
Essa grande reforma urbana, se estendendo para o conjunto da cida-
de particularmente no que viria a se tornar o atual bairro do Centro, re-
fletia o pensamento desses homens de elite na economia e na condução
das políticas urbanas e nos modelos de cidade, e consequentemente de
sociedade, que se desejava alcançar.
Em 1910, as obras do novo porto finalmente são concluídas. O porto
moderno era uma regeneração da capital e do país, que enfim saía da
era colonial e adentrava a era moderna, de máquinas e dinâmico flu-
xo de mercadorias. Cinco anos antes, a Avenida Central, hoje Avenida
Rio Branco, havia sido inaugurada, pensada pelas autoridades da época
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 237

como uma obra de infraestrutura complementar às obras do porto. Ain-


da que o projeto de uma via nesses moldes datasse de fins da década de
1870, ela acabou se tornando o símbolo da modernização burguesa da
cidade, em sua arquitetura e urbanismo com construções modernas e
elegantes, com lojas de roupa, cafés, e ainda, alguns novos edifícios que
eram verdadeiros palácios destinados à cultura – como o Teatro Muni-
cipal, a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional de Belas Artes. Assim,
as obras do porto direcionaram a cidade e a economia à modernidade
burguesa, nas noções de progresso e civilização que guiaram a própria
gestão urbana e sua expansão em direção à vertente sul como área mais
privilegiada.
No entanto, nas imediações do porto, a população pobre e negra do
Rio de Janeiro assistia as obras sem ver chegar o “progresso” a suas vi-
das. A exceção era quando esse “progresso” era usado contra eles, der-
rubando suas moradias ou tornando-as um estorvo à cidade civilizada.
Na área mais imediata ao porto, no entanto, a situação pouco havia mu-
dado quanto às construções e moradores. Os bairros de Santo Cristo,
Gamboa e Saúde permaneciam como moradias de pessoas negras e po-
bres, e por isso, consideradas perigosas. Também localizado nessa área,
a recém surgida Favella (na grafia da época) indicava a permanência
de uma cidade que apenas contemplava as sucessivas obras de moder-
nização. Na visão das autoridades, o Morro da Favela, atual Morro da
Providência, tornou-se lugar paradigmático desse Rio de Janeiro que
recusava a modernidade e a civilização. É o que mostra a revista Careta
numa reportagem de 1909, intitulada “O Rio Desconhecido - A favella”:

Para nós, cariocas de todos os bairros, o Rio de Janeiro é o nosso bair-


ro, a Avenida Central, Botafogo e os pontos pitorescos celebrados pela
admiração embasbacada dos estrangeiros. Não suspeitamos que dentro
do nosso bairro [...] uma cidadezinha pobre e exótica floresce ou ve-
geta. [...] No coração da cidade, mesmo nas proximidades da Avenida
Central, existe esse estranho bairro de Santo Antônio, há pouco tempo
descoberto com espanto e vergonha do Rio modernizado. A Favella é,
dos bairros desconhecidos, o mais falado graças às suas ocorrências que
desenroladas ali com frequência fazem o seu nome figurar nos registros
policiais. As suas casinholas de tábuas, de pedaços de caixão, de latas
238 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

e folhas de zinco dominam um soberbo panorama em meio do qual


maravilhosamente avultam [...] a parte da cidade ornada pelas obras do
porto e correspondentes avenidas.

A Favela tornou-se lugar tão paradigmático desse Rio de Janeiro que


recusava a modernidade e civilização (na visão das autoridades), que
acabou tornando-se o termo para designar outros locais da cidade com
características semelhantes (Mattos, 2004), associando-os à presença
negra no espaço urbano (Brum e Gomes, no prelo).
Sintomático é que no decorrer das obras, a Revolta da Vacina, mo-
tim urbano que teve como catalisador a aplicação obrigatória da vacina
contra a varíola (Sevcenko, 2010), tenha tido seu epicentro nessa área,
especificamente no bairro da Saúde, descrito como o Porto Arthur da
revolta. Numa crônica intitulada “Rua do Ouvidor”, publicada no pe-
riódico quinzenal O Rio Nu, nos dias seguintes à Revolta da Vacina, em
1904, assinada sob o pseudônimo de “Vagabundo”, o autor narra sua
fictícia ida ao bairro da Saúde em meio aos tumultos: 

_ Não preciso de batalhões, seu Ministro. Com dois sopapos liquido o


forte Porto Arthur [....]. 
Sem mais pomada fui subindo o morro e no melhor da festa, sem cabra
algum esperar, dei um pulo dentro da trincheira. Um berro ecoou por
todos os lados. 
_ Não grita, arraia miúda!
_ Pelo amor de Deus, seu Doutor.
_ Doutor é pau na testa.
_ Ai! Minha Nossa Senhora!
_ Não geme negrada!

A modernização da capital da República para atingir o progresso e a


civilização se deu então na desconsideração de grande parte da popula-
ção como beneficiária de obras públicas que permitisse um mínimo de
dignidade, como habitação e serviços urbanos. Concluídas as obras do
porto e das novas vias, a Avenida Rio Branco entre elas, à população da
Gamboa e da Saúde restou a fama de reduto da malandragem.
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 239

É o que também podemos ver na crônica “A Saúde de outros tem-


pos” assinada por Tito André na revista O Malho, publicada em julho
de 1928: “A Saúde já foi em tempos passados o quartel-general da nossa
malandragem”. Assim, ainda em junho de 1906, o Correio da Manhã
noticiava um tumulto ocorrido na área, rememorando aos da Revolta
da Vacina: “O certo é que há pontos da Saúde em que a polícia não entra.
Verdadeiros redutos inexpugnáveis”.
Também nesse sentido, retomamos a crônica da revista Careta de
1909, apresentada pouco acima, como a descrição do Morro da Favela
que associava seus moradores aos participantes da Revolta da Vacina,
dentre eles, o Prata Preta, negro capoeirista que é considerado um dos
protagonistas da revolta:

Essas casinholas abrigam numerosas famílias, operários, lavadeiras e até


facínoras, que são entre os seus habitantes, os que mais contribuem para
sua escassa nomeada. Da Favela e bairros congêneres têm saído esses
famosos e terríveis Prata Preta, Pula Ventana, Chico Pé de Vento.

Prata Preta entrou para crônica como símbolo de valentia, mas


também de malandragem e tornou-se uma espécie de arquétipo dos
moradores da área: negro, malandro, resiliente. Ao longo das décadas
seguintes, a menção ao Prata Preta será constantemente usada para se
referir à “malandragem” dos moradores da Gamboa, Saúde e Favela,
tornando-se uma metonímia para descrição desses. Reminiscências de
um Rio de Janeiro do passado que, se não pôde ser eliminado, passou a
ser ignorado.

Os antecedentes do projeto Porto Maravilha

Ao longo das décadas seguintes, a área central da cidade foi objeto de


inúmeras intervenções, como o arrasamento do Morro do Castelo, no
início dos anos 1920 (Motta, 1992), a abertura da Avenida Presidente
Vargas com a destruição da Praça Onze (Gonçalves e Bautès, 2019) nos
anos 1940 e o arrasamento do Morro de Santo Antônio, já nos anos 1950
(Amoroso, 2009). Tais reformas arrasaram grande parte dos espaços
240 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

populares da área central e afetaram as condições materiais de vida de


muitas famílias. Cada vez mais, este setor da cidade foi sendo restringi-
do à sua função de negócios e sofreu inclusive um profundo apagamen-
to de memória, que vinculava parte dessa área às práticas populares e
afrodescendentes. A noção de “Pequena África”, que se estendia da zona
portuária até a Cidade Nova, tendo como seu polo central a Praça Onze,
foi sendo apagada (Gonçalves e Bautès, 2019).
No entanto, tais representações persistiam na zona portuária junto
com seus moradores, que ali permaneceram.
Alguns projetos de habitação foram empreendidos na zona portuá-
ria no decorrer do século passado, como, por exemplo, a Vila Operária
da Gamboa, projetada pelos arquitetos Lúcio Costa e Gregori Warchav-
chik em 1933; o Conjunto Habitacional dos Marítimos, projetado pelo
arquiteto Firmino Fernandes Saldanha e construído em 1955; ou, mais
recentemente, o condomínio Moradas da Saúde, um projeto do arqui-
teto e urbanista grego Demetre Anastassakis, cuja primeira fase foi en-
tregue em 1996.
Assim, ao contrário do resto da área central da cidade, a zona por-
tuária ainda experimentou efêmeras políticas de estímulo à moradia.
Reminiscências de um Rio de Janeiro do passado que, se não pôde ser
eliminado, passou a ser ignorado até que projetos mais recentes, como
veremos a seguir, voltaram seus olhares novamente para a região.
O projeto Porto Maravilha significou o retorno dos projetos de refor-
mas urbanas para a área. Ele não pode, no entanto, ser dissociado dos
inúmeros projetos públicos voltados para a revitalização da zona central
da cidade. A forte expansão e difusão da malha urbana iniciada a partir
da década de 1960 e consolidada nas décadas subsequentes revelaram
rapidamente os seus limites. No caso do Rio de Janeiro, a expansão da
cidade para a Zona Oeste e, em especial, no que diz respeito aos grupos
mais favorecidos, para o bairro da Barra da Tijuca, consolidou uma ci-
dade rarefeita com inúmeras deficiências em termos de transporte e de
alcance das redes de serviços públicos coletivos. Observa-se, desde en-
tão, uma reflexão sobre novas formas de se planejar a cidade com intuito
de valorizar o potencial residencial de seus bairros centrais e adjacên-
cias. Apesar da localização privilegiada, essas áreas estavam degradadas
e sofriam um processo de esvaziamento populacional.
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 241

A zona portuária, e especialmente o cais da Gamboa, passou a apre-


sentar sinais concretos de decadência a partir dos anos 1970 (Carlos,
2010, p. 39), estimulando o surgimento de propostas e projetos de revi-
talização. Destaca-se, inicialmente, o projeto denominado Riopart, ela-
borado pela Associação Comercial do Rio de Janeiro no início dos anos
1980. Segundo Carlos (2010, p. 39), essa proposta consistia na renova-
ção dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, bem como da área
do cais, por intermédio da brutal verticalização das tipologias edilícias.
A proposta pressupunha um aumento exponencial do gabarito da
área e a substituição das atividades portuárias por outras consideradas
mais rentáveis. A falta de diálogo com a população ficou materializada
pela resistência capitaneada pela Associação de Moradores do Bairro
da Saúde (AMAS), que procurou reforçar a relevância cultural e a com-
plexidade social do bairro, o que condicionava o sucesso de qualquer
intervenção pública a uma efetiva participação popular.
Nessa mesma época, as iniciativas de retorno ao centro se reforçam
com a instituição do projeto Corredor Cultural, lançado por meio da
Lei municipal 506/1984. Mesmo sem atingir diretamente a zona por-
tuária, ele reacendeu a importância de se refletir sobre a revitalização
do Centro e suas adjacências. O projeto tinha como objetivo proteger o
patrimônio arquitetônico e revitalizar quatro áreas no centro histórico
da cidade: Lapa-Cinelândia, Praça XV, Saara e o Largo de São Francis-
co. Segundo Compans (2004, p. 50), a premissa básica do projeto era a
de que a dinâmica da renovação urbana deveria respeitar as referências
históricas, sociais e culturais da comunidade de modo a preservar a me-
mória da cidade. Trata-se, segundo Moreira (2004, p. 90), de um marco
do processo de retorno ao centro, mantendo certa continuidade até os
dias atuais.
Essa iniciativa de conservação e renovação da área chegou também
à zona portuária por meio do projeto Sagas (abreviação de Saúde, Gam-
boa e Santo Cristo), que procurou inventariar o patrimônio cultural ar-
quitetônico da área com vistas à ampliação do rol de bens protegidos
na região (Carlos, 2010, p. 41). A área foi, assim, gravada como Área de
Proteção do Ambiente Cultural (APAC) e a prefeitura estabeleceu, por
meio da Lei municipal 1.139/1987, uma série de isenções fiscais e de
taxas de obras para os proprietários com o intuito de estimular a con-
242 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

servação dos imóveis e o cumprimento das diretrizes do projeto (Com-


pans, 2004, p. 51). No entanto, tais iniciativas não conseguiram reverter
o processo de esvaziamento econômico desses bairros.
Foi elaborado, ainda, entre 1987 e 1996, conforme descreve Morei-
ra (2004, p. 97), o Plano de Desenvolvimento Portuário, encomendado
pelo Ministério dos Transportes e pela Portobrás – Empresa de Portos
do Brasil S.A. em áreas de propriedade da Companhia Docas do Rio de
Janeiro. O objetivo, segundo a autora, era expandir e revitalizar o por-
to, com a redução de custos relativos ao transporte de mercadorias. O
Plano foi desdobrado, em 1989, no Plano de Desenvolvimento Urbano
da Retaguarda do Porto do Rio de Janeiro (bairros de Gamboa, Saúde e
Santo Cristo). O projeto previa adequar a área para as novas exigências
das atividades portuárias e, ao mesmo tempo, destinar para novos usos
as construções não mais aproveitadas pelo porto. É instituído, ainda,
em 1992, o Projeto de Estruturação Urbana, que propõe o tombamento
de prédios, intervenções viárias, alterações do uso do solo e o incentivo
para o uso habitacional (Moreira, 2004, p. 99).
Na década de 1990, a prefeitura reforça as iniciativas de conserva-
ção da zona portuária com a constituição da Área Especial de Interesse
Urbanístico, por meio do Decreto municipal 11.860/1992. Apesar do
esforço de se valorizar o patrimônio local, os sinais de esvaziamento
econômico eram notórios. Nesse contexto de crise, a prefeitura decide
criar, em 1993, no bairro da Cidade Nova, uma zona de negócios dotada
de infraestrutura de telecomunicações.
O projeto do Teleporto, segundo Compans (2004, p. 53), previa a
construção de 29 “edifícios inteligentes” interligados por anéis de fibra
ótica, que permitiriam o acesso instantâneo às redes de telecomunica-
ções e via satélite. O objetivo era transformar o Rio de Janeiro em uma
referência para o setor terciário avançado, a partir da recuperação ur-
banística de uma área ainda pouco explorada e extremamente próxima
do centro histórico e da zona portuária. Apesar dos investimentos mu-
nicipais no bairro, o projeto não foi indutor de investimentos privados
e a área só foi conhecer um verdadeiro boom de empreendimentos bem
mais tarde.
As iniciativas de renovação da área se voltam, em 1994, para a criação
do Projeto Cidade Oceânica do Rio de Janeiro – Centro Internacional
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 243

da Água e do Mar. O projeto, segundo Soares e Moreira (2007, p. 111),


propunha a criação de um polo de animação cultural e de intercâmbios
no porto, com a construção de centros comerciais, de serviço e de con-
venções, mas essas propostas, mais uma vez, não saíram do papel. No
que tange à questão habitacional, foi desenvolvido o projeto municipal
Oportunidades Habitacionais, que visava estimular o desenvolvimento
de habitação de interesse social na área e que resultou na inauguração
do mencionado condomínio Moradas da Saúde, iniciado em 1996 e fi-
nalmente inaugurado em 2001, com financiamento da Caixa Econômi-
ca Federal (Soares e Moreira, 2007, p. 111). Trata-se, segundo Moreira
(2004, p. 100), de uma das únicas realizações imobiliárias no campo
habitacional na área central da cidade nas últimas décadas.
Nesse mesmo ano, surge o programa Novas Alternativas da Secre-
taria Municipal de Habitação com o objetivo de recuperar e aproveitar
edifícios abandonados e subaproveitados, com o intuito de construir
moradias sociais (Soares e Moreira, 2007, p. 112). Em 1998, começou a
ser desenvolvido também o Programa de Recuperação Orientada (Pro-
RIO) para o Morro da Conceição, visando à recuperação do patrimônio
histórico e o aproveitamento turístico da área. Nessa mesma década,
iniciam-se os debates sobre o aproveitamento do Píer Mauá com a pro-
posta municipal, amplamente criticada, de ali instalar uma filial do Mu-
seu Guggenheim.
Por fim, mais recentemente, em 2001, surge o Plano de Recuperação
e Revitalização da Região Portuária do Rio de Janeiro, o projeto Porto
do Rio. Segundo Moreira (2004, p. 105), esse projeto pretendia valorizar
o patrimônio arquitetônico, tratando a área como zona estratégica da
cidade e, para tal, seriam propostos mecanismos de gestão público-pri-
vada. Compans (2004, p. 55) explica que a participação do setor privado
nesse projeto não se restringiria ao arrendamento das áreas, mas tam-
bém se manifestaria pela formação do consórcio RIOPORTO, consti-
tuído por instituições financeiras, órgãos governamentais, Companhia
Docas do Rio de Janeiro e Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), pro-
prietários de terrenos, empresas imobiliárias e comunidade, com vis-
tas a coordenar a implementação do programa de revitalização. Seria
composto um fundo imobiliário, cujos recursos financiariam as obras
de infraestrutura e seriam obtidos pela transformação do patrimônio
244 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

imobiliário em cotas subscritas ao supracitado fundo. Segundo Com-


pans (2004, p. 55), os acionistas do fundo constituiriam a joint ventu-
re Gamboa Desenvolvimento, com o objetivo de planejar e realizar os
investimentos e de operar compra, venda, aluguel e arrendamento dos
lotes, glebas e unidades habitacionais e comerciais resultantes do proje-
to de urbanização.
As premissas básicas desse projeto eram, segundo Soares e Moreira
(2007, p. 112): i), tratar a região como um espaço estratégico de de-
senvolvimento; ii) atrair novos empreendimentos privados (serviços,
comércio, lazer cultural, e habitação para classe média); iii) romper o
caráter de isolamento dos bairros portuários (melhorias nos sistemas de
locomoção); iv) reintegrar a área à paisagem e ao uso da Baía de Gua-
nabara; v) valorizar o patrimônio arquitetônico e urbano local; vi) criar
uma política para o reaproveitamento de imóveis de valor histórico para
fins habitacionais, comerciais ou de serviços; e vii) instituir um órgão
gestor para o desenvolvimento da região.
Esse longo percurso sobre os recentes projetos para a zona portuária
nos remete à consolidação de algumas ideias recorrentes para a área.
Em primeiro lugar, observamos um conflito claro entre as atividades
portuárias e as novas atividades que se busca consolidar. Enquanto as
atividades portuárias estavam em declínio, esse conflito se manifestava,
sobretudo pelo fato da Companhia Docas do Rio de Janeiro, uma das
maiores possuidoras de bens na região, ser pouco colaborativa com ini-
ciativas que desvirtuassem a vocação original da zona.
No entanto, esse conflito se torna ainda mais acirrado pelo fato que
as atividades portuárias estão em plena expansão nos últimos anos, in-
clusive com projetos de alargamento do cais do Caju e de aprofunda-
mento do calado do porto (Projeto Porto do Rio Século XXI). A re-
flexão inicial do projeto Porto Maravilha sobre a nova malha viária da
zona portuária não trouxe soluções para o estrangulamento de acesso
de cargas ao porto do Rio de Janeiro. Por outro lado, há um esforço
dos distintos projetos de estimular a construção de habitação popular.
Mesmo com certo consenso que a zona portuária não poderia repetir os
erros observados nas intervenções no centro da cidade, o projeto Porto
Maravilha não abordou inicialmente a questão da moradia e, inclusive,
ocupações sem-teto da área foram removidas, e o projeto da prefeitura
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 245

para o Morro da Providência previa a remoção de grande parte dos mo-


radores (Gonçalves, 2013). Por fim, outro aspecto importante, que será
amplamente evocado, como veremos a seguir, pelo atual projeto Porto
Maravilha, são as formas de financiamento e gestão da área, predomi-
nando paulatinamente iniciativas voltadas para a formação de parcerias
público-privadas.

A implementação do Porto Maravilha

O bilionário projeto Porto Maravilha é uma Operação Urbana Consor-


ciada, que visa promover a requalificação urbana e o desenvolvimento
social, ambiental e econômico da zona portuária e adjacências. A gestão
de todo o processo é realizada pela Companhia de Desenvolvimento
Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), empresa de
economia mista, controlada pela prefeitura. As obras foram financia-
das pela venda dos Certificados de Potencial Adicional de Construção
(CEPACs).
O projeto realizou obras urbanísticas e viárias importantes, mas
pouco dialogou com as atividades propriamente portuárias. Conforme
sustenta Lobo (2011), o Estudo de Impacto de Vizinhança do projeto
Porto Maravilha, além de “demonizar a atividade portuária na cidade”,
não leva em conta que esta atividade é fonte de uma carga tributária
substancial. O Estudo de Impacto de Vizinhança também não pondera
que, em 2005, 46% dos cerca de 5.445 trabalhadores portuários residiam
na própria zona portuária, sendo que os demais 54% residiam, sobretu-
do, na Baixada Fluminense e na Zona Oeste.
No contexto de preparação da cidade para os grandes eventos, o
Decreto municipal 30.379/2009 estabeleceu que a prefeitura “envidará
todos os esforços necessários no sentido de possibilitar a utilização de
bens pertencentes à administração pública municipal, ainda que ocu-
pados por terceiros, indispensáveis à realização dos Jogos Rio 2016”. No
entanto, segundo o dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Popula-
res da Copa (2012, p. 13), esse decreto descumpriu princípios evocados
pela Lei federal 11.124/2005, que determinava a “utilização prioritária
de terrenos de propriedade do Poder Público para a implantação de
246 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

projetos habitacionais de interesse social”, o que não aconteceu na zona


portuária. Ainda segundo o dossiê: “Assim, vê-se o poder público mobi-
lizado para ‘limpar’ terras públicas de habitação popular e entregar estas
áreas à especulação imobiliária, em nome da viabilização dos eventos”.
Como sustenta Raquel Rolnik, o projeto Porto Maravilha se configurou
como uma operação imobiliária executada por empresas privadas, mas
financiada, de forma engenhosa, com recursos e terrenos públicos.7
Vale considerar ainda que o projeto Porto Maravilha teria como um
dos seus fundamentos o estímulo ao adensamento populacional numa
área que, como vimos, foi historicamente desprivilegiada em políticas
habitacionais consistentes e efetivas. Assim, o projeto previa o aumento
populacional na região, passando de 22 mil para 100 mil habitantes em
10 anos. O artigo 29 da Lei complementar 101/2009 prevê que o poder
público, em conjunto com os órgãos municipais, estaduais e federais
competentes, desenvolva um programa que garanta o atendimento à
população de baixa renda atingida pelas intervenções urbanísticas na
zona portuária. No entanto, as tentativas de atrair investimentos imobi-
liários residenciais não funcionaram inicialmente.
A própria prefeitura iniciou a construção de um conjunto de pré-
dios na Rua Nabuco de Freitas para reassentar moradores do Morro da
Providência, assim como o condomínio Porto Olímpico, conjunto de
prédios que deveriam abrigar a vila dos árbitros e da mídia durante os
Jogos Rio 2016, e que posteriormente seriam vendidos com prioridade
ao funcionalismo público municipal. Ambos os projetos foram abando-
nados. Sendo que no segundo caso, a prefeitura e o Comitê Olímpico
Internacional optaram por integrar a vila dos árbitros e da mídia no
polo olímpico de Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade, área mais pri-
vilegiada em investimentos e, na época, em franca expansão imobiliária.
Na essência, indo no sentido contrário ao projeto de revitalização da
área com projetos habitacionais.
No entorno imediato, vimos que no período inicial das obras do
projeto Porto Maravilha, a área central também passou inicialmente
por uma forte valorização imobiliária. Segundo reportagem do Jornal

7 “Porto Maravilha: custos públicos e benefícios privados?”, Blog da Raquel Rolnik, 13


jun. 2011. Disponível em: https://bit.ly/3GrCWCU. Acesso em: 01 out. 2021.
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 247

O Dia, de 14 de março de 2013, somente nos dois primeiros meses


de 2013, os valores dos imóveis comerciais cresceram 20% em mé-
dia, o dobro do registrado no restante da cidade. Eduardo Pompéia,
engenheiro da Bolsa de Imóveis do Rio, concluiu sobre a valorização
da área: “É isso que dá dar confiança aos fundos de investimento”.8 O
Estudo de Impacto de Vizinhança ignora o fato inegável, de acordo
com Lobo (2011), de que a valorização imobiliária prevista pelo proje-
to geraria movimentos especulativos. Segundo reportagem do Jornal
Destak, o processo de gentrificação se acentuou na região, fazendo que
a zona portuária, no primeiro trimestre de 2013, ocupasse o terceiro
lugar dentre as áreas mais caras da cidade para imóveis corporativos,
ultrapassando outras tradicionais localidades como Centro, Cidade
Nova e Barra da Tijuca.9
No entanto, mesmo antes dos Jogos Olímpicos Rio 2016, a operação
urbana do Porto Maravilha já mostrava seus limites. A paulatina falta
de comercialização dos CEPACs trouxe problemas de liquidez do fun-
do e dificuldade de repasses de recursos para a Concessionária Porto
Novo. O interesse do mercado ficou abaixo do esperado, e, já em 2015,
foi preciso mais um aporte do Fundo de Garantia do Tempo de Servi-
ço (FGTS) para bancar a parceria público-privada, no valor de R$1,5
bilhão. Para esse novo aporte, a fim de regulamentar os investimentos
do FGTS em operações urbanas, o Ministério das Cidades foi acionado
(PCRJ, 2016).
Em 17 de dezembro de 2014, por meio da Instrução Normativa (IN-
33) do Ministério das Cidades, tornou-se obrigatória a elaboração de
um Plano de Habitação de Interesse Social (PHIS) para as Operações
Urbanas Consorciadas, que utilizassem aportes do FGTS.
Isso permitiu sair de uma formulação vaga de incentivos para a ha-
bitação social na zona para a constituição de um plano de habitação de
interesse social. O plano trazia como metas produzir pelo menos 10.000
unidades de habitação de interesse social, ofertar no mínimo 1.500 imó-
veis residenciais para aluguel social e 250 imóveis comerciais para alu-
guel para negócios tradicionais e populares a preços subsidiados, sub-

8 Jornal O Dia, 14 mar. 2013.


9 Jornal Destak, 21 mai. 2013.
248 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

sidiar a reforma, ampliação e recuperação de aproximadamente 2.500


unidades habitacionais de famílias de baixa renda, assim como regula-
mentar, elaborar e implementar o Plano de Urbanização das AEIS dos
Morros da Providência, São Diogo, Pedra Lisa e Moreira Pinto (PCRJ,
2016).
Para Santos Jr. e colaboradores (2015), do ponto de vista das diretri-
zes do Estatuto da Cidade e da promoção do direito à moradia, o plano
apresentava avanços, priorizando a população diretamente afetada pela
operação urbana consorciada, concedendo mais subsídios e possibili-
dades de financiamento para a produção de unidades destinadas para o
programa de locação social.
Com a persistência da crise, o projeto não foi aplicado e, a partir
do segundo trimestre de 2017, a CDURP teve que assumir serviços da
Concessionária Porto Novo, que não eram de sua competência (Felix et
al., 2018). A pandemia reforçou a crise e esvaziou o centro da cidade,
mas paradoxalmente trouxe a questão da moradia como possível solu-
ção para a retomada das atividades imobiliárias na região. Isso suscitou
uma nova reflexão sobre a área central, que resultou no projeto Reviver
Centro, que visa estimular a ocupação residencial com oferta de subsí-
dios e flexibilizações urbanísticas no local e em bairros nobres da cidade
para as construtoras que ali investissem.
O projeto Reviver Centro traz reflexões interessantes, como a loca-
ção social com público-alvo de estudantes universitários, estudantes
cotistas e servidores públicos, um programa de Moradia Assistida, que
visa a atender com moradia temporária pessoas em vulnerabilidade so-
cial, assim como a implementação do Parcelamento, Edificação ou Uti-
lização Compulsória para estimular o uso de imóveis na região central.
No entanto, a delimitação da área de abrangência do projeto se limita
aos bairros Centro e Lapa, excluindo justamente a zona portuária e, por
consequência, não dialogando com o mencionado Plano de Habitação
de Interesse Social da Região Portuária. Mesmo sem a incidência desse
projeto, observa-se um boom de novos condomínios na zona portuária,
voltados mais para a classe média, e sem uma oferta concreta de mora-
dia de interesse social.
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 249

Conclusão

Os dois principais momentos abordados no artigo, embora separados


por mais de um século, demonstram significativas semelhanças na for-
ma do estado atuar e na condução do território urbano e do lugar dos
pobres nele.
No começo do século XX, a ideia de modernização do porto visava
transformar o Rio de Janeiro, capital da República, na vitrine do pro-
gresso e do projeto civilizatório republicano, o que incluía tornar a cida-
de atraente aos imigrantes europeus que serviriam para embranquecer
a sociedade brasileira. Se, por um lado, as elites visavam ignorar a pre-
sença de negros e pobres no espaço urbano, por outro demandavam sua
mão de obra, criando uma permanente tensão entre o sonho eugênico
de se livrar deles e a necessidade de seu trabalho.
Os poucos projetos habitacionais criados nesse hiato, por sua efe-
meridade no tempo e no espaço, demonstram a falta de uma política
habitacional consistente em consonância com um planejamento urbano
adequado e democrático à área. A permanência da população pobre na
região, e isso demonstra a outra similaridade entre os dois momentos,
se deu à margem das políticas públicas e de projetos de desenvolvimen-
to econômico, local e nacional, que contemplassem a população pobre,
inclusive a moradora da área, como seus beneficiários.
Nos dois períodos, as apostas econômicas não se efetivaram. Embora
a adaptação do porto aos novos tempos de grandes navios e fluxos de
mercadorias mais dinâmicos fosse de fato uma necessidade, isso não
impediu que o Rio de Janeiro perdesse, ao longo desse período de um
século, a primazia no fluxo de mercadorias. Em 2020, o porto do Rio
de Janeiro ocupava o décimo lugar como mais movimentado do país.10
Na preparação para os Jogos Olímpicos de 2016, a reforma da zona
portuária seria parte de uma remodelação urbana do Rio de Janeiro na
sua transformação em “cidade global” ou “cidade de eventos”, criando
oportunidades de emprego e desenvolvimento econômico a partir dos
legados que essa remodelação propiciaria, de modo que, diferente do

10 “Portos Brasileiros: quais os principais”, FazComex, 09 dez. 2021. Disponível em:


https://bit.ly/3EGPaY3. Acesso em: 08 out. 2021.
250 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

século anterior, a projeção do Rio de Janeiro a essa categoria necessitava


de um consenso da sociedade, incluindo os negros e pobres, que com-
preendesse que alguns sacrifícios seriam necessários para o bem coleti-
vo. Não à toa, no dossiê de candidatura Rio 2016 ao Comitê Olímpico
Internacional, a palavra “oportunidade” aparece 27 vezes, e “legado”
nada menos que 87 vezes.
Os legados e as oportunidades não se efetivaram. Novamente, os pla-
nos de remodelação urbana não obtiveram êxito. E dessa vez também,
embora a população pobre moradora da área fosse beneficiária no plano
discursivo, o que se viu na prática foi uma repetição do que houve um
século antes: a desconsideração de direitos e inexistência de políticas
efetivas que garantissem o acesso às oportunidades e ao legado que os
megaeventos trariam, agravado ao fato de que a área não recebeu ao
longo das décadas anteriores a devida atenção do estado em políticas
urbanas. E, a despeito disso, milhares de pessoas continuaram a residir
na região, como no Morro da Providência e nas ocupações de prédios e
galpões abandonados, muitos deles públicos.
Foi exatamente parte desses moradores que historicamente ocu-
pavam a área que novamente foram pensados como um incômodo e
obstáculo ao progresso da região. Algumas ocupações como a Macha-
do de Assis e o Quilombo das Guerreiras foram despejadas em 2012 e
2014, respectivamente. Quase um terço dos moradores do Morro da
Providência foi ameaçado de remoção, o que acabou não ocorrendo
por conta da mobilização da comunidade na Justiça e sua articula-
ção com outros setores da sociedade, como movimentos sociais, par-
lamentares, Defensoria Pública, pesquisadores, técnicos do Estado,
entre outros.
Sem embargo, seria apressado dar o recente processo de remodela-
ção urbana na área como fracassado. A ideia de gentrificação foi ampla-
mente levantada por movimentos sociais e grande parte da academia,
referenciada tanto nas experiências de cidades-sede de megaeventos an-
teriores, notadamente Londres (2012) e Barcelona (1992), quanto numa
leitura ancorada em categorias como cidade-mercadoria, por exemplo,
mobilizada por autores como David Harvey, entre outros. Grande parte
do território da cidade do Rio de Janeiro, particularmente as favelas, fo-
ram apontadas por movimentos sociais e parte da academia como áreas
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 251

que poderiam ser gentrificadas por conta das Unidades de Polícia Paci-
ficadora (UPPs) e políticas de urbanização. No entanto, para o conjunto
da cidade, a gentrificação olímpica foi mais uma ameaça para alguns,
promessa para outros, que acabou não se efetivando.
No entanto, ao olharmos para a zona portuária, o conceito demonstra
aplicabilidade. Além dos novos equipamentos culturais, como o Museu
do Amanhã, Museu de Arte do Rio e o AquaRio, têm sido construídos
na área modernos espigões comerciais e empresariais, com linhas do
veículo leve sobre trilhos (VLT) ligando a região ao conjunto do Centro
da cidade. Observa-se ainda uma forte efervescência cultural, em gran-
de parte ligada à cultura afro-brasileira sobrevivente na região e enfim
valorizada nos circuitos turísticos e comerciais da cidade, a ponto de ser
destaque no guia turístico Time Out London, que colocou o bairro da
Saúde “entre as 49 regiões mais interessantes do mundo (...) ocupando a
25ª posição do ranking, com destaque para a Pedra do Sal e o Largo de
São Francisco da Prainha”.11
Em que pese essa “revitalização”, vemos que as camadas mais pobres,
que historicamente ocuparam a zona portuária, continuaram a não ser
contempladas por políticas públicas efetivas. No Morro da Providência,
as promessas de valorização da área e melhoria na qualidade de vida
dos moradores, com maior segurança, com UPP e teleférico, junto às
ameaças de remoção (não efetivada para a maioria, considerando que
alguns moradores chegaram a ser removidos) foram abandonadas pós-
-Rio 2016, retomando a costumeira ausência de políticas consistentes
e duradouras. E as diversas ocupações na área penam com a espera de
investimentos públicos e projetos. O que fez com que, em novembro de
2020, o Ministério Público Federal oficiasse a CDURP, a Caixa Econô-
mica Federal e a Secretaria de Patrimônio da União requerendo ações
efetivas para habitação popular na área.

O Ministério Público Federal cobra porque um projeto de habitação


popular na região conhecida como “Pequena África”, no bairro da Gam-

11 “Bairro da Saúde, no Rio, está entre as 49 regiões mais interessantes do mundo,


segundo o guia ‘Time Out Londres’”, O Globo, 07 out. 2021. Disponível em: https://glo.
bo/3lNArmI. Acesso em: 08 out. 2021.
252 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

boa, na zona portuária do Rio de Janeiro, ainda não saiu do papel. A


Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão requisitou informações
sobre a demora no assentamento de 116 famílias no projeto Quilombo
da Gamboa que é discutido há 12 anos e deveria ser erguido por meio
do programa Minha Casa Minha Vida Entidades. [...] A  região, que
recebeu o projeto chamado de Porto Maravilha, passou por inúmeras
obras, com a construção de edifícios empresariais, hotéis e empreen-
dimentos turísticos, o que resultou na demolição de casas, desmantela-
mento de uma ocupação que existia no local, chamada de Quilombo das
Guerreiras, e consequente expulsão de centenas de famílias que viviam
na região.12

Por fim, observa-se que a pandemia trouxe novos desafios para o


centro e zona portuária com o esvaziamento econômico da área diante
da expansão do trabalho remoto. Ainda assim, há inúmeros empreen-
dimentos sendo lançados na zona portuária voltados para um perfil
de classe média, assim como no Centro da cidade já no contexto do
mencionado projeto Reviver Centro. Trata-se, enfim, de um retorno
de construção de moradias nessa parte da cidade. Resta saber se serão
realizadas medidas efetivas para assegurar a habitação popular ou se o
atual interesse do mercado imobiliário em provimento de moradias na
região não significará um novo ciclo de expulsão da população mais
pobre.

12 “MPF cobra providências sobre projeto de habitação popular no Rio”, Agência Brasil,
20 nov. 2020. Disponível em: https://glo.bo/3lNArmI. Acesso em: 08 out. 2021.
Do porto “moderno” ao Porto Maravilha 253

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255
Foto: Série Favelicidade, Luiz Baltar
CAPÍTULO 10

Espaço generificado em resistência


pelo direito ao espetáculo, apesar do
Porto Maravilha
Rossana Brandão Tavares

Iniciar a escrita deste texto é revisitar uma memória intensa. É dar-se


conta de como os corpos das mulheres são feminizados e generificados
na produção do espaço urbano a partir de uma perspectiva de “urba-
nismo de Estado”, indiferente e negligente às mulheres. Uma ideia de
“ordem urbana” colonizadora dos territórios, de sua paisagem às espa-
cialidades, das práticas espaciais aos corpos possíveis. Um processo his-
tórico, vivenciado por meio do Fórum Comunitário do Porto (FCP),1
de disputas de toda ordem, mas a mais significativa, de resistência à
desterritorialização, onde os corpos possíveis são os corpos-produto,
“associado a ideações do indivíduo autocontrolado e eficiente” (Ribeiro,
2010, p. 3), reconhecido pela atualização da agenda de cidades globais
como aquele orientado a uma cultura de modernidade que em nada se
relaciona com o “território praticado”, conceito proposto por Ana Clara
Ribeiro, orientador das reflexões e relatos que seguem. Digo reflexões-
-relato porque o que é apresentado aqui se refere a uma experiência de
resistência compartilhada pela autora com mulheres moradoras da zona
portuária carioca, notadamente, a Favela da Providência, entre 2009 e

1 O FCP foi um espaço constituído em 2011 com moradores da zona portuária, nota-
damente, da Favela da Providência, com apoio de pesquisadoras/es, ONGs e mandatos
parlamentares para articular e vocalizar denúncias de violações de direitos humanos em
razão das intervenções urbanas por meio do projeto Porto Maravilha. Tornou-se funda-
mental no processo de resistência aos despejos forçados e na organização de moradoras
da região na luta pela moradia.

257
258 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

2014 aproximadamente. Também recorro à pesquisa de doutorado rea-


lizada em período coincidente com o processo de resistência, na qual
o aprendizado com o FCP foi primordial para o aprofundamento de
contribuições teóricas sobre o espaço urbano, apoiadas nas abordagens
interseccionais das teorias feministas. Assim, o objetivo é também arti-
cular conceitos que busquem dar luz aos desafios enfrentados no pro-
cesso de resistência e ao mesmo tempo que nos ajudem na “percepção
de potenciais ‘viradas de mesa’ na reprodução sistêmica do cotidiano
urbano” (Ribeiro, 2010, p. 30).
Um primeiro aspecto a destacar desta intensidade é a experimenta-
ção de forma radical da contradição contemporânea de uma ideia de
autossuficiência conduzida pelo ideário neoliberal, tendo em vista a in-
capacidade estrutural dessa realização. Não só do ponto de vista de uma
aliança de corpos para resistir às violências motivadas a partir do proje-
to Porto Maravilha, mas da percepção mais cruel de que a precariedade
social e urbana não corresponde apenas ao déficit de moradia adequada
ou de serviços urbanos básicos. A precariedade urbana que distancia
as mulheres da zona portuária do seu direito à cidade corresponde a
uma carestia institucional expressa na desumanização de seus corpos,
de suas necessidades e interesses, onde o que resta é apenas o resto, a
sobra, a margem.
A libertação da precariedade, de forma enviesada, foi um discurso
propagado para criar condições institucionais para a implementação
de projetos e operações urbanas que visavam atender, em uma cama-
da mais superficial, às exigências da FIFA e do COI no âmbito dos
megaeventos esportivos que a cidade do Rio de Janeiro sediou em
2014 e 2016, em especial, calcadas num sentido global de “ordem ur-
bana”. Contudo, aprofundando a análise desses múltiplos processos
de legitimação de intervenções urbanas, vemos que os mesmos cor-
respondem a estratégias renovadas de uma política higienista onde
mulheres pobres, negras/os, indígenas, ambulantes, prostitutas, tra-
balhadoras de baixa remuneração, idosas, jovens, crianças, pessoas
trans, todas aquelas fora do padrão heteronormativo patriarcal, es-
tão sujeitas a um sistema de dominação que condiciona um regime
de representação de um espaço não-diferencial. Contrariamente, a
proposta daquele que concebeu a ideia de direito à cidade, Henri
Espaço generificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto Maravilha 259

Lefebvre (2000), propunha o conceito de espaço diferencial, cons-


truído dentro de uma perspectiva crítica das abordagens redutoras
e parciais do que ele chamou de ideologias totalizadoras do planeja-
mento e das representações do espaço econômico. Essa política que
concebe o espaço como homogêneo e vazio produz a indiferença às
diferenças e às desigualdades.
Nesse sentido, o FCP foi uma expressão daquilo que podemos asso-
ciar como o direito ao espetáculo (Ribeiro, 2010) ou o direito de apare-
cer (Butler, 2018). A meu ver, ambos podem ser traduzidos como uma
dimensão essencial do direito à cidade, porque tanto para Ana Clara
Ribeiro, como para Judith Butler, trata-se de um meio de expressão de
indignação, por demandas de um conjunto de vida mais vivíveis e vi-
síveis, representando existências plurais, um direito de ser “lido e co-
nhecido em seus próprios termos” (Ribeiro, 2010). Diante da violência
simbólica, psicológica e de gênero experienciada, as mulheres do FCP
“deram espetáculo” e não se deixaram espetacularizar.
Outro debate que parece ser importante para a compreensão das
abordagens das reflexões-relatos é o conceito de espaço paradoxal
(Rose, 1993), “um espaço de construção de possibilidade para as mu-
lheres fora das caixas analíticas e da percepção cartesiana dos espa-
ços segregados, reproduzindo uma visão binária e dualista acerca das
contradições socioespaciais” (Tavares, 2015, p. 72). Um entendimento
de espaço que nos coloca em xeque como corpos feminizados pelas
nossas práticas sociais (espaciais), onde o simbólico e material, segun-
do os termos heteropatriarcais, são assumidos e tensionados, nesta
relação dialética entre quem está à margem e quem está ao centro,
grosso modo, nos processos de dominação. Neste sentido dialético,
um paradoxo que pressiona tanto o centro como a margem, onde o
centro também ocupa a margem, como a margem ocupa o centro. Ne-
gando a ordem, ou a ideia, de nós e os outros. Ambos coexistem nos
territórios, nas resistências e nas acomodações, desconstruindo uma
ideia dicotômica de segregação espacial e das práticas espaciais.
Considerando os conceitos de espaço diferencial de Lefebvre, do di-
reito ao espetáculo de Ana Clara Ribeiro, e o conceito de espaço parado-
xal, da geógrafa Gillian Rose (1993), lanço a perspectiva de um “espaço
generificado de resistência” (Tavares, 2015), onde o corpo das mulheres
260 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

e suas práticas espaciais conformam o primeiro entendimento parado-


xal e diferencial da definição, partindo de seus territórios do habitat.

Se há práticas sociais (espaciais) de resistência frente às desigualdades


de gênero, ali se constitui o espaço generificado de resistência, compon-
do de um lado a correlação de forças do modo de produção do espaço
urbano, no caminho do reconhecimento e da justiça, e de outro, resis-
tências para garantir práticas hegemônicas (Tavares, 2015, p. 175).

Ou seja, um espaço paradoxal tensionado pelas desigualdades de gê-


nero, por isso se generifica. Levando em conta a experiência das mulhe-
res do FCP, entendemos o sentido de espaço generificado de resistência,
num esforço contra a indiferença à margem e ao centro, pelo direito
ao espetáculo. Um paradoxo diante desse projeto Porto Maravilha que
representou significativa articulação de uma série de agentes, institui-
ções, corrupções, violações de direitos humanos e de efeitos projetuais
de consenso e consentimentos, em consonância com o que Ana Fer-
nandes (1999) chama de teórico-tecnológico-anômica, neste espaço de
consenso que o urbanismo contemporâneo configura, em uma de suas
vertentes. Um esforço de construção da positividade do objeto urbanís-
tico para a convivência entre a velha e a nova ordem urbana, instituindo
um consenso estético, moral e político, a partir da desregulamentação,
repetitiva e cenográfica, com vistas à renovação da especulação imobi-
liária e da perpetuação, em novas imagens e paisagens, de estratégias de
planejamento conservadoras e excludentes.

Direito ao espetáculo versus espetacularização2

O período em que se inicia a movimentação político-institucional para


fazer acontecer o projeto Porto Maravilha revelou para moradores vul-
neráveis às práticas de poder, desdobramentos cotidianos de violação de
direitos por parte da prefeitura e empreiteiras por meio de agentes públi-

2 Parte do texto corresponde à tese de Tavares (2015) com ajustes e releituras sobre a
experiência da autora por meio do FCP e da pesquisa realizada durante o doutorado.
Espaço generificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto Maravilha 261

cos, trabalhadores/as e aliados/as. Naquele momento, os movimentos de


luta pela moradia, grupos e organizações, assim como coletivos, se reor-
ganizaram ou ainda surgiram não mais em torno de uma agenda tradi-
cional da Reforma Urbana, ligada às frentes temáticas da moradia, sanea-
mento e transporte. Muitos se mobilizaram no Comitê Popular da Copa
e Olimpíadas e em frentes específicas, como o Fórum Popular da Vila
Autódromo e o FCP, quando projetos urbanos eram justificativas para
ações violentas de despejos e remoções forçadas, exigindo de militantes e
atingidos pelos projetos que se compreendessem novos sentidos de ação,
mas também a sua própria existência naquele contexto, na relação cor-
po-espaço. Novamente no Rio de Janeiro, de forma intensificada desde o
governo Carlos Lacerda (1960-1965), as remoções forçadas referem-se ao
risco material corporificado da violência institucional materializada pela
atuação de escavadeiras, obras, policiais. Corpos não só disputando o lu-
gar da sua moradia, mas corpos lutando pela própria existência.
Evidenciou-se a cumplicidade sofisticada para espetacularizar e ali-
sar um território praticado (Ribeiro, 2013). Eliminar o praticado é dar
centralidade apenas ao formal desprovido de sentido social, somente
cenográfico. Neste contexto, o diferencial e o diverso somem. Como
se gritassem num deserto. Cumprem-se meramente as “formalidades
participativas”, ou seja, realização de reuniões e audiências de fachada.
Pronto ✓. Um território lido como negro e também feminino, porque
objetificado, encarado como frágil e passível de ser violado a partir do
entendimento que ali se sintetiza: corpos negados que podem ser remo-
vidos, violentados para a criação de uma espetacularização inerente ao
acontecimento do projeto Porto Maravilha. Uma leitura de um sentido
não só de localização, mas de território, que nele expressa e direciona
o exercício do poder, que abarca racismo e patriarcado, embora ali não
haja apenas pessoas feminizadas e negras. Maravilha pra quem?
O FCP evidentemente por meio das mulheres construiu o seu pro-
cesso participativo pela eminência cotidiana à condenação de despejo
literalmente forçado, que estavam ocorrendo em bairros do subúrbio
e da Zona Oeste, mas também na zona portuária. Ou seja, não eram
apenas ameaças, as remoções estavam acontecendo no cotidiano delas,
na cidade, na região. Reuniões e audiências com a prefeitura, Minis-
tério Público, Defensoria Pública e outros órgãos, como atividades de
262 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

pressão e resistência, eram oportunidades para impedir o que parecia


inevitável. Destaco algumas questões importantes enfrentadas neste ca-
minho. Primeiramente, o processo de participação formal é fictício. As
audiências realizadas apresentavam o projeto de urbanização já defini-
do. Não houve nenhuma dinâmica de envolvimento de moradoras/es na
concepção e avaliação do projeto. Mesmo as reuniões informativas não
apresentavam dados precisos sobre cronograma e reassentamento de fa-
mílias. As sugestões de mudança não foram incorporadas, apenas o que
se adequava às demandas da prefeitura. Tal situação gerou um clima de
incerteza sobretudo entre as mulheres, preocupadas com o seu destino,
já que havia notícias de que, em outras favelas, as famílias estavam sen-
do reassentadas a 40 km de distância, longe de seus vínculos sociais de
solidariedade e de identidade urbana; ou, ainda, estavam sendo indeni-
zadas em dinheiro com valores inferiores ao do mercado imobiliário da
zona portuária. Neste caminho, elas se davam conta de como a presença
e a performance delas desorientava esses espaços, numa dicotomia ex-
plícita entre a preconcepção sexista sobre a capacidade de mobilização
daquelas mulheres e suas/seus aliadas/os, e a potência de deslocamento
e geração de possibilidades de resistências.
Segundo o Censo Demográfico de 2010, na Favela da Providência,
49,6% dos domicílios eram chefiados por mulheres e, na localidade
da Pedra Lisa, considerado a mais pobre da favela, cerca de 83% dos
domicílios constavam as mulheres como responsáveis. Só esses dados
demonstram a importância simbólica, política e material desta mobi-
lização para as mulheres. Ao mesmo tempo, o quantitativo maior de
mulheres, e percentuais significativos de mulheres responsáveis por
domicílios particulares, não se traduziu em maior relevância de seus
interesses frente ao projeto. Pelo contrário, vimos no decorrer da nossa
participação como elas são mais vulneráveis ao assédio de técnicos da
prefeitura com o objetivo de realizar despejos infundados.
No geral, é relevante destacar que as mulheres se tornam mais vulne-
ráveis por residirem em locais comparativamente mais precários. Pode-
mos citar dois casos para ilustrar: a Pedra Lisa, grande alvo do projeto de
urbanização; e as casas que estavam no caminho da intervenção de um
teleférico, o qual não correspondia às demandas de melhoria na mobili-
dade e acessibilidade da favela. No prédio chamado Apê, na Ladeira do
Espaço generificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto Maravilha 263

Faria, número 125, próximo da estação do teleférico, foram removidas


dezenas de famílias. Vinte e uma mulheres eram responsáveis pelos 34
apartamentos mapeados. Todas passaram a receber o aluguel social, be-
nefício de R$400,00 mensais que correspondia a 55,2% do salário-míni-
mo em 2013. Na Pedra Lisa, chegou-se a cogitar a remoção completa da
favela, fundamentada pelo discurso do risco ambiental. Porém, segundo
dados produzidos pelo Ministério das Cidades em 2005, em parceria
com a Fundação Instituto Geotécnica do Município do Rio de Janeiro
(Geo-Rio),3 a Favela da Providência não apresentava riscos ambientais
que justificassem remoções. Desse modo, concluímos que a decisão da
remoção foi direcionada aos locais onde se avaliava haver menos resis-
tência, justamente pelo nível de precariedade e vulnerabilidade social,
e assim garantir os objetivos de “embelezamento” da favela ao invés de
melhorias sócio-urbanas reais para suas/seus moradoras/es.
Sabemos que as remoções se justificaram pela própria concepção do
projeto. Como denunciado no relatório chamado “contra laudo”, elabora-
do por técnicos que se engajaram no FCP, é possível perceber as inconsis-
tências das justificativas presentes no material produzido pela prefeitura.
O relatório intitulado “Relatório técnico sobre áreas de risco na Providên-
cia e Pedra Lisa” (Santos e Asevedo, 2011) evidencia a fragilidade técnica
dos documentos apresentados à população nos poucos encontros promo-
vidos na favela pela Secretaria Municipal de Habitação (SMH), além de
qualificar a fragilidade dos dados do edital do projeto. Uma das questões
mais intrigantes diz respeito à produção dos mapas das áreas de risco,
que foram classificadas como áreas de alto e de baixo risco. Não há áreas
de transição, isto é, de médio risco. Ainda, segundo os técnicos do contra
laudo, as áreas consideradas de alto risco eram inconsistentes do ponto de
vista técnico, pelo fato das casas resguardarem distância de segurança em
relação a alambrados e limites já construídos em intervenções anteriores
(como no período do programa municipal Favela Bairro), somada à pre-
sença de contenções e obras de engenharia consideradas suficientes. Ou-
tro aspecto problematizado pelo contra laudo são as remoções em função
das obras de urbanização, que fizeram aumentar sensivelmente o quanti-

3 Quando dos preparativos para os Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro. Docu-


mento disponível em: http://www.sarj.org.br/uploads/documentos/42.pdf.
264 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

tativo previsto de famílias a serem removidas da favela. Estimava-se que


351 domicílios na Pedra Lisa seriam removidos por conta de um suposto
risco, ou seja, toda a área. Já na Providência, estimava-se o número de 164
domicílios. Em função da urbanização, seriam 317, totalizando 832 casas,
em um universo de 1.720. Não é difícil concluir que o foco da prefeitura
era o de mudar radicalmente as características socioespaciais, interferin-
do na dinâmica sociocultural e na preservação da memória coletiva de
uma região de reconhecido valor histórico para a cidade. A estimativa de
2013 é que 140 famílias foram removidas, e em 2015, moradoras/es da
Pedra Lisa se viram novamente ameaçadas.
O discurso do risco surge aos moradores e moradoras da Providên-
cia por meio: i) do boca a boca na vizinhança promovido por pessoas
ligadas às obras, seja como empregados da empreiteira responsável pela
sua execução, seja por relações de interesse político; ii) das marcações
nas casas a serem removidas com as iniciais da Secretaria: SMH; iii)
das abordagens de funcionários da prefeitura, caracterizadas pela pou-
ca precisão das informações fornecidas, pela falta de oficialidade, por
ameaças verbais, por notificações da Defesa Civil ou da própria pre-
feitura para negociar no gabinete do prefeito o processo de remoção,
desconsiderando os direitos das famílias; e iv) pela presença do próprio
secretário de Habitação, à época, quando nos casos de maior resistência,
principalmente os das famílias ligadas ao FCP, que haviam acionado a
Defensoria Pública, o Ministério Público e publicizado, por meio da im-
prensa nacional e internacional, os diversos casos de violação de direitos
humanos em função das ameaças e remoções.
Em entrevistas com moradoras da Providência, é evidente em suas fa-
las o estranhamento quanto a tal discurso, uma vez que no período em
que havia a presença de traficantes e conflitos armados na favela, o go-
verno não promoveu ações de retirada de famílias por conta do risco que
sofriam pela violência urbana iminente. Elas afirmaram que há décadas,
muitas famílias, residentes em prédios próximos às escadarias da Ladei-
ra do Barroso, construídos entre os anos 1930 e 1950, pagavam aluguel
formalmente às imobiliárias ou aos seus proprietários. Entretanto, com o
tráfico de drogas na Providência, muitos proprietários abandonaram seus
imóveis. Aqui, vemos as contradições entre a própria percepção do risco e
do sentimento de vulnerabilidade da população local, e da postura do go-
Espaço generificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto Maravilha 265

verno frente aos problemas sociais da região, desconsiderando o impacto


dessas remoções para além dos aspectos materiais, mas também psicoló-
gicos e comunitários na vida das mulheres cujos vínculos sociais de vizi-
nhança e proximidade são parte da estratégia de resistência em condições
de precariedade, sobretudo, para garantir as práticas espaciais associadas
direta e indiretamente à reprodução social.
Nas favelas, o processo de construção das moradias e os espaços des-
tinados ao uso público se confundem. Trata-se de um processo em que
a relação tempo e espaço se torna fundamental. Também se trata de um
paradoxo que se estabelece na relação entre os espaços público e priva-
do. Mesmo assim, o espaço privado materializado pela moradia serve
como uma espécie de concretização da resistência das mulheres no sen-
tido de buscar algumas garantias, como a estabilidade social.
Ana,4 uma das moradoras entrevistadas, ao relatar a sua história em
sua casa à época, ameaçada durante cinco anos de despejo em razão do
projeto de urbanização na Providência, nos revelou sobre como veio
morar em um apartamento na Ladeira do Barroso:

Foi por meio de imobiliária. Aluguei, aí fiquei pagando aluguel por um bom
tempo. Fiquei pagando, pagando, até que tem nove anos que parei de pagar
aluguel. Por que parei de pagar aluguel? Porque descobri que a gente tava
pagando aluguel e eles não nos davam atenção, a gente precisava de atenção
na parte externa do prédio. No outro lado do prédio, tava horrível. O que
adiantava? Eu fazia melhora dentro da minha casa e eles não davam nenhu-
ma assistência pra gente. Aí fomos ficando sem pagar o aluguel. Quando a
bomba queimava, eu que corria atrás pra arrumar pra consertar e colocar
no lugar. Uns moradores colaboraram, outros não. Daí você cansa, eu can-
sei. Inclusive hoje as pessoas falam: ‘Esta mulher que é a dona do prédio’.
Não sou a dona do prédio. Eu só não me encostei (informação verbal forne-
cida por Ana, moradora da favela da Providência, em 2012).

Ana é moradora da Favela da Providência há décadas. Mas sua úl-


tima casa, de modo diferente do que ocorre comumente nas favelas

4 Os verdadeiros nomes das(os) entrevistadas(os) foram substituídos a fim de resguar-


dar as respectivas identidades.
266 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

cariocas, contava com formalidades imobiliárias. Segundo ela e outras


vizinhas, como Cláudia (também moradora do prédio) e Neuza, diante
da presença cada vez mais ostensiva do tráfico de drogas, nos anos 1990
e 2000, muitos agentes imobiliários que gerenciavam casas e prédios
próximos às áreas mais informais da favela, começaram a abandonar os
imóveis. Todos os imóveis antigos provavelmente foram construídos em
meados do século XX, já que possuem vigamentos, janelas de madeira
e características arquitetônicas que remetem ao período. Desde 2011,
Ana vinha recebendo ameaças formais da prefeitura e sendo sistemati-
camente assediada por pessoas ligadas à gestão municipal, empreiteiras
e moradores “simpatizantes” das ações na favela, em função do Progra-
ma Morar Carioca. Ela, Cláudia, Neuza e outras moradoras sofreram o
mesmo tipo de ameaças e assédios ao longo dos anos, mesmo detendo
legitimamente o direito à posse de suas casas, como garantido pelo Es-
tatuto da Cidade. Não basta o direito formal. A luta pela preservação da
paisagem social da favela e a garantia da reivindicação de permanecer
depois de tantos anos, nos termos de quem reside na região, respeitan-
do sua história e sua cultura, representa a desconstrução, na prática, de
um urbanismo de Estado que é a favor da imposição da “ordem urba-
na” na qual simplesmente seus corpos e territórios praticados devem
ser domesticados ou suprimidos, segundo uma moral, uma normativa
produtora de desigualdades e violências. Uma ideia de modernidade co-
lonizada que deslegitima seus desejos e interesses de gênero,5 marcados
profundamente por uma experiência urbana generificada, onde muitas
são responsáveis economicamente por seus domicílios, em condição de
vulnerabilidade social radicalizada pelo projeto Porto Maravilha.6

5 Molyneux (2010) apresenta a partir da pesquisa sobre as mulheres na Revolução San-


dinista a questão acerca dos “interesses estratégicos” e “interesses práticos”. Os “interesses
de gênero” são aqueles que mulheres (e homens) desenvolvem a partir do modo como são
posicionadas socialmente, por meio de atributos de gênero, podendo ser estratégicos ou
práticos, cada um direcionado de diferentes formas e envolvendo diferentes implicações
para as respectivas subjetividades. Os estratégicos formulados a partir do que seria uma
consciência de luta por emancipação feminina. Os interesses práticos se relacionam às
condições concretas do posicionamento das mulheres na divisão sexual do trabalho.
6 Não é possível neste caso separar o Programa Morar Carioca na Providência e o
projeto Porto Maravilha. Todo o contorno do projeto de urbanização e suas dinâmicas
institucionais são forjadas neste contexto.
Espaço generificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto Maravilha 267

A minha mãe nasceu no morro da Providência, lá no Alto Cruzeiro,


ela se criou neste morro. Há 86 anos, ela mora na Providência, só que
houve uma época que ela morou em Vaz Lobo, dois anos, três anos,
não aguentava pagar aluguel e voltava porque aqui na Providência ela
tinha residência. Todas as vezes que ela encontrava dificuldade na vida,
separava do meu pai, voltava morar aqui. Agora aqui, que é Ladeira do
Faria, 125 da casa 4. O Apê tinha três prédios e aqui tem dois endereços.
Ladeira do Faria 179 e 125. E este lado onde moramos hoje há mais de
30 anos, aqui, é uma vila de casa. Tem a casa 1, 2, 3, até casa 9. Então,
neste lugar minha mãe mora mais de 35 anos, só aqui. Porque neste
lugar aqui a minha outra irmã, o marido dela foi zelador aqui, quando
era um condomínio fechado, era tudo organizado. Em 1980, alguma
coisa assim começou virar bagunça porque o homem que veio receber
os aluguéis que dizia ser o advogado do dono não veio mais receber.
Tem aqui o nome no carnê do IPTU (informação verbal fornecida por
Neuza, moradora da favela da Providência, em 2012).

Neuza e sua família estabeleceram um processo dinâmico de práti-


cas espaciais de resistência que extrapolaram a Favela da Providência.
A relação de sua mãe com a favela é de proteção e de resistência às di-
nâmicas urbanas na cidade que minimizaram, ao longo dos anos, a sua
vulnerabilidade, mas também das contradições nas relações de gênero
no âmbito de seu casamento, por exemplo. A casa ganhou significado
material de resistência, para além da moradia.
Analisando a história de Neuza e das favelas do Rio de Janeiro, é
possível afirmar que a favela é locus, processo e resultado de uma re-
sistência que, ao mesmo tempo, é individual e coletiva. Desde a forma
arquitetônica das casas até o modo como o tecido urbano se debruça
geograficamente relevam os interesses de diversas dimensões. A casa é
essa expressão significativa das práticas espaciais de resistência que nos
fazem entender as razões pelas quais as mulheres tornam-se protago-
nistas na resistência contra os despejos. São seus territórios praticados
ameaçados.
Outro aspecto que revela a conformação dos interesses das mulheres
mobilizadas no FCP foi a resistência em torno da proposição de um pla-
no inclinado nas escadarias da Ladeira do Barroso com a justificativa de
268 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

melhoria da acessibilidade. As/os moradoras/es mobilizadas/os foram,


desde o momento da apresentação da proposta, contra a intervenção. A
importância da escadaria se relaciona aos acessos às casas marginais e
ao valor histórico, uma vez que teriam sido construídas pelos primeiros
moradores da favela, ex-escravos em fins do século XIX.
Por mais que a questão da acessibilidade seja algo fundamental para
favelas em morros, como é o caso da Providência, ainda se preferiu uma
alternativa que preservasse a escadaria. Como esse é o acesso principal
para a parte mais alta, o projeto não levou em consideração a dimensão
e a nuance desses interesses, direcionando-se apenas aos aspectos práti-
cos e tidos como funcionais. Ademais, no caso do Programa Morar Ca-
rioca na Providência, não é possível afirmar que se trata apenas de uma
dimensão estritamente metodológica de projeto de urbanismo. O proje-
to surgiu como instrumento de materialização dos interesses econômi-
cos e especulativos em voga na cidade, especialmente turísticos, como
revelado inúmeras vezes no discurso do prefeito sobre a Providência.

Tenho certeza de que este lugar se tornará um novo ponto turístico da


cidade, além de beneficiar a população, que já vive numa comunida-
de pacificada. A vista daqui é sensacional. De um lado temos a ponte
Rio-Niterói e as montanhas do interior do estado e de outro o Pão de
Açúcar e o Cristo Redentor.7

Por outro lado, a experiência de analisar os impactos do Morar Ca-


rioca também em outras favelas do Rio de Janeiro permitiu compreender
que a questão da acessibilidade atravessa diversas dimensões dos inte-
resses das mulheres. Podemos enumerar desde a questão da segurança,
devido ao perigo da violência urbana e de assédios, até a funcionalidade
e conforto ao longo do percurso. Se trabalhamos somente a partir do
processo de participação (que na prática se tornou apenas “depósito de
demandas”), por exemplo, para levantar esses fatores, é possível que se
perca a dimensão real desses interesses e podemos incorrer na reprodu-
ção de uma cartilha de boas práticas em urbanismo, repetindo a mesma

7 “Eduardo Paes faz primeiro teste no teleférico da Providência no RJ”, Terra, 21 dez.
2012. Disponível em: https://bit.ly/3pHfYks. Acesso em: 22 dez. 2012.
Espaço generificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto Maravilha 269

dinâmica de desterritorialização desses corpos-território, sem os des-


pejos. Assim, o processo participativo tradicional não bastaria para a
perspectiva aqui defendida. Esse é um paradoxo importante porque o
FCP resistiu à espetacularização buscando brechas junto com aliadas/os
para a “virada de mesa”, buscando abrir possibilidades do seu direito ao
espetáculo, de aparecer em seus termos, e não das formalidades partici-
pativas. Diariamente, era momento de “dar espetáculo”, pois o processo
de espetacularização poderia literalmente bater à porta, com uma per-
formance e práticas sociais e espaciais de violência, com escavadeiras,
policiais, agentes da prefeitura e do judiciário.
A postura das instituições envolvidas e dos homens, moradores que
também participam das atividades de mobilização, ou nas reuniões ins-
titucionais, interferiram e determinaram as práticas. Não foram raras
as situações de conflito com agentes do governo ou mesmo com al-
gum morador na disputa do protagonismo no processo, ou pela falta
de apoio prático às mulheres que estavam em situação mais vulnerável.
Era perceptível, a partir dos relatos que surgiram nas reuniões do FCP,
que as/os representantes da SMH e empreiteiras eram mais incisivos e
insolentes com as mulheres do que com os homens. Desse modo, é pos-
sível perceber caminhos já constituídos que não são evidentes nos me-
canismos da política urbana, que se refere ao modo como, na prática, o
planejamento se impõe, não só pelas leis, decretos e determinações da
gestão pública, mas pela presença violenta, heteronormativa e misógina
com vistas a garantia dos objetivos do projeto.
Para evitar generalizações, sabemos que a resistência às ameaças ao
direito à moradia não é dada. Quando vimos os casos de moradoras que
resolveram ceder às pressões para sair de suas casas (que não se justifi-
cavam de fato pelo risco ambiental, apesar do discurso da prefeitura), a
maioria não estava mobilizada em torno da resistência. Mostravam-se
passivas e abertas às negociações, diferentemente das que permanece-
ram. As “resistentes” se caracterizaram por um discurso mais contun-
dente e por ausência de intimidação diante das ameaças, mesmo por
parte do poder público, sendo este um dos fatores importantes nesse
processo.
Segue o depoimento de Ana sobre as abordagens de uma agente da
SMH e o relato de sua reação.
270 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Na segunda convocação, apareceu aquela moça que se dizia da prefei-


tura. Não tinha nada que dissesse que era da prefeitura. “Olha, você
tem que ir lá, você tem que ir lá na prefeitura, você tem que conversar”.
Falei: “Filha, não perdi nada na prefeitura”. Porque quando a Marli
veio fazer as marcações das casas com aquela sigla, que meu número é
1568 aquela sigla SMH. Eu falei pra ela que eu não faço parte daquela
época de Hitler, porque o Hitler fazia aquilo. Marcava aquelas casas
daqueles que estavam prestes a morrer. Ela falou: “Não é nada disso
não, a senhora tá muito nervosa”. Falei: “Não vou!”. E acabei não indo.
Até hoje. Aí depois disso tudo começou os tipos de ameaça. Passava e
apontava (informação verbal fornecida por Ana, moradora da favela
da Providência, em 2012).

Sônia, moradora da Pedra Lisa, afirmava que o FCP contribuiu para


que ela continuasse resistindo e também mobilizasse e orientasse as pes-
soas dessa parte da Providência. Ela sempre relatava que prevenia as/
os moradoras/es a não deixar ninguém entrar nas residências se não
fosse por ordem judicial, que ninguém era obrigado a assinar papéis que
não fossem oficiais, e que nas reuniões organizadas pela prefeitura era
importante a mobilização de todos para pressionar por informações e
discutir o projeto. Nas abordagens “oficiais” realizadas na casa das famí-
lias marcadas para serem removidas, as/os agentes se apresentavam sem
identificação, com documentação sem nenhum valor legal, sem nenhu-
ma possibilidade de questionamento ou negociação. Por conta disso, se
instaurou um clima de insegurança entre as/os moradoras/es. Ninguém
sabia quando e o que poderia acontecer com elas/es de fato.
Como já mencionado, a Pedra Lisa seria uma das áreas mais impac-
tadas pelo projeto. Sempre que o FCP conseguia articular uma reunião,
inúmeras mulheres apareciam, muitas com seus filhos, aflitas com as
ameaças da SMH. Todas muito assustadas com a situação, mas não se
mobilizavam para além das convocatórias do Fórum. Sônia tinha sido
uma dessas participantes nas primeiras reuniões do FCP. Aos poucos
era visível a sua firmeza e a clareza de seus interesses, apesar do medo
de perder a casa. Sua participação foi importante na tentativa de articu-
lação da população no debate em torno do Programa Morar Carioca e
de seus impactos.
Espaço generificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto Maravilha 271

As relações de solidariedade também foram fundamentais para a re-


sistência. Na série de reportagens publicadas pelo jornal O Povo em ja-
neiro de 2012, grande parte dos casos relatados eram de famílias chefia-
das por mulheres que haviam cedido às pressões da prefeitura, seja pela
situação precária que as obras impuseram, seja por problemas de saúde,
ou mesmo por medo. A fonte do jornalista Felipe Martins, responsável
pela matéria, foram as mulheres do FCP que mapearam os casos para
que a reportagem pudesse ser feita, na expectativa de que a publicidade
das sugestões gerasse algum tipo de constrangimento público à prefei-
tura e, assim, reverter a situação dessas moradoras. Todavia, os casos
de violação ao direito à moradia de moradoras que foram “reassenta-
das” via aluguel social, ou de compra-assistida,8 não se reverteram. O
problema dessas modalidades oferecidas em 2011 (antes da paralisação
das obras, graças à liminar da Defensoria Pública do Estado do Rio de
Janeiro em 2013) foi que os valores destinados às indenizadas compro-
meteram a permanência das famílias na região, em função do processo
especulativo já evidente na zona portuária. Na compra assistida, inclu-
sive, não se levou em consideração o valor do solo, apenas o que foi
construído. Resultado: a possibilidade da compra de outro imóvel em
condições piores a anterior, seja em termos de dimensões e adequação
habitacional, seja em termos de localização.
É importante ressaltar que, dentre os homens mobilizados no FCP,
nenhum cedeu à pressão da SMH para sair de suas residências. Inclusi-
ve, poucos eram aqueles que traziam em seu discurso, durante as reu-
niões, situações de assédio como os praticados contra as mulheres por
parte de algum funcionário do governo, ou das empresas responsáveis
pelas obras. Esse dado reforça a hipótese de que as mulheres são mais
vulneráveis a esse tipo de prática de coação.
Outro exemplo que contribui para a problematização da prática e
das respectivas práticas sociais (espaciais) e interesses das mulheres,
refere-se à manifestação contra a construção da estação do teleférico
na Praça Américo Brum, em julho de 2011, onde havia uma quadra

8 O Decreto 34.522/2011 que trata da demolição de edificações e relocação de morado-


res em assentamentos populares define compra-assistida como “a compra de uma nova
moradia, preferencialmente na própria comunidade”.
272 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

esportiva, tendo sido até então um importante ponto de encontro e refe-


rência da favela. Apesar da presença dos policiais da Unidade de Polícia
Pacificadora (UPP), ficou evidente o protagonismo das moradoras na
resistência contra o Morar Carioca, materializado, naquele momento,
pelo cercamento da praça para a construção da estação. Do discurso à
clareza dos argumentos. Além de estar em maior número (cerca de 40
pessoas participaram), foram elas que buscaram dar visibilidade às suas
reivindicações com a mídia presente, e dialogaram com as autoridades
a fim de construir uma alternativa. Nessa ocasião, vimos prática e per-
formance, nos termos de Gillian Rose (1993), uma inerente à outra, pois
seus corpos se revelavam nesse “espaço paradoxal” como dominados e
ao mesmo tempo libertos, reais instrumentos de possibilidade. É im-
portante ressaltar que, nessa manifestação, não houve grande cobertura
da imprensa (Figura 1). Por essa razão, tratava-se de uma manifestação
“invisível”, sem palco, apenas práticas de resistência de moradoras/es de
um lado, e de policiais e trabalhadores das empreiteiras que mantiveram
as obras iniciadas na praça naquele dia 19 de julho, protegidos por fun-
cionários da SMH e da Polícia Militar.
A violência simbólica, psicológica, institucional, cujas consequên-
cias se refletem no corpo dessas mulheres, torna-se instrumento de re-
moções não só desses corpos e suas casas, mas de suas práticas espaciais
e, consequentemente, de suas resistências, construídas no espaço da fa-
vela ao longo de sua história. Hoje, mesmo aquelas que permaneceram
na Providência, diante de tanta violência, amornaram desde 2015 suas
práticas de resistência política e de exposição de suas vidas por meio de
inúmeros documentários, reuniões, audiências e manifestações que se
mobilizavam em torno do FCP. Essas são descontinuidades com con-
sequências importantes. Outras estratégias de resistência que se man-
tiveram pela permanência na favela e, provavelmente, por suas práticas
espaciais cotidianas, mas que se limitaram devido à presença mais os-
tensiva do tráfico de drogas. Emoldurada por um elefante branco cha-
mado teleférico, inoperante, que marca a memória de todo o processo
associado ao Morar Carioca e Porto Maravilha, pelo projeto inacabado
do conjunto habitacional do Minha Casa Minha Vida na Rua Nabuco
de Freitas, e, atualmente, com os desafios inúmeros de sobrevivência à
pandemia.
Espaço generificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto Maravilha 273

Figura 1. Moradora discutindo com policiais da UPP durante um


protesto contra o teleférico, em julho de 2011

Foto da autora

Um fator importante na compreensão da pertinência da luta pela


permanência na favela se relaciona com o surgimento do FCP, e na per-
cepção de que elas, as mulheres, foram sujeitos importantes, inclusive
de transformação de suas realidades. Esse coletivo, que se forma a partir
de lideranças locais, pesquisadoras, professoras, profissionais liberais,
ONGs, com apoio de outros coletivos urbanos e culturais, de movimen-
tos sociais e parlamentares, desperta a possibilidade de organização e
resistência política de um grupo de moradoras/es cuja participação fe-
minina tinha grande destaque. Uma espécie de materialização de suas
resistências cotidianas segundo suas práticas espaciais.
A despeito do grande esforço realizado ao longo dos anos de exis-
tência do FCP de ambas as partes, é possível perceber um desgaste por
parte das moradoras. Embora houvesse a presença de homens no cole-
tivo, foram elas que mais se expuseram e vivenciaram as dificuldades de
lutar por seus interesses, construídos ao longo do processo, justamente
por essa relação com as/os apoiadoras/es. A lista de reivindicações ela-
borada no âmbito do FCP, encaminhada ao Ministério Público Fede-
274 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

ral, à SMH e à imprensa revelam que esse caminho foi traçado. Houve
momentos em que buscaram fortalecer a sua luta se solidarizando com
outras, como foi o caso da comunidade Vila Autódromo, na Zona Oeste
do Rio de Janeiro. Ali, percebi que havia se iniciado uma possibilidade
mais ampla e estratégica de mobilização delas em torno do direito à mo-
radia na cidade. Contudo, frente às situações de violência da SMH para
a viabilização das remoções na Vila Autódromo, e em outras comuni-
dades da Zona Oeste, além da violência na qual estavam já vivencian-
do na Providência, paulatinamente essas mulheres se voltaram aos seus
interesses do cotidiano. Ou seja, os limites impostos às práticas sociais
de resistência voltadas à mobilização política contra as violações que es-
tavam sofrendo, em função dos interesses da prefeitura, estabeleceram
um paradoxo importante. Algumas descobriram que suas práticas so-
ciais, realizadas conscientemente a partir de seus interesses, transforma-
ram objetivamente a sua realidade, permitindo ir dos interesses práticos
aos mais estratégicos, mas este último mais difícil de ser alcançado. Por
isso, houve o recuo.
Quando relatavam suas histórias do passado e do presente, esse aspec-
to se revelava. “Como vou abandonar minha casa, depois de ter passado
por tudo que passamos?”, questionaram Neuza, Ana, Carla, Elza e tantas
outras, fazendo referência às suas histórias pessoais na favela. Histórias
que também se desvendam no presente diante das históricas contradições
urbanas no Rio de Janeiro. São pessoas que aproveitaram as brechas, o
local onde a repressão falhou, em que a luta pelo direito à moradia ex-
põe práticas, símbolos, tempos, subjetividades e identidades inerentes ao
modo como se apropriam do espaço urbano e o produzem. Incorporando
ou rompendo com o poder, resistindo por meio das práticas. Resistências
que transformaram a própria história e o destino da Providência e de suas
moradoras, assim como o dessas mulheres, que, apesar de cansadas, tam-
bém se transformaram, não só porque conseguiram impedir as inúmeras
remoções e transformações anunciadas, mas porque também atingiram
suas respectivas subjetividades cotidianas e as possibilidades do espetácu-
lo. Portanto, as práticas sociais enquanto práticas espaciais de resistência
no espaço urbano (Tavares, 2015) se mostraram como uma ferramenta
significativa quando os interesses práticos não podem ser mais pautados
pela luta política na esfera pública.
Espaço generificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto Maravilha 275

Considerações finais

Vivenciar e observar a luta pelo direito à cidade das mulheres na Provi-


dência foi mais que experimentar uma luta política tradicional. Foi um
processo complexo, de resistência e acomodação, nos termos de Ana
Clara Ribeiro (2010) na busca pelo exercício do “direito ao espetáculo”.
As reflexões-relato apresentadas buscam deixar um registro de uma ex-
periência urbana interseccional e de como as relações de poder influen-
ciam a vida cotidiana (Collins e Bigle, 2020) das mulheres em seus ter-
ritórios, à margem e ao centro, paradoxalmente, a partir de seus corpos
e práticas espaciais. Sendo os corpos feminizados a primeira dimensão
territorial praticada em disputa pelo sistema de dominação patriarcal.
De corpos-territórios que só fazem sentido lidos e entendidos por suas
práticas espaciais territorializadas. A disputa é pela desterritorialização,
seja pelo despejo, seja pelo próprio projeto urbano que suspende corpos
não aderentes à paisagem social hegemônica e heteropatriacal, racista e
colonizada.
Uma perspectiva de compreensão de um espaço generificado em
resistência, pois é possível também a acomodação não alienada, que
pode ser uma acomodação estratégica, hoje sem as ameaças eminen-
tes de despejos, ou uma acomodação lida somente pela ordem urbana
heteronormativa, e não por nós (corpos-territórios feminizados), cujas
leituras e entendimentos de como o sistema patriarcal nos tensiona às
resistências, são só evidentes quando paradoxalmente perturbam a or-
dem urbana.
Após mais de uma década do projeto Porto Maravilha, vimos que
mesmo com uma série de evidências de fracasso, corrupção e violações
de direitos humanos, ainda se insiste num projeto de cidade na qual a
noção de revitalização (Arantes, 2000) passa por tipologias territoriais
e corpos homogêneos, enquadradas numa moral estética, social e cul-
tural sem aderência às dinâmicas urbanas da região. Às mulheres, po-
bres, negras, faveladas, nesta conta, é reservada a marginalidade mesmo
numa centralidade metropolitana, um paradoxo da segregação: o seu
corpo-território em si é segregado, segundo o regime patriarcal de “or-
dem urbana”, independentemente de onde se localiza, circula, trabalha.
Mas também um corpo que se marginaliza de forma contra-hegemô-
276 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

nica (Hooks, 2019), como uma expressão de resistências espaciais. Um


corpo que recusa a destinação à reprodução social no espaço urbano
como justificativa da sua existência, mas que paradoxalmente precisa
proteger o núcleo das práticas sociais de cuidado. Qualquer tentativa
de escape ou de viração desse modelo heteronormativo, é reservada a
violência, numa teia complexa. Só resta a aliança para vidas vivíveis,
visíveis e humanizadas, num conflito pelo próprio entendimento do ur-
bano pela perspectiva das mulheres. Percepção aqui construída apenas
pela aproximação da abordagem interseccional tanto pelo viés teórico
como político, do cotidiano, de luta compartilhada entre mulheres.

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Espaço generificado em resistência pelo direito ao espetáculo, apesar do Porto Maravilha 277

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279
Foto: Série Anônima, Luiz Baltar
CAPÍTULO 11

Intervenções urbanas na zona portuária


do Rio de Janeiro
Um olhar a partir da perspectiva do racismo e
da injustiça ambiental
Yana Moysés
Flávia Fontes Tostes
Larissa de Moura Porto

Introdução

Partindo do campo da engenharia ambiental e sanitária, este capítulo


analisa as transformações urbanísticas e os significados epistemológico-
-políticos dos discursos a elas associados, que ocorreram na zona por-
tuária desde a chegada da monarquia portuguesa no Rio de Janeiro em
1808 até as recentes intervenções no âmbito do projeto Porto Maravilha.
A compreensão da formação deste setor específico da cidade se apre-
senta como um caso emblemático para análise neste campo de conhe-
cimento, já que as intervenções urbanas foram historicamente pautadas
por discursos sanitaristas e, mais recentemente, estiveram ancorados
no ideário de desenvolvimento sustentável, gerando inúmeros conflitos
ambientais, e instaurando um processo histórico de racismo e injustiça
ambiental no território em questão.
Na primeira parte, o texto introduz uma breve discussão acerca dos
conceitos de racismo ambiental e justiça ambiental. De posse desse
arcabouço, será analisado o processo histórico de formação da zona
portuária do Rio de Janeiro a partir de alguns marcos relacionados
às políticas sanitaristas e higienistas, à consolidação da ideologia de
“classes perigosas”, às reformas urbanas e iniciativas de remoção de
favelas. Ao fim, propomos uma análise do projeto Porto Maravilha a

281
282 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

partir da mobilização do controverso conceito de “desenvolvimento


sustentável”.

Racismo e justiça ambiental

As categorias epistemológico-políticas de racismo ambiental e justiça


ambiental surgem e são acionadas para evidenciar a divisão desigual
socioespacial da degradação ambiental – a desigualdade ambiental – e,
com isso, a distribuição desproporcional dos riscos ambientais entre di-
ferentes sujeitos e grupos sociais. Parte, portanto, de um questionamen-
to da premissa recorrente de que todos, independentemente de classe,
cor, etnia ou gênero, são e serão afetados da mesma forma pelos danos
ambientais resultantes de intervenções no território.
Cabe aqui um adendo sobre a categoria “ambiental”. A partir de Leff
(2015) é possível afirmar que a questão ambiental em pauta desde a dé-
cada de 1990 se refere não apenas aos impactos ecológicos, mas também
sociais, econômicos, políticos, entre outros. A crise ambiental seria em
si só uma crise civilizatória. Nesse sentido, ao se acionar qualquer con-
ceito-instrumento que leve consigo o termo ambiental, deve-se ter uma
visão holística da realidade: um olhar que englobe todas as dimensões
da sociedade – ecológica, social, econômica, política, etc.
O conceito de justiça ambiental nasce nos Estados Unidos a partir do
debate sobre o racismo ambiental. Durante a década de 1980, a aliança
entre pesquisadores e associações de moradores em diversas localida-
des do país evidenciou que os resíduos perigosos e produtos tóxicos se
encontravam localizados predominantemente nas vizinhanças de co-
munidades afro-americanas. A relação entre a desigualdade ambiental
e o racismo passa a ser comprovada cientificamente. E dessa maneira, o
racismo ambiental surge e passa a ser acionado como categoria episte-
mológica e política de luta (Bullard, 2004).
Em linhas gerais, Acselrad, Herculano e Pádua (2004, p. 15) definem
justiça ambiental enquanto um conjunto de princípios e práticas que: i)
“asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe,
suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais ne-
gativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de progra-
Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 283

mas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de


tais políticas”; ii) “asseguram acesso justo e equitativo, direto e indireto,
aos recursos ambientais do país”; iii) “asseguram amplo acesso às infor-
mações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação
de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como pro-
cessos democráticos e participativos na definição de políticas, planos,
programas e projetos que lhes dizem respeito”; e iv) “favorecem a cons-
tituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organi-
zações populares para serem protagonistas na construção de modelos
alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do
acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso”.
Por sua vez, a destinação da maior carga de danos ambientais do
desenvolvimento em determinadas parcelas da sociedade, como em po-
pulações de baixa renda, grupos raciais discriminados, povos étnicos
tradicionais, bairros operários, populações marginalizadas e vulnerá-
veis, entre outros, configuram casos de injustiças ambientais (Acselrad,
2004).
A partir destas considerações, as intervenções urbanas que transfor-
maram historicamente a zona portuária do Rio de Janeiro serão anali-
sadas, nas seções seguintes do presente capítulo, a partir do prisma do
racismo e injustiça ambiental.

“Cirurgias urbanas” no século XIX e o discurso sanitarista

O início do século XIX foi marcado por diversas “cirurgias urbanas” no


Rio de Janeiro. Até então, a cidade era compacta e limitada por morros –
Castelo, São Bento, Santo Antônio e Conceição. Os espaços desbravados
foram resultantes de um processo intenso de dessecamento de brejos e
mangues (Abreu, 2013).
O estabelecimento da família real no Rio de Janeiro impunha uma
reestruturação do espaço, atendendo aos seus anseios e a novas necessi-
dades materiais que facilitassem o desempenho das atividades econômi-
cas, políticas e ideológicas que a cidade passaria a exercer. Tais anseios
vislumbravam a separação das classes sociais que amontoavam o antigo
espaço colonial da área central (Abreu, 2013).
284 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Na segunda metade do século XIX, a cidade ganhava visibilidade,


com intenso crescimento e adensamento exponencial. Era imprescindí-
vel que o Rio de Janeiro superasse a fisionomia de um espaço colonial,
e o intuito passou a ser inscrever a área central no ideário da moderni-
zação, acompanhando uma tendência internacional de reestruturação
capitalista das cidades. Nota-se que este processo de formação de cida-
de ideal já indicava os grupos que prioritariamente iriam habitar essas
áreas, definidos enquanto estrato “civilizado” da população.
A introdução dos meios de transportes coletivos, os quais se cons-
tituíram como um marco decisivo no processo de urbanização da ci-
dade, teve um papel fundamental neste sentido (Benchimol, 1992; Vaz,
1994). Bondes e trens permitiram a expansão da cidade e a solidificação
de uma malha urbana dicotômica, seguindo o modelo “núcleo-perife-
ria”. As áreas atravessadas pelas ferrovias eram destinadas às popula-
ções mais pobres, sendo trem e subúrbio sinônimos e, paralelamente,
os bondes eram associados à Zona Sul e a um estilo de vida moderno
(Abreu, 2013). Ressalta-se, no entanto, que mesmo com a consolidação
dos meios de transportes coletivos, as classes mais pobres necessitavam
de habitação próxima ao local de trabalho, e a área central mostrava-se
ideal para este objetivo.
No bojo das intervenções urbanas voltadas à modernização da cida-
de, foi criado um aparato legal urbano com o objetivo de superar a ci-
dade colonial, a qual buscava-se apagar (Maricato, 1995; Santos, 2015).
Um exemplo disso era o Código de Posturas de 1838. Nele, é possível
observar como a presença e a circulação dos escravizados na área central
incomodava a elite carioca, representando-os enquanto sujeitos que não
estariam inseridos na formação do perfil de cidade que se idealizava, e
caracterizando-os como primitivos (Almeida, 2019). Ratificando esse
pensamento, observa-se o enrijecimento dos artigos que compunham
o código. A seção da Polícia do documento versava sobre os diversos
meios de manter o controle social dos corpos:

Tít. 4o. Art. 6o. Nenhuma pessoa de qualquer estado, condição ou sexo
(inclusive pessoas encarregadas da condução de gêneros) poderá tran-
sitar pelas ruas deste município senão com vestes decentes, isto é, não
deixando patente qualquer parte do corpo que ofenda a honestidade e
Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 285

a moral pública. O contraventor, além da multa de 10$000 rs, sofrerá 4


dias de prisão, e o duplo na reincidência, tanto a respeito da multa como
ao tempo de prisão: sendo escravo, estará 8 dias de calabouço.
Tít. 7o. Art. 6º. Todo escravo que for encontrado das 7 horas da tarde em
diante sem escrito de seu Senhor, datado do mesmo dia, no qual declare
o fim que vai, sofrerá 8 dias de prisão, dando-se parte ao Senhor.1

Verifica-se que, com a incorporação desta lei, o Estado mantinha o


objetivo de dificultar e até mesmo suprimir o deslocamento das pessoas
escravizadas pela cidade. Desde então, a circulação de grupos que não
agradavam as classes mais favorecidas já era tratada como uma questão
de urgência para a organização e formação do espaço urbano carioca.
A associação das “vestes” com aqueles que podiam ou não circular, de-
monstra a concepção de cidade ideal e civilizada e para qual grupo este
espaço estava sendo concebido.
Ainda dentro desse contexto, o Cais do Valongo, local de desembar-
que dos africanos escravizados, encerraria as suas atividades por volta
da década de 1830. E, em 1843, no sentido de apagar de vez sua materia-
lidade e, consigo, a “memória escrava”, este foi enterrado por uma nova
estrutura que serviria como um novo porto de entrada para a cidade.2
Observa-se aí um dos primeiros esforços do Estado, dentre tantos ou-
tros que virão a seguir, em apagar a memória da “Pequena África”, ex-
pressão cunhada por Heitor dos Prazeres (Araujo, 2020).
A segunda metade do século XIX e o início do século XX foram mar-
cados por intensas transformações urbanas que ambicionavam adaptar o
Rio de Janeiro aos novos tempos, adequando-a à fachada progressista e
modernizante que a República requeria, em especial o sepultamento da
simbologia de cidade colonial e de cidade negra. Este discurso se relacio-
nava às novas necessidades econômicas ligadas à administração e expor-
tação de produtos agrícolas, em especial o café, e ao combate às epidemias
por meio de obras de saneamento, as quais naquele período estavam as-
sociadas à erradicação dos cortiços e abertura de espaços urbanos que
poderiam servir como “pulmões” da cidade (Benchimol, 1992).

1 Extraído de Santos (2015, p. 35).


2 Sobre as transformações e apagamentos do Cais do Valongo, ver Lima (2022).
286 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, criada


em 1874, indicava a necessidade de transformações urbanas na área
central, como “o alargamento e retificação de várias ruas e abertura de
novas praças e ruas com o fim de melhorar suas condições higiênicas”
(Benchimol, 1992, p. 118). No entanto, a maior parte dos recursos fi-
nanceiros foram destinados à formação da Zona Sul, espaço que era
descrito como área dotada de um clima “esplêndido e salubre” (Abreu,
2013).
Observa-se que os grupos hegemônicos reproduziam seus privilé-
gios – poder aquisitivo para habitar em locais salubres, controle sobre
sua mobilidade no espaço da cidade etc. – exercendo o domínio sobre
a organização política e econômica. Isto é, institucionalizavam seus in-
teresses, impondo regras e padrões de conduta baseados na formação
de uma cidade ideal civilizada respaldados pela força do discurso sani-
tarista.
A capital era destino preferencial de ex-escravizados e destino final
de parte significativa de imigrantes, intensificando a crise habitacio-
nal – pela grande procura por cortiços –, fenômeno atrelado à proli-
feração da febre amarela. As febres, doenças e a falta de higiene que
assolavam a área central do Rio de Janeiro durante todo o ano contri-
buíam para consolidar atributos negativos, como de cidade “atrasada”
e “pestilenta”. Crescimento demográfico, falta de habitações salubres
e constantes epidemias incitavam uma visão segregadora do espaço
urbano carioca.
O discurso de higienização e saneamento ganhava força, associando
a desordem urbana à degeneração moral e física da população, sendo as
habitações coletivas na área central os principais alvos desta construção
discursiva (Benchimol, 1992). Ou, numa outra perspectiva, responsabi-
lizando os sujeitos que as habitavam.
Vale ressaltar ainda que o Conselho Superior de Saúde Pública, em
1886, já se utilizava do discurso sanitarista para combater a multiplica-
ção dos cortiços na área central, descrevendo em seus relatórios que “os
cortiços eram habitações higienicamente perigosas e que os moradores
deveriam ser removidos para os arredores da cidade”.3

3 Trecho de documento do Conselho extraído de Leeds e Leeds (1978, p. 189).


Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 287

Foram instituídos ainda decretos que destinavam combater as co-


nhecidas “cabeças de porco”, argumentando que estes espaços eram o
grande foco das epidemias, principalmente a de febre amarela. O então
prefeito Barata Ribeiro (1892-1893) iniciou um combate sem trégua aos
cortiços, alegando que para solucionar os problemas higiênicos e sani-
tários era necessária a erradicação deste tipo de moradia.
Não há dúvidas que os cortiços ou casas de cômodo eram de fato
insalubres. A aglomeração de pessoas, os cômodos sem ventilação e a
precariedade da estrutura sanitária funcionavam como focos de doen-
ças e epidemias. No entanto, para o Estado, a resolução do problema se
resumiria na erradicação dos cortiços, sem que houvesse soluções que
abrangessem os problemas de saúde pública que assolavam a cidade, os
quais não se restringiam apenas à questão da habitação, pois estariam
interligados de fato à ineficiência dos serviços públicos oferecidos à po-
pulação.
Associado à realidade dos cortiços e aos sujeitos que a habitavam,
é possível aludirmos ao debate sobre as “classes perigosas”. Chalhoub
(1995) conceitua as classes perigosas a partir dos parâmetros de ocio-
sidade e de pobreza. O primeiro diz respeito à ideia veiculada pela elite
de que, por terem os negros vivido na escravidão, não poderiam inse-
rir-se plenamente no sistema capitalista, restando apenas como opção a
ociosidade, acompanhada de vícios e desordem. Já o segundo parâme-
tro considera a pobreza de um indivíduo um elemento suficiente para
torná-lo um suspeito em potencial. Assim, pobre, vicioso ou perigoso
são expressões que passaram a ter a mesma conotação, referindo-se às
pessoas de um grupo social específico.
A ideologia de formação de uma cidade ideal e civilizada foi capaz
de incitar a segregação social. O Código de Posturas da Cidade do Rio
de Janeiro e o pensamento sobre o homem civilizado mostravam uma
relação direta com a construção das narrativas sobre as “classes perigo-
sas” – pobres ex-escravizados – interferindo na reprodução da vida dos
mesmos sujeitos que foram excluídos e deixados à margem da socieda-
de moderna. Instaurava-se, assim, desde os primórdios da urbanização
carioca, um processo de racismo e injustiça ambiental, cuja área central
e a zona portuária foram alvos preferenciais.
288 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

As reformas de Pereira Passos, o “Haussmann tropical”

Entre os projetos do presidente Rodrigues Alves (1902-1906), estariam


a remodelação e o saneamento da cidade do Rio de Janeiro com os obje-
tivos de eliminar os resquícios da sociedade escravista, erguer um cená-
rio modernizante vinculado à República e consolidar o setor imobiliá-
rio. Somado à resolução dos dilemas higiênicos e sanitários, Rodrigues
Alves indicou o engenheiro Pereira Passos para comandar a Comissão
de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro (Benchimol, 1992).
A Comissão se pautava no tecnicismo, seguindo a visão constituída
pelas classes abastadas de que a população pobre/negra apresentava o
maior risco de contágio das doenças. Era necessário, assim, exclui-la da
formulação da cidade ideal. A segregação social na estruturação da área
central carioca era intensificada por ações discriminatórias que paira-
vam sobre a sociedade.
Vale ressaltar que o discurso contra as habitações coletivas interes-
sou sobremaneira a grupos empresariais atentos às oportunidades de
investimentos abertas com a expansão e as transformações da malha
urbana. Haveria um enorme potencial para a especulação na construção
de moradias e no provimento da infraestrutura indispensável à ocupa-
ção de novas áreas da cidade (Chalhoub, 1995). Como abordado na se-
ção anterior, o discurso higienista e sanitário enfatizava que a erradica-
ção das moradias consideradas insalubres era a solução para o problema
das epidemias.
Salienta-se que a vinda dos imigrantes europeus era fundamentada
no ideário cidade civilizada, e o branqueamento da população passou
a ser um objetivo perseguido. Desta maneira, a área central deveria ser
ocupada por sujeitos “civilizados” que não se enquadrariam como “clas-
ses perigosas”. Esse processo, aliado às reformas urbanas empreendidas
por Pereira Passos, trariam o status desejado à área central carioca. Esta
idealização, no entanto, chocava-se diretamente com a realidade de in-
tenso fluxo de ex-escravizados vindos de todas as partes do Brasil para
o Rio de Janeiro (Araujo, 2020).
É necessário considerar que além do higienismo, havia também o
pensamento eugenista, desenvolvido por Francis Galton (1822-1911),
que sustentava que a raça humana poderia ser melhorada evitando cru-
Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 289

zamentos indesejáveis e incentivando os cruzamentos entre o estoque


de “indivíduos superiores” (Boarini, 2003).
Chalhoub (2012) destaca que o objetivo do governo nos primeiros anos
da República era associar o trabalho ao caráter. Nos processos criminais
levantados pelo autor, a defesa de vários dos envolvidos – seja no papel de
acusado ou ofendido – era declarar-se como “morigerado” e “trabalhador”
(Chalhoub, 2012), no qual o primeiro estaria associado à forma como os
sujeitos deveriam se portar, sendo detentores de bons costumes e regrados.
Vale ressaltar que, conforme visto, a compreensão de bons costumes
era ditada por um padrão europeu, e tudo o que fugisse desse padrão
era considerado como bárbaro, o que permanece, em certa medida, até
os dias atuais. Desta forma, o trabalho informal que se disseminou na
cidade entre as populações mais pobres e negras era extremamente mal-
-visto e coibido pelo Estado (Chalhoub, 2012).
Em meio às transformações dos espaços da cidade, Pereira Passos
iniciou um processo considerado como de “ordenamento”, quando em
nome da higiene e da estética promulgou decretos que dificultavam as
ações de quiosques de vendas e delimitou o trabalho dos vendedores
ambulantes. Além disso, Passos impôs regras contra a cultura popular
local ao perseguir de forma sistemática o candomblé e os cultos reli-
giosos de origem africana, processo que expressa, também, o racismo
ambiental como elemento estruturador da instituição da “ordem”. Por
fim, foram promulgadas medidas de proibição de urinar nos espaços
públicos, cuspir nas ruas, empinar pipas, fazer fogueiras, soltar fogos de
artifícios e balões de São João. Sendo assim, as medidas de embeleza-
mento do espaço urbano eram baseadas novamente nos anseios da elite
local que vigoravam desde o final do século XIX (Benchimol, 1995). A
relação estabelecida entre “ordem” e “limpeza” buscava, portanto, redi-
mir tudo o que desafiasse o controle e o poder do Estado (Silva, 1997).
Dialogando com Gondra (2004), compreende-se que no âmbito des-
se discurso higienista e sanitarista, buscava-se também uma higieniza-
ção dos próprios sujeitos sociais. Era necessário cultivar um “homem
novo”, o que implicava inclusive se desfazer de tradições, crenças e reli-
giosidades que não se enquadrassem no modelo europeu de civilidade,
entendido como a única saída para a ordem e o progresso do país. Em
prol da elite, as classes mais pobres afrodescendentes deveriam se en-
290 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

quadrar a uma única racionalidade eurocêntrica criada com determina-


das maneiras e costumes de ser, negando e excluindo o Outro.
O conceito eugenista reforçava esse processo. O intuito das políticas
de imigração, como já salientado, era “clarear” a população e apagar o
passado escravocrata, assim como seus saberes e fazeres (Boarini, 2003).
Como visto, desde o início do século XIX, a formação do espaço
urbano já segregava compulsoriamente os grupos de classes menos fa-
vorecidas e negras, deixando-os à margem da sociedade. Expulsos do
centro e impedidos de se assentar até nos locais mais distantes e mais
econômicos, os pobres acabaram por encontrar novos espaços para re-
sidir: os morros vazios nas proximidades da área central. A autocons-
trução com materiais precários sobre terrenos de propriedade incerta se
difundiu rapidamente e a favela começou a se fazer notar na paisagem
da cidade (Vaz, 1994; Chalhoub, 1995).
Como resultado, verifica-se que as reformas urbanísticas deslocaram a
população marginalizada, pobre e negra, dos espaços urbanos mais cen-
trais ou mais valorizados pelo mercado. Mais do que a cidade colonial
ou imperial, a cidade, sob a República, expulsa, segrega e destina uma
parcela desproporcional das consequências ambientais negativas das in-
tervenções urbanas a um determinado grupo social (pobre/negro). Além
disso, considerando a dimensão holística do termo “ambiental”, é possível
identificar o racismo e a injustiça ambiental na medida em que as práticas
espaciais, culturais e religiosas dos pobres e negros são continuamente
negadas. As epidemias provocadas pela densidade habitacional e pela
falta de saneamento forneciam o argumento para a “limpeza” social que
implicava numa nova disciplina ética e cultural, em um novo tratamen-
to estético e paisagístico, além da remoção dos pobres afrodescendentes
com seu estilo de vida, para as periferias, morros e subúrbios. Contudo, o
Estado sentiria também as resistências e r-existências (Gonçalves, 2006),
como as expressas na Revolta da Vacina, em 1904.

A Revolta da Vacina, um momento de resistência

No início do século XX, o médico sanitarista Oswaldo Cruz assumiu a


Diretoria Geral de Saúde Pública, prometendo extinguir as epidemias
Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 291

que assolavam o Rio de Janeiro. Para realizar suas campanhas de higie-


nização, eram acionados discursos persuasivos que influenciavam a for-
mação da opinião pública, emoldurando leis rigorosas que carregavam
a narrativa da necessidade de demolição das habitações não higiênicas
para solucionar as epidemias (Benchimol, 1992).
Em 1904, a cidade foi assolada por uma intensa epidemia de varíola
e o governo encaminhou ao Congresso o projeto que tornava obriga-
tória a vacinação em todo o território. As brigadas sanitárias detinham
o poder de entrar nas casas e vacinar as pessoas à força. A maioria da
população ainda desconhecia e temia os efeitos que a injeção de líquidos
desconhecidos poderia causar. A vacina obrigatória juntou forças so-
ciais contra o governo, culminando com a rebelião denominada Revolta
da Vacina (Benchimol, 1992).
A vacinação obrigatória, por um lado, estabelecia uma ingerência es-
tatal sobre a vida privada dos moradores, desconsiderando suas vonta-
des e temores. Nota-se que não havia a preocupação de explicar para as
classes menos favorecidas o que significava a vacina, afinal, este método
era desconhecido pela grande massa. Por outro lado, banalizava-se mais
uma vez a necessidade de incluir e demonstrar o pertencimento dos
grupos marginalizados – que eram pobres e prioritariamente negros –
nas questões que tomavam a cidade. Esses sujeitos deveriam se adequar,
mesmo que à força, a uma vacinação.
A partir do momento que a existência da segregação racial é aceita e
legitimada visando a ascensão de um grupo racial – que utiliza de meca-
nismos institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos
– afirma-se uma sociedade estruturalmente racista (Almeida, 2019) que
institucionaliza o racismo ambiental. Naquele período, as ações eram
concretizadas pelas políticas discriminatórias que pautavam as decisões
do Estado. A Revolta da Vacina foi fruto da mobilização da população
que apenas recebia o ônus da atuação de um Estado unidimensional,
fragmentador, centralizador e simplificador impulsionado por um pro-
cesso de modernização excludente.
Os Códigos, a imposição de “ordem” e discursos dela derivados fo-
mentavam a ideia de que as práticas ancestrais e culturais das classes
mais pobres e negras não seriam parte constituinte da cidade idealizada
pelas elites. Os desejos das classes abastadas e brancas formulavam o
292 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

que deveria ser considerado como civilizado e fomentava a divisão es-


pacial dos grupos.
Nesse sentido, ao retirar as formações culturais e costumes que um
sujeito carrega na tentativa de personificá-lo em prol da formação de
uma população “civilizada”, é legitimado o silenciamento e invisibilida-
de deste grupo.
Sevcenko (2018) descreve que nunca se contaram os mortos da
Revolta da Vacina. Tentaram reduzir a autêntica rebelião social a uma
caricatura de baderna urbana: fútil, atabalhoada e inconsequente. Esta
adequação que as autoridades tentaram instaurar visava reformular e
suprimir o que realmente representou aquela mobilização social.
A população carioca, já marginalizada pela falta de atenção pública
no período pós-escravidão, necessitava estabelecer estratégias de resis-
tência, r-existência e reapropriação para viver um projeto de cidade que
não a contemplava. A Revolta da Vacina foi então um momento em
que estas pessoas resistiram, a despeito de uma sociedade que tentava
apagar sua relevância e apagá-las do território. Não seria mais possível
neutralizar a existência desses grupos. A rebelião popular ocorreu de-
vido à constante opressão a que esses grupos marginalizados eram aco-
metidos. Em outras palavras, a Revolta da Vacina já evidenciava um dos
principais significados epistemológico-políticos do discurso higienista
e sanitário aliado à uma visão eugenista: a instauração de um processo
que chamamos aqui de racismo ambiental.

O século XX e as contradições do espaço urbano carioca

A gestão de Pereira Passos (1902-1906) e seus desdobramentos intensi-


ficaram o processo de estratificação do espaço urbano carioca. A partir
de então, a cidade passou a adquirir uma fisionomia totalmente nova,
condizente com as determinações dominantes econômicas e ideológicas
do momento. De acordo com essa visão, o Rio de Janeiro superaria a
condição de cidade colonial escravista, transformando-se em um espa-
ço urbano adequado às exigências do modo de produção capitalista.
O alargamento das ruas e a abertura de novas vias destruíram quar-
teirões de cortiços, habitados pela população menos favorecida. Me-
Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 293

diante essa condição, os morros no centro da cidade (Providência, São


Carlos, Santo Antônio e outros), até então relativamente pouco habita-
dos, passaram a ser rapidamente ocupados dando origem às favelas, for-
ma de habitação popular que marca profundamente a feição da cidade
nos dias de hoje.
Em decorrência das comemorações do primeiro centenário da Inde-
pendência do Brasil e vislumbrando transformações estéticas na cidade
em prol de acolher grandes números de turistas e personalidades nacio-
nais e estrangeiras, o prefeito Carlos Sampaio (1920-1922) mandou re-
mover do centro da cidade o Morro do Castelo (Abreu, 2013). Mais uma
vez, o discurso da higiene e da areação foram acionados para justificar a
demolição do sítio, ocupado majoritariamente por uma população po-
bre. A necessidade de eliminação deste morro não se atrelava de fato
à higiene e à estética, mas sim à criação de condições para a acumula-
ção de capital, já que sua localização nas proximidades da Avenida Rio
Branco, principal logradouro da cidade, conformavam em seu entorno
um alto potencial de valorização fundiária (Maricato, 1995).
O Rio de Janeiro mantinha um processo de urbanização centraliza-
dor e segregador. O lugar de residência da população pobre, margina-
lizada e negra que antes ocorria em cortiços, estava agora no alto dos
morros e permanecia sem acesso às reformas sanitárias que ocorriam
na cidade. Mais uma vez, esses sujeitos habitavam espaços onde o Es-
tado não desejava atuar, contribuindo cada vez mais para a formação
do racismo estrutural e institucional. Pode-se identificar que a evolução
urbana do Rio de Janeiro, em especial dos bairros centrais, foi pautada
em grande medida pelo discurso de estabelecer padrões de salubridade
e higiene, e o preço injusto deste processo foi a segregação socioespacial
e a desterritorialização de determinados sujeitos (pobres e negros). Tra-
ta-se, portanto, da instauração e institucionalização de um processo de
racismo e injustiça ambiental.
A partir da segunda metade do século XX, as favelas substituem os
cortiços nas narrativas em torno da insalubridade e da falta de higie-
ne. No entanto, a população alvo desta construção imagética continua
a mesma: os pobres e negros, historicamente taxados como “classes pe-
rigosas”. Os planos urbanísticos idealizados para a área central, por sua
vez, continuam destinando de forma desproporcional a maior parcela
294 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

dos danos ambientais a esses sujeitos, além de fomentar, por meio de


diversas estratégias, o seu apagamento histórico-cultural.

Renova-se o discurso, mantem-se os fins: do sanitarismo à sus-


tentabilidade das cidades globais

As seções anteriores deste capítulo buscaram colocar em evidência a in-


justiça e o racismo ambiental institucionalizados nas práticas urbanísti-
cas voltadas para a área central e, mais especificamente, a zona portuária
do Rio de Janeiro, ao longo do seu processo de formação. A segregação e
exclusão social de pobres e negros, profundamente associada à injustiça
e ao racismo ambiental, permanece como um elemento estruturante na
história da cidade.
A zona portuária foi considerada, em toda a sua história, como uma
parcela da cidade desvalorizada e habitada por uma população margi-
nalizada. Com a modernização das atividades portuárias, desde os anos
1970, a região sofre mais um revés em sua história, uma vez que o de-
clínio das atividades comerciais associadas à presença do porto não só
afetou a circulação do capital, mas, sobretudo, ajudou a consolidar a
imagem da zona portuária como uma área “vazia”, abandonada, degra-
dada e esquecida (Soares, 2019).
A partir dos anos 1990, após décadas de abandono, novos olhares e
práticas se voltam para a região, reatualizando o discurso sanitarista e
higienista que, argumentamos, legitima a injustiça e o racismo ambien-
tal. Os novos discursos pautam-se em novas bases, porém, seus fins con-
tinuam os mesmos, quais sejam: segregar e excluir (ou mercantilizar) a
população indesejada pelas elites que detém as condições de indicar os
rumos da cidade.
As novas bases que atualizam o discurso sanitarista estão pautadas
no debate ambiental que se coloca na escala global desde os anos 1960 e
se fortalece a partir dos anos 1990, período em que também as políticas
urbanas são reconfiguradas, tornando a produção das cidades em si es-
tratégia fundamental para viabilizar a acumulação de capital.
De acordo com Harvey (1996), no contexto de crise que se esta-
beleceu desde os anos 1970 em escala global, a lógica corporativa foi
Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 295

transferida às cidades, que passaram a assumir a condição de empresas,


estruturando-se como tais. Trata-se, assim, de um período no qual as
cidades tornam-se atores centrais do processo de acumulação, colocan-
do-se à venda no mercado internacional e competindo entre si, o que
confere grande importância aos discursos e imagens que as veiculam
nesse mercado.
Sendo assim, os planos urbanísticos e propostas de renovação urba-
na passam a se atrelar ao discurso do desenvolvimento sustentável que,
de um lado, confere legitimidade às transformações urbanas e, por outro
lado, ilumina as imagens e narrativas construídas sobre as cidades em dis-
puta no mercado global, apresentando-se como elemento diferencial.
A partir da década de 1960, a racionalidade do desenvolvimento eco-
nômico aliada à visão tecnicista da reprodução do espaço começa a dar
sinais de esgotamento. Constata-se a incapacidade do capitalismo para
internalizar as “externalidades” geradas pelo sistema – o crescimento da
desigualdade social e da pobreza e o colapso ecológico –, as quais passa-
ram a apontar limites para a acumulação (Leff, 2015).
A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvol-
vimento, realizada em 1992 no Rio de Janeiro, disseminou a concepção
de desenvolvimento sustentável, sintetizada no princípio terceiro da De-
claração de Rio: o direito ao desenvolvimento deve exercer-se de forma
tal que responda equitativamente às necessidades de desenvolvimento
e ambientais das gerações presentes e futuras. Tal discurso passa a se
inscrever como um instrumento de poder associado às novas estratégias
para a acumulação de capital.
O contexto de cidade global, de modo geral, acarreta processos de
reestruturação, requalificação e regeneração urbana que têm como foco
a transformação das áreas degradadas e a criação de novas identidades.
Harvey (1996) indica que um dos principais aspectos deste fenômeno
é a (re)invenção das cidades por meio do (re)desenho de suas áreas va-
zias, no qual novas arquiteturas (espetaculares) e a ressignificação dos
espaços públicos degradados visam alterar a imagem do lugar. Para o
autor, a competição interurbana implica numa reprodução em série de
formas similares de renovação urbana, reproduzindo sistematicamente
determinados padrões de empreendimentos imobiliários, como centros
comerciais, culturais, shopping centers, entre outros.
296 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A formação de cidade globais e os projetos de requalificação do es-


paço urbano apresentam um processo de homogeneização da cidade,
subjugando os saberes e culturas locais e degradando a qualidade de
vida dos sujeitos que residem neste espaço. Este processo de empre-
sariamento urbano que utiliza o uso solo como mercadoria fomenta
a formação de um espaço que não representa a sociedade e cultura
local. Essa transformação no modo de se conceber, planejar e gerir
as cidades aciona frequentemente o discurso da inovação e sustenta-
bilidade como elementos centrais. As novas edificações – e também
meios de transporte, museus etc. – planejadas/construídas passam a
seguir padrões de sustentabilidade internacionais, ao mesmo tempo
em que as favelas, cortiços e ocupações são apontados como espaços
insustentáveis. Os padrões tecnológicos vinculados à chamada eco-
nomia verde, portanto, são acionados como alavancas para o mar-
keting urbano, tornando-se elementos diferenciais na prateleira das
cidades globais.
A zona portuária do Rio de Janeiro, com a entrada em cena do pro-
jeto Porto Maravilha em 2009, torna-se um espaço emblemático dessas
transformações, conforme será visto na seção a seguir.

Porto Maravilha: um projeto sustentável?

Em 2009, foi aprovado o projeto Porto Maravilha, que retirava do papel


planos e projetos que vinham sendo discutidos há mais de três décadas,
desta vez por meio do instrumento da Operação Urbana Consorciada
(OUC). O Porto Maravilha se constituiria como a maior parceria públi-
co-privada realizada até então no Brasil.
Inicialmente, pretendia-se incluir a zona portuária no pacote das
obras que preparariam a cidade para os Jogos Olímpicos Rio 2016. Po-
rém, tal inclusão se mostrou complexa, pois a região não obtinha gran-
des apelos turísticos e possuía problemas infraestruturais significativos,
além de sofrer com os processos de degradação física e simbólica e um
grande esvaziamento populacional. Por outro lado, a zona portuária
apresentava-se como um cenário ideal para um projeto de requalifica-
ção urbana. Como evidenciado nas seções anteriores, tratava-se de uma
Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 297

região habitada pelas chamadas “classes perigosas” e que, portanto, de-


veria ser profundamente transformada.
A partir disso, o projeto Porto Maravilha surge com o discurso de
transformar a zona portuária em uma área urbana que esteja integrada
à cidade, possibilitando que todos tenham o direito a uma cidade “sus-
tentável”, tal como expresso pelos promotores do projeto:

A reinvenção daquele espaço urbano [zona portuária] se dá em um mo-


mento em que o País e a cidade vivenciam processo de crescimento eco-
nômico e redução das desigualdades. A revitalização surge como opor-
tunidade de reafirmar e reforçar o papel dinâmico do centro da cidade
a partir da atração de novos empreendimentos residenciais e comerciais
para adensar a região, enquanto retoma a valorização de sua memória e
identidade. Baseada em parâmetros de sustentabilidade ambiental para
a requalificação urbana, a Região Portuária se transforma e assume a con-
dição de referência de espaço urbano voltado principalmente para o bem-
-estar das pessoas. [...] Depois de anos de estagnação, o Rio vive momento
de aquecimento. O processo de pacificação das comunidades dominadas
pelo tráfico de drogas gerou impacto positivo significativo sobre o merca-
do imobiliário em várias partes da cidade. [...] Há que acrescentar que isso
se dá em momento de debate sobre expansão urbana, marcado pela busca
de uma cidade sustentável, integrada e voltada às pessoas. [...] O proces-
so só encontra sentido e fundamento se atingir o objetivo de proporcionar
melhor qualidade de vida aos seus atuais e futuros moradores e garantir
a sustentabilidade ambiental e socioeconômica da região.4

No entanto, as transformações que ocorreram naquele espaço, as


quais objetivavam integrar, qualificar e torná-lo salubre, implicaram na
continuidade do processo de racismo e injustiça ambiental iniciado des-
de o século XIX na zona portuária. Na tentativa de solucionar as pro-
blemáticas existentes (ou a partir de um discurso neste sentido), o que
ocorreu e ocorre é uma hierarquização do poder, em que determinadas
classes/grupos sociais detêm o controle do espaço.

4 Disponível em: https://portomaravilha.com.br/permanencias_e_mudancas. Acesso


em: 28 jan. 2021. Grifos nossos.
298 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Somando-se a isso, têm-se um baixo investimento em habitação e as


controversas estatísticas das remoções que foram realizadas, sem que
houvesse um prévio debate com a população. De acordo com Giannella
(2015), tratou-se de um projeto com poucas audiências públicas, per-
manecendo muito restrito às empresas envolvidas e à prefeitura, cho-
cando-se diretamente com o discurso de “cidade sustentável, integrada
e voltada às pessoas” destacado acima. Os principais afetados, isto é, os
moradores locais, não tiveram participação em um projeto de cidade
que transformou significativamente seu território de vida. Muito pelo
contrário. Eles não apenas não participaram do projeto, como foram
excluídos do mesmo, sendo expulsos dos seus territórios direta ou indi-
retamente e/ou arcando, sobretudo, com os ônus do projeto – remoções
(e ameaças de remoção) de favelas, cortiços e ocupações; especulação
imobiliária; problemas de mobilidade urbana, em especial pela extinção
de linhas de ônibus; existência de diversas obras inacabadas, gerando
insegurança e riscos ambientais; esvaziamento do comércio de rua in-
formal; chegada de novos sujeitos, junto com os novos empreendimen-
tos comerciais; construção de novas áreas de lazer inacessíveis para a
população de baixa renda, etc.
Importa mencionar também o acionamento do discurso do risco
ambiental para a promoção de remoções pela prefeitura no contexto das
obras do Programa Morar Carioca no Morro da Providência, projeto de
urbanização de favelas que foi atrelado ao Porto Maravilha. Propunha-se
a remoção de centenas de famílias que estariam vivendo em áreas de risco
no morro, contando com a legitimidade de um relatório técnico da Fun-
dação Instituto de Geotécnica do Município do Rio de Janeiro (Geo-Rio).
A mobilização de moradores e ativistas, junto com defensores públicos do
estado do Rio de Janeiro, engenheiros e geólogos, levou à construção do
chamado “contralaudo”, comprovando a inexistência do risco – ou a pos-
sibilidade de que fossem sanados com obras simples de contenção – para
a quase totalidade das casas ameaçadas de remoção (Giannella, 2015).
A questão habitacional, assim, talvez seja a particularidade mais vio-
lenta do Porto Maravilha. A “melhoria” da qualidade de vida proposta
e disseminada pela retórica transformadora não só não ocorreu, como
também significou a desterritorialização de diversas ocupações urbanas
e outros grupos sociais excluídos (Giannella, 2015). Ou talvez ela tenha
Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 299

sido pensada/destinada apenas aos “futuros moradores”. Novamente, ao


“novo homem”, como interpretado por Gondra (2004).
Ainda dentro desse contexto, apesar da realização dos trabalhos de
arqueologia em obras de restauração pontuais, os investimentos na con-
servação do patrimônio cultural urbano ficaram aquém da dimensão da
zona portuária. A maior parte dos recursos que deveria ser destinado à
recuperação do patrimônio cultural, de acordo com a Lei complementar
101/2009, foi destinada à criação de dois novos museus: o Museu de
Arte do Rio e o Museu do Amanhã (Sarue, 2019).
A maior parte do valor investido na construção do Museu do Amanhã
foi transferida das obras de infraestrutura previstas para a favela do Morro
do Pinto (Soares, 2019). Nota-se que o empresariamento urbano instau-
rou um processo de inversão de prioridades, no qual a criação dos novos
museus drenou parte dos investimentos destinados à recuperação do pa-
trimônio e à infraestrutura para as comunidades locais (Sarue, 2019).
O discurso do desenvolvimento sustentável na zona portuária ins-
creve-se assim como uma política que simplifica a complexidade das
relações sociedade/meio ambiente/economia e que, por consequência,
acaba destruindo as identidades culturais e segregando as populações
que historicamente r-existem no território em questão.
Ao mesmo tempo, são estabelecidas estratégias de mercantilização da
cultura local que, todavia, não tem resultado em dinâmicas sistemáticas
de geração de emprego e renda para a população. O sítio arqueológico
do Cais do Valongo é um exemplo deste processo. Este monumento foi
estrategicamente apropriado e referenciado por parte da esfera pública,
com a construção de um consenso social sobre a sua relevância e ne-
cessidade de preservação e, sobretudo, valorização da herança africana,
espetacularizando o contexto sócio-histórico do território. Com o início
das obras do Porto Maravilha, o Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional (IPHAN) iniciou estudos de pesquisa arqueológica no
local do Cais do Valongo e, em 2011, foram desenterradas diversas ca-
madas do Cais e artefatos trazidos pelos africanos escravizados entre os
anos de 1774 e 1831 (Araujo, 2020). Contudo, o Cais do Valongo carece
de apoio por parte da esfera pública para sua manutenção e para seu
reconhecimento no legado afro-brasileiro que resiste em meio a tantas
incertezas (Bona e Neto, 2019).
300 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Compreende-se, assim, que esse desenvolvimento, na realidade, é in-


sustentável, pois não permite satisfazer as necessidades de quem vive o
espaço, apenas gera um apagamento histórico e a desterritorialização de
determinados grupos sociais, em especial, pobres e negros que histori-
camente existem e r-existem na zona portuária.
Para Enrique Leff (2015), o desenvolvimento sustentável é um con-
ceito que transcende o ecologismo; é a formação de um ambiente igua-
litário, descentralizado, e autogestionário, capaz de satisfazer as neces-
sidades básicas das populações. Ou seja, ele dialoga diretamente com a
justiça ambiental, discutida no início desse capítulo. A zona portuária
não se enquadra na concepção de cidade sustentável, uma vez que os
projetos e reformas promovidos neste espaço implicaram em um de-
senvolvimento insustentável que fomentou historicamente a pobreza,
segregação e um processo de racismo e injustiça ambiental.

Para além e apesar do desenvolvimento sustentável, as r-existên-


cias

A disputa pelo território da zona portuária do Rio de Janeiro envolve


uma segregação socioespacial e o processo de desterritorialização de
certos sujeitos. A desigualdade ambiental aparece como expressão da
desigualdade social e racial. Ou seja, a população pobre e negra apresen-
ta menor capacidade de se fazer ouvir, estando mais exposta aos riscos
ambientais de toda ordem (Ascelrad, 2004).
Observa-se, assim, na zona portuária, um espaço urbano dual, for-
mado, de um lado, por paisagens que arquitetam uma vitrine e, por ou-
tro, pelo espaço vivido pelos sujeitos excluídos dos processos decisórios.
Entretanto, como ressalta Araujo (2020), o que “define o lugar de um
ou outro grupo são os discursos sobre suas significações e seus valores
simbólicos” (p. 108). Ou seja, para se (re)apropriar de um espaço, de-
ve-se deter o discurso e os saberes dele e, para tanto, deve-se recuperar
a memória dos sujeitos que lutam por suas identidades e pelo pertenci-
mento de seus territórios.
A zona portuária é um espaço vivo e que representa a existência e
r-existência de um povo. A partir de Gonçalves (2006), compreende-se
Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 301

que mais do que resistência, “o que se tem é r-existência posto que não
se reage, simplesmente a ação alheia, mas, sim, que algo pré-existe e é a
partir dessa existência que se r-existe. Existo, logo resisto. R-existo” (p.
51). Assim, a zona portuária se configura em um espaço de saberes e fa-
zeres que se, por um lado, busca-se apagar e se fazer esquecer, por outro,
vive, (re)vive, existe, r-existe e faz lembrar dos sujeitos e das gerações de
famílias que residem neste território e contribuíram para a construção
identitária desse local. Ou seja, de sujeitos que lutam pela afirmação de
sua identidade histórica. Que lutam pela reapropriação da denominada
Pequena África. Que lutam para lembrarmos dos escravizados africanos
e seus descendentes. Que reivindicam a memória negra e, com isso, um
território que lhes é de direito (Araujo, 2020).
A zona portuária é um território de lutas e mobilizações urbanas no
qual o sentimento de pertencimento está estreitamente relacionado com
a identidade local, e estreitamente inserido na vida de seus moradores.
Um local historicamente de resistência negra.
Como exemplo que expressa a luta desses sujeitos, destaca-se o Ins-
tituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, que representa um local
de resistência que auxilia na compreensão da trajetória e dos diferentes
usos e apropriações deste território ao longo do tempo em que a cultura
negra na zona portuária esteve silenciada. Outro exemplo, já citado, está
na luta dos moradores do Morro da Providência contra as remoções,
nos primeiros anos do projeto Porto Maravilha.
Outra manifestação de destaque são os grafites espalhados pelos lo-
cais marginalizados da zona portuária, em especial na Pedra do Sal, lu-
gar de grande representatividade afrodescendente. Esses grafites repre-
sentam espaços de luta desses sujeitos, em que frases simbólicas como
“vende-se a carne negra” e “no princípio era grito” fazem alusão à polí-
tica racista e ao genocídio do povo negro.
Observa-se aí a luta por melhores condições de vida e pela afirma-
ção de saberes e identidades, vislumbrando uma cidade onde possam
construir e definir suas territorialidades, na qual o território represente
as práticas, sentidos e as sensibilidades dos sujeitos. Representa, entre
tantos outros, a luta de um povo pela sua memória, pelo seu espaço de
vida, pelo direito ao seu território, pela sua existência.
302 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Considerações finais

Verifica-se que as políticas de intervenção urbana na zona portuária


desde o início do século XIX, pautadas em um discurso sanitarista, hi-
gienista e eugenista que transita para um discurso de desenvolvimento
sustentável no final do século XX, apesar de suas particularidades, man-
tiveram e mantêm como denominador comum a instauração e legiti-
mação de um processo de racismo e injustiça ambiental que segrega e
exclui determinados grupos sociais de um projeto de cidade: pobres e
negros.
No século XIX, o discurso sanitário, higienista e eugenista ganha for-
ça a partir da construção e promoção de diferentes relações entre: de-
sordem urbana, degeneração moral e física, epidemias, pobres, negros,
ociosidade e classes perigosas. Desde então e no decorrer de todo o sé-
culo XX, portanto, as políticas de intervenção urbana na zona portuá-
ria são pautadas por esse discurso que respalda as adequações da área
central à fachada civilizatória, progressista e modernizante e sepulta a
simbologia de um passado escravista. Ou seja, um projeto de cidade que
exclui e segrega os sujeitos que vivem nesse espaço, majoritariamente
pobres e negros.
A partir do final do século XX, com a pauta ambiental em cena, o
discurso epistemológico-político associado às reformas e transforma-
ções urbanas ganha novos elementos. A formação de cidades globais
aliada ao discurso do desenvolvimento sustentável passa assim a pro-
mover transformações na reprodução do espaço urbano.
No contexto pré-olímpico, a zona portuária se torna um local ideal
para a realização de um projeto de requalificação – o projeto Porto Ma-
ravilha – respaldado por um discurso de desenvolvimento sustentável.
Sua associação com a degradação-pobreza-violência, relações construí-
das desde o século XIX, mais uma vez legitima desterritorializações e
exclui os principais sujeitos afetados pelo projeto em questão. O Porto
Maravilha intensifica assim o processo de racismo e injustiça ambiental
na zona portuária.
Verifica-se que o preço pago pelos planos urbanísticos idealizados
desde o século XIX atinge principalmente a população pobre e negra, na
qual a questão racial e de classe estão intimamente ligadas, excluindo-os
Intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro 303

de um projeto de cidade, que nega seus direitos, suas identidades e afir-


ma o apagamento histórico e cultural desses sujeitos.
Entretanto, esses sujeitos resistem e r-existem e lutam pela sua me-
mória, pela reapropriação da Pequena África, pelas suas identidades,
pelos seus saberes e fazeres, pelo seu território, na busca por uma cidade
em que possam construir e definir suas territorialidades, na qual o es-
paço represente as práticas, os sentidos e as sensibilidade dos sujeitos e
grupos que lá residem.
Por fim, busca-se assim evidenciar e fortalecer a luta dessas e de
outras populações por mais direitos e liberdades e, espera-se que esse
ensaio desperte a atenção, em especial dos engenheiros de uma forma
geral, das várias formas de opressão que as políticas de intervenção ur-
bana pautadas em discursos tecnicistas podem gerar na transformação
do espaço urbano.

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307
Foto: Série Favelicidades, Luiz Baltar
CAPÍTULO 12

“Nossos mortos têm voz”


Descolonização e luta espacial antirracista
na Pequena África
Denilson Araújo de Oliveira

Introdução

Nas últimas duas décadas, obras na área central e na zona portuária


da cidade do Rio de Janeiro têm revelado marcas do passado colonial
que grupos conservadores e reacionários não querem lembrar. Formas
espaciais da violenta diáspora africana e da escravidão racial têm sido
silenciadas e subalternizadas pelo poder público para afirmar o Rio de
Janeiro pós-moderno voltado para o turismo internacional, de grandes
eventos e empreendimentos por meio das políticas de city marketing
que buscam inserir a cidade no mundo globalizado (Oliveira, 2014).
Abandono, desinvestimento, remoções, descaso e especulação imo-
biliária têm sido uma das marcas da gestão dos patrimônios negros
“descobertos” em escavações, especialmente nas obras do projeto Porto
Maravilha e do veículo leve sobre trilhos (VLT). A luta do Movimento
Negro tem se constituído como um elemento central para retirar do si-
lêncio e da penumbra milhares de mortos da escravidão enterrados na
região e os patrimônios negros da diáspora.
Nosso objetivo neste ensaio é compreender como o racismo e a luta
antirracista foram se inscrevendo na produção social do espaço. Nossa
hipótese é que as marcas da escravidão e as atuais formas de gestão do
espaço visam produzir um imaginário espacial racista sobre as popula-
ções negras regidas pelo confinamento, interdição, controle e constran-
gimento na produção, apropriação e uso do espaço pelos/dos negros.

309
310 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Racismo e a produção social do espaço

O espaço geográfico é historicamente produzido (Santos, 2002). Fruto


de inúmeras tensões e ajustamentos de diferentes atores, escalas, con-
textos e esferas, o espaço expressa a metamorfose da questão social bra-
sileira nas formas de produção, apropriação e uso que fazemos dele.
O racismo brasileiro, como uma das marcas da nossa complexa ques-
tão social, se inscreve na produção social do espaço. Ele busca apagar as
trajetórias políticas dos negros, invisibilizando, condicionando, confinan-
do, interditando, inviabilizando e interferindo racialmente na produção,
na apropriação e no uso do espaço. O racismo nunca age só. Ele vem
acompanhado e mesclado a outras formas de opressão. A leitura espacial
do racismo antinegro tem sido marcada por silêncios na sociedade brasi-
leira, apesar do crescente número de estudos nos últimos anos.
Num país de formação colonial como o nosso, com mais de três séculos
de escravidão, essas marcas revelam formas espaciais resultantes de pro-
cessos sociais instituídos por nossas relações raciais historicamente vio-
lentas. O racismo é estrutural da formação brasileira (Almeida, 2018). Ele
configurou um sistema-mundo moderno-colonial em que seres humanos
foram destituídos de humanidade pelo escravismo colonial e transforma-
dos em mercadorias. Os escravizados, além de serem mercadorias para
produzir mais mercadorias, eram a base do sistema econômico.
São múltiplos os racismos conformadores da produção social do espa-
ço. Em nossa sociedade o racismo foi instituído na gênese de nossa for-
mação socioespacial como um “padrão de normalidade” (Almeida, 2018)
e se (re)produz intensamente no contexto neoliberal. O neoliberalismo é
um projeto civilizatório (Lander, 2000) que demonstra a permanência da
colonialidade do poder, isto é, a hierarquia do humano pela ideia de raça
(Quijano, 2000). Essa hierarquia tem justificado uma política administra-
da de morte dos grupos racializados classificados como não rentáveis e
de menor valor social (Valverde, 2021). A produção de paisagens raciais
do medo justifica ações violentas dos órgãos de segurança. Assim, enten-
demos que o racismo precisa ser compreendido na análise da produção
social do espaço, pois institui: i) a propriedade como um privilégio racial
masculino e branco; ii) define uma política racial de “lugares de memó-
ria” (Nora, 1993); iii) o branqueamento da paisagem – que busca impor
“Nossos mortos têm voz” 311

na aparência das formas espaciais mundos similares às paisagens euro-


peias como símbolo racial de poder –, da região – para destruir coesões
simbólicas da diáspora africana que definem zonas integradas de heran-
ças territoriais de mundos africanos numa dada região – e do território
– como um dos símbolos da modernização do espaço buscando definir
que a ocupação, a imagem e a cultura daquela área geográfica só ganhou
importância com a chegada do branco (Oliveira, 2014; Santos et al., 2017);
e iv) cria e recria formas espaciais que reafirmam uma hierarquia do hu-
mano baseado na ideia de raça, visando reproduzir os falsos complexos
apontados por Fanon (2008): de inferioridade, de dependência e de supe-
rioridade. Esses são apenas alguns exemplos.
Fanon (2008) aponta que é o racista que cria o inferiorizado, logo,
formas raciais de produção, apropriação e uso do espaço. O inferioriza-
do é o símbolo da emoção, sem crédito e expressão tanto da interiori-
zação da inferioridade quanto da epidermização da inferioridade. Essa
ideia instituiu um uso do espaço por critérios raciais (Azevedo, 2018).
Ademais, o autor lembra que o destino do negro é ser branco; assim
sendo, há um processo de alienação de si gerando autodestruição. O
complexo de inferioridade produz apagamento e invisibilização/invia-
bilização das formas espaciais/processos sociais (Harvey, 1980) vincu-
lados aos negros e à diáspora africana. Para Fanon, um branco, mesmo
que pese ser minoria, jamais sentiu o complexo de inferioridade, pois
ele e suas formas espaciais nunca foram tratadas como não-ser, isto é,
nunca transitaram em zonas de opressão.
A política de inviabilização dos patrimônios negros na gestão da cidade
do Rio de Janeiro busca apagar e silenciar o conteúdo violento das formas
espaciais, isto é, uma política de memória espacial que produz um “esque-
cimento consciente” de que a raça foi mobilizada para escravizar pessoas,
dominar territórios, impor uma soberania e hierarquizar o humano.

Lutas antirracistas inscritas na paisagem

A atual Praça XV no Centro do Rio de Janeiro foi um porto de escra-


vizados até 1769. Pereira (2007) afirma que, em função das queixas da
elite local sobre o trânsito e o comércio de escravizados nus, o gover-
312 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

no colonial transferiu o cemitério e o comércio de escravizados para os


atuais bairros da Saúde e Gamboa, que se tornou o maior porto escra-
vagista das Américas. Essas formas espaciais são reveladoras do exercí-
cio do poder soberano, da biopolítica e das biopotências (Pelbart, 2008)
que resistiam à violência da escravidão nos navios negreiros e chegavam
mortos (ou morriam após a chegada) no desembarque.
A colonialidade definiu que crueldade não se aplica aos negros, pois
estes são um problema espacial a ser disciplinado, controlado e contido.
A insubordinação e/ou a revolta dos negros gerava políticas de ordem
racial do espaço (Oliveira, 2011). Estas políticas buscam (re)afirmar o
complexo de autoridade branco se inscrevendo na paisagem para de-
finir quem deve ser visto, portanto, lembrado, ou seja, um “regime de
visibilidade” (Tartaglia, 2018).1
A colonialidade define o branco como o paradigma, o exemplo, o
que possui confiança, aquele que recebe um “salário público psicoló-
gico” como afirma William Du Bois (1935), ou seja, mesmo o bran-
co pobre possui um capital racial que lhe permite usar os espaços do
branco rico sem sofrer qualquer tipo de interdição e/ou constrangi-
mento racial. O negro não possui esse capital. Logo, precisa sempre
de um “cartão de visita” (Oliveira, 2011). Percebemos aí o complexo
de dependência. Esse falso complexo busca instituir formas de sub-
jetivação, ou seja, maneiras de se produzir autoconhecimento, viver,
interpretar a vida engendrando assim, sujeitos imanentes às formas
espaciais da dominação tidas como de importância social. Nesse sen-
tido, um desprestígio social é tido como inerente a tudo o que não for
branco. Guimarães (2018) afirma:

As heranças africanas permanecem sendo subjugadas pelo silenciamen-


to, apagamento e apropriações de suas marcas negras. Neste caso, os
lugares são bem delimitados em erudito para patrimônios de herança
europeia e popular ou folclórica para africana, na verticalidade e não
horizontalidade, onde a primeira é o topo supervalorizado e a segunda
a base desvalorizada (p. 101).

1 Ver Foucault (2005).


“Nossos mortos têm voz” 313

Analisando a área central do Rio de Janeiro, encontramos tanto heran-


ças do racismo inscrito nas rugosidades do espaço (Santos, 2002) quanto
gestões racistas do espaço urbano pelos atuais governantes. Ao caminhar
pela região nomeada por Heitor dos Prazeres de “Pequena África”, na zona
portuária carioca, os ecos históricos do regime de calculada brutalidade e
terrorismo (James, 2010) da escravidão ainda ressoam nas formas espaciais.
A amnésia socialmente construída do conteúdo histórico destes sistemas
de objetos reforça um sistema de ações que nunca descolonizou a produção
social do espaço. Durante mais de um século, essas formas espaciais foram
silenciadas pelo poder público e pelas pesquisas acadêmicas.
As “descobertas” dos sítios arqueológicos da diáspora africana no
Largo de Santa Rita e no bairro da Gamboa, mesmo após pressão do
Movimento Negro, não faz com que o poder estatal desista de passar
trilhos sobre esse “lugar de memória” (Nora, 1993) (ver Figura 1). Con-
tudo, vemos nas formas espaciais pretéritas as inscrições de “agências
negras” (Asante, 2009). Essas agências criam “lugares de memórias cor-
porificadas” que se refere tanto a violências produzidas pelo Estado con-
tra a população negra quanto resistências negras inscritas nas formas
espaciais diaspóricas. A luta frente à política de destruição e esqueci-
mento (Nora, 1993) desses registros corroboram essa tensão frente aos
“lugares de memória corporificados”.

Figura 1. Instalação dos trilhos do VLT revelou um cemitério de


pretos novos no Largo de Santa Rita

Foto de Tomaz Silva (Agência Brasil)


314 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

As “agências negras” também se revelam nas técnicas e nos discursos


ocultos (Scott, 2004) na construção dos objetos espaciais que funcio-
nam como mecanismos de resistência e são geralmente reconhecidos
apenas pelos que dominam o código. Esses grafismos muitas vezes não
são percebidos como imagens para enfretamentos (Scott, 2004). São
práticas culturais afrodiaspóricas restituindo o protagonismo negro,
como a luta contra a opressão racial. Na Pequena África, sobrevivem vá-
rias estruturas projetadas pelo engenheiro negro André Rebouças, um
abolicionista que foi diretor de obras da Alfândega na segunda metade
do século XIX. Rebouças impedia o uso de mão de obra escravizada nas
obras que coordenava, criando estruturas erigidas por trabalhadores
negros livres – na perspectiva de um outro projeto de sociedade – e lu-
tava por uma abolição na qual se comportava a ideia de reforma agrária
como elemento imanente (Oliveira, 2020). Vemos aí a necessidade de
debatermos os conteúdos políticos das rugosidades (Santos, 1978). Re-
cuperar o sentido político das rugosidades tem se constituído uma luta
do Movimento Negro na região da Pequena África. Essas lutas buscam
afirmar a santuarização do território (Mbembe, 2014), como no caso
dos cemitérios de escravizados, isto é, restituí-los como campo santo
afirmando a dignidades dos corpos que foram desumanizados. São lutas
por respeito, homenagem e reconhecimento espacial das histórias que
tentaram ser apagadas. Uma “consciência [espacial] negra do Negro”
(Mbembe, 2014, p. 62).
As ações do Movimento Negro têm criado múltiplas escalas do agir
político na área central e na zona portuária do Rio de Janeiro, tais como:
i) a restauração simbólica dos mundos africanos que se desreterrito-
rializaram na região da Pequena África; ii) políticas de escalas que tem
transformado os patrimônios da diáspora em patrimônios da humani-
dade, reconhecidos pela UNESCO; iii) a afirmação do quilombo urbano
como instrumento de preservação de patrimônios negros da diáspora,
como a Pedra do Sal; iv) usos políticos do espaço por meio da realização
de marchas – como a marcha do dia 21 de março2 –, visitas guiadas a

2 As Nações Unidas celebram nessa data o  Dia Internacional para a Eliminação da


Discriminação Racial, em memória do Massacre de Shaperville, promovido pelo regime
do apartheid sul-africano em 21 de março de 1960. A data foi o ponto de partida para
“Nossos mortos têm voz” 315

estilo de “museu a céu aberto”, cortejos religiosos e celebração da an-


cestralidade afro-brasileiras; v) a politização dos lugares de horror, de
tortura e de violência contra a população negra em lugares de memória
e de produção de consciência das violências raciais com fim de produ-
zir políticas reparatórias; vi) circuitos espaciais de uma economia da
diáspora africana por meio de feiras de produtos de países africanos e
itinerários gastronômicos diaspóricos; e vii) espaços de encontro e cele-
bração da cultura afro-brasileira por meio de rodas culturais de samba,
capoeira e jongo.
Essa “consciência espacial negra” do negro repõe outra escrita da his-
tória dos lugares tanto dos silêncios quanto dos discursos ocultos (Scott,
2004).3 Na Pequena África, muitas histórias ainda não foram contadas.
No contexto colonial, o viajante alemão G. W. Freireyss, comentando os
cadáveres sepultados à flor da terra, ou seja, a um palmo de profundi-
dade, na época de vigência da escravidão, descreveu assim o Cemitério
dos Pretos Novos, na atual Rua Pedro Ernesto:

No meio deste espaço [de 50 braças] havia um monte de terra da qual,


aqui e acolá, saíam restos de cadáveres descobertos pela chuva que ti-
nha carregado a terra e ainda havia muitos cadáveres no chão que não
tinham sido ainda enterrados.4

criação da campanha “21 Dias de Ativismo contra o Racismo”, uma iniciativa de várias


organizações, entidades e ativistas do Movimento Negro, que se juntaram para criar
uma agenda de atividades pacíficas, focadas na reflexão sobre o combate ao racismo.
A Pequena África tem sido usada nesta campanha por várias marchas de pressão para
criação de políticas antirracistas.
3 Na Pequena África as pedreiras são uma marca. É importante lembrar que nas reli-
giões de matriz afro, as pedreiras são campos de ressonâncias do orixá Xangô. A natu-
reza é aí socialmente produzida pela religião. Portanto, discursos ocultos como infrapo-
lítica dos grupos postos como desvalidos (Scott, 2004) são transmitidos e cultuados na
Pedra do Sal, pelos religiosos da umbanda e candomblé, que historicamente constituiu
este espaço de encontro, de criatividade e produção de subjetividades negras com as
rodas de samba e manifestações culturais afro-brasileiras no passado e no presente. São
lutas contra a opressão espiritual e epistêmica que definem ontologias políticas (Esco-
bar, 2015) como instrumento de preservação e defesa de outros modos de ser-estar no
mundo e propõem direitos territoriais negados e subalternizados pelo eurocentrismo.
Fanon (1969) lembra que o foco do racismo cultural é destruir um modo de existência.
4 Trecho extraído do prefácio de José Murilo de Carvalho para o livro de Pereira (2007).
316 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A descrição de Freireyss, de 1814, revela que a noção de brutalida-


de e crueldade, mesmo após mortos, não se aplica aos negros. São po-
tências que não foram domadas pela escravidão. A área descrita pelo
viajante alemão era aquela onde o lixo da cidade era despejado. Esses
corpos eram vistos como “não-seres”. Os grupos responsáveis e pro-
tagonistas da escravização racial (os proprietários de escravizados, o
Estado colonial, a Igreja Católica) não se viam como assassinos (Agam-
ben, 2004). Observamos que mecanismos que sustentaram processos
de desumanização de corpos negros no passado ainda hoje se repro-
duzem cotidianamente pois nem mesmo quando morrem aos milhões,
negros geram comoção (Oliveira, 2015). Os negros não são vistos como
humanos (Fanon, 2008). A condição humana não se aplica aos negros
nem em vida nem depois de mortos, pois são indignos. O racismo busca
produzir perpetuamente o negro como “não-ser”. São “não-seres” que se
encontram em “desagências”, cujo “o nada infeste o ser [negro]” (Sartre,
2007).

Dizemos que se encontra desagência em qualquer situação na qual o afri-


cano [e os negros fora da África] seja descartado como ator ou protago-
nista em seu próprio mundo [e/ou em diáspora] (Asante, 2009, p. 95).

Esses “cemitérios” eram a expressão espacial da zona do “não-ser”,


uma região árida e estéril, isto é, desprovida de sensibilidade, dignidade
e respeito. Corpos marcados a ferro e fogo, jogados, enterrados à “flor
da terra” e misturados (Pereira, 2007) pela colonialidade.
Contudo, “nossos mortos têm voz”! A página eletrônica do Instituto
de Pesquisa e Memória Pretos Novos transcreve um trecho do prefácio
de José Murilo de Carvalho para o livro “À flor da terra: o cemitério dos
pretos novos no Rio de Janeiro”, de Júlio Cesar Medeiros da Silva Pereira
(2007, p. 9):

O cemitério destinava-se ao sepultamento dos pretos novos, isto é, dos


escrav[izad]os que morriam após a entrada dos navios na Baía de Gua-
nabara ou imediatamente depois do desembarque, antes de serem ven-
didos. Ele funcionou de 1772 a 1830, no Valongo, faixa do litoral carioca
que ia da Prainha à Gamboa. Funcionara antes no Largo de Santa Rita,
“Nossos mortos têm voz” 317

em plena cidade, próximo de onde também se localizava o mercado de


escrav[izad]os recém-chegados. O vice-rei, marquês do Lavradio, diante
dos enormes inconvenientes da localização inicial, ordenou que merca-
do e cemitério fossem transferidos para o Valongo, área então localizada
fora dos limites da cidade. O Valongo entrou, então, para a história da
cidade como um local de horrores. Nele, os escrav[izad]os que sobrevi-
viam à viagem transatlântica recebiam o passaporte para a senzala. Os
que não sobreviviam tinham seus corpos submetidos a enterro degra-
dante. Para todos, era o cenário tétrico do comércio de carne humana.5

Esses mortos revelam que não só sofreram dores físicas, emocionais e


psíquicas, produzidas pela escravidão, mas também, dores ontológicas (Fa-
non, 2008) que inventaram o negro como “não-ser”, sem agência, isto é, o
nada, abaixo do humano e vazio de humanidade (Mbembe, 2014). Os “pre-
tos novos” eram destituídos de subjetividades, como todos os negros es-
cravizados, e vistos como corpos que não geravam lucro. Eles buscaram de
todas as formas não se submeterem aos arquétipos da colonialidade e não
sobreviveram. São corpos que lutaram pelo Atlântico, a grande Kalunga.6
Construir um exercício de memória acerca dessa paisagem do Cemi-
tério dos Pretos Novos revela um “lugar de horror” e de sofrimento que
se busca hoje atribuir outro significado político, um “lugar de memória
corporificado”. Isto é, a transformação do cemitério num sítio arqueoló-
gico de visitação pública (Figura 2) expressa uma agência espacial que
revela experiências de luta de “potências indomáveis” produtora de ou-
tras escritas da história e “geo-grafias” silenciadas pela escravidão e das
memórias apagadas pelas gestões racistas do espaço. São agências que
buscam transformar as geohistórias dos corpos negros como sujeitos
políticos centrais da leitura da formação brasileira.

5 Disponível em: https://bit.ly/3rFFQ1j. Acesso em: 20 jan. 2022.


6 Palavra de origem banta que significa imensidão, mar, morte. O tráfico pelo Oceano
Atlântico era concebido pelos escravizados como a travessia do grande cemitério. No
livro de óbitos da Freguesia de Santa Rita – parte desse registro está no folder distribuído
pelo Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN) aos seus visitantes – percebe-
-se a colonialidade do poder religioso que destituía os nomes próprios e atribuía nomes
católicos e/ou portugueses aos mortos, uma espécie de identidades itinerantes (Mbem-
be, 2014) somente para serem enterrados à flor da terra no “cemitério”.
318 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Figura 2. Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, na Rua Pedro Ernesto

Fonte: IPN

As agências estão na esfera da produção de consciência (Sartre, 2007)


do tempo-espaço dos corpos destituídos de valor. Lembremos aqui, ins-
pirado na leitura de Walter Benjamim, a afirmação de Bosi (1994) de
que “só perde o sentido aquilo que no presente não é percebido como vi-
sado pelo passado” (p. 18). Essas agências são reservatórios de sentidos,
mananciais de formas de vida que foram impedidas de serem vividas
e histórias de biopotências7 (Pelbart, 2008) que foram negadas e silen-
ciadas. A indiferença com relação às histórias dos corpos negros desses
antigos “cemitérios” é a forma de produzir um processo de “nadificação”
(Sartre, 2007) e desagências (Asante, 2009). Percebemos aqui o racismo
brasileiro institucional construído pela administração municipal, com
alguma solidariedade do governo estadual e federal, criando uma “polí-
tica administrada de morte” (Oliveira, 2015) dos quadros sociais – e es-

7 Um dos instrumentos de produção de memória na luta contra o genocídio negro hoje


no Brasil é afirmar que “nossos mortos têm voz”. Vemos a reafirmação que as potências
das vidas negras não serão apagadas com a morte física.
“Nossos mortos têm voz” 319

paciais – das memórias coletivas (Halbwachs, 2006) negras e de matriz


afro revelando o “funcionamento das instituições, que passam a atuar
em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens
e privilégios a partir da raça” (Almeida, 2018). São políticas racializadas
de memória espacial coletiva que passam a ser uma das marcas da ges-
tão do espaço e da paisagem (Oliveira, 2015).
A gestão racista do espaço se expressa de diferentes maneiras: i) no
desinvestimento dos espaços culturais negros diaspóricos; ii) num tem-
po governamental desigual por meio da burocracia que dificulta a efe-
tivação de políticas de reconhecimento, redistribuição, representação e
reparação negra nas instâncias de poder; iii) num esquecimento cons-
ciente das histórias e geo-grafias negras e diaspórica na produção social
do espaço; e iv) na seletividade racial nos bens tombados.
A duração e estabilidade são os alvos dessa política definindo quais
memórias devem permanecer e quais devem ser destruídas, ou seja, uma
gestão bionecropolítica das memórias negras (Oliveira, 2015). O objeti-
vo é criar uma “espoliação das lembranças e do direito à memória”, defi-
nindo um dos mais cruéis exercícios de opressão sobre os sujeitos (Bosi,
1994), a negação do direito de afirmar-se como ser a partir de sua história
e memórias. Trata-se, portanto, de um processo de negação das formas de
subjetivação. Muito além do exercício de recordação, a memória é uma
das formas fundamentais de subjetivação que produzimos enquanto ser
em relação ao tempo e o espaço: “A memória é o que confere sentido ao
passado como diferente do presente (mas fazendo ou podendo fazer par-
te dele) e do futuro (mas podendo permitir esperá-lo e compreendê-lo)”
(Bosi, 1994, p. 164). Logo, ela envolve relações de poder/resistência/r-
-existências acerca do que se quer silenciar, esquecer e/ou recordar.
O racismo brasileiro (re)cria condições para impedir a reconstrução
das experiências de tempo e a construção histórica de uma consciência
espacial definindo o que deve ser lembrado, onde deve ser lembrando,
como deve ser lembrado, quando deve ser lembrado, em que contexto
deve ser lembrado, quais inscrições serão escolhidas para serem lembra-
das e, principalmente, o que deve ser esquecido, silenciado e apagado
para não comprometer as estruturas sociais de poder racista, que para-
doxalmente, não se vê como racista. O racismo se expressa na imposi-
ção da regionalização do capital, o projeto do Porto Maravilha, na mes-
320 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

ma localidade conhecida como Pequena África. Uma fachada de cidade


com grandes projetos de “revitalização” na zona portuária silenciando o
histórico de opressão e luta na região.8
Há também outros “lugares de memória corporificados”, como a es-
tátua da bailarina negra Mercedes Batista, no Largo da Prainha, bairro
da Saúde (Figura 3). A imagem de uma mulher negra no espaço públi-
co rompe com a subalternização da subalternização da subalternização
(Rojas, 2004) ao interseccionar gênero, raça e classe. O local da estátua e
proximidades já abrigou a violência do comércio de escravizados e uma
forca com a função de abater condenados à morte (escravizados e dissi-
dentes do sistema em geral no período colonial). A mesma área também
já foi um lugar de encontro e celebração de músicos ligados ao samba
(Pereira, 2007) e abrigou muitos terreiros ligados às religiões de matriz
afros e zungus9 que foram sendo expulsos com a urbanização/branquea-
mento, ou seja, a modernidade e sua imanente colonialidade. Contudo,
ainda permanecem as heranças de zungus no Largo da Prainha. A luta
do Movimento Negro pela politização do espaço envolve a construção
de memória de ancestralidades africanas que mobiliza politicamente a
culinária e a festa como instrumento de consciência política e reconhe-
cimento das agências da diáspora. Contudo, vemos que essa região e seu
entorno estão em disputa.

8 Fachada e os fundos se construíram, no Brasil, como expressão espacial de nossas


relações raciais. A fachada foi se constituindo como o alvo da branquitude e a “geogra-
fia dos fundos” se constituiu como forma espacial de r-existência negra e diaspórica.
Lembremos que um dos mais famosos grupos de samba no Brasil é chamado de Fundo
de Quintal. Contudo, a necessidade de demonstrar que “não somos racistas” inscreve
símbolos negros na paisagem da “fachada” para afirmar que somos uma “democracia
racial” mesmo quando negros são constrangidos e/ou não são desejados que usassem
determinados espaços. Tartaglia (2018) aponta como os grafites institucionais domesti-
cados pelo capital produzem um “regime de visibilidade higienista e espetacularizado”
na área do Porto Maravilha.
9 Lopes (2004, p. 698) afirma que os zungus eram: “Cortiços, coloji, habitações de ne-
gros pobres. O nome designou também cada um dos estabelecimentos comerciais no
Rio de Janeiro colonial, com oferta de música, refeições e pousada, mantidos em geral
por negros minas libertos. Do quicongo nzungu, ‘panela’, ‘caldeirão’”.
“Nossos mortos têm voz” 321

Figura 3. Estátua da bailarina negra Mercedes Batista, no Largo da Prainha

Fonte: O Dia

Na Figura 4, observamos o grafite institucional “Etnias” que bus-


ca, por meio da paisagem grandiosa do Boulevard Olímpico, ressaltar
na “fachada”, o uso ideológico da diversidade cultural e associar com
o simulacro da harmonia social da sociedade brasileira inscrita na
paisagem do Porto Maravilha. Esse processo silencia as remoções, os
despejos forçados na região e a especulação imobiliária expulsando a
população tradicionalmente negra dos bairros e dos arredores, usando
uma imagem que quer ressaltar a dita democracia racial para branquear
o território (Santos et al., 2017).

Figura 4. Boulevard Olímpico, espaço vitrine institucionalizado

Fonte: Kobra (eduardokobra.com)


322 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

As memórias urbanas pela lógica neoliberal são revitalizadas e pas-


sam a ser negociadas privilegiando a especulação imobiliária e criando
um não-lugar, isto é, um espaço que não produz identificação e serve
para exibição. Logo, são “acompanhados de um reforçado esquema de
segurança (pública e privada), que ajudava a transformar esse trecho da
cidade em um artificial boulevard” (Leite, 2002, p. 119-120). Contudo,

[...] essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de sub-


versão no silêncio e de maneira quase que imperceptível afloram em
momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memó-
ria entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos onde existe
conflito e competição entre memórias concorrentes (Pollak, 1989, p. 4).

A disputas cartográficas na construção da Pequena África, dos lu-


gares de memória e dos patrimônios negros da diáspora envolvem ten-
sões frente às políticas de branqueamento do território e, por vezes, da
paisagem (Santos et al., 2017; Oliveira, 2014) promovidos pelos capita-
listas raciais10 e pelo Estado. Assim, vemos o Movimento Negro trans-
formando os “lugares de horror” da escravidão em “lugares de memória
corporificados” e, concomitante, a reafirmação das agências negras por
meio das formas espaciais como uma pedagogia territorial da luta an-
tirracista. Compreender as r-existências inscritas nas formas espaciais
revela o enfrentamento de uma longa duração que tem sido percebido
pelo Movimento Negro.
Estamos falando de mais de dez milhões de escravizados trazidos
para as Américas. Alguns estudiosos estimam que esse número seja
maior. Desembarcaram no Brasil mais de seis milhões de “africanos”

10 Entendemos por “capitalistas raciais” os agentes modeladores do espaço urbano que


instituem uma organização e distribuição de um espaço que concede privilégios a deter-
minados grupos raciais de status social, posto ideologicamente como superior. O papel
deste não é novo na estruturação das cidades brasileiras. No Rio de Janeiro, os “capita-
listas raciais” criaram a cidade moderna no final do século XIX e início do século XX, a
partir do embranquecimento da paisagem da área central e da definição de privilégios e
vantagens econômicas no acesso e uso de determinados espaços da cidade para pessoas
consideradas brancas. Esse padrão de produção do espaço, nos anos 1930, passou a ser
acrescido com o discurso paisagístico da democracia racial e do povo cordial (Oliveira,
2014).
“Nossos mortos têm voz” 323

escravizados arrancados de suas terras, sequestrados e levados para o


trabalho forçado em outro continente a milhares de quilômetros de sua
terra natal durante mais de 300 anos de tráfico. No Rio de Janeiro, es-
tima-se que mais de um milhão de pessoas desembarcaram no Cais do
Valongo (Pereira, 2007).
O processo de urbanização/branqueamento capitalista produziu
inúmeras reformas e aterros na zona portuária, e por toda a área central
da cidade, e estas, aliadas ao racismo institucional, têm produzido uma
política deliberada de esquecimento. Com a “descoberta” do Cemité-
rio dos Pretos Novos, a partir do acaso (a reforma de uma residência),
tomou-se ciência de mais de 5.000 resgates de corpos ainda possíveis
de serem identificados, já que uma prática comum nos “cemitérios” era
queimá-los para que se pudesse jogar mais corpos desencarnados. En-
tendemos que é necessária uma leitura descolonial da memória afrocen-
trada, pois nos permite pensar a diáspora africana evocando não só o
passado, mas também propicia o alargamento das fronteiras do presente
(Bosi, 1994).
Descolonizar é recuperar e (re)criar as agências negras na produção
do espaço. Entendemos que esta pode significar uma forma de combate
ao racismo estrutural que engendrou instituições e (re)produz formas
de subjetivação.

Considerações finais

O combate travado pelo Movimento Negro contra a política de apaga-


mento e despolitização das formas espaciais tem afirmado os conteúdos
históricos diaspóricos nas formas espaciais. Esse processo tem se cons-
tituído como uma das estratégias antirracistas deste movimento em po-
litizar a produção do espaço por meio de outras políticas de memória.
O tema das marcas espaciais negras da diáspora tem se tornado uma
das principais bandeiras da luta política, em diferentes escalas, do Mo-
vimento Negro brasileiro nas últimas décadas. Os desafios são imensos,
ainda mais num contexto de intensificação do racismo estrutural. Ava-
liar os patrimônios da diáspora na área central do Rio de Janeiro per-
mite verificar a construção de outros horizontes de sentido (Quijano,
324 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

2000) na luta antirracista a partir da politização das formas espaciais.


Eis o grande desafio a ser enfrentado na construção de uma justiça es-
pacial de transição como política reparatória.

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327
Foto: Série Favelicidades, Luiz Baltar
CAPÍTULO 13

Valongo, o lugar dos excluídos


Tania Andrade Lima

A proposta de uma reflexão sobre os dez anos do projeto Porto Maravi-


lha, necessária e oportuna, possibilitou lançar múltiplos olhares sobre o
que ocorreu, ao longo desse tempo, com o ambicioso programa de re-
vitalização da degradada, estigmatizada e marginalizada zona portuária
da cidade do Rio de Janeiro. A par do reconhecimento dos seus aspectos
positivos, um balanço crítico do que foi feito e do que deixou de ser fei-
to, a partir de diferentes perspectivas, pode sem dúvida contribuir para
um ajuste em premissas duvidosas e em metas equivocadas, em favor de
ganhos sociais mais efetivos.
Coube a nós, nesse encontro pluridisciplinar, uma reflexão a partir
da investigação arqueológica que resultou na exposição dos remanes-
centes do Cais do Valongo, reconhecido pela UNESCO como Patrimô-
nio Mundial, em 2017. Entendido como um lugar de memória sensível
que evoca um passado doloroso, pesado e opressor – comparado pela
Organização das Nações Unidas a Auschwitz, Hiroshima, Ilha de Gorée,
Robben Island, entre outros –, o cais foi incluído na lista da UNESCO
para que os horrores que ocorreram ali não voltem a se repetir na traje-
tória da humanidade.
A reflexão proposta nos leva a voltar no tempo, mais precisamente a
1779, quando o então Vice-Rei do Brasil, Marquês do Lavradio, deter-
minou que o mercado de escravos que funcionava à época na Rua Direi-
ta (atual Rua Primeiro de Março), a área mais nobre da cidade e próxima
do Paço dos Vice-Reis (mais tarde Paço Imperial), fosse transferido para

329
330 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

a longínqua região do Valongo. Por meio dessa medida, empurrava-se


para bem distante o desfile de africanos recém-chegados da tenebrosa
travessia transatlântica – fétidos, seminus, esquálidos e pestilentos – que
tanto incomodavam as elites, receosas de serem contaminadas com suas
doenças. Era preciso bani-los para um local onde não constituíssem
uma ameaça nem provocassem tanto desconforto e medo (Figura 1).

Foi a resolução ordenar que todos os escravos que viessem nestas em-
barcações, logo que dessem sua entrada na Alfândega, pela porta do
mar, tornassem a partir e embarcassem para o sítio chamado Valongo,
que é no subúrbio da cidade, separados de toda comunicação e que ali
se aproveitassem das muitas casas e armazéns que ali há para os terem.1

O Valongo – forma apocopada do “vale longo” existente entre os


morros da Conceição e do Livramento, por onde corria um canal na-
tural de drenagem que desaguava no mar – era, nas primeiras décadas
do século XVIII, um local ermo. Porém, ao tempo da determinação do
Marquês do Lavradio, já tinha se tornado um subúrbio pouco povoado.
Em cumprimento à ordem dada, lá foi instalado um complexo destina-
do à venda de escravizados, que compreendia, além das lojas nas quais
eles eram negociados (Honorato, 2019), um lazareto, para onde deve-
riam ser levados os recém chegados que estivessem enfermos, a fim de
que cumprissem quarentena e fossem curados de suas enfermidades;
um cemitério onde eram sepultados indignamente os que faleciam an-
tes que pudessem ser vendidos, o chamado Cemitério dos Pretos Novos
(Pereira, 2007); e um cais, que viria a ser formalmente construído ape-
nas em 1811 (Lima et al., 2016).

1 Arquivo Nacional, Caixa 746, Fundo Vice-reinado. Instruções do Marquês do Lavradio


ao seu sucessor como Vice-Rei.
Valongo, o lugar dos excluídos 331

Figura 1. Planta da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, de autoria do enge-


nheiro militar Jean Massé, de 1713. A seta (à direita e ao alto) mostra a região do
Valongo, então um local ermo, bem distante da cidade

A instalação desse complexo fez afluir para o Valongo grande quan-


tidade de africanos, cuja maioria era vendida para diferentes regiões
do país. Contudo, muitos nela permaneciam ainda por algum tempo,
prestando os mais variados serviços, enquanto outros acabavam por lá
se radicar. Seus descendentes adensaram ainda mais o contingente afro
na área, que, com o passar do tempo, acabou se tornando um reduto da
população negra urbana, a ponto de vir a ser cognominado, no início do
século seguinte, como Pequena África. Reunindo-se nas casas de angu,
os zungus (Mattos et al., 2013; Soares, 1998), “casas de dar feitiços” e de
“dar fortuna”, lá promoviam batuques, capoeiras, rituais e candomblés,
sendo constantemente reprimidos pela polícia.
O mercado do Valongo foi desativado em 1831, com a lei que de-
clarava livres todos os africanos que entrassem no país depois daquela
data, embora o tráfico tenha prosseguido clandestinamente em outros
lugares. Nos anos que se seguiram à desativação do mercado, o Cais do
Valongo continuou funcionando normalmente, voltado para um fluxo
intenso de pessoas e mercadorias, até 1843. Nesse ano, ele foi aterrado
332 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

e reformado com grandiosidade para receber a princesa Teresa Cristina


para o seu casamento com Dom Pedro II (Figura 2). Com o cais renova-
do, foi criada uma superposição e uma oposição fortemente simbólicas:
sobre o que se considerava então a escória humana vinda da África, foi
colocada emblematicamente a sua antítese, o outro extremo do arco da
sociedade, uma princesa de Bourbon vinda da Europa (Lima, 2013).
Tratando-se de uma área desqualificada da cidade, marginalizada pelo
tráfico, era imprescindível dar-lhe uma nova feição: transformar o lugar
dos excluídos no seu oposto, o lugar da nobreza.

Figura 2. “Cais do Valongo embelezado para o desembarque da Imperatriz”

Litogravura de Friedrich Pustkow, cerca de 1844

O Cais do Valongo foi então enobrecido e rebatizado como Cais da


Imperatriz. A Rua do Valongo (atual Rua Camerino), onde funcionara o
mercado de escravos e por onde passaria o cortejo imperial para a cele-
bração das bodas na Capela Imperial (atual Igreja do Carmo), foi reno-
minada como Rua da Imperatriz (Lima et al., 2016). E o Cais do Valongo
caiu no esquecimento, assim como foram deliberadamente esquecidos os
que por lá chegaram, configurando um fenômeno de amnésia social.
Com certeza são as sociedades que decidem o que elas querem lem-
brar e o que elas preferem esquecer. Porém essas decisões são sempre
tomadas sem a participação dos que estão à margem, justamente aque-
les que, em geral, são esquecidos. Assim, cabe à Arqueologia a respon-
sabilidade histórica de trazer à luz aquilo que no passado se pretendeu
enterrar e esconder, apresentar suas evidências às sociedades atuais para
que elas possam reviver esse passado e encontrar novas formas de lidar
com ele. Um trabalho que aspira justamente ser um antídoto contra es-
sas amnésias (Lima, 2013).
Valongo, o lugar dos excluídos 333

De 1843 em diante, o cais serviu como ponto de atracação por pelo


menos mais seis décadas, até ser aterrado para a construção do porto
do Rio de Janeiro, no início do século XX. No decorrer desse período,
contudo, sua trajetória parece ter sido marcada por uma degradação
contínua, como atesta abundante documentação disponível no Arqui-
vo da Cidade. Apenas três anos depois do desembarque da imperatriz,
documentos informam que o cais se encontrava “bastante arruinado”,2
repetindo-se a mesma avaliação em 1853.3 Em 1870, foi informado
seu péssimo estado e reconhecida a necessidade urgente de obras.4 Em
1891, foram feitos pedidos de reparos emergenciais. Em junho de 1893,
queixas de moradores sobre o estado de abandono e falta de asseio do
outrora Cais da Imperatriz, pedia, “a bem da moralidade pública” que
se impedisse o “ajuntamento de vagabundos e imigrantes que pratica-
vam obscenidades e pronunciavam palavras obscenas” naquele local.5
Ou seja, apesar de todas as tentativas feitas para enobrecê-lo, o estigma
foi mais forte e o Valongo – arruinado, abandonado e indecoroso – con-
tinuou sendo o lugar dos excluídos.
Ao longo de todo o século XIX, havia sido intensificado o uso do
litoral dos bairros da Saúde e da Gamboa como área portuária, com a
instalação de inúmeros trapiches, atracadouros e armazéns para depó-
sito de mercadorias. Não apenas as atividades da estiva, mas inúmeros e
diversos tipos de trabalho eram desempenhados majoritariamente por
negros – cativos, libertos e livres. A eles se somavam marinheiros, inces-
santemente chegando e partindo, bem como toda sorte de marginaliza-
dos que viviam nas imediações: imigrantes sem qualificação, migrantes
desfavorecidos de outras regiões do país, além dos ciganos, exímios ne-
gociantes de cavalos e mulas, que estenderam suas habilidades à venda
de escravizados. Tidos como trapaceiros e desonestos, eram vistos com
desconfiança pela população. Toda essa gente, considerada perigosa e

2 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Fundo Câmara Municipal, Série Cais,
40.2.67, Fl. 101.
3 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Fundo Câmara Municipal, Série Cais,
40.2.67, Fl. 114.
4 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Fundo Câmara Municipal, Série Cais,
40.2.67, Fl. 103.
5 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 49.1.54., Fl. 1/1v.
334 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

desordeira, se espalhava pela área portuária bebendo, promovendo ba-


dernas, furtos, batuques, e assustando a população. Se, por um lado, esse
era o espaço de socialização possível para eles, à margem da sociedade,
por outro reforçava ainda mais seu pesado estigma, potencializado com
a proliferação de cortiços, estalagens e tavernas.
Com a grande reforma feita para a implantação do porto do Rio de
Janeiro, no início do século XX, desapareceu o velho Cais da Impera-
triz sob uma espessa camada de aterro. Por todo o resto do século, a
antiga região do Valongo ficou esquecida pelo poder público. Livre da
especulação imobiliária que assolou outras áreas da cidade e longe dos
interesses das classes dominantes, a Pequena África conseguiu manter
suas tradições e práticas culturais essenciais à manutenção da sua iden-
tidade, quer na religiosidade afro-brasileira, quer na música, na dança,
na culinária, entre outras. Esse esquecimento a resguardou até o século
XXI, quando foi concebido pela prefeitura, em 2009, o projeto Porto
Maravilha, precisamente para livrar a zona portuária da degradação e
da marginalidade.

A pesquisa arqueológica

Prevendo pesadas intervenções em subsolo para substituição de ve-


lhas redes subterrâneas, o projeto da prefeitura teve que seguir deter-
minações legais, tanto em nível federal quanto municipal, que obrigam
a presença de arqueólogos nas obras de modo a prevenir a destruição
do patrimônio histórico nas áreas afetadas. E assim nós chegamos ao
Valongo. Sabendo da existência, no passado, de ambos os cais na Pra-
ça Jornal do Commercio, como informa uma placa no local, era nosso
propósito buscar sob o solo possíveis evidências do lugar por onde pas-
saram milhares de africanos escravizados. E as escavações começaram.
Como já expressado anteriormente (Lima, 2013), esse trabalho foi
concebido desde o início como uma ação sociopolítica. Era nosso en-
tendimento que, caso ainda existissem remanescentes do cais, sua força
e poder simbólico poderiam ser colocados a serviço das causas atuais
da militância negra contra a desigualdade social, política, econômica,
assim como do ativismo político que luta por reconhecimento, justi-
Valongo, o lugar dos excluídos 335

ça, respeito à diversidade étnica e pelos direitos humanos mais funda-


mentais. Isto porque os afrodescendentes, em sua sobreposição com os
economicamente desfavorecidos e socialmente à margem, carregam até
hoje a marca da escravidão, na forma da subalternidade, das condições
indignas de sobrevivência e das diferentes formas de coerção às quais
estão permanentemente submetidos.
Contudo, tão logo as notícias sobre o achado do cais começaram
a ser divulgadas nos meios de comunicação, nós aguardamos ansio-
samente a visita das comunidades negras, entendendo que era do seu
maior interesse o lugar por onde muitos dos seus ancestrais chegaram
diretamente da África para serem escravizados no Brasil. Esperamos a
primeira semana, mas não apareceu ninguém. A segunda, a terceira, e
nada. Na quarta semana, sem que ninguém se manifestasse, nós pensa-
mos: a equipe de arqueologia está trabalhando tão duramente para tirar
o Valongo de dentro da terra e entregá-lo à comunidade descendente e
ninguém aparece para receber o que temos a oferecer? O que nós tínha-
mos para entregar era o remanescente de um passado extremamente
doloroso, para colocá-lo a serviço de causas atuais, vale dizer, a servi-
ço das lutas dos afrodescendentes, historicamente discriminados. Era
transformar um lugar de exclusão, em um lugar de redenção.
Trabalhando na profundidade temporal, a arqueologia tem a capa-
cidade de expor as diferentes estratégias de dominação que capturam
os indivíduos em tramas de opressão e impedem sua emancipação. Ora
francamente abertas, declaradas, ora sutis e veladas, essas tramas foram
tecidas no passado e continuam sendo construídas no presente ao longo
de dimensões como raça, classe, gênero, religiosidade, etnicidade, con-
trolando o acesso ao conhecimento, à informação, à livre expressão, aos
direitos básicos dos indivíduos e à cidadania. Para compreender essas
tramas em suas manifestações no presente, é preciso antes de tudo in-
vestigar suas raízes subterrâneas no passado e trazê-las à luz, denuncian-
do-as, para que percam sua força. Entendendo que o Cais do Valongo
poderia exercer um papel fundamental na luta de grupos desfavorecidos
pelo seu empoderamento, nós nos empenhamos em trazê-lo de volta. E
o passado do Valongo, supostamente apagado e, nessa condição, conde-
nado a uma perpetuidade congelada, irrompeu com força de dentro da
terra, e, pulsante, está mostrando seu vigor.
336 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Na denúncia dos processos de opressão a que foram submetidos,


a materialidade exposta – no caso, as pedras do Valongo – tem uma
contundência que provoca forte impacto sobre a sensibilidade huma-
na, favorecendo reflexões que podem contribuir para uma mudança nas
posições desvantajosas ocupadas por esses grupos na sociedade. Elas
exalam racismo, intolerância, desigualdade e marginalidade no limite.
Evocam um passado pesado e opressor, cujas consequências se fazem
sentir até hoje e serão sentidas ainda por muito tempo no Brasil. Por isso
mesmo, ele por certo estimula a reflexão e inspira consciência social, o
que favorece sua transformação em espaço de engajamento e diálogo
cívico. A eloquência desse discurso material, que expõe ao olhar, ao tato,
aos sentidos em geral a brutalidade dessas estratégias, repercute fundo
no íntimo das pessoas, sensibilizando-as para ações transformadoras.
Para isso, nós aguardávamos com ansiedade a comunidade negra no
Valongo, mas ela não chegava. Foi então que decidi que, se não vinham
espontaneamente, teriam que vir a convite. Com a intermediação do
Instituto Pretos Novos, representantes em nível federal, estadual e mu-
nicipal dos direitos dos negros foram convidados e vieram ao Valongo.
Foi feita uma reunião no próprio local da pesquisa e, ouvindo o rela-
to do trabalho realizado, percorrendo o local das escavações e vendo
a dimensão dos achados, todos ficaram bastante emocionados, e deci-
diram redigir ali mesmo a Carta do Valongo, na qual propunham que
lá fosse criado o Memorial da Diáspora Africana. Nosso entendimento
foi o de que, dali em diante, a notícia se propagaria de modo que as
comunidades finalmente tomariam posse do local que, por direito de
descendência, lhe pertence. Efetivamente chegaram, acompanharam e
participaram intensamente das pesquisas lideranças do Movimento Ne-
gro Unificado, mas não o povo.
E aí veio o Dia da Consciência Negra, quando o Movimento Ne-
gro Unificado concentrou as celebrações da data no Monumento a
Zumbi dos Palmares.6 Para o velho Cais do Valongo não foi cogitada
nenhuma programação, e ele permaneceu deserto, vazio, e mais uma
vez esquecido. Isso se repetiu outras vezes e eu custei a compreender o
surpreendente silêncio e distanciamento dos afrodescendentes, até que

6 Monumento localizado na Avenida Presidente Vargas, inaugurado em 1986.


Valongo, o lugar dos excluídos 337

finalmente entendi: ao meu ver, trata-se de uma repulsa à sua associação


com a escravidão, uma página que desejam ver definitivamente virada.
O que as circunstâncias me permitem supor é que eles se identificam
muito mais com os arrojados movimentos de resistência à opressão, de
luta por maior justiça social e de orgulho étnico, como as revoltas dos
quilombolas, das quais Zumbi e Palmares são símbolos máximos, do
que com a humilhação da condição cativa, o que é absolutamente com-
preensível.
Em vista disso, minha maior expectativa de que o sítio se tornasse
um lugar para todos os tipos de manifestações, celebrações e reivindi-
cações das comunidades negras, nunca se concretizou. Nunca existiram
movimentos coletivos, de grande porte, que promovessem maior cons-
ciência entre a população negra, que expressassem suas aspirações e de-
mandas, ou que celebrassem suas conquistas e vitórias.
Para minha grande surpresa, o Valongo foi apropriado pelos afro-
-descendentes de uma forma (para mim) totalmente inesperada. Creio
que uma iniciativa que contribuiu para isso foi o fato de que, à medida
que as escavações avançavam, intensificavam-se os achados de objetos
que nós atribuíamos ao domínio espiritual e sagrado dos escravizados
(Lima et al., 2014). Aí, foi nosso entendimento que religiosos de matriz
africana deveriam ser convidados a tomar conhecimento do que esta-
va aparecendo, acreditando que era do seu maior interesse, bem como
a assumir um papel ativo na sua interpretação. Pedimos indicações a
lideranças do Movimento Negro Unificado e foi assim que diferentes
religiosos participaram da pesquisa. O Valongo foi reconhecido como
o lugar dos ancestrais, um solo sagrado onde, ao longo dos anos, passa-
ram a ser conduzidas periodicamente cerimônias religiosas, entre elas,
a lavagem das pedras do cais, que se tornou um evento anual por meio
de lei municipal. Desde então, passou a ser frequente, no local, o depó-
sito anônimo, por devotos, de flores, velas e oferendas às entidades. Foi
dessa forma que pessoas do povo passaram a se aproximar do Valongo.
No mais, apenas os segmentos mais intelectualizados das comunidades
negras, sobretudo após seu reconhecimento como Patrimônio Mundial,
que, entendendo sua dimensão e importância política, passaram a lutar
por ele e a reivindicá-lo em diferentes frentes, bem como exigirem a
valorização do seu entorno, a Pequena África.
338 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Diante dessa surpreendente apropriação, percebi claramente ter co-


metido um erro de avaliação lá atrás, de tal forma que minha expectati-
va jamais poderia ter sido satisfeita. Nós tiramos o Valongo de dentro da
terra com o coração nas mãos, com grande respeito e profunda emoção.
Colocamos nessa investigação todos os nossos conhecimentos e nossos
sentimentos mais profundos a serviço da causa negra. Contudo, eu sou
branca, de formação católica e eurodescendente. Não posso jamais sen-
tir, falar ou agir como afrodescendente. Muito menos me colocar em seu
lugar. E, nessa condição, não soube reconhecer que aquele era um solo
sagrado (Lima, 2020).
Os dez anos decorridos me tornaram convicta de que é fundamental
encorajar a aquisição, pelos negros, das ferramentas necessárias para a
construção da sua própria história por meio da arqueologia. Há vários
historiadores negros, porém poucos arqueólogos, quando eles deveriam
estar liderando os esforços para recuperar as evidências materiais do
seu passado em sítios extremamente sensíveis, como o Cais do Valongo.
Certamente eles teriam feito muito melhor, na medida em que era sua
própria história e o lugar por onde chegaram seus antepassados. Eu,
uma outsider, simplesmente não fui capaz de perceber que o Valongo é
o lugar dos ancestrais (Lima, 2020).

Dez anos depois

Passados dez anos do projeto Porto Maravilha e rememorando o iní-


cio dos trabalhos, lembro que todo o tempo pensava que aquele projeto
grandioso, branco, luminoso, ensolarado, à beira d’água, com edifícios
projetados por arquitetos internacionalmente renomados (Figura 3), e
ainda por cima com aquela designação ufanista que me inquietava tan-
to, não poderia jamais apagar o que havia ali dentro: um passado negro,
sombrio e doloroso (Figura 4), mas o nosso passado, a nossa verdade,
a nossa história. Uma história que não pode ser esquecida. É preciso
lembrar, lembrar sempre, lembrar em qualquer circunstância, para que
os erros do passado não sejam repetidos.
Valongo, o lugar dos excluídos 339

Figura 3. Museu do Amanhã, projeto do arquiteto espanhol Santiago Calatrava. À


beira-mar, o Porto Maravilha branco, esplendoroso, ensolarado, luminoso

Fonte: Porto Maravilha (portomaravilha.com.br)

Figura 4. Crianças no convés de um navio negreiro, 1868. Em contraponto à imagem


anterior, o passado negro, sombrio e doloroso da zona portuária

Autor desconhecido
340 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Para mim, como expressei em diversas ocasiões, o grande desafio da


revitalização da zona portuária seria conciliar a chegada da modernida-
de com os modos de vida tradicionais, com a afro-brasilidade daquela
região, permitindo que ambos se beneficiassem mutuamente, já que não
se pode nem se quer deter o progresso. Porém, sem que a área se gen-
trificasse, expulsando seus moradores e apagando práticas imemoriais.
Em alguns momentos confesso que isso me pareceu impraticável, um
dos dois fatalmente teria que sucumbir. Todo o tempo eu também me
perguntava se a espetacularidade daquele projeto conseguiria apagar
200 anos do forte estigma da região do Valongo como lugar dos ex-
cluídos, a marca profunda e indelével da escravidão tatuada na pele da
nossa sociedade.
Não tenho condições de antever o futuro. Mas posso falar do presen-
te, e também dos últimos dez anos. Posso falar do Valongo, Patrimônio
Mundial, como mictório a céu aberto, coberto de lixo, cheio de mato,
coberto pelas águas. Mas, sobretudo, posso falar dos dependentes do
crack, os excluídos dentre os excluídos, os escravizados pelo tráfico, só
que agora das drogas, os quais, num processo profundamente triste de
identificação, escolheram o Valongo como o seu lugar. O lugar dos ex-
cluídos.
Olhando os espetaculares edifícios do porto, desocupados, vazios,
fantasmagóricos (Figura 5), é inevitável a constatação de que até agora
o velho estigma está sendo mais forte. No confronto entre a ideia de
“Porto Maravilha” e a nossa dura realidade, tem-se a exata dimensão da
impropriedade dessa expressão.
Valongo, o lugar dos excluídos 341

Figura 5. A espetacular arquitetura contemporânea dos edifícios da zona portuária:


vazios, corpos estranhos em meio ao entorno degradado

Fonte: Porto Maravilha (portomaravilha.com.br)

Com a saída de cena do deplorável governo municipal (2017-2020)


que condenou a cidade do Rio de Janeiro ao mais completo e total aban-
dono ao longo da sua história, aí incluídos o Cais do Valongo e a zona
portuária, retorna à prefeitura o responsável pelo projeto Porto Maravi-
lha (2021-2024), cuja Secretaria de Planejamento Urbano está adotando
“revitalização” e “recuperação” como palavras de ordem. Embora o novo
foco seja a região central, a adjacente zona portuária está contemplada.
Há luz no fim do túnel.

Referências

HONORATO, C. (2019). Valongo: o mercado de almas da praça carioca.


Curitiba: Appris.
LIMA, T. (2013). Arqueologia como ação sociopolítica: o caso do cais
do Valongo, Rio de Janeiro, século XIX. Vestígios, v. 1, n. 7, p. 177-
204. https://doi.org/10.31239/vtg.v7i1.10617
342 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

LIMA, T. (2020). Valongo: an uncomfortable legacy. Current Anthropo-


logy, v. 61, n. S22, p. 317-327. https://doi.org/10.1086/709820
LIMA, T., SENE, G., & SOUZA, M. (2016). Em busca do Cais do Valon-
go, Rio de Janeiro, século XIX. Anais do Museu Paulista, v. 24, n. 1, p.
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LIMA, T., SOUZA, M., & SENE, G. (2014). Weaving the Second Skin:
Protection Against Evil Among the Valongo Slaves in Nineteenth-
-century Rio de Janeiro. Journal of African Diaspora Archaeology and
Heritage, v. 3, n. 2, p. 103-136. https://doi.org/10.1179/216194411
4Z.00000000015
PEREIRA, J. (2007). À flor da terra: o cemitério de pretos novos no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond/IPHAN.
SOARES, C. (1998). Zungú: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Ar-
quivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

Fontes primárias
ARQUIVO NACIONAL, Caixa 746, Fundo Vice-reinado. Instruções do
Marquês do Lavradio ao seu sucessor como Vice-Rei.
ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Fundo Câ-
mara Municipal, Série Cais, 40.2.67, Fl. 101.
ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Fundo Câ-
mara Municipal, Série Cais, 40.2.67, Fl. 114.
ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Fundo Câ-
mara Municipal, Série Cais, 40.2.67, Fl. 103.
ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Códice
49.1.54., Fl. 1/1v.

Fonte eletrônica
MATTOS, H., ABREU, M., & GURAN, M. (2013). Inventário dos Lu-
gares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos
Africanos Escravizados no Brasil. Laboratório de História Oral e Ima-
gem (LABHOI), Universidade Federal Fluminense. Disponível em:
http://www.labhoi.br. Acesso em: 22 dez. 2020.
343
Foto: Série Favelicidades, Luiz Baltar
CAPÍTULO 14

Movimentos sociais na Pequena África


Reflexões sobre dinâmicas, processos e perspectivas
Rita de Cássia Montezuma
Miriam Generoso

“Jogando com vocábulos vazios, já que todos no final das contas são
tratados como negros, os que dominam evitam que o povo afro-bra-
sileiro consiga aquela unidade que o tornaria invencível”.
Abdias Nascimento (1980)

Introdução

O presente ensaio tem como propósito compartilhar as reflexões oriun-


das da vivência de duas mulheres negras ativistas que atuam na Peque-
na África. Cada uma das autoras vem de trajetória e contextos pessoais
diversos, porém interligados pelo mesmo processo afrodiaspórico. As
autoras, devido a um certo desconforto frente às muitas ausências de
oportunidades e direitos, convergiram na proposta de projetos e ações
visando dar suas contribuições às lutas por inclusão e reparação.
Sem a pretensão de elaborar um texto acadêmico e de esgotar o as-
sunto, as autoras se colocam sob a perspectiva de traçar um relato de
experiências de forma a demonstrar suas observações sobre a dinâmica
de lutas que surgem, desfazem e refazem ou se moldam à medida que
as pressões externas sobre a população da Pequena África também se
reconfiguram. Vinculadas a muitas dessas lutas, as autoras apresentam
a área ora como local de morada, no caso de Miriam Generoso, ora
como local de pertencimento, justificadas por seus vínculos identitários
e de memória. Portanto, a Pequena África está posta neste texto simul-
taneamente como território (poderes em disputa) e lugar (identidade e
pertencimento).

345
346 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Partimos da premissa de que, apesar dos contínuos projetos de urba-


nização no pretexto de revitalização, a população local vem resistindo
e se reorganizando desde a chegada dos primeiros navios de tráficos de
escravizados que aportaram ao local. O que nos leva a estabelecer esta
premissa é o fato de que no século XXI ainda reverberam várias pro-
duções cujas origens remontam a este passado, tais como o samba, os
ranchos e blocos de carnaval, a capoeira, as danças e religiões de matriz
africana, bem como é possível identificar histórias sobre importantes
atores e casos ocorridos no passado que se mantém protegidos na orali-
dade perpassada pelos muitos griôs que remanescem no local. Histórias
que são relatadas quase como confissões, preciosidades de experiências
que não podem ser esquecidas.
Por esta razão optamos por um lugar de enunciação em que pese a
condição de mulheres feministas negras em luta e em busca por inser-
ção nestes espaços disputados pelas hegemonias brancas. Visamos, com
isto, somarmos aos demais movimentos e combater o constante e histó-
rico embranquecimento e apropriações da nossa cultura e do território
em valorização.
Temos a Pequena África, que para nós não se resume à zona portuá-
ria, como o espaço simbólico de representação da nossa história e resis-
tência e o cenário de nossas reflexões. Demarca-la como território negro
é uma deferência aos nossos antepassados e equivale a manter pulsante
as forças ancestrais que nos trouxeram até aqui.
Este lugar de enunciação será apresentado ora como autobiográfico
e ora memorialístico, buscando, por meio da escrita de si, demonstrar
ações e movimentos locais nesta luta por permanência e protagonismo.
O método Escrevivência, criado por Conceição Evaristo, tem sido um
dos principais modos de afirmação nas escritas negras, pois reitera a
posição identitária, sobretudo de mulheres negras em atitude contra-
-hegemônica e em resposta à violência da exclusão e segregação.
Como marco de referência, estabelecemos a ação governamental le-
vada a cabo ao longo dos dois primeiros mandatos do prefeito da cidade
do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (2009-2017), no contexto do projeto
de urbanização Porto Maravilha. O recorte temporal foi estabelecido
a partir da inserção de cada autora na zona portuária: Miriam Gene-
roso, moradora desde 2001, e Rita Montezuma, frequentadora desde
Movimentos sociais na Pequena África 347

2000. Tal recorte possibilita situar as escrevivências no período anterior


e posterior à implementação do Porto Maravilha, de forma a obter um
panorama das consequências percebidas e vividas a partir deste último
grande movimento impulsionador das transformações ocorridas na Pe-
quena África.
Além das memórias e percepções sobre as transformações no pe-
ríodo, serão relatadas algumas experiências vividas nos movimentos
sociais surgidos ou atuantes no período proposto. Ainda que grande
parte desses movimentos tenham sido criados e/ou impulsionados por
mulheres negras, não foi feita restrição aos demais, uma vez que, via de
regra, em vários desses movimentos nem sempre foi possível estabelecer
a distinção dessas ações por gênero.
O texto está organizado em três partes: Escrevivências da autoria,
relatos sobre alguns movimentos de destaque vividos pelas autoras no
período e, por fim, uma reflexão sobre as dinâmicas das resistências à
guisa de traçar um panorama fundamentado nas lutas e resistências ob-
servadas e acompanhadas.

Escrevivências sobre a Pequena África

Por Miriam Generoso

Sou bacharel em Direito pela Sociedade Unificada de Ensino Superior


e Cultura (SUESC) e estudante do curso de Mestrado do Programa
de Pós-graduação em Justiça e Segurança da Universidade Federal
Fluminense (UFF), moradora da zona portuária desde 2001. Minha
família e eu somos originárias do Andaraí, Zona Norte da cidade do
Rio de Janeiro, e viemos para a zona portuária quando meu tio conse-
guiu financiar pela Caixa Econômica Federal um apartamento de dois
quartos no bairro da Saúde, no único condomínio com infraestrutura
completa, quadra de esportes, área de lazer e segurança 24 horas na-
quela localidade.1

1 Condomínio Moradas da Saúde, concebido pelo arquiteto e urbanista Demetre Anas-


tassakis.
348 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

O condomínio para o qual nos mudamos tinha uma área de constru-


ção enorme, que antes era usada por alguns moradores próximos para
jogar bola. Quando nos mudamos havia apenas quatro dos nove blocos.
O nosso apartamento tinha vista para a Baía de Guanabara, de onde era
possível ver os antigos armazéns abandonados e o antigo Elevado da
Perimetral. Eram comuns os engarrafamentos nos horários de pico, por
volta das 18 horas. Por vezes conseguíamos ouvir os apressados buzi-
nando e vez ou outra a sirene de alguma ambulância.
Tinha quinze anos de idade quando chegamos e, como toda adoles-
cente curiosa e sem amigos próximos, fui percorrer o bairro. A primeira
providência era procurar uma escola que atendesse ao ensino funda-
mental, já que nos mudamos na metade do ano letivo. Eu poderia ter
continuado no colégio anterior, localizado no Andaraí, mas a logística
de transporte era bem complicada, sendo necessário pegar duas con-
duções para chegar no destino. Na época, a Escola Darcy Vargas já não
tinha mais vagas, mas depois de pedir muito à diretora, foi permitido
que eu concluísse o ensino fundamental por lá. Anos depois meu irmão
também estudou nessa mesma escola.
A rua da escola era bem arborizada, mas as indicações eram que eu
não andasse por lá a noite, pois ficavam estacionados os enormes ca-
minhões que transportavam farinha para o Moinho Fluminense. Além
dos caminhoneiros, a rua em determinado ponto era pouco iluminada.
Prostitutas faziam pontos e atendiam aos caminhoneiros que aguarda-
vam a carga e descarga da farinha. Havia também alguns usuários de
drogas e alguns poucos moradores de rua.
Ainda na época escolar, aos finais de semana, eu costumava ir para
o bairro de Pilares. Uns dos pontos de ônibus situava-se embaixo da
Perimetral, sempre movimentado de carros e ônibus e muito pouco por
transeuntes. Sempre sujo. A certa altura ficava a antiga Polinter. Lembro
do alvoroço que tomou o bairro quando um cantor famoso ficou preso
por lá, a quantidade de repórteres era enorme. Lembro-me também de
uma fuga de presos que foi noticiada no país inteiro, pois um caminhão
em alta velocidade foi jogado contra os muros da prisão facilitando a
evasão dos que ali estavam encarcerados.
No bairro havia uma única padaria e, como o pão não era tão bom,
preferíamos comprar no mercadinho próximo. Para as compras maio-
Movimentos sociais na Pequena África 349

res, no geral, íamos a outro bairro, pois os preços no mercadinho não


eram tão acessíveis e não havia variedade de produtos.
Muitas linhas de ônibus circulavam nas principais ruas do bairro,
tanto na Rua do Livramento quanto na Rua do Propósito. Em sua maio-
ria, eram linhas que conectavam a região central à Zona Sul. Antiga-
mente na Praça Mauá havia uma pequena rodoviária ao lado da anti-
ga delegacia, onde acessávamos as linhas de ônibus que interligavam o
Centro da cidade com a Baixada Fluminense.
A Praça Mauá era mal-vista por conta das prostitutas e não era tão
iluminada principalmente por conta da Perimetral. Mesmo com o quar-
tel da Marinha próximo, não gerava a sensação de segurança. Era co-
mum ver turistas acompanhados das garotas de programa que faziam
ponto nas proximidades. Quase sempre eles desembarcavam dos navios
para conhecer a cidade.
Muito antes da Cidade do Samba, os ensaios de carnaval da Unidos
da Tijuca aconteciam na Avenida Venezuela que, embora seja uma via
larga, ficava pequena com a multidão aglomerada. Era o alvoroço das
noites de quinta.
Com a maturidade e os casamentos me mudei algumas vezes,
sempre indo e voltando para o bairro, até que recentemente voltei
de vez, residindo desde 2018 no Morro da Providência. As mudan-
ças foram sutis, como o encerramento das atividades da Polinter e a
abertura da rua onde ela se localizava, que anteriormente era fecha-
da com grades.
Lembro que com as obras para retirada do Elevado da Perimetral na
Praça Mauá, o melhor horário para ir jantar nesta área era por volta das
21 horas. Quando os trabalhadores da obra iam jantar, a comida estava
sempre fresquinha. Se me perguntassem se eu não ficava incomodada
com a quantidade de homens ao redor, responderia que para mim este
nunca foi um problema. Eu só queria sentar e comer.
Outro fator determinante nas mudanças do bairro foram as linhas de
ônibus que simplesmente desapareceram das nossas ruas. Até o ônibus
da linha 222, que ligava o Centro à Vila Isabel e tinha como ponto final
o Hospital dos Servidores, apelidado de Tartarugão, não existe mais.
Era perceptível o processo de gentrificação, marcado pelo embran-
quecimento dos moradores e pelo aumento do custo de vida no bairro.
350 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

O melhor exemplo era o aumento absurdo dos preços dos imóveis. O


bairro nunca mais seria o mesmo.
Vale acrescentar que a introdução de novos equipamentos e atrações
no bairro também demarcam a segregação da maior parte dos morado-
res. Ao AquaRio, por exemplo, só pude ir uma única vez porque con-
segui um ingresso de cortesia com um amigo que era funcionário do
veículo leve sobre trilhos (VLT). É um passeio inacessível para a maior
parte dos moradores dado o elevado preço da entrada.
A pequena rodoviária que existia na Praça Mauá e o prédio da antiga
delegacia foram incorporados ao prédio ao lado, originando o Museu de
Arte do Rio (MAR). Em seguida, foi construído o Museu do Amanhã.
Ainda sobre museus, no prédio do antigo Centro Cultural José Bonifá-
cio passou a funcionar o Museu da História e Cultura Afro-brasileira
(Muhcab). Durante um período, antes da pandemia, eu assistia e parti-
cipava das aulas de dança afro com o falecido Mestre Mutalla às terças e
quintas, na sala batizada em homenagem à Mercedes Batista, primeira
bailarina afro que também possui uma estátua em sua homenagem no
Largo de São Francisco da Prainha.
As ruas que davam acesso exclusivo ao Moinho Fluminense foram
abertas, uma para a linha do VLT e outra para os carros. O prédio, que
estava abandonado depois que a fábrica desativou os serviços, foi ocu-
pado algumas vezes por usuários de drogas e outras vezes por ladrões
que procuravam algo de valor. No bairro, correu o boato de que grupos
de pessoas teriam roubado fios e extintores. Por um tempo ficava esta-
cionado em frente à fábrica um carro de polícia com as luzes acesas para
afugentar possíveis ladrões. Até porque era inadmissível furtos em um
prédio em frente ao Quinto Batalhão da Polícia Militar.
Da minha janela pude acompanhar as obras que tombaram os gal-
pões que pertenciam ao Moinho Fluminense. Foi extremamente rápido!
A barulheira que as máquinas faziam era infernal e a poeira era absurda,
nada ficava limpo dentro de casa. Em poucos meses, um grande terreno
estava limpo. Hoje eles cedem o espaço para filmagens e como ponto de
distribuição de produtos da Feira Junta Local.
Ao retornar para a zona portuária, indo morar no Morro da Providên-
cia, conheci a Associação Recreativa Cultural Afoxé Filhos de Ghandi do
Rio de Janeiro, o mais antigo bloco afro da cidade, com sede na Rua Ca-
Movimentos sociais na Pequena África 351

merino. Após acompanhar as apresentações de rua pelo Centro, fui con-


vidada para ser integrante do bloco, compondo o corpo de dança. Essa
aproximação com o bloco me permitiu conhecer alguns moradores que
são articuladores culturais do território. Logo, fui convidada para partici-
par das reuniões e pude assim conhecer coletivos e instituições que exer-
ciam alguma atividade educacional e cultural no morro e no seu entorno.

Por Rita Montezuma

Sou professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal


Fluminense, carioca e moradora da Zona Norte. Meu primeiro contato
com a Pequena África se deu no final dos anos 1960 e início de 1970,
como moradora da Rua de Santana. A memória mais marcante que tra-
go são os desfiles (livres) de escolas de samba na Praça XI; o casario na
forma de antigos sobrados desta praça; os ônibus e trens da Central do
Brasil que nos levavam aos subúrbios e bairros da Baixada Fluminense,
ou os ônibus da rodoviária da Praça Mauá; a primeira Vila Mimosa,
localizada no Estácio, próxima à feira onde meus pais compravam ali-
mentos; e a gente simples que circulava entre mendigos, trabalhadores e
pontos do jogo do bicho.
Como transeunte no deslocamento da escola à nova residência, e em
visita aos parentes e amigos, transitava entre ambos os lados da área di-
vidida com a abertura da Avenida Presidente Vargas. Pelo trajeto pude
acompanhar os desmontes das antigas edificações para a construção do
Centro Administrativo e da “nova” Praça XI. Nessa vivência de primeira
infância ficou marcada a transformação urbana do lado oposto à zona
portuária.
Pelos idos de 2000 a 2012, voltei a frequentar o lado da zona portuá-
ria. Semestralmente, realizava o trajeto a pé de Santa Teresa à Pedra do
Sal, atravessando pela Praça XV, em um roteiro de aula de campo com
estudantes da disciplina de Ecologia que eu ministrava como docente da
PUC-Rio. A cada semestre letivo as mudanças devido às obras do Porto
Maravilha eram registradas. Porém, a mais marcante, e possivelmente
simbólica, foi o status alcançado pelo samba da Pedra do Sal, hoje con-
templada no circuito turístico carioca e frequentada pelas classes mais
ricas da cidade.
352 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A Pedra do Sal era um local desconhecido dos taxistas do Rio de


Janeiro até, aproximadamente, 2012, e sempre surgia como uma gran-
de surpresa entre a juventude (neste caso refiro-me principalmente aos
estudantes da PUC-Rio). De um local invisível à maioria da popula-
ção, frequentado principalmente por apreciadores da cultura negra da
cidade, sambistas, artistas e compositores, passou a ser um ambiente
disputado em grande parte por moradores da Zona Sul carioca e turistas
estrangeiros, via de regra afastando antigos frequentadores, como eu, ou
fazendo com que estes buscassem a oferta de horários alternativos da
roda de samba tradicional, a título de garantir a permanência da quali-
dade e da resistência que esta roda representa para parte da população
praticamente ausente dos circuitos de entretenimento mais valorizados
da noite carioca, seja como público consumidor ou como artistas.
Em busca de espaços para a cultura negra na área, outros pontos sur-
gem constantemente como alternativa. Alguns dos quais começam em
estabelecimentos de pequenos comerciantes ofertando refeição e algum
tipo de atração cultural, em geral samba ou pagode. Algumas mesas na
calçada, caixa de som ou um grupo com alguns instrumentos e anún-
cio de cerveja barata são suficientes para aglutinar consumidores. Estes
concorrem com a iniciativa de novos comerciantes que chegam com
capital para aquisição e reforma de antigos estabelecimentos e proprie-
dades, investindo de forma mais robusta e ganhando a concorrência,
quando não atraem um público diferenciado, em sua condição social
e racial, e transformam o local e os frequentadores. Este processo vem
sendo observado desde o início da implementação do Porto Maravilha,
em 2009, sobretudo na área mais próxima à Praça Mauá. É comum a ro-
tatividade destes estabelecimentos na área, vários desapareceram após
as Olimpíadas e a Copa, sucumbindo ao esvaziamento de um ponto não
favorável ou à concorrência agressiva.
Em paralelo, há sempre algum morador em busca de oportunidades
para permanecer, em geral contando com pouquíssimos recursos e um
argumento que aglutine parcerias em um movimento de aproximação
de interesses. Pequenas trocas e apoios, além de uma rede de comu-
nicação interna que é constantemente renovada por meio de contatos
realizados em festas, eventos e shows nos subúrbios e favelas cariocas
– circuitos negros, periféricos, de apoio que, embora às vezes efêmeros
Movimentos sociais na Pequena África 353

devido às urgências de cada um, forjam possibilidades para momentos


precisos. Cito como exemplo o “Quilombo Urbano A Casa do Nando”,
no Largo de São Francisco da Prainha, que foi se tornando gradativa-
mente um dos poucos redutos de resistência da cultura negra expressa
não apenas nos encontros de pessoas negras que procuram o local para
sua socialização, mas também para a reafirmação de uma cultura preta.
Neste cenário de reafirmação identitária busquei e vivenciei a dinâ-
mica de vários movimentos e ativismos marcados pela defesa de um
direito de existir e resistir constantes. Alguns movimentos individuais
na luta cotidiana da sobrevivência, outros coletivos, são feitos, desfeitos
ou renovados constantemente, os quais serão relatados a seguir.

Alguns relatos sobre movimentos sociais na Pequena África

Neste relato reportaremos atividades que visaram ser propulsoras tanto


da condição econômica de integrantes, quanto da formação de um pen-
samento crítico em torno da condição da população negra na sociedade
brasileira, ambas geradoras de estratégias de luta contra o racismo que
estrutura a sociedade. Os projetos iniciados no “Quilombo Cultural A
Casa do Nando”, um quilombo urbano surgido em 2014, idealizado por
Luiz Fernando dos Santos, que, a pretexto de intensificar o aquilomba-
mento negro em um território em franco embranquecimento, vendo a
cultura e memória negras ameaçadas pela folclorização e fetiches, in-
centivou o uso do espaço para a sociabilidade negra e afirmação cultural
de seus frequentadores.
No “Quilombo Cultural A Casa do Nando”,2 onde se produz arte de
forma espontânea, a resistência cultural negra está presente em todas as
manifestações artísticas e debates, e por esta razão este tem sido um lo-
cal de grande referência para diversos movimentos sociais. A casa situa-
-se, assim, como abrigo para a realização de atividades como exibições,
exposições, feiras, debates, reuniões, festas e encontros. Para este ensaio,
optamos por abordar, dentre essa miríade de movimentos, aqueles com

2 Quilombo urbano surgido na Pedra do Sal em fevereiro de 2014 sob a liderança de


Fernando Luís Alves, o Nando. Atualmente localiza-se na Rua Camerino, n. 176, Centro.
354 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

os quais estivemos diretamente envolvidas desde o ano de 2019, a fim


de discorrer sobre o seu papel na construção da resistência negra na
Pequena África. De forma complementar, abordaremos também outros
movimentos com os quais nos articulamos enquanto ativistas da/na
zona portuária, não diretamente relacionados ao “Quilombo Cultural A
Casa do Nando”, mas seguramente como parte de uma articulação em
rede entre diversos coletivos e organizações atuantes na zona portuária.
A seguir, serão destacadas as seguintes atividades: bloco de carnaval
Azamamauè; feira de empreendedorismo negro Pretitude Territorial Pe-
quena África; cinema negro Afrocine Ípádè; Casa Amarela; coletivo Mu-
lheres Independentes da Providência (MIP); e coletivo Machado de Assis.

O Bloco Azamamauè: a alegria como resistência e letramento político-racial

A criação do bloco de carnaval teve como princípio ser formado somen-


te por pessoas negras e para pessoas negras. Tendo como argumento
o empoderamento e a valorização negra, aos não negros foi permitido
acompanhar o bloco fora do espaço delimitado aos negros, sendo bem-
-vindos como apoiadores e público, porém não como integrantes.
Este bloco teve como direção artística seu idealizador, o promotor
cultural Alder Augusto da Silva, um cientista social pernambucano que
trouxe como proposta produzir um entretenimento performático, o
qual deveria instruir politicamente integrantes e público.
Inicialmente chamado Bloco da Galera Preta, era constituído por
pessoas comuns, músicos, artistas de rua, professores, pedreiros, en-
fermeiros, profissionais liberais, ambulantes, autônomos, donas de casa
e toda gama de negros e negras que se aglutinaram no bloco atraídos
pela possibilidade de falar de suas raízes e histórias, expressando sua
negritude plena em um pacto mútuo de denúncia e letramento racial e
protegidos por uma rede identitária que se moveria por um território ao
qual se sentiam historicamente vinculados.
À época impressionava-me o arsenal de história e cultura negras que
era colocado à mesa quando os integrantes desenhavam como deveria
ser o bloco. Saberes que não acessei na Escola de Belas Artes do Liceu de
Artes e Ofícios, no bairro do Centro, onde estudei o ensino fundamen-
Movimentos sociais na Pequena África 355

tal, nem nas universidades por onde passei e vivo até hoje.
A performance do bloco utilizaria o circuito da herança africana
como roteiro, iniciando com a chegada dos escravizados na Pequena
África, e ao longo do desfile se desenvolveria com encenação de atos de
resistência em locais-chave da memória negra, quais sejam: Cais do Va-
longo, onde seria realizada a lavagem do cais; Igreja Santa Rita de Cás-
sia, em memória das irmandades negras que davam proteção e cuidado
aos escravizados; e Largo de São Francisco da Prainha, concluindo o
desfile com muita festa aos pés da estátua de Mercedes Batista, primeira
bailarina negra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A conclusão do
desfile remete à expressão simbólica das lutas e resistências contínuas
manifestas mais na alegria do que na dor. A alegria acionada como sím-
bolo máximo de resistência negra.
A letra da música do bloco, escrita pela musicista Simone Faitú, com
arranjo produzido coletivamente, denota o sentimento de valorização
identitária e resistência que vertebra a proposta.

“Azamamauè, venho me aquilombar”


Simone Faitú

Lavo a minha alma Azamamauè


Quando estou neste bloco Azamamauè
Venho me aquilombar, o Brasil é meu lugar
Meu corpo surrado Azamamauè
De tanto suportar Azamamauè
Venha unir sua voz
África está em nós
Preto, preta
Levanta essa cara
Sua alma é joia rara
Lave aqui seu coração
Nos tambores de luz
Que os orixás darão a bênção
Ao seu espírito, corpo e alma
Azamamauè, Azamamauè, è, è, è, è...
Azamamauè
356 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

No carnaval de 2020, o bloco fez seu primeiro ensaio na rua com


o propósito de anunciar sua criação e reunir adeptos para realizar seu
primeiro desfile no carnaval de 2021. O início da pandemia de Covid-19
no verão de 2020 adiou sua realização.
Feira Pretitude Territorial: Pequena África por um empreendedoris-
mo negro
Em maio de 2019, um grupo inicialmente composto por cinco mu-
lheres frequentadoras do “Quilombo Cultural A Casa do Nando” se re-
uniu na tentativa de buscar soluções diante de uma situação econômica
crescentemente precária para a maioria da população negra.
Tendo como cenário os constantes debates sobre as dificuldades fi-
nanceiras dos frequentadores da casa, predominantemente de baixa es-
colaridade, a desesperança diante de um cenário de retração econômica,
reduzindo sobremaneira as já escassas possibilidades de acesso a inves-
timentos ou capacitação que lhes permitissem transformar a condição
social em que se encontravam, formou o contexto para o surgimento da
proposta de produzir uma feira preta.
Com poucos recursos, uma vez que não havia capital inicial para
promover uma ação de maior vulto, a organização da primeira feira
contou com um movimento bem conhecido no território: a articulação
de mulheres negras em movimento, circulação e fomento da economia
preta, a exemplo das quitandeiras e dos zungus que faziam circular no
Rio de Janeiro colonial a moeda preta que libertou e protegeu muitos
escravizados. Excluindo do vocabulário o anglicismo black money, a
articulação em torno da moeda preta contou inicialmente com investi-
mentos de negras e negros em melhor situação financeira e com a cola-
boração dos frequentadores e amigos do quilombo.
Com atividades e experiências distintas, Rita Montezuma, Miriam
Generoso, Bieta Rodrigues, Lizza Dias e Luciana Rodrigues buscaram
expositoras/es na localidade da Pequena África, tendo como critério
inicial a comercialização de produtos distintos entre si. Pretitude Terri-
torial Pequena África, nome dado ao movimento, teve como premissa
localizar pequenos e pequenas empresários/as negros/as entre aqueles/
as cujo produto ainda não estava totalmente em circulação.
Buscou-se dessa forma difundir a criatividade produtiva de modo a
criar uma rede de apoio e circulação para produtores pretos e pretas da
Movimentos sociais na Pequena África 357

Pequena África e adjacências. Pretendia-se fazer com que essa experiên-


cia fosse repetida mensalmente, entrando para o calendário deste terri-
tório relacionado aos povos de matriz africana, onde a dor deu lugar a
(r)existências, resistências e criações e, porque não dizer, também às fes-
tas e alegrias, formas estas de superação bem conhecida do povo preto.
Assim, a feira Pretitude Territorial pretendeu se colocar nos territó-
rios negros, promovendo a inventividade, criação e replicando este ou
outros modelos que se supunham poder alimentar a economia daqueles
que são a maioria da população brasileira, a maioria da força de traba-
lho geradora de riquezas, mas que ainda não são a maioria economica-
mente forte e estável nesta sociedade de classes e racista.
A escolha do local de realização desta potente reunião de mulheres
não foi aleatória. Propunha-se reafirmar a importante e relevante his-
tória da Pequena África, marcada pela vinda de africanos escravizados,
ponto de comércio para senhores escravistas, agora sendo o locus de
circulação comercial entre os descendentes de escravizados que perma-
necem ou frequentam o local. Via-se, desse modo, como um ato políti-
co de reapropriação e ressignificação do espaço, porém agora buscando
fortalecer o protagonismo negro em um ato a contrapelo.
A primeira feira Pretitude Territorial aconteceu no “Quilombo Cul-
tural A Casa do Nando” e reuniu sete expositoras, todas do sexo femi-
nino, com produtos variando entre livros de autoras pretas, literatura
preta, acessórios recicláveis, roupas de chita, roupas femininas e doces
caseiros. Como um convite à permanência maior do público no local da
feira, o cozinheiro Fernando Luís (o Nando) elaborou pratos específicos
para o dia, visando à difusão da culinária afro-brasileira.
Ainda com a notável influência das tradições de matrizes africanas,
oriundas de inúmeras regiões da costa deste continente, resistindo às
perseguições e modernizações que a região vivencia desde as primeiras
reformas urbanísticas iniciadas no século XX, e diante da “elitização” e
embranquecimento explícito do local, as organizadoras fomentaram a
ideia de que a primeira feira poderia ser catalizadora de outras iniciati-
vas de cunho similar.
Desta forma, o que seria inicialmente uma feira, tornou-se o coletivo
Pretitude Territorial. À semelhança das demais iniciativas aqui relata-
das, a feira contou com a colaboração do design gráfico da DJ Bieta,
358 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

apoio logístico no transporte de materiais de Rita Montezuma, divulga-


ção organizada por Miriam Generoso, além do apoio na divulgação da
rede de frequentadores e amigos do Quilombo.
A escolha das parceiras do projeto também não foi aleatória. Majo-
ritariamente composta por mulheres negras que, além de fomentarem
produtos variados para a subsistência das suas famílias, complementam
renda e produzem cultura com suas histórias, saberes, potencialidades e
limitações, além da própria (r)existência.
A primeira feira Pretitude Territorial Pequena África ocorreu em
agosto de 2019, sendo realizada posteriormente todo mês no “Quilom-
bo Cultural A Casa do Nando” e eventualmente em outros espaços, a
partir de convites para a participação em eventos específicos, tais como
a Feira de Ciências do Colégio de Aplicação da UERJ (CAP/UERJ) e o
seminário “Porto Maravilha 10 anos: passado, presente e futuro da zona
portuária”, evento realizado em outubro de 2019 no Muhcab que se situa
como o ponto de partida para a organização do presente livro. As ativi-
dades do coletivo foram suspensas em março de 2020, em decorrência
da pandemia de Covid-19.
Mais do que uma forma de ganho financeiro, a feira Pretitude Terri-
torial teve o caráter de fortalecimento do empreendedorismo sobretudo
das mulheres negras. Fato que pode ser evidenciado a partir de relatos
de algumas das nossas parceiras logo no primeiro encontro, cujos tre-
chos transcrevemos abaixo.
Célia Cris Carvalho:

[...] a minha pesquisa e o meu trabalho é com o Ateliê Afro Oyá De-
signer, que vem fomentar de forma sustentável a identidade da mulher
preta, a história da família preta, das pessoas que fizeram a nossa ances-
tralidade e que essa história precisa ser divulgada, falada, contada e os
trabalhos que faço, tem como foco mostrar que nossos ancestrais deixa-
ram o vocabulário, deixaram história, deixaram representatividade que
precisa estar presente dentro das escolas, dentro das casas, nas praças.
E, é isso que o Ateliê tem como foco, levantar a autoestima da mulher
e fazer com que a mulher conheça seu corpo e aceite como ele é, sem
padrões que não sejam o que lhe der prazer.
Movimentos sociais na Pequena África 359

Sandra Lucia:

[...] surgimos para encantar o mundo e trazer cada um nessa caminhada


com o suor no sangue dos nossos ancestrais, nós vamos representar.
Você mulher linda, que tem a sua bijuteria de couro, você que fala da
nossa roupa de chita, que nós somos graça, nós somos massa, nós somos
linda (sic). Esse momento para mim aqui, é muito especial, porque sou
uma mulher oriunda de comunidade, vim de uma família de dez filhos,
pais analfabetos, mulher aos 12 anos, babá. Eu vim descobrir meu talen-
to com a poesia tem pouco tempo, onde encontrei mulheres reais, mas
como eu, como tu, como você, podemos. Esse espaço que hoje a gente
está aqui, a gente ganhou um grande presente, a gente poder estar todo
mundo aqui junto, pensando, escrevendo, pontuando que esse lugar de
fala é da mulher preta. É daquela mulher que sai da periferia, daquela
mulher que entra as 3h da manhã no ônibus e diz assim: “meu sonho
acabou!”. Não, seu sonho começou, sonhos que nós vamos modificar,
e nesse momento que está tudo meio...que o vento de Oyá, que o fogo
de meu pai rugi, ele diz: erga! Suba! Levante! Diga: nós podemos! Nós
somos graça, nós somos laços, nós somos massa, nós somos da mesma
família. O sangue dos nossos ancestrais, o grito, o gemido, não foi à toa.
Por isso estamos aqui. Gratidão! Gratidão à todas as mulheres negras
jovens que começam pra reconstruir e reforçar essa história.

Adriana Lopes e Conceição Lopes:

[...] a gente começou agora com esse trabalho. É todo pautado na ques-
tão de fazer artesanato com coisas sustentáveis. Então a gente pega coi-
sas que naturalmente iriam pro lixo, como saco de pão, revistas, jornais,
várias coisas aleatórias e transforma em coisas muito bonitas.
[...] somos lá do Quilombo do Camorim, Jacarepaguá, e a gente faz a
nossa arte aproveitando tudo, garrafa pet, filtro de café, saco de pão,
aquela bijuteria que você acha que vai jogar fora [...], a gente reaproveita
tudo.

Diante de tantas potências em falas, oriundas de histórias diversifica-


das de mulheres negras, embora cada uma com sua peculiaridade, a ne-
360 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

cessidade de manutenção e continuação deste projeto torna-o cada vez


mais imprescindível. A considerar pelas trocas, pelo intuito de fomentar
economia criativa preta e afeto, os quais foram fundamentais na reali-
zação do projeto, resgatando por si só o sentimento de Aquilombar-se!

Afrocine Ìpàdè: politização e empoderamento por meio da arte audiovisual


negra

Do yorubá, ìpàdé é reunião, encontro (vd. àwojo). Termo empregado


com conotações específicas em várias religiões de matriz africana, mas,
aqui, adotado com o significado de reunir para abrigar e fortalecer, ações
que expressam a iniciativa das idealizadoras, Miriam Generoso e Rita
Montezuma, apoiada e compartilhada com Bieta e Luciana Rodrigues.
Com essa perspectiva de reunião do povo yorubá, esse grupo de mu-
lheres negras se uniu para buscar formas de aconchego nesse atual ce-
nário político-econômico-social do nosso país. Surge, então, a ideia do
cine afro, cujo objetivo é incentivar reflexões e debates sobre questões
relacionadas à população negra brasileira e sua condição na sociedade.
A escolha inicial para o local de exibição de nossas sessões foi mais
uma vez o “Quilombo Cultural a Casa do Nando”. Os filmes são exibi-
dos gratuitamente, sem fins lucrativos, e todo o material utilizado para
garantir a exposição é compartilhado entre as organizadoras, incluindo
como petisco a imprescindível pipoca.
Os filmes exibidos em cada sessão são majoritariamente produzidos,
protagonizados e/ou fomentados por negros, de diferentes gêneros e
linguagens. Buscou-se afirmar e reivindicar nosso espaço dentro deste
que é também, uma produção e compartilhamento de saberes.
Antes da interrupção das atividades devido à pandemia do Co-
vid-19, os filmes eram escolhidos cuidadosamente, com a devida par-
ticipação de todos a partir de uma enquete perenemente instalada no
Quilombo onde, ao final de um período aproximado de dez dias, era
escolhido o mais votado. E, para cada sessão, um tema específico era
exibido. O intuito dessa escolha é trazer para o debate as percepções
e semelhanças vividas por nós em nosso cotidiano, que em sua maio-
ria reflete as situações abordadas nos filmes. Os temas, em suma, são
Movimentos sociais na Pequena África 361

relacionados à educação, sociedade, cultura, política, sexualidade, ra-


cismo, entre outros.
As premissas do Afro Cine Debate são: a busca por produções audio-
visuais majoritariamente produzidas, protagonizadas e/ou fomentadas
por negras/os, de diferentes gêneros e linguagens, dando-lhes visibilida-
de dentro da população negra e fomentando a divulgação de seus traba-
lhos; e trazer ao debate percepções, semelhanças e experiências vividas
no cotidiano de cada um relacionadas aos temas dos filmes exibidos.
Nossos debates foram sempre enriquecedores. Embora cada expec-
tador possua sua especificidade e interesse, todos participaram na me-
dida de suas próprias experiências, tornando cada encontro um elo cada
vez mais íntimo uns com os outros, e os laços mais fortes. Além dos par-
ticipantes frequentes, eram convidados profissionais especializados, a
fim de opinar e trazer experiências em suas respectivas áreas de atuação.
O que motivou o coletivo? Podemos citar alguns fatores, tais como:
ausência da representatividade negra nas produções cinematográficas;
reprodução de estereótipos nos meios de comunicação (black face, es-
cravizados, marginalização, inferiorização, subalternização, destituição
de caráter, inteligência... Humanidade!); apropriação cultural; e ressig-
nificação de um imaginário em que negras/os são apresentadas/os como
sujeitas/os desqualificadas/os, incapazes, sem valores.
Até o presente foram exibidos mais de vinte filmes, alguns dos quais
com convidados para estimular o debate: a atriz Léa Garcia, para co-
mentar sua participação no curta “Um dia com Jerusa”; o produtor au-
diovisual Delanir Cerqueira e o professor, compositor e roteirista Re-
nato Ferreira, no debate sobre o clip “Deuses Africanos”; os professores
Renato Ferreira, Reinaldo Guimarães, Jocelene Ignácio e Trevis Knoll,
para a discussão sobre a importância das cotas no documentário “A Re-
volução do Livro”, que conta a história do pré-vestibular para negros e
carentes da Baixada Fluminese; com o arte-educador Ernane Ferreira,
na exibição do filme “Moonlight”; com Antonio Rodrigues, em filme
sobre Heitor dos Prazeres, que como morador antigo da área vivenciou
parte das histórias relatadas no documentário; com a cineasta Camila
de Moraes, sobre seu documentário premiado “O Caso do Homem Er-
rado”; e com a enfermeira Mariana Andrade, sobre a série “Saúde Bra-
sil” e a violência com a população negra na saúde, dentre outros.
362 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Entendemos que esta iniciativa se instaura no encontro, afeto, festa,


troca e compartilhamentos, sem perder nem a crítica, tampouco as es-
peranças. Compreendemos que “é tempo de estratégias para viver. Viver
não é sobreviver”, sendo este o lema do coletivo Afrocine Ípádè.
Aos poucos a iniciativa foi se consolidando não apenas como espaço
de cultura negra, mas, sobretudo, de escuta e acolhimento. As produ-
ções apresentadas atuam como catalisadoras da abertura para as rela-
ções identitárias entre os participantes e, a partir daí, possibilitam a bus-
ca e o compartilhamento das estratégias para viver e resistir.
Atualmente, o Afrocine Ípádè tem sido acionado para estimular a
criação de afrocines em outros espaços e, antes da pandemia, demons-
trou ser bem-sucedido ao ser convidado a participar de espaços negros,
inclusive fora da Pequena África. Desde 2020, tem sido parte das ativi-
dades quinzenais da Casa Amarela, atuando como difusor de cultura
negra e inclusão social na condição de projeto de extensão vinculado
ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa de Paisagens (CNPq/UFF), coor-
denado por Rita Montezuma, desde 2021, com o objetivo de ampliar a
difusão do conhecimento e saberes afrodescendentes e afro-diaspóricos
por meio de recursos audiovisuais na área da Pequena África, em espa-
ços como Casa Amarela/Morro da Providência; “Quilombo Cultural A
Casa do Nando”; Muhcab; Galpão Gamboa, além de atividades itine-
rantes em favelas e bairros da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Casa Amarela

A ONG Casa Amarela, fundada em 2009 por JR, artista plástico francês,
e Maurício Hora, fotógrafo, articulador cultural e morador da Provi-
dência, está localizada na parte mais alta do morro. A casa atua para ga-
rantir a promoção ao acesso de instrumentos educacionais, artísticos e
culturais, incentivando a valorização territorial e a cultura local. Dirigi-
da por Tiphanie Constantin, a casa direciona atendimentos diversos aos
moradores do entorno onde a instituição se localiza, uma das regiões
mais vulnerabilizadas do Morro da Providência.
O corpo de educadores em sua maior proporção é composto por
moradores da comunidade que vivenciam e conhecem bem a realidade
Movimentos sociais na Pequena África 363

do morro e veem na arte-educação um meio de diminuir os impactos


dos estigmas impetrados aos moradores de favelas. Atualmente, a maior
parte dos educadores é constituída por pessoas negras.
Inicialmente, o atendimento da instituição era destinado às crianças
e jovens, com atividades como aulas de música, dança afro, aula de idio-
mas, arteterapia, alfabetização, dentre outras. Entretanto, com a neces-
sidade cada vez maior de atender o público feminino, já que as mães de
alguns alunos eram bem atuantes na casa, foi fundado o Coletivo Mu-
lheres Independentes da Providência (MIP). Atualmente, a casa atende
a todas as faixas etárias.

Coletivo Mulheres Independentes da Providência (MIP)

Com o fortalecimento de atividades voltadas às mulheres, em 2019 a co-


diretora da Casa Amarela fundou o coletivo MIP, atualmente coordenado
por Miriam Generoso. A finalidade primeira do coletivo era atender às
mães cujos filhos realizavam alguma das atividades educacionais que a
casa oferece às crianças e adolescentes. No final de 2020, todavia, o coleti-
vo participou de um edital da empresa L’Oréal, sendo um dos vencedores
do certame. A proposta do coletivo visou, com os recursos do edital, à ca-
pacitação e profissionalização de mulheres da Providência e seu entorno.
O coletivo MIP tem duas funções. A primeira é a capacitação e pro-
fissionalização, em cumprimento ao edital, que atende a todas as mu-
lheres interessadas do morro. A segunda visa fortalecer e empoderar o
núcleo permanente, por assim dizer, que são as mulheres que estão em
atividade desde a fundação do coletivo.

CAC Machado de Assis

O Coletivo de Ação e Cidadania Machado de Assis é formado por mora-


dores da Pequena África, sendo todos os seus membros negros e negras.
Sua atuação no território se dá com o intuito de diminuir os impactos
que o processo de gentrificação e embranquecimento da zona portuária
produziu aos moradores mais vulnerabilizados, que são os moradores em
situação de rua e a população que se abrigou em prédios abandonados.
364 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Em parceria com o “Reffetorio Gastromotiva”, restaurante-escola lo-


calizado na Lapa, o coletivo é responsável pela distribuição de cerca de
250 refeições diárias para pessoas em situação de rua e moradores das
ocupações no entorno do Morro da Providência. Foram mapeadas, as-
sim, as principais ocupações da região – Colombo, Elma, Cajueiro, Lila
e Vila da Paz –, e para cada uma delas foi delimitada uma quantidade
média de refeições a serem entregues diariamente.
As entregas das refeições são feitas com ajuda de motoristas volun-
tários, que se disponibilizam a acompanhar os membros do coletivo. Os
voluntários percorrem as ocupações que são assistidas entregando as
marmitas àqueles que entrarem na fila da distribuição.
Com o crescimento da população de rua na região central como um
dos efeitos causados pela pandemia, as ações do coletivo se tornaram
imprescindíveis àqueles que passam fome e que por vezes tem esta como
sua única refeição do dia.
Atualmente o coletivo é coordenado por Adriana Siqueira, mulher
preta, mãe de dois filhos, articuladora local, moradora do morro e di-
retora do Instituto Ayo, que, além de organizar a logística e o contato
direto com os parceiros, atua diretamente na escuta ativa do público
atendido, ouvindo suas demandas e orientando no que couber quanto
ao direcionamento e atendimento dos órgãos públicos, como retira-
da de documentação e outros assuntos. O coletivo busca promover
também ações como campanhas para doações de alimentos, roupas e
utensílios.

A dinâmica das resistências

Historicamente, o abandono de prédios e residências costuma ter como


resposta da população vulnerabilizada a sua ocupação. São várias as
ocupações existentes ao longo de toda a Pequena África, resultado do
déficit de habitação social que atravessou o passado, trazendo como ba-
gagem o estigma do território negro. Para a população negra são per-
mitidos os espaços que sobram até que outras concepções surjam e os
removam para dar lugar aos novos projetos de cidade: mudam a forma
e o conteúdo, mas o processo se mantém o mesmo.
Movimentos sociais na Pequena África 365

Como resposta a esse processo histórico de exclusão destacamos a Ocu-


pação Vito Giannotti e a organização do Quilombo da Gamboa, exemplos
recentes de articulação popular por moradia. Tais organizações costumam
receber apoio e colaboração de outros coletivos, os quais tecem suas redes
de solidariedade que, mesmo parecendo intermitentes, se fazem presentes
quando necessário. Como testemunho citamos as organizações formadas
para apoio após os incêndios do casarão que abrigava o “Quilombo Cultu-
ral A Casa do Nando” e de ocupações da Rua do Livramento.
Nos últimos anos, participamos de algumas organizações dos coleti-
vos existentes na Pequena África. Nestas ocasiões, nos foi possível conhe-
cer diversas formas de organização e resistência presentes. Comerciantes,
moradores, coletivos, ativistas, militantes e artistas são muitos dos exem-
plos em movimento. Estes nos permitiram tentar obter um levantamento
das ações de resistência e lutas que dinamizam o território. Citamos, entre
eles, sem a pretensão de esgotar as iniciativas que r-existem na Pequena
África: Instituto Pretos Novos (IPN); Casa Omolokum; Efeito Urbano;
Pré-Vestibular Machado de Assis; Pré-vestibular Comunitário Providen-
ciando o Futuro; Impacto das Cores; Entre o Céu e a Favela; Slam das
Minas; Instituto Black Bom; Cena Portuária; SOS Providência; Galeria
Providência; ONG Providenciando; ONG Sonhando Juntos; Lanchonete
Lanchonete; Viaduto Literário; Favela Cine Clube; Gabinete de Crise da
Providência; Centro Cultural Pequena África; Galpão Gamboa; Casa do
Maranhão; Tia Ciata; Bloco de Rua do Prata Preta; dentre outras.
Algumas dessas organizações possuem mantenedores com investi-
mentos do exterior, como a Casa Amarela, ou nacionais, como o Instituto
Black Bom e o Galpão Gamboa; outros são dependentes de apoios gover-
namentais via editais, como SOS Providência e Entre o Céu e a Favela; os
demais dependem de doações e levantamento de recursos próprios obti-
dos por meio de organização de eventos, sambas, cursos, rifas, vendas, etc.

Perspectivas de futuro: refletindo sobre saídas e esperanças

Assumindo o caráter de revitalização da zona portuária, o Porto Ma-


ravilha evidencia-se como um projeto francamente elitizante. Pelos re-
latos das autoras, é nítido como alguns atores desaparecem do cenário,
366 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

na medida em que lhes subtraem suas condições para permanência: o


fechamento e a posterior refuncionalização3 do Moinho Fluminense,
por exemplo, remove a circulação de caminhoneiros que, por sua vez, é
a principal clientela das prostitutas do bairro, afetando sua permanência
no local. Como nos ensina Muniz Sodré sobre os dispositivos de urbani-
zação que controlam, estabelecem e reforçam diferenças,

[...] esse espaço imaginário (da arquitetura e urbanismo) é infinitamen-


te mais amplo que os espaços concretos da arquitetura, porque se arti-
cula com práticas sociais em suas dimensões vividas e institucionais: a
padronização das diferenças sexuais, a confirmação de hierarquias ou
então de certas formas de controle social expressas em mecanismos de
inclusão/exclusão (Sodré, 2019, p. 35).

A ambiência favorecida pela arborização, por exemplo, se nas áreas


ricas da cidade traduz-se como conforto, nas áreas pobres e marginali-
zadas torna-se fator de insegurança pública. Ou, não raro, simbolizam
a existência da insegurança, reforçada pelo estigma do lugar e seus inte-
grantes. Estigmas que reforçam narrativas sobre segmentos do espaço,
demarcando-o, delimitando territorialidades permitidas e negadas.
Se, por um lado, a infraestrutura urbana revela-se escassa na limpeza,
segurança, áreas de lazer, por outro a presença fornece a indicação clara
de que a localidade é uma das zonas de sacrifício da cidade. Neste caso,
revelada, entre outros fatores, pela presença de três aparatos para a mobi-
lidade urbana: a antiga rodoviária da Praça Mauá, a rodoviária Coronel
Américo Fontenelle e a estação ferroviária da Central do Brasil. Equipa-
mentos que, embora favoreçam a circulação, principalmente dos morado-
res na sua condição de mão-de-obra para o restante de toda a cidade, são
instalados nas áreas consideradas de menor valor e baixo poder político.
Em situações de desvalor, na reforma urbana o espaço concebido
pela prefeitura desconsidera as formas, os circuitos, as memórias e as
práticas sociais de quem vive e usa a área. A refuncionalização do Moi-
nho Fluminense e a transformação das ruas para a instalação e ope-

3 Desde que foi desativado não foi destinado a novas atividades, sendo eventualmente
utilizado para cenário de produções artísticas.
Movimentos sociais na Pequena África 367

ração do VLT explicitam a inversão de valores em relação ao espaço


vivido de seus moradores e frequentadores. Se antes as rodoviárias
permitiam o deslocamento, a retirada da rodoviária da Praça Mauá e a
chegada do VLT implicaram na remoção de diversas linhas de ônibus,
interferindo na mobilidade. A redução da circulação, que se soma à
retirada de casas e do comércio local, também implicou no esvazia-
mento de algumas ruas. Conforme relatam os moradores, com a baixa
circulação nas ruas, até os camelôs sumiram e os assaltos se tornaram
mais frequentes.
A sociabilidade é alterada. Locais que antes serviam de encontros
e lazer dos moradores transmutaram-se em espaços embranquecidos,
mais caros e inacessíveis na medida em que se voltam para atrair um
público externo ao local e à história. Um encantamento é criado a partir
de uma fetichização da área e folclorização da sua história. Esse proces-
so induz a uma valorização e busca pelos bairros de maior interesse ao
novo público, excluindo, segregando, gentrificando. Surgem gradativa-
mente novos empreendimentos mudando a aparência da paisagem, na
forma e no conteúdo, que são ofertados como promessa de valorização
crescente e investimento garantido.
As representações do espaço se traduzem nos signos e códigos que
demarcam os lugares de relação, dominações, apropriações e de po-
deres, em contínua transformação. Roda-gigante, Museu do Amanhã,
MAR são os símbolos que representam o espaço concebido pela prefei-
tura anunciando sua compreensão de modernidade, estética e princi-
palmente, a quem se destina. Sejam esses destinatários moradores, con-
sumidores ou comerciantes. O capital circulante informa a qual classe
pertencem e qual deve ser excluída. Aqui a cor antecede a classe – aque-
la África não serve como conteúdo. Basta tê-la como a marca, desde que
este signo faça circular o capital.
A zona portuária destaca-se historicamente pela concentração de
práticas ambientalmente e socialmente agressivas, na medida em que
se inicia na comercialização de corpos-mercadorias e prossegue até
o presente atingindo populações de baixa renda. A concentração de
atividades indesejáveis, relacionado aos níveis de renda, condições de
trabalho e moradia, taxa de escolaridade e à fraca presença de insti-
tuições de ensino, além das frequentes ações policiais, são alguns dos
368 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

indicadores que apontam a região como uma das várias zonas de sa-
crifício da cidade.
Contudo, nem tudo é silêncio ou desistência.
A existência de movimentos, organizações e ações, e a dificuldade de
contabilizá-las, denotam que o território se articula. O surgimento, desa-
parecimento ou reformulação desses grupos dá o tom da dinâmica que
sempre marcou a Pequena África. Nem todas as resistências foram ex-
pressas em revoltas, como a do Prata Preta que nos inspira. Algumas são
cotidianas, persistentes e aglutinadoras. Acionam ações de solidariedade
que funcionam como uma rede temporária e inconstante que se faz, des-
faz e refaz nas horas de maior necessidade. Atuam em múltiplas dimen-
sões: no ensino, no letramento político e racial, na promoção da moradia
e da renda, frente a um poder estatal que nega e/ou subtrai direitos.
Muitas são as tentativas de silenciamento e apagamento das heranças
africanas. Subtraem dos mapas e uma escavação faz emergir das tumbas
coletivas o IPN. Soterram a vergonha do cais de comércio racista do
Valongo com o cais do poder europeu da Imperatriz e eis que ressurge o
Valongo, denunciando as farsas históricas. Casas de branco, moradas de
negro. Nas letras e melodias, as histórias. Estas são marcas do passado
que reverberam, nos informando presenças e persistências que têm sido
lidas e traduzidas por cada um e cada uma que as aprende ler. Essa dinâ-
mica traduz a resistência, ainda que esta seja mais dolorosa e difícil do
que bem-sucedida. O sucesso não é garantia. Mas não lutar é sucumbir.
E pela voz de Conceição Evaristo (2017), reiteramos: “A vida não
permite o lento caminhar”.

Referências

EVARISTO, C. (2017). Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas.


NASCIMENTO, A. (1980). O quilombismo: documentos de uma mili-
tância pan-africanista. Petrópolis: Vozes.
SODRÉ, M. (2019). O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira.
Rio de Janeiro: Mauad.
369
Foto: Série Favelicidades, Luiz Baltar
CAPÍTULO 15

Porto Maravilha
Alegoria de um Brasil que se nega a encontrar o
Brasil
Aercio Barbosa de Oliveira

“Eu estava na ponta da rua


Eu via a rua se fechar
Eu vi a fumaça da pólvora
Eu vi a corneta bradar”1

(A questão)

Quem chegar ao final deste ensaio poderá avaliar que ele está deslo-
cado do conjunto da publicação. Não será uma avaliação nonsense,
pois só foi possível estar nela graças à generosidade e empenho dos
editores. O objetivo aqui não é analisar o projeto urbanístico Porto
Maravilha, lançado em 2009, na zona portuária do Rio de Janeiro. O
projeto e as obras foram realizados com a parceria dos governos do
estado do Rio de Janeiro, da cidade do Rio e governo federal, com a
justificativa de dinamizar o mercado imobiliário de moradia e negó-
cios; construir equipamentos públicos; e melhorar a infraestrutura e
a paisagem urbana para receber os megaeventos esportivos no Brasil
– algumas partidas da Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos
de 2016, que tiveram como sede a capital fluminense. O Porto Mara-
vilha, que beneficiou parcela ínfima da população que mora na região,
servirá para tratar do quanto o nosso desencontro com uma leitura
interpretativa sobre o Brasil é profundo, recorrente e nocivo, precisan-

1 Fragmento da letra musicada “Antônio Conselheiro (Bumba meu boi)” de autoria de


Raimundo Fagner.

371
372 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

do ser superado, com o auxílio da mobilização de ideias produzidas


em nossas instituições acadêmicas e de pesquisas. E isto se faz ainda
mais premente se consideramos o momento atual de retrocesso das
conquistas sociais, com a forte presença de posições reacionárias as-
sumidas por governos e por parcelas expressivas da nossa sociedade.
O principal propósito deste ensaio é destacar, a partir de dois fatos
notórios da realidade brasileira, uma questão que nos violenta cotidia-
namente. O primeiro fato é que as elites ou a “inteligência” do país – se
é que faz sentido usar esta adjetivação –, por estultice ou para fortalecer
posição de poder, são produtoras contumazes de pastiches, normalmen-
te com base naquilo que é produzido fora daqui – simulacro, arremedo,
ritornelo2 –, e desprezam tudo que pode beneficiar a maioria da popu-
lação; o segundo, é a pandemia provocada pelo Sars-CoV-2 que impul-
sionou o agravamento dos nossos históricos problemas sociais; fato que
mobiliza setores da nossa sociedade, bem-intencionados, oportunistas,
crédulos, incautos etc. para elaborar propostas de mudanças que debe-
lem os males atuais. A palavra da hora é “retomada”!
Neste contexto, imerso em transformações tecnocientíficas, sociais,
econômicas, políticas e culturais, levanta-se a seguinte questão: não
deveríamos recuperar ou ampliar a produção intelectual de maneira
semelhante à atitude adotada por aquelas pessoas que foram conheci-
das como intérpretes do Brasil? Ou seja, buscar compreender as nossas
questões sociais, culturais, políticas e econômicas para produzir teorias
e propostas de mudanças a partir de nossos próprios termos?
Sabe-se do trabalho árduo de pessoas em instituições acadêmicas,
de pesquisas e produções, em diferentes áreas do conhecimento, que
seguem essa tradição nomeada como “intérpretes do Brasil”. Gradual-
mente, no entanto, essa prática foi sofrendo patente embotamento. Na
atualidade, trabalhos dessa estirpe são escassos – feito ilhéus numa vas-
tidão oceânica. O labor de interpretar o Brasil fez parte da nossa cultura
desde o final do século XIX, impulsionado sobretudo quando viramos
uma República, e ganhou força ao longo do século XX, estando bem
vivo até a década de 1980. Pessoas de diferentes áreas do conhecimen-

2 Informe aos peritos na filosofia de Gilles Deleuze: esta palavra não tem o sentido dado
pelo filósofo francês.
Porto Maravilha 373

to, artistas e críticos literários produziam seus trabalhos orientados por


essa problemática.
A antropologia, a ciência social, a economia, os estudos urbanos e
rurais, a geografia, produções estéticas, seus movimentos – sendo os
mais conhecidos o Modernismo, o Cinema Novo3 e o Tropicalismo – e
a crítica literária canalizavam suas energias cognitivas na tentativa de
compreender aquilo que nos distingue de outras sociedades, a partir da
nossa formação social, dos nossos impasses e contradições. Na econo-
mia, por exemplo, procurava-se encontrar um caminho capaz de supe-
rar nossas mazelas sociais, de nos tirar do “subdesenvolvimento”; a lite-
ratura destacava as contradições de uma modernização conservadora e
evidenciava com suas personagens a descrição de ambientes até então
ignorados pelas elites rurais e urbanas; a crítica literária, a partir dos
romances, crônicas e poesias, buscava entender o Brasil.
Caio Prado Jr., Celso Furtado, Chico de Oliveira, Darcy Ribeiro, Fer-
nando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre, Josué
de Castro, Lourdes Sola, Octávio Ianni, Raymundo Faoro, Ruy Mauro
Marini, Sergio Buarque de Holanda etc. são alguns desses intelectuais
que passaram boa parte da vida trabalhando com essa intenção. Abdias
do Nascimento, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Guerreiro Ramos,
Kabengele Munanga, Lélia Gonzales, Luiza Bairros, Muniz Sodré, Vir-
gínia Bicudo, entre outros, com o mesmo propósito, além de serem in-
telectuais que se autodeclaravam ou se autodeclaram negros e negras,
abordam o significado da escravidão numa perspectiva bem diferente
dos que fizeram parte do establishment. Esses últimos são pensadores
e pensadoras cujas ideias durante um bom tempo permaneceram rele-
gadas nas instituições acadêmicas e no debate público. Neste início do
século XXI, as consequências da crítica ao racismo estrutural, a mobi-
lização dos movimentos sociais, com a agenda racial dentro e fora das
universidades, as políticas afirmativas, que fez aumentar a presença de
discentes negros nas universidades públicas, o ingresso de docentes
afrodescendentes nas universidades etc. contribuíram para que as re-
flexões e proposições desses pensadores e pensadoras estivessem entre

3 O Cinema Novo fez uso de alegorias em seus filmes ao apresentar as contradições da


nossa sociedade. Sobre o tema ver Xavier (2012) e Paranaguá (2014).
374 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

disciplinas de algumas universidades, programas e institutos de pós-


-graduação.
Entre os trabalhos estéticos, para ficarmos só na literatura, desta-
camos “Triste fim de Policarpo Quaresma” (Lima Barreto), “Grande
Sertão: Veredas” (Guimarães Rosa), “Vidas Secas” (Graciliano Ramos),
“Macunaíma” (Mário de Andrade), “Quarup” (Antonio Callado), “Viva
o Povo Brasileiro” (João Ubaldo Ribeiro) como alguns dos romances
fundamentais de interpretação do Brasil. O romance “Torto Arado”
(Itamar Vieira Júnior), publicado recentemente, segue essa tradição tão
rara nas últimas décadas.
Alfredo Bosi, Antonio Cândido, Jorge Schwartz, Roberto Schwarz,
Silviano Santiago etc. são algumas das referências na interpretação do
Brasil a partir de obras literárias. Certamente quem se dedica a esse in-
teressante campo do conhecimento identificará significativas ausências
nesta lista de referências produzida por um neófito no tema.
Identifico como responsáveis pelo enfraquecimento dessa conduta
ao menos duas causas: a ditadura militar, que sufocou o pensamento
crítico – tirar a vida de intelectuais, expulsar do país, retirar das ativi-
dades acadêmicas etc. foram algumas das medidas tomadas pelos go-
vernos militares –; e, após a ditadura, o avanço da especialização acadê-
mica, o declínio do intelectual público, as exigências produtivistas nas
universidades e centros de pesquisa. No entanto, iniciamos o segundo
terceiro do século XXI com muitos dos problemas tratados pela vaga de
intérpretes do Brasil. Mudaram-se as disposições do pensamento, das
instituições produtoras de um tipo de conhecimento, ao passo que as
desigualdades sociais, a pobreza e a miséria se agravam.
Com este ensaio, espero estimular a oposição à prática mental predo-
minante, que se nega a olhar para a nossa sociedade em toda a sua com-
plexidade e nuanças. Animar, sobretudo aos mais jovens, que ocupam
os cursos de graduação, os institutos de pós-graduação, a abordarem os
variados fenômenos que dão forma e contorno à nossa sociedade, a se
debruçarem sobre os determinantes próprios da nossa formação social,
a adotar um espírito investigativo dentro de uma perspectiva sistêmica.
É verdade que a realidade contemporânea, sejam as relações sociais – de
configuração bem distinta da de outrora – ou as institucionais – com
práticas metodológicas e epistêmicas estabelecidas, além da mania de
Porto Maravilha 375

seguir o modismo teórico de outras paragens, especialmente do que é


produzido fora do continente latino-americano –, impõem dificuldades
para assumir essa disposição intelectual.
Em meio às dificuldades supracitadas, há ao menos mais duas obje-
ções que convém destacar. A primeira, de ordem filosófica e epistêmica,
é resumida no texto “A condição pós-moderna” de Jean-François Lyotard
(2004), apresentado ao Conselho de Universidades junto ao governo do
Quebec, Canadá. Naquele trabalho, Lyotard expôs as transformações
epistêmicas, políticas, científicas e culturais, iniciadas no final do século
XIX, que foram minando a utopia Iluminista. Pode-se dizer que o filósofo
pós-estruturalista francês produziu o obituário de todo e qualquer esforço
intelectual de elaborar metanarrativas, explicações gerais, amplas e uni-
versalizantes. A outra objeção, de base sociológica e política, tem relação
direta com o avanço do pluralismo e da problematização na sociedade
brasileira de questões raciais e de gênero, entre outras relações opressivas,
que até pouco tempo eram desprezadas ou, quando muito, enfrentadas de
soslaio. Esse contexto acarreta dificuldades para qualquer leitura que se
proponha mais abrangente ou que busque expor as intersecções dos fenô-
menos estudados. Atitude intelectual como essa estará sujeita a incorrer
no risco de esposar a homogeneização, deixando de fora, por exemplo,
diferentes modos de existência e arranjos culturais.4 Aliás, poucos intér-
pretes críticos do Brasil, do pensamento estabelecido, foram capazes de
evidenciar nossos dilemas, a nossa formação social, sem cometer o equí-
voco de ressaltar a miscigenação ou o nosso assimilacionismo cultural,
sem dar a devida importância às relações agonísticas, violentas, admitin-
do um pluralismo domesticado que distorcia a nossa realidade.
No entanto, com esses relevantes questionamentos e riscos, sigo a
senda da provocação para, quem sabe, estimular novas sínteses, dessa
vez, digamos, mais cuidadosas, cujo universalismo a ser perseguido seja
um princípio que contribua para constituir um ambiente mental e insti-
tucionais que possibilite abarcar o pluralismo político e cultural em nos-
so território de dimensões continentais e que não é só metropolitano.
Essa minha iniciativa, nada analítica, é tomada num tempo em que
completamos dois anos de crise sanitária mundial, no qual a palavra

4 Ver Ortiz (2015) e Hall (2014).


376 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

“retomada” aparece de todos os lados, propalada por diferentes vozes.


Especialmente nesta primeira quadra do século XXI, quando a dinâmi-
ca econômica modifica a paisagem de territórios – sejam das áreas ur-
banas, como as regiões metropolitanas, ou as que servem de plataforma
de produção de proteína ou grãos. Hoje temos um Estado mais violen-
to, sobretudo contra os pobres. As formas organizativas dos grupos de
pressão da sociedade assumem novas práticas e agendas. Há o impacto
da comunicação da internet e das redes sociais na maneira de se fazer
política; os conservadores e reacionários da sociedade brasileira pas-
saram a se organizar, a disputar o espaço público, que antes ficava sob
o domínio de democratas, socialistas, anarquistas e libertários. Muitas
dessas mudanças se acentuaram com a pandemia do Sars-CoV-2. Além
disso, as eleições presidenciais de 2022 representam uma significativa
possibilidade de retirar o presidente da República responsável pela des-
construção do nosso já precário Estado de Direito. Ou seja, estamos
dentro de um contexto de grande desalento, mas instigante e desafiador
o bastante para combater tanto a obtusidade criminosa de práticas que
se nutrem de um pensamento subserviente aos interesses exógenos –
prática antiga em nosso país, tendo o Porto Maravilha como mais uma
delas –, quanto aos limites de um especialismo acadêmico que poda a
ousadia e a criação de novos horizontes.
Antes de avançar para a próxima seção, faço uma pequena digressão
para conter mal-entendidos. Não defendo que a nossa cultura, aqui em
seu sentido mais abrangente, seja o resultado de um ambiente protegido,
impermeável a influências externas. Não é disso que se trata! (Abraço o
hibridismo e a mestiçagem! O pensamento avança entre intensas trocas
e embates!) Nesse ponto, sirvo-me de Oswald de Andrade, em especial
do Manifesto Antropófago, lançado em 1928, como uma vacina contra
o vírus da pureza. Fundamentalmente, o objetivo de Oswald era o de
produzir uma síntese interpretativa do Brasil ou uma teoria cultural que
levasse em conta tudo aquilo que existira antes mesmo do Brasil ser
Brasil – que era formado por indígenas de diferentes nações; que sofreu
a violência de todo e qualquer ato colonizador; que teve o impacto da
chegada compulsória de africanos escravizados. Oswald elaborou uma
síntese que idealizaria a nossa capacidade de se apropriar da diferença.
Como bons antropófagos, descendentes dos Caetés, aqueles que se de-
Porto Maravilha 377

liciaram com a carne do Bispo Sardinha, a deglutição seria o ato capaz


de trazer para si o que há de mais valoroso no outro, a maneira de am-
pliarmos o nosso poder. Não haveria motivos para vergonha. Em um
jogo dialético, tenso, produziríamos uma síntese capaz de nos tirar da
relação passiva e subserviente às ideias europeias. A antropofagia era o
ato que conferiria dignidade à nossa produção cultural. “Só a antropofa-
gia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente” e “Só me
interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (Andra-
de, 2017, p. 50) são alguns dos aforismas do Manifesto Antropofágico
que Oswald desenvolverá em outros textos, ao longo da sua vida, com
o fito de conferir ao pensamento antropofágico o poder de influenciar
e se imiscuir em todas as esferas da vida social brasileira. Para alguns
críticos da cultura nacional, Oswald ousou em produzir uma verdadeira
filosofia ou metafísica brasileira (Ruffinelli e Castro, 2011). Esse intento
aparece de forma sistemática e mais evidente em “A Crise da Filosofia
Messiânica” e na “A Marcha das Utopias” (Andrade, 1970). Tomada essa
medida de precaução, seguimos.

(A nossa alegoria)

A ocupação da zona portuária carioca ocorre no início no século XVII,


mas o seu dinamismo econômico chegou a partir de 1770, quando o
mercado de negros escravizados foi transferido da Rua Direita (atual
Rua Primeiro de Março) para o Valongo (as ruínas do Cais do Valongo
estão expostas na Rua Barão de Tefé, no bairro da Saúde). No final do
século XVII, o porto do Rio de Janeiro era o maior do país. Esse dina-
mismo aumentou com a chegada da Família Imperial, em 1808, com o
Tratado de Comércio e Navegação assinado em 1810 – que garantiu a
abertura dos portos brasileiros para produtos ingleses –, e o aumento
da demanda por bens materiais de uma metrópole que expandia a sua
densidade demográfica.
Na passagem do século XIX para o século XX, o porto do Rio de Ja-
neiro era formado por um conjunto de ilhas da Baía de Guanabara – sua
extensão, no continente, iniciava na região fronteiriça ao Paço Imperial
e abarcava as praias das Palmeiras e São Cristóvão. Engajado na marcha
378 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

do progresso, para mostrar ao mundo que o principal porto do Brasil se


modernizava e, com efeito, a capital do país debelaria as graves doenças
provocadas pela falta de uma infraestrutura urbana capaz de garantir a
salubridade, o presidente da República Rodrigues Alves em um dos seus
pronunciamentos apresentava suas intenções:

Quando, em 15 de novembro de 1902, assumi o governo, tomei o com-


promisso formal de empenhar todos os meus esforços em prol dos
grandes interesses nacionais [...]; cuidar, em suma, da vida econômica
do país, e, especialmente, do saneamento e remodelação desta capital,
como condição indispensável para que todos os elementos de progresso
possam ser ativados eficazmente.5

O presidente nomeia para prefeito da capital o engenheiro Pereira


Passos, e contrata a empresa do engenheiro Paulo de Frontin para rea-
lizar as obras de modernização do porto e as reformas na área central.
A reforma realizada entre 1903 e 1906, que aterrou uma extensa faixa
do litoral, onde passa a Avenida Rodrigues Alves, alterou a morfologia
e a deixou bem próxima da configuração espacial de hoje. As mudanças
urbanas, além de seus objetivos sanitários, econômicos e paisagísticos,
acompanhavam as ideias eugenistas da época (Schwarcz, 1993). Com
as reformas, também se esperava diminuir a repulsa e temor de viver
ou passar pela cidade, onde as moradias populares eram vistas como
“oficinas das pestes” (Santucci, 2008), e encorajar a imigração europeia,
de pessoas de pele branca, dispostas a trabalhar. O estímulo à imigração
comportava dois propósitos: ter mão de obra abundante para a lavoura
e os serviços nos estabelecimentos urbanos, e acelerar o branqueamento
da população para alcançar os píncaros da civilidade, segundo a teoria
fundamentada na ciência moderna que poucos se atreviam a questionar.
O esforço de se mostrar ao mundo como a Paris dos trópicos cus-
tou caro aos cofres públicos. O presidente Rodrigues Alves “levantara
um empréstimo de 8.500.000 libras junto ao banco dos Rothschilds, em
Londres, uma soma que, à época, aproximava-se da metade do orça-
mento da União. Desse montante, mais de 50% do dinheiro captado

5 Extraído de Azevedo (2016, p. 164).


Porto Maravilha 379

na banca dos Rothschilds foram aplicados somente nas obras do cais”


(Azevedo, 2016, p. 151). Como descrito no início desta seção, esses re-
cursos vultosos não melhoraram a vida dos mais pobres. A falta de in-
fraestrutura básica para essa população – saneamento, transporte, equi-
pamento educacional etc. – estava fora do escopo do projeto. O avanço
do projeto de modernização da República era violento para a maioria da
população, formada por pobres, famélicos, desvalidos. Ela involuntaria-
mente transformava esses, sem eira e sem beira, em desterrados em sua
própria terra. Travava-se uma verdadeira guerra contra um lado, com a
mesma nacionalidade dos seus algozes, que estava sempre desarmado.

Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo em toda a Histó-


ria, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na
precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram
os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas:
um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam
raivosamente cinco mil soldados (Cunha, 2000, p. 514).

Acima temos um dos últimos parágrafos do ensaio de Euclides da


Cunha, “Os Sertões”, que relata o último dia da Guerra de Canudos. Pu-
blicado em 1902, se tornou um dos primeiros trabalhos de intepretação
do Brasil republicano. Em 1897, o autor, já desligado do exército, viaja
à Bahia e escreve reportagens sobre a Guerra de Canudos, de agosto a
outubro, para o jornal O Estado de São Paulo. Euclides acompanhou
a quarta e última investida do exército republicano tomar o Alto da
Favela. Os horrores que viu naqueles meses, registrado em seu diário,
alimentou as matérias para o jornal e o longo ensaio, que levou quatro
anos para ser produzido, sobre mais uma guerra a compor as tragédias
do país.
O ataque a Canudos, o assassinato de Antônio Conselheiro e de seus
seguidores, foi demonstração estrondosa do destino de qualquer um
que se colocasse contra o avanço do progresso (Barros et al., 2019). Para
os que resistiram, cova rasa. Aos soldados vitoriosos, promessas não
cumpridas. O governo prometera a esses, maioria negra, moradia como
prêmio em caso de vitória. Para tentar consumar a promessa, os solda-
dos, numa combinação de pressão e necessidade, se alojaram próximos
380 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

ao prédio do Ministério da Guerra, atual Palácio Duque de Caxias, no


Morro da Favela,6 atual Morro da Providência, se juntando às famílias
despejadas dos cortiços e estalagens do centro do Rio de Janeiro. Esse
encontro, entre Canudos e Morro da Favela, é uma contundente indica-
ção do que a República reservaria aos pobres, aos com poder limitadís-
simo de influenciar nos rumos do Brasil.
A ocupação do Morro da Favela e a Guerra de Canudos são atos
fundadores de como o progresso e a civilização seriam cultivados na
terra do pau-brasil. Uma parte dos moradores do Morro da Favela es-
teve a serviço do exército, cumprindo a nada honrosa tarefa de matar
aquelas pessoas que queriam ter seu próprio pedaço de terra e se negava
a seguir as regras de uma República excludente. Pobres, negros, agiram
sob as ordens de oficiais e executaram à bala cerca de 20.000 seguidores
de Antônio Conselheiro. A outra parte, despejada violentamente, vivera
na região, em estalagens e cortiços demolidos no final do século XIX,
anos antes do bota-abaixo. Entre tantas demolições, o cortiço Cabeça de
Porco é uma das mais citadas em nossa historiografia urbana.
As demolições se tornaram constantes, o progresso avançava sobre
escombros e sangue. Com ele, uma “política habitacional” para os po-
bres ia tomando forma. O seu prenúncio apareceu gravado no Código
de Postura (Decreto 391/1903). Nele se lê as bases do que seria a inação
(também uma forma de realizar políticas públicas e garantir a superex-
ploração dos trabalhadores urbanos) dos governos na provisão de habi-
tações populares. No decreto constava: “Os barracões toscos não serão
permitidos, seja qual for o pretexto de que se lance mão para obtenção
de licença, salvo nos morros que ainda não tiveram habitações mediante
licença” (Marins, 2021, p. 120). Neste decreto, encontramos em germe
os desajustes das políticas habitacionais. A formação das favelas na ca-
pital federal, com certa permissividade do Estado, se tornou a principal
forma de amortecer os conflitos por moradia populares. Um conflito
que se reconfigurou, mas não desapareceu. No Rio de Janeiro atual, um
pouco mais de 20% da sua população, próxima a 7 milhões de habitan-
tes, vive em favelas.

6 Dicionário de Favelas Marielle Franco. Disponível em: https://bit.ly/3q8MsFC. Aces-


so em: 02 jan. 2022.
Porto Maravilha 381

Favelados sempre estiveram inseguros sob a ameaça constante da


violência do Estado, para prender, matar ou expulsar famílias para a
construção de edificações da “cidade formal”. Assim foi com a reforma
da área central, no início do século XX, com a criação da Avenida Pre-
sidente Vargas, em 1944, ou com a verticalização urbana na Zona Sul da
cidade, na década de 1960. Dessa forma, a vida dos pobres, bem antes
de Zygmunt Bauman nos apresentar o conceito de sociedade líquida,
foi marcada pela insegurança. Era sair do cortiço ou da estalagem para
morar na favela, dessa, para regiões mais afastadas, longe do local de
trabalho, quebrando vínculos de vizinhança, em condições de moradia
e serviços públicos ainda mais precários. Lembrando que parte desses
locais, como por exemplo a região da Baixada Fluminense, a partir da
década de 1950, foram ocupados por milhares de famílias que, por falta
de condições para viver na área rural, saiam em direção ao Rio de Ja-
neiro acreditando conseguir uma vida melhor e, quem sabe, retornar
para a sua terra natal. A zona portuária, portanto, é uma miniatura do
universo brasileiro onde os princípios da República, para a maioria da
população, não conseguem transpor os limites da imaginação.
Novamente, passados um pouco mais de 100 anos, a arte do simula-
cro de ignorar os pobres – a marca da República, que parece contagiar
todos os governos, independente das referências ideológicas – se apre-
senta com uma nova indumentária. Na zona portuária, em 2009, apor-
ta o “Porto Maravilha”, imitando os urbanistas de ultramar. Os movi-
mentos sociais perguntavam: maravilha para quem? (Giannella, 2015).
O projeto foi apresentado como exemplo indubitável de empenho da
administração pública para colocar o Rio de Janeiro entre as cidades
globais. Nele, em parceria com empresas da construção civil, em um
perímetro de 5 milhões de m², com cerca de 32 mil habitantes (segun-
do dados do Censo Demográfico do IBGE de 2010), seriam realizadas
mudanças para usos diversos, com investimentos estimados de R$8 bi-
lhões. Boa parte desses recursos eram públicos, retirados do Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) – no início do projeto foram
usados R$3,5 bilhões. Posteriormente, com o baixo interesse de agentes
imobiliários em adquirir títulos que lhe davam o direito de construir
na região – em um período em que investir no mercado financeiro, em
títulos da dívida pública, por exemplo, era mais vantajoso, entre outras
382 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

coisas –, mais dinheiro público do FGTS foi utilizado para pagar ao con-
sórcio de empresas responsáveis pelas obras e serviços na região.
O propósito era transformar a zona portuária em local para moradia,
com postos de trabalho, serviços e equipamentos para o entretenimento
– conforme a propaganda governamental, uma área central que segue
o padrão internacional de cidades: compactada, adensada, de uso di-
versificado e ambientalmente sustentável. Muita lorota! O projeto, com
suas obras, deveria abarcar as favelas do Morro da Providência, Pedra
Lisa, Morro da Conceição, Morro do Livramento, Morro do Pinto, São
Diogo, os bairros Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Centro, Cidade Nova
e São Cristóvão. O Censo Demográfico de 2010 (IBGE), já identifica-
va que mais da metade das famílias que viviam nesses bairros e favelas
possuíam renda mensal domiciliar per capita inferior a um salário mí-
nimo. Com a pandemia, a situação econômica e social que já era ruim,
infelizmente, piorou.
Esse projeto urbanístico foi mais uma vez a repetição, em um outro
tempo, com outros recursos, do que tem sido a marca de boa parte dos
projetos urbanos no Brasil – um pastiche. É mais uma vez a mistura
dos hábitos adotados por pessoas que ocupam posições de decisão den-
tro do Estado e de corporações: produzir pastiche serialmente, ignorar,
sempre, as nossas capacidades, encontrar incansavelmente meios para
obter vantagens para ampliar o poder e o patrimônio pessoal e corpora-
tivo. Essas características, sobretudo a de produzir o espaço urbano imi-
tando as ideias e formas criadas no Norte da Europa ou da América an-
glo-saxônica, se tornaram um forte traço do comportamento nacional
que extrapola, em elevada medida, o urbanismo e a arquitetura. Poucas
esferas da vida não são acometidas por essa enfermidade. A produção
intelectual, instituições de pesquisas, a produção estética, entre outros
espaços e fatos da vida social não escapam. Nem o futebol, orgulho na-
cional, resistiu!
O American way of life – consumir, consumir e consumir; ter, ter e
ter, agora com o tempero do empreendedorismo – “ilumina” as mentes
ditas mais ilustres do Brasil. Estátua de um marruá, semelhante a que
está em Wall Street, nos Estados Unidos, foi colocada na Bolsa de Va-
lores de São Paulo; a Estátua da Liberdade é o ícone do bairro do Rio
de Janeiro onde dizem residir os “novos ricos”. Até democratas, pessoas
Porto Maravilha 383

que visam a redução da desigualdade social, não conseguem se livrar


desse jeitinho de ser e pensar, de olhar compulsivamente para o exte-
rior e importar sem a devida mastigação. A má digestão está em nosso
mundo material e das representações mentais. No campo da produção
teórica, nossa balança de pagamento é deficitária, em que pese o esforço
de uma minoria quixotesca, mencionada no início deste ensaio, que tra-
balha arduamente para nos tirar dessa condição subalterna.
Precisamos mesmo de progresso, desenvolvimento ou neodesenvol-
vimentismo? A marcha da insensatez degrada o Cerrado, retira uma
das suas riquezas naturais – a água – para expandir a produção de soja;
a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte acelerou o etnocídio;
recentemente, incentivado pelo governo federal, temos a mineração cri-
minosa, queimadas; nas metrópoles e centros urbanos temos a expulsão
de famílias para dar lugar, como sempre, a empreendimentos imobiliá-
rios de luxo.
A modernidade, por aqui, expõe a sua face mais trágica. A Guerra de
Canudos, podemos afirmar, foi o marco fundador da barbárie republi-
cana. Aterrorizou até mesmo um republicano positivista como Euclides
da Cunha (Carvalho, 2019).
O “Porto Maravilha”, portanto, nada mais é que a repetição da mi-
séria intelectual de uma elite que vive de cócoras para as classes domi-
nantes internacionais, que sempre se negou a ver e a encontrar soluções
para os nossos imensos problemas, aproveitando aquilo que temos de
melhor entre nós. A zona portuária, com o projeto Porto Maravilha, é
mais um microcosmo desse Brasil – Cais do Valongo, Guerra de Canu-
dos, a Revolta das Carnes Verdes, a Revolta da Vacina, local da primeira
favela do Brasil, a Paris dos Trópicos (Santucci, 2008). Despejos, violên-
cia estatal, desalento, equipamentos públicos desativados, muitas mani-
festações culturais suprimidas ou, para existir, submetidas à lógica mer-
cantil da indústria cultural e do turismo. A promessa mais uma vez não
se cumpriu. Quem sempre teve muito, ganhou mais. Para a maioria, que
sempre teve pouco, muito do pouco que tinha foi retirado. Atualmente,
sobretudo com a crise econômica e a pandemia da Covid-19, a região
não alcançou o dinamismo projetado. O que seria da região se não fosse
a riqueza cultural que resiste à ignorância e contém o fim do mundo!
384 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

(A Retomada)

Perto de completarmos 200 anos da proclamação da Independência e


132 anos da República, já passamos por ditaduras e golpes, pela gripe
espanhola, no início do século passado, e agora estamos dentro de uma
nova pandemia; figuramos na lista das quinze maiores economias do
mundo e no topo da lista dos países mais desiguais do planeta; sempre
temos brasileiros na lista dos mais ricos do mundo; temos um extensa
área de cultivo de alimentos, somos grandes produtores de gado, soja,
milho e café que enriquece o agronegócio; ao mesmo tempo, chegamos
no segundo ano desta pandemia, com a metade da população em situa-
ção de insegurança alimentar (Dias et al., 2021); estamos perto de um
estado de miséria crônica; temos os maiores aquíferos do mundo e água
doce superficial em abundância – o que faz com que os interesses das
corporações para explorar comercialmente a água no Brasil aumente;
nossos biomas têm uma biodiversidade abundante; o sistema bancário
do Brasil é um dos mais sofisticados do mundo e temos milhares de de-
sempregados vagando pelos grandes centros urbanos; anualmente cerca
de 60 mil pessoas são vítimas de morte violenta, principalmente por
arma de fogo – a maioria são jovens negros, moradores de favelas e pe-
riferias; até fevereiro de 2020 mantínhamos a terceira maior população
carcerária do planeta; o etnocídio segue impiedoso – a população indí-
gena não cessa de minguar, vive num fim do mundo; nessa pandemia, o
coronavírus tirou a vida de mais de 600 mil pessoas; temos um governo
que ataca as estruturas do estado, por dentro, e destrói o nosso precário
sistema de proteção social, fragiliza as legislações de proteção do traba-
lhador e drena os recursos públicos para os ricos – abre as portas do Es-
tado para a pilhagem realizada pelos piratas do “mercado”; querem dar
fim a qualquer vestígio de um Estado de bem-estar social. Os mortos e
os que vivem sob privilégios, miseráveis e os milionários, sem-sonhos e
os hunters, sem-emprego e os herdeiros, sem-teto e os latifundiários ur-
banos e rurais, sem-comida e os protegidos por Deméter – Basta de pa-
radoxo! Será que o economista Edmar Bacha continuará tendo razão? A
Belíndia (Bacha, 2012) se eternizará? Essa é a marca da nossa República.
Em meio a esse cenário, se incorporou ao léxico de diferentes insti-
tuições do país a palavra “retomada”. De todos os lados – do corporativo
Porto Maravilha 385

empresarial, entre as organizações e movimentos sociais, partidos po-


líticos do campo democrático e os antidemocráticos –, são apresenta-
das propostas para um Brasil que supere a tragédia social agravada pela
pandemia.
As mudanças determinadas pelas transformações técnico-científi-
cas e axiológicas, faz tempo, vem produzindo dificuldades. O desem-
prego estrutural ou precário só aumenta. O Porto Maravilha é um caso
bem próximo de nós que faz parte dessas mudanças. A terra urbana,
diferente do tempo de Pereira Passos, passou a ser um ativo, de uso
quase irrestrito. Se antes se restringia a ser fonte de renda extraída do
aluguel ou do que se produzia ou comerciava dentro da edificação,
agora, a terra, os imóveis que nela se assentam, são bem mais, se tor-
naram lastro para contratos e papéis negociados no mercado finan-
ceiro. Lembremos que esse circuito de trocas e negociações de ativos
intangíveis, em tempo real, não seria possível sem as conquistas da
ciência eletroeletrônica, da computação etc. Santo transistor! De nada
valeria as ideias de Hayek, Friedman, as ações de Thatcher, Reagan e
tantos outros sem aquela invenção e o aperfeiçoamento das máquinas,
cabos e satélites que atingem a órbita geoestacionária. Em frações de
segundos, com um toque na tecla de um computador ou na tela de
um smartphone, a economia de um país sucumbe, milhares ficam sem
onde morar, sem trabalho, sem serviços públicos. E com as mudanças
de valores sociais, com a reorientação da bússola moral, tudo isso é
visto com normalidade. O mundo agora é, ainda mais, cada um por si!
O mais esperto, o mais forte, leva tudo.
O capitalismo industrial, que a partir do fim da Segunda Guer-
ra Mundial foi o dínamo econômico dos centros urbanos, não possui
a mesma importância. O que vemos, são indústrias desativando suas
plantas, ou acelerando processos de automação, economizando mão de
obra, ou se transferindo para cidades fora das regiões metropolitanas –
quando encontra incentivos fiscais e custos menores com salários. Face
da mesma moeda, parte expressiva do agronegócio se industrializa e
passa a absorver uma menor quantidade de trabalhadores; subordinam
a dinâmica das cidades rurais aos seus negócios; ao mesmo tempo, im-
pactam a cultura nacional com festivais musicais, rodeios etc. (Pompeia,
2021). Vivemos transformações na forma de produzir manufaturas e na
386 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

produção agropecuária que ampliam um exército de mão de obra de


reserva inaproveitável. Um fenômeno de impacto em todo o país!
No meio desse furdunço, nada musical, não há como duvidar do
antropólogo Claude Lévi-Strauss, ao escrever nas últimas páginas de
“Tristes Trópicos”: “O mundo começou sem o homem e se concluirá
sem ele” (Lévi-Strauss, 1996, p. 442). Estamos aqui, vivos, não se sabe
bem, como e até quando perduraremos. A novidade, para dar novo ma-
tiz às nossas ansiedades, é o colapso climático, que anima os negócios
corporativos com as soluções da “economia verde”7 – precificar tudo!
Prevalece a doentia ideia de que as regras do mercado salvarão o planeta
do fim. Mas já há indicativos que são os mais pobres que mais sofrem as
suas consequências das mudanças do clima – de Bangladesh ao semiá-
rido do Nordeste brasileiro.
Sabemos que “retomada” tem vários sentidos, depende de quem ela-
bora as propostas e quem tem maior capacidade de efetivá-las. Por tais
razões, avalio quão valioso seria retomar o modo intelectual dos intér-
pretes do Brasil. Chama atenção, que, com todas as influências externas,
a nossa produção estética seja capaz de gerar algo distintivo, reconhe-
cido em qualquer quadrante do planeta. Mesmo com a globalização,
que tem uma forte tendência a imprimir a homogeneização, as artes
encontram brechas e se mostram com marcas culturais próprias. Não
estamos, portanto, diante de um momento, depois de tantos ataques,
de ampliar a produção intelectual, as nossas pesquisas olhando para
esse divórcio do Brasil com o Brasil? Como ignorar as transformações
sociais, econômicas, de valores e culturais nos diferentes territórios do
nosso país? Epistemologias, como as dos povos indígenas, mostram a
sua importância para conter a flecha do progresso. Grupos sociais e pes-
quisadores, do campo progressista, já suspeitam do padrão interpretati-
vo euro-americanizado, e desenvolvem pensamentos mais vinculados à
nossa formação social. Por que determinados países produzem teorias
e exportam para o mundo, e nós pouco a produzimos, mesmo para o
nosso consumo próprio? O estudo da filosofia que o diga, minha área
de pesquisa – os institutos estão abarrotados de história da filosofia e de
trabalhos de exegese de conceitos, que também são importantes, mas...

7 Ver Fuhr e colaboradores (2016) e Moreno e colaboradores (2021).


Porto Maravilha 387

Não estamos diante de uma grande oportunidade de atacar mais um


mal que assombra uma ampla parte da nossa sociedade: o vício da imi-
tação, da subordinação passiva? Os movimentos sociais estão sempre
em combate, apresentam alternativas em algumas situações, nem sem-
pre as melhores. Creio que uma das agendas, no campo da produção do
conhecimento e da pesquisa acadêmica, para a dita “retomada” é pro-
curar encontrar a viabilidade de uma sociedade em nossos próprios ter-
mos. Nos termos resultantes dessa confluência entre nativos, invasores,
escravizados vindos de outro continente, de um cristianismo católico
da península ibérica, da influência do islamismo e de religiões de matriz
africana, difundidas e praticadas por aqui. De um caldo de confluência
que gerou instituições porosas, de pouca impessoalidade – como des-
prezar a análise de Sérgio Buarque sobre a cordialidade como um traço
marcante da personalidade do brasileiro, cujo amor e ódio caminham
lado a lado –, distante de se vestir da racionalidade aspirada por filóso-
fos franceses e anglo-saxônicos.
Como explicar tanta solidariedade e violência? Como é possível, ex-
plicável, brotar tanta criatividade no meio de tanta miséria? Como se su-
porta tanta contradição? Nem Miami, nem Disneylândia, nem qualquer
outro tipo de americanismo; pouco menos uma defesa de um passadis-
mo. É um cenário, uma época, em que é difícil ter uma resposta adequada,
mas é possível assumir uma postura intelectual de modo a buscar respos-
tas múltiplas à altura da nossa complexidade. Relembro o que escrevi no
início: há pessoas com essa atitude realizando suas pesquisas, mas uma
minoria. Uma parte do Brasil pede que esse trabalho se amplie. A propó-
sito, eu poderia continuar esse ensaio abordando alguns desses trabalhos,
mas me limito a evidenciar a sugestão dada pela socióloga Cibele S. Rizek,
docente na USP São Carlos, que consta no texto de sua autoria ao tratar
das transformações urbanas de ataque aos pobres: “a desmontagem de
diagramas de análise que permitiriam compreender o país parece apontar
para a necessidade de reler os clássicos, dialogar com eles, puxar fios, bus-
car mais uma vez nomeações” (Rizek, 2013, p. 44).
Se, de fato, o que sugiro contraria o nosso tempo – tempos tão céleres
–, e pode ser mesmo impraticável, contento-me com a produção deste
breve ensaio defendendo ideias que sofrem desmedido desapreço.
388 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

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391
Foto: Série Fluxos, Luiz Baltar
CAPÍTULO 16

A cidade que atravessa


Luiz Baltar1

Passei anos cruzando a cidade, indo e voltando, horas dentro de um ôni-


bus. Aproveitava o tempo observando as paisagens que corriam pela ja-
nela como uma panorâmica infinita. É possível imaginar a cidade como
um filme que passa? Quem cruza a cidade, da Zona Norte, da Zona
Oeste em direção ao Centro e à Zona Sul, que filme vê através da janela
do coletivo?
Também podemos pensar na cidade como um livro, em que a maio-
ria das páginas querem convencer, seduzir e despertar o desejo para o
consumo de coisas. Basta olhar para os letreiros aplicados nas facha-
das, nas palavras pintadas nos muros e nas imagens impressas em pla-
cas, cartazes ou outdoors. Mas, prestando um pouco mais de atenção, é
possível notar que também existem páginas que protestam contra tudo
isso, algumas gritam “Basta!”, outras nos fazem pensar “Você é feliz para
onde está indo?”. Palavras pintadas de cal branco em muros cinza como
um manifesto contra a cidade segregada. Quantas cidades existem em
uma cidade? Quantos Rios no Rio, de janeiro a dezembro?
O Estado se faz presente de formas diferentes em diversos territó-
rios. Na cidade formal, maravilhosa, de frente para o mar, protegida por
montanhas e por um cinturão de batalhões, desde a época da colônia, a
cidadania é um direito, os serviços públicos funcionam, lazer e cultura
integram um pacote de qualidade de vida, acrescidos de educação e saú-

1 As obras do autor podem ser encontradas no site https://luizbaltar.com.br/.

393
394 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

de. Ruas e parques bem iluminados, arborizados e limpos são espaços


relativamente seguros para caminhar ou praticar esporte. Regras e leis
são feitas em função dos interesses e da garantia de bem-estar. Mas e na
cidade bang bang?
Vivemos em uma época na qual somos desencorajados a pensar a
cidade como uma realização coletiva ou como um território em dis-
puta constante. O Estado, as grandes corporações e o capital dominam
o espaço urbano e o transformam, conforme seus interesses, em um
lugar de produção de lucro em vez de um lugar para realização da vida.
Somos levados a acreditar que não existe outra possibilidade. Então nos
tornamos impotentes, insatisfeitos, sem enxergar uma saída.
A qualidade de vida urbana virou uma mercadoria. Segundo o geó-
grafo David Harvey, há uma aura de liberdade, desde que se tenha di-
nheiro para pagar. A maneira que enxergamos o mundo e a maneira
pela qual definimos suas possibilidades quase sempre estão associadas
ao lado da cerca onde nos encontramos. Vivemos em uma cidade divi-
dida, fragmentada e cujos habitantes estão constantemente em conflito.
Mas mesmo com toda tensão, racismo e preconceito social, as cidades
misturadas se afetam nesse contato inevitável.
Alguém já disse que o Rio de Janeiro é uma imensa favela, purgató-
rio da beleza e do caos, mas o filósofo Vilém Flusser, ao falar da cidade
do futuro, diz que ela seria a única “obra de arte” verdadeira e total,
onde seus cidadãos seriam artistas empenhados na produção coletiva
da cidade, que se daria de forma orgânica, fruto do consenso criati-
vo. Esta visão utópica de Flusser, paradoxalmente, não se concretizou
nos países desenvolvidos, lugares onde a cidadania é plena e a desi-
gualdade social insignificante, terras de fartura e regramento, onde o
Estado se faz presente em tudo, inclusive intermediando as relações
sociais. Esse idealizado artista/cidadão só poderia encontrar nas fa-
velas o espaço no qual conseguiria levantar com as próprias mãos o
mundo que imagina para viver. Assim, o que falta de liberdade nesses
espaços formais regrados, abunda como capacidade inventiva nas fa-
velas e periferias do Rio, onde se pode inventar outras sociabilidades
e possibilidades de viver aproveitando todas as frestas. Pude constatar
tudo isso na prática, fotografando e vivendo a luta dos moradores da
zona portuária por moradia, contra as remoções forçadas: cada prédio
A cidade que atravessa 395

ocupado tinha sua própria dinâmica de organização e construía suas


redes próprias de afetos e de apoios.
A base filosófica/estrutural dessa empreitada coletiva é a gambiarra
espalhada por toda parte. Andar pelos becos e vielas da Providência, a
primeira favela, é uma experiência estética poderosa. Basta olhar para a
arquitetura adaptativa das suas casas para perceber que sua paisagem é
produzida e modificada diariamente, sem ordenação e sem conflito. O
cotidiano e as relações entre os moradores são performáticos, celebra-
ções constantes de vida e prazer. Até mesmo o trabalho pesado de virar
concreto e subir lajes é feito por meio de mutirão entre os vizinhos: ver-
dadeiras festas com cerveja, samba e banho de mangueira.
Acredito na fotografia como forma de expressão ativista e crítica, e
com ela quero estabelecer um diálogo com as questões sociais, sobre-
tudo no que diz respeito ao olhar sobre a cidade. Dedico uma grande
parte da minha produção a documentar as várias maneiras de lutar pelo
direito à cidade e com as minhas imagens busco refletir sobre algumas
questões contemporâneas. Este sentimento foi expresso pelo fotógrafo
francês Antoine D’Agata:

A melhor maneira de conhecer o mundo é confrontando-o, confron-


tando os outros. Tomando alguma atitude de risco. Esquecemos que a
fotografia é explorar o mundo e mudar o entendimento sobre ele. Não
sabemos muito, não sabemos nada no final, e com o pouco que sabemos
temos de inventar um destino mais digno possível.

Comecei em 2009, fotografando as remoções forçadas na zona por-


tuária e as ocupações militares em diversas comunidades e favelas do
Rio de Janeiro. O meu primeiro encontro com a Providência e seu povo
foi em uma rápida visita. Fiquei deslumbrado com a paisagem e senti
muita vontade de fotografar a cidade do alto dos seus mirantes. A opor-
tunidade só veio em 2011, participando de uma atividade de apoio ao
pré-vestibular comunitário Machado de Assis. Me chamou a atenção as
casas marcadas com a sigla “SMH”, seguida de uma sequência de núme-
ros. Perguntando aos moradores sobre o que significavam, percebi que
havia muita desinformação, dúvidas e medo das remoções de centenas
de casas anunciadas pela Secretaria Municipal de Habitação. Até hoje
396 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

a comunidade desconhece o verdadeiro projeto da prefeitura além das


remoções forçadas e a gentrificação.
Em julho de 2011, lideranças convocaram a comunidade para um
café da manhã na quadra esportiva favela, principal espaço de convivên-
cia dos moradores da Providência. O objetivo do encontro era chamar
a atenção para a demolição da quadra e resistir ao início das obras do
projeto Porto Maravilha, mas foram recebidos por muitos policiais for-
temente armados que intimidaram e deixaram claro que a intenção era
reprimir qualquer resistência.
O registro fotográfico dessa manifestação e do controle militar im-
posto pela Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) foi a minha primeira
contribuição para a luta pela moradia na zona portuária e faz parte da
documentação “Favelicidade”, que venho desenvolvendo desde então.
Esse projeto surgiu com o objetivo de acompanhar o processo de “mo-
dernização” do Rio de Janeiro, documentando as transformações em
curso na zona portuária (projetos Porto Maravilha, Porto Olímpico e
Morar Carioca) e seu impacto sobre os moradores, comunidades e ocu-
pações da região, além de dar visibilidade às lutas de resistência e ao
cotidiano das comunidades ameaçadas de remoção.
A fotografia acontece quando uma série de encontros, as vezes im-
prováveis, se apresentam: o fotógrafo, com o personagem, com a pai-
sagem, com uma situação ou com combinações desses elementos. A
fotografia é conseguir criar esses encontros. Descobri que podia ser
um militante social ativo sem fazer parte de partidos ou organizações
políticas, simplesmente registrando e disponibilizando imagens para
proporcionar maior visibilidade e empatia às causas ou, nas ocupações
militares, inibindo violações de direitos com a presença de uma câmera
registrando a ação. Foram alguns anos apoiando o Fórum Comunitário
do Porto, produzindo imagens para os relatórios técnicos produzidos
pelos pesquisadores da UERJ e da UFRJ e por ativistas de diversas orga-
nizações, como a Anistia Internacional, a FASE e a Justiça Global.
Aos poucos as observações que fazia, o que via, o que aprendia com
os moradores, se transformaram em uma enorme necessidade de não
registrar apenas cenas, acontecimentos e documentar as mudanças
que via acontecer na cidade por conta das inúmeras obras de “revita-
lização” e de infraestrutura para os megaeventos (Copa do Mundo e
A cidade que atravessa 397

Olimpíadas), mas de produzir um trabalho autoral sobre essa cidade


em transformação, um trabalho documental visual no qual pudesse me
expressar e falar da minha experiência com essa cidade que também me
atravessava. Durante minhas viagens de ônibus, comecei a capturar as
imagens que corriam e refletiam nas janelas, e isso passou a fazer parte
da minha rotina; o celular virou um companheiro inseparável e o ônibus
meu atelier.
No entanto, não basta fotografar um assunto para que ele seja com-
preendido. Temos que lidar com a percepção condicionada pela gran-
de mídia, com os estereótipos que marcam os moradores de territórios
populares. Aí vem o maior desafio: conseguir espaços e mídias para
mostrar e expor produções que desconstroem o senso comum. Com
o tempo percebi que, tanto do ponto de vista estético quanto do pon-
to de vista documental, era preciso buscar uma perspectiva diferente
para retratar e, principalmente, criar empatia entre o espectador e os
meus temas. Por isso, aos poucos fui rompendo com a estética narrativa
do fotojornalismo e com sua pretensão de retratar a verdade. O uso do
celular, de maneira despretensiosa e “lúdica” no começo, me permitiu
explorar uma nova linguagem pessoal dentro da fotografia. O projeto
“Fluxos” foi minha primeira investida em uma documentação autoral
preocupada com questões da fotografia contemporânea. E me levou a
expandir a fotografia que vinha fazendo até então.
Comecei a fotografar a relação dos outros passageiros com o coleti-
vo, com o trajeto e com a paisagem. Passei a ter uma relação interessante
com os congestionamentos, perceber como alteram as noções de distân-
cia, velocidade e aceleração. Adotei no meu trabalho essas distorções:
espaciais e temporais. A cidade que observo se transforma, no mesmo
ritmo das cenas que passam pelas janelas. Movimento que, por vezes, é
não linear; por vezes, caótico; raramente, porém, retilíneo e uniforme.
A maneira que encontrei para traduzir tudo isso em imagens foi bus-
car o caos, o ruído, a fragmentação, a quebra, a reconstrução, os múlti-
plos ângulos. Fotografias expandidas no formato de longos e sucessivos
instantâneos. Na edição, as imagens capturadas são divididas, achatadas,
alongadas e repetidas como se fossem eventos no tecido espaço-tempo-
ral (quadridimensional) da relatividade. Através dessas imagens quero
falar da experiência do percurso, da desordem urbana que me impres-
398 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

siona. Da beleza e decadência da cidade que se dissolve. Da velocidade


que mistura os elementos visuais, e que faz surgir “fantasmas” e ruídos
inusitados. Nesse processo de capturar uma cidade em transformação
acelerada algumas panorâmicas montadas por mim acabaram por pre-
servar a memória de prédios que já não mais existem ou que foram mo-
dernizados e de alguma forma acabaram destoando do que se manteve
no entorno. Este é o caso do prédio que integrava o antigo conjunto de
armazéns frigoríficos e que agora se transformou no AquaRio, onde se
chega de VLT ou caminhando pelo Boulevard Olímpico.
A realidade é subjetiva e é mais bem compreendida pelas emoções.
Na edição de imagens que reuni para serem publicadas nesse livro or-
ganizado por João Carlos Monteiro e Letícia de Carvalho Giannella
apresento uma edição um pouco diferente da que foi exposta impressa,
formando uma grande panorâmica nas paredes do auditório do Museu
da História e Cultura Afro-Brasileira (Muhcab), durante o Seminário
“Porto Maravilha 10 anos: passado, presente e futuro da zona portuá-
ria”. Aproveito esta publicação para apresentar montagens que chamo
de paisagens políticas e sociais, onde misturo fotos das minhas docu-
mentações atravessadas pela cidade, onde registros de remoções, das
ocupações militares e manifestações são a matéria utilizada. Trata-se de
um trabalho mais autoral que em um primeiro olhar tem como temas a
mobilidade e as transformações urbanas do Rio de Janeiro, mas que fala
também sobre apagamentos e memória. São fotografias expandidas ou
montadas no formato de panorâmicas ou longos instantâneos, que faço
durante o percurso casa x trabalho, aproveitando os congestionamentos.
Com esse trabalho quero falar do caos urbano que me impressiona
e também dos momentos de contemplação e reflexão proporcionados
pelo transporte coletivo.

A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes po-


dem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. [...] O fim
de uma viagem é apenas o começo de outra. [...] É preciso voltar aos
passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao
lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.
José Saramago
399
Foto: Série Fluxos, Luiz Baltar
CAPÍTULO 17

Mostra Muitos Portos


O projeto como dispositivo aberto de construção
coletiva de futuros
Clarissa da Costa Moreira
Fernanda Sánchez
João Carlos Monteiro
Bárbara Lopes
Giovana Cruz
Pedro da Luz
Anna Carolina Peres
Marina Pires
Thiago Fonseca

Os espaços acadêmicos oferecem, no campo da Arquitetura e Urbanis-


mo, potencialmente, a chance de pensar para além dos velhos – e mes-
mo dos novos – modelos tantas vezes acríticos, das modas e modismos e
da precariedade intelectual que muitas vezes se impõem à prática profis-
sional na realidade governamental e mercadológica. Se há uma crise no
campo da Arquitetura e do Urbanismo, ela certamente é ligada ao modo
de produzir a cidade contemporânea, que cada vez mais passa ao largo
do debate social, arquitetônico e urbanístico. Esta crise se aprofunda
quando a formação profissional deixa de ser crítica e propositiva e se
torna apenas auxiliar dos grandes processos dominantes, controlados
pelos detentores do poder econômico e financeiro, na maior parte das
vezes, dissociados de uma visão de bem-estar coletivo.
No entanto, este estado de coisas, longe de desmobilizar as reflexões
sobre a cidade e seus futuros possíveis, pode estimular e mobilizar ainda
mais as forças criadoras e construtoras da sociedade, evitando o sequestro
do porvir urbano ao buscar ampliar o debate público, hoje tornado tantas
vezes apenas “proforma”. Estas ideias “outras” sobre a cidade, que buscam

401
402 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

ouvir e dialogar com as populações locais e suas demandas históricas, pre-


cisam circular, se mostrar, de fato, a fim de ativar o campo democrático e
nutri-lo de possibilidades, de outras saídas, buscando evitar a máxima de
que não há outra alternativa aos processos urbanos atuais.
Com a mostra Muitos Portos, neste quadro geral, buscamos trazer um
breve olhar sobre a produção acadêmica recente em torno do tema Porto
do Rio de Janeiro e suas transformações nos últimos dez anos, acompa-
nhando a importante iniciativa de realizar este balanço da operação urba-
na Porto Maravilha. Nada mais apropriado para essa mostra do que um
evento que reuniu ativistas fundamentais para os processos de crítica, ne-
gociação e resistência à operação urbana, além de estudantes, pesquisado-
res e outros apoiadores, que atravessaram a década buscando contribuir
de alguma forma com este território de tão grande valor histórico, social
e simbólico para o Rio de Janeiro e para todo o Brasil.
Na chamada de trabalhos para a mostra, observávamos que o Porto
do Rio de Janeiro há várias décadas enfrenta especulações urbanísticas
e econômico-financeiras de grande envergadura que propõem, quase
sempre, a total desfiguração do lugar e desejam promover, ainda que
discretamente, a substituição de população.
Pairavam nos anos 1980 verdadeiras “ameaças” urbanísticas aos bair-
ros portuários em um movimento global de produção de grandes proje-
tos de revitalização urbana, que refletiam a estratégia de competitividade
entre cidades pelo crescimento econômico. Esse contexto, por outro lado,
deu origem a iniciativas importantes de resistência comunitária. A pró-
pria legislação de preservação de todo o conjunto de bairros portuários,
aprovada naquele período e conhecida como projeto Sagas, é exemplo de
uma grande vitória da comunidade local com apoio de funcionários da
prefeitura ligados ao setor de proteção ao patrimônio histórico.
Experiências de habitação popular foram iniciadas nos anos 1990 bus-
cando se associar ao espírito de preservação do bairro, resultando em al-
gumas experiências promissoras. Mas muito pouco foi feito de concreto
em benefício das comunidades locais e do valioso conjunto histórico.
Futuros para o Porto do Rio de Janeiro sempre foram objeto de pro-
jetos no campo da Arquitetura e Urbanismo. No entanto, apenas em
2009, com a aprovação do projeto Porto Maravilha e o estabelecimento
de um modelo de governança e financiamento da política urbana, essas
Mostra Muitos Portos 403

forças obtiveram relativo sucesso em operar uma profunda transforma-


ção deste lugar. A partir de então, as propostas alternativas se intensi-
ficaram, por meio de um efetivo fazer coletivo, que buscava discutir e
repensar uma operação marcada, justamente, por sua dificuldade em
realizar uma “costura” coletiva, atuando de “cima para baixo”, e não sur-
preendentemente, tendo falhado, se consideramos o processo desde o
ponto de vista da cidade democrática e inclusiva.
No Porto do Rio de Janeiro, as lutas sociais possibilitaram o surgi-
mento de espaços de reflexão e debate sobre o futuro da comunidade.
Como na criação do projeto Sagas nos anos 1980 – impedindo a tábula
rasa dos bairros portuários e a total erradicação do tecido social – mais
recentemente, a decisão jurídica que interrompeu a remoção de quase
um terço dos moradores do Morro da Providência mostra a resiliência
e a capacidade de mobilização histórica da comunidade destes bairros.
Mostra ainda que projetos poderão ser mais bem sucedidos se levarem
em conta esta importante tradição de engajamento e amor pelo lugar.
Diante da crise econômica que se abateu sobre a cidade e refletiu nas
intenções iniciais do projeto Porto Maravilha, observou-se a profusão
de propostas alternativas ou complementares à operação oficial – que
de fato nunca apresentou um plano urbanístico claro e definido. Como
forma de crítica, diversos outros cenários e possibilidades vêm sendo
fabricados.
Partindo de uma seleção de contribuições da disciplina “Projeto de
Urbanismo II” da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universida-
de Federal Fluminense, a curadoria desejou ampliar para incluir uma
mostra das diversas contribuições feitas por estudantes e profissionais,
brasileiros e estrangeiros, do campo da Arquitetura e Urbanismo, mas
também do design, das artes, da história e da sociologia, ativistas sociais
e culturais, que constituem uma verdadeira fábrica coletiva de ideias. O
principal critério de seleção foi a busca de propostas de outros cenários
possíveis, que proponham para além das soluções corporativas e inter-
nacionalizantes que norteiam o projeto oficial e que, como vemos, não
frutificaram da forma esperada. Neste momento de inflexão, estamos
ainda diante de uma imensa e única oportunidade de rever caminhos,
reconhecer ganhos ou possibilidades e dar prosseguimento à constru-
ção de um outro Porto mais inclusivo e democrático.
404 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

O objetivo de uma atividade desta natureza é sensibilizar para o fato


de que os rumos da cidade nunca estão totalmente traçados e que, en-
quanto houver motivação, necessidade e engajamento, será sempre pos-
sível reescrevermos a história e recriarmos espaços de vida comum.
Uma das principais críticas ao projeto Porto Maravilha é a negação
das pré-existências. Em contraposição ao projeto oficial, os trabalhos
buscaram articular as experiências locais e os usos do espaço com sen-
tido social como elementos centrais do desenvolvimento dos projetos.
A proposta da mostra, foi, portanto, a de sensibilizar para o fato de que
os rumos da cidade não estão totalmente traçados e que será sempre
possível escrever novas histórias e recriar espaços de vida comum com
reconhecimento dos conflitos, respeito ao tecido social existente e à me-
mória, suscitando o debate crítico a respeito das transformações e os
rumos da zona portuária do Rio de Janeiro.
Importante lembrar que nos bairros portuários ocorreram algumas
experiências relevantes de produção de habitação popular por meio de
ações governamentais que buscaram associar-se ao espírito de preser-
vação do bairro. Um dos principais responsáveis por aquelas iniciati-
vas foi o arquiteto Demetre Anastassakis, membro do comitê técnico
desta mostra que, infelizmente, partiu cedo demais. Homenageá-lo
nesta ocasião, como grande inspiração e exemplo de prática profissio-
nal engajada na produção de uma cidade mais justa, é também uma
forma de sensibilizar para a necessidade de continuar seu trabalho.
Tendo sido um dos precursores da ocupação de vazios em áreas cen-
trais para a produção de habitação social, Demetre foi o responsável
pela construção do condomínio Moradas da Saúde, que junto com
alguns projetos de habitação social realizados na área central cario-
ca por meio do Programa Novas Alternativas, e mais recentemente,
com o apoio dado a alguns movimentos de moradia na área central,
constituem os poucos mas valiosos exemplos de promoção de habita-
ção inclusiva com apoio governamental neste território. O arquiteto
e todos aqueles que continuam trabalhando para que se possa cons-
truir habitação acessível e integrada à cidade, com respeito ao patri-
mônio social e urbano são, assim, aqui homenageados, esperando que
possam inspirar as novas gerações que, como podemos ver na mostra
Muitos Portos, vêm buscando trabalhar no sentido da democratização
Mostra Muitos Portos 405

da cidade, trazendo propostas e visões de futuros possíveis, a explorar


no projeto urbano.
Estendemos essa homenagem às comunidades dos bairros portuá-
rios, da qual Demetre Anastassakis também fazia parte, e que sempre
foram engajadas e ativas na construção do futuro deste lugar – e se hoje
ainda temos a história viva do Porto em seus muros, fachadas, esquinas,
é sem dúvida graças ao trabalho de vários moradores. As experiências
dos coletivos de cultura, as ocupações de movimentos de luta por mora-
dia, a resistência às remoções são também inspirações importantes para
projetar futuros. Neste sentido, prestamos essa homenagem às comuni-
dades locais, suas associações e lutas ao longo do tempo.
Dezesseis propostas de arquitetura e urbanismo e também das ar-
tes, concebidas por estudantes e profissionais foram expostas na mostra
Muitos Portos, trazendo visões de futuros próximos, produzindo con-
trapontos, movidos pela ideia da construção de uma cidade mais inclu-
siva e democrática, ou melhor, possibilitando que os “muitos Portos”
possam ser afirmados e não simplesmente capturados pela lógica ur-
bana e social da cidade-mercadoria. São ensaios, exercícios de pensar a
cidade que não se pretendem receitas ou soluções prontas, mas que bus-
cam vislumbrar outros caminhos inexplorados nos últimos dez anos,
trazendo um esforço de diálogo, de sensibilidade às demandas reais e
capacidade conceitual e projetual de alto nível.

As propostas participantes1

O que pode o Gasômetro?


Bruno Amadei

A resposta caminha em direção ao menor, público e popular, por meio


do espetáculo do cotidiano, assumindo que um projeto para aquele lo-
cal pode ser povoado pela potência de tudo que até agora não se encaixa

1 As imagens em alta resolução das propostas estão disponíveis em https://bit.ly/mos-


tramuitosportos
406 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

nos planos do Porto Maravilha. Assim como em sua forma, o Gasô-


metro combina mais de 50 funções que não foram escolhidas seguindo
critérios rígidos de viabilidade financeira e compatibilidade de usos. O
exercício se esforça em transportar para o terreno “tudo que sobrou” do
lado de fora do projeto Porto Maravilha, ou seja, tudo que ainda existe
em outros cantos da cidade, ultrapassando o conceito restrito de “vitali-
dade” prometido pelos novos empreendimentos multiuso (flat + hotel +
shopping + centro de convenções) do entorno.

Urbanidade, ocupação e universalização do espaço


Gabriella Travassos, João Paulo Ferreira, Juliana Dias e Tadeu Asevedo

A proposta envolve a criação de novos pontos focais no bairro pro-


porcionando um aproveitamento maior dos ambientes e os tornan-
do mais povoados e seguros. Para isso, uma das principais diretrizes
seria a mudança da legislação de uso do solo, tornando a área mais
diversificada, como forma de criar movimentação em todos os mo-
mentos do dia. Isso, em conjunto com a melhoria na infraestrutura
urbana, ajudaria também na segurança e bem-estar dos moradores
locais. 

Sistematização e potencialização de espaços livres: Morro do


Pinto
Antonio Paiva, Vitória Cabral e Viviane Brandão

No planejamento urbano, o conceito de cidade compacta, em linhas


gerais, propõe o adensamento do território urbano e o uso misto, vi-
sando, dentre outros aspectos, diminuir as distâncias percorridas pela
população em seu cotidiano. O layout proposto vislumbra maximizar
as caminhadas, o ciclismo, a interação social e com tudo isso, a sen-
sação de segurança por meio da própria dinâmica da vida nas ruas.
Dentro do vasto repertório pelo qual este conceito poderia nos guiar,
três pilares embasaram as decisões tomadas: a união da moradia + tra-
balho + lazer dentro de regiões menos privilegiadas. O projeto parte
Mostra Muitos Portos 407

da interpretação dos espaços livres dispersos no Morro do Pinto como


pontos de reestruturação urbana que se opõem a lógica empregada no
Porto Maravilha. Esses espaços são lidos como trechos do tecido urba-
no subutilizados ou residuais. sendo, cada um, analisado segundo uma
série de critérios que visaram facilitar a identificação de estratégias de
integração urbana.

Urbanismo de vivências
Nádia Conterno, Marcelo Jabor e Thiago Fonseca

Um Rio, várias cidades. Lugares simultaneamente a minutos de cami-


nhada e a mundos de distância. Essa foi a percepção inicial do grupo
na experiência de imersão do olhar sobre a zona portuária carioca.
Como se aproximar e investigar essa área de realidades tão díspares?
Partindo da relação entre o corpo e a cidade, buscamos apreendê-la
considerando uma miríade menos óbvia de processos culturais, so-
cioeconômicos e naturais. Os espaços, nessa perspectiva, passaram a
ser entendidos também pela ótica das narrativas e intenções que in-
fluenciam a vivência citadina. Olho, pele, veias – de metáforas para
entender a estrutura urbana passaram a ser associados aos corpos
que vivenciam a metrópole, evidenciando desarticulações, como as
proibições e restrições de circulação e comportamento, ainda que
nem sempre físicas, se fazem presentes – em maior ou menor medi-
da – pela vontade daqueles que constroem a cidade. Como intervir?
Buscou-se articular as vivências e, de maneira provocativa, mate-
rializar no espaço, por meio de grandes intervenções públicas, os
pontos de maior cisão no território. Por essa razão, fomos levados a
trabalhar áreas pouco pensadas como integrantes do Porto junto à
extensão da Avenida Presidente Vargas, que separa a cidade de seu
porto. Pontes, passarelas, parques suspensos, empreendimentos jun-
to às encostas das antigas pedreiras. Fantasias de um projeto utópico,
ou talvez por isso mesmo, representações de reais possibilidades de
articulação?
408 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Da supressão ao direito: disputas de lugar no Santo Cristo


Fernanda Costa Frias, Fernando Santiago, Marina Fernandes, Júlia Amaral e
Tatiana Melo

O trabalho foi desenvolvido com o objetivo de contribuir para que o


“habitar no Santo Cristo” seja cada vez mais digno aos moradores da
região. Para tanto, foram propostas novas formas de moradia popular
e de classe média baixa e novos usos para a área central da cidade, le-
vando em conta as intervenções e consequências da Operação Urbana
Consorciada e a constituição do chamado “Porto Maravilha” – que
removeu e demoliu diversos imóveis, dentre eles unidades habitacio-
nais de baixa renda, como ocupações com fins de moradia popular,
modificou a malha da região e inseriu novas formas de zoneamento,
mobilidade e uso, em prol da financeirização do espaço. A partir da
problemática da região, o trabalho se desenvolveu por meio de en-
trevistas e levantamentos feitos em campo, onde observamos as de-
mandas dos residentes e a forma como as mudanças provocadas pela
operação vem afetando suas vidas, reprimindo sua identidade e o di-
reito à cidade. Assim, dividiu-se as propostas em três grupos princi-
pais. O primeiro contou com a disposição de políticas voltadas para
a melhoria e criação de habitações, modificação e criação de áreas de
zoneamento e na promoção de obras urbanas voltadas para a preven-
ção de acidentes em áreas de risco. O segundo grupo voltou-se para
a criação de equipamentos, como escolas, centros comerciais, unida-
des de pronto atendimento e centros culturais, buscando melhorar a
qualidade de vida do bairro com foco nos moradores atuais e para a
classe média baixa, evitando a modificação do perfil socioeconômico
do local. O último grupo de propostas tratou do transporte público
no Santo Cristo. A análise mostrou que as novas propostas de mobili-
dade não atendem aos moradores, por somente circundarem o bairro
e pela tarifa elevada que impede seu uso. Assim, tratamos de diversas
medidas pensando na acessibilidade e deslocamento tanto na escala
do próprio bairro, quanto na sua relação com outras centralidades e
bairros adjacentes.
Mostra Muitos Portos 409

Habitar o Centro: os desafios para um projeto mais inclusivo


para a cidade brasileira
Guilherme Rodrigues Barbosa e Jéssica de Paula Cortes

As centralidades das cidades brasileiras representam, do ponto de


vista estratégico, um local de suma importância para se promover o
“direito à cidade”. No caso do Rio de Janeiro, na sua zona portuária,
essas condições estão colocadas de forma emblemática. A destinação
da reocupação da Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) do
Porto Maravilha possui uma escala e dimensão de interesse metropo-
litano, que poderia representar uma mudança significativa na inércia
do desenvolvimento das cidades brasileiras. Para tal, é necessário ele-
ger a habitação como tema central buscando a partir dele transmitir
uma mensagem clara à sociedade de que todos devem estar incluídos.
A população local e a população a ser atraída para a área devem ter
um perfil variado e diversificado, sendo seduzida por novos empreen-
dimentos imobiliários de fontes privadas e governamentais, com o
desafio de mudar costumes arraigados e preconceitos estabelecidos.
O primeiro requisito precisa ser que os empreendimentos imobiliá-
rios devem reunir na mesma estrutura condominial extratos de renda
diversificados. Tal decisão deve nortear e pautar os empreendimen-
tos imobiliários da área, e foram rigidamente seguidos pela proposta
apresentada pela disciplina “Habitar o Centro” do Programa de Pós-
-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense. É fundamental ainda se instituir um programa de atração
de outras populações que são penalizadas por morarem em áreas mui-
to distantes das centralidades. Esse posicionamento se constituiu na
segunda premissa adotada pelo projeto, então apresentado pela disci-
plina. Por último, as tipologias de arquitetura engendradas para a área
devem ser diversificadas envolvendo diferentes formas de adensamen-
to, procurando incentivar empreendimentos como vilas, edifícios de
apartamento de baixa e alta altura, reutilização de antigos imóveis em
ruínas, articulação de estruturas comerciais e residenciais, e outros.
(Texto: Pedro da Luz).
410 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Baía da revolta
Tiago Maciel e Bianca Mota

O objetivo do projeto é tornar possíveis espaços que se contrapõem ao


status quo da cidade, aproveitando-se de fendas nos planos, nas paisa-
gens, espaço e edificações, estabelecendo novos usos e lugares por meio
da afronta e da criação de novos conflitos. Para tanto, sugere-se três
ações norteadoras: agir, andar, vivenciar. 

Pós-Porto
Carolina Pullig, Elisa Scarpe, Julia Barreto e Fanny Barré

O projeto parte dos paradoxos do Porto Maravilha e trabalha a malha


urbana atual a fim de reativar os espaços esquecidos ou eliminados pela
operação urbana, de forma que suas lacunas sejam preenchidas, tendo
o cuidado de compatibilizar o que será projetado com a realidade dos
residentes originais e a história local. Para tal, se propõe principalmen-
te a adequação ao perfil alvo dos que mais utilizam o bairro, ou seja,
a população que já se encontra ali. O projeto conta com unidades de
habitação de interesse social em diversos pontos, não isolando mora-
dores. Edifícios de uso misto, fachadas ativas, recuperação do casario
antigo, escola de ensino médio entre outros fazem parte do programa,
buscando construir um bairro para os moradores não contemplados até
o momento pelo projeto.

Habitar 2.1
Anna Carolina Peres

O projeto é uma crítica ao projeto de cidade pós boom imobiliário cau-


sado pela Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016 no Rio de Janeiro,
que destoa das preexistências e do clima carioca. A proposta é um ensaio
sobre o habitar futuro na zona portuária. Busca-se a introdução de um
objeto arquitetônico que dialogue melhor com o entorno, aproveitando
Mostra Muitos Portos 411

suas potencialidades e reduzindo suas fragilidades. Visou-se criar dina-


mismo no entorno com uso misto e diferentes layouts para possibilitar
também diferentes habitantes. A área de atuação é na Avenida Venezuela
e busca-se provar que outra solução para a zona portuária é a ocupação de
tipologias ociosas ao invés de demolições, sem deixar de lado a qualidade
da edificação. Foram seguidas as diretrizes da etiqueta de sustentabilida-
de do INMETRO e realizadas simulações de consumo energético com o
intuito de verificar a eficiência da edificação comercial.

Respeito, memória, moradia e orgulho na Pequena África


Anne-Marie Broudehoux, Helena Galiza, João Carlos Monteiro e Jonathan
Simard

As recorrentes intervenções urbanas insistem em tentar apagar a


cultura negra da zona portuária, promovendo o embranquecimento
desse território. O projeto busca resgatar a resistência cultural dessa
população, com objetivo de combater o movimento de gentrificação e
fortalecer sua permanência nesse território. Trata-se de tornar a Rua
São Francisco da Prainha, no bairro da Saúde, uma referência para in-
tervenções em outras áreas. O projeto restitui o espaço de convivência
para a comunidade afrodescendente do quilombo urbano Pedra do
Sal, por meio de sua transformação em rua de pedestres, com a recu-
peração dos imóveis pertencentes ao quilombo, além da regularização
fundiária e geração de renda.

Identidade e integração
Alba Sams, Ana Carolina Cruz, Átria Vasconcelos, Gabriele Monteiro e Mayara
Paes

O Santo Cristo é um dos principais bairros da zona portuária e tem forte


ligação com as culturas africana e portuguesa. Apesar de fazer parte do
perímetro de atuação do projeto Porto Maravilha, os investimentos para
a área – que inclui a comunidade do Morro do Pinto – foram mal distri-
412 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

buídos, visando interesses imobiliários, econômicos e políticos, extrain-


do serviços existentes e demandando grandes deslocamentos para a po-
pulação local. A proposta aqui apresentada visa a integração do bairro
com o restante da cidade e tem como “ideias-chave” a integração e a
identidade. Através dessas ideias, o projeto busca promover a habitação
popular; incentivar o uso habitacional e misto, a economia criativa, a
implantação de infraestrutura urbana adequada, incentivo ao transpor-
te alternativo e público, com a criação de ciclovias, além de mais pontos
de ônibus buscando a preservação da paisagem urbana e a valorização
do patrimônio construído e da cultura local.

As cidades do comum
Birkis Perret, Caroline Moura, Júlia Moraes, Larissa Figueira e Renan Marques

A partir da sobreposição de leituras territoriais, os autores elege-


ram o bairro do Santo Cristo como área de projeto. As intervenções
propostas buscam estimular o encontro entre os diferentes atores da
cidade em lugares comuns a todos eles, incentivando o caminhar e
a reaproximação com a Baía de Guanabara.  O projeto consiste em
uma tentativa de resgate da escala do bairro e uma nova maneira de
articular as “cidades do comum”. A busca pelo “lugar comum” tem
origem no questionamento a respeito do apagamento das histórias
e reconhecimento da memória social em contraposição com a con-
cepção de sufocar o passado e os conflitos existentes, como um ca-
minho para a construção de práticas libertadoras. Assim, o projeto é
apresentado como uma alternativa às ideias utópicas que romperiam
com o urbanismo existente. As intervenções apresentadas, portanto,
objetivam aumentar as condições de caminhabilidade entre o bairro
e a orla, conectando equipamentos de educação, saúde e cultura; va-
lorizando espaços de memória local; atribuindo usos diversificados
e implementando praças lineares e eixos de circulação, no sentido
transversal orla/cidade.
Mostra Muitos Portos 413

Breviário. Museu da Memória do Futuro


Amanda Costa

Intervenção artística no Porto do Rio de Janeiro, 2019.


Abaixo o memorial poético da proposta:
​fui ao PORTO em busca do FUTURO
elegi DOCUMENTOS, espécies de VÉSPERAS, ou manifestações de
futuro
 VESTÍGIOS.
a RUÍNA, o esperadouro,
uma espacialidade do porvir, 
a COLUNA, monumento de si mesma, seu lastro fundador
 INSCRIÇÕES. 
BREVE, pedaço de telha achado na ruína, assimilado como uma previ-
são ou prenúncio
 DEPOIMENTOS.
MÍDIA. artigos e notícias sobre a região, narrativas visuais e discursivas
e sua integração no imaginário social
 edifiquei ali então o MUSEU DA MEMÓRIA DO FUTURO, cujo acer-
vo se distribui em dois endereços: o cubículo fixado na coluna da ruína
e o site na web

A Pequena África
Matheus Martins e Rafael Vermil

Um planejamento bem-sucedido de place making é criado a partir dos


ativos da comunidade e suas necessidades. O projeto propõe a utiliza-
ção de instrumentos consultivos para apoiar a qualificação dos espaços.
A ideia é trabalhar com um projeto participativo no qual os arquitetos
funcionam como facilitadores, estimulando o protagonismo dos habi-
tantes e grupos sociais locais e a interface com governos e outros atores
por meio de rede multiconectada.
414 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Reassumindo a cidade
Jade Resende, Lorena Lessa, Luana Rosa, Thainá Guinsani e Victória Vieira

A zona portuária possui um eixo de importância já reconhecida. No


entanto, outros eixos poderiam ser reassumidos e reconhecidos igual-
mente, considerando suas grandes potencialidades. O projeto atua na
valorização destes eixos menos visíveis, buscando operar no trinômio
“reutilizar, resgatar e integrar”.

O Porto de todos nós: intervenções no Porto Maravilha


Ana Clara Bazhuni, Matheus Silva, Nayra Helenda, Renan Zigoni e Thayná Batista

O projeto partiu da investigação sobre as transformações urbanas da


zona portuária ao longo dos anos, por meio do mapeamento dos confli-
tos sócio-territoriais relativos a acesso à moradia e urbanização adequa-
da. A proposta reflete sobre conceitos de reconciliação e sustentabilida-
de social para uma cidade mais justa, se estruturando nas “ideias-força”:
habitação inclusiva, multicentralidades e conservação integrada, como
forma de nortear os projetos e intervenções estratégicas divididas em
trechos do território. Dentre as propostas de intervenção, estão: insta-
lação de espaço multiuso em galpões existentes; abertura de novos ca-
minhos para pedestres; instalação de equipamentos culturais, de saúde
e educação com localização justificada sob o ponto de vista da mora-
dia e mobilidade; implementação de instrumentos como fachada ativa
e fruição pública, incentivando o comércio no térreo dos edifícios e a
caminhabilidade; definição de áreas para alocação de habitações de in-
teresse social; criação de mirantes, áreas verdes e de lazer e incentivo e
implantação de outros modais de transporte, como elevadores públicos
e mobiliário de apoio, como bicicletários.
415
Foto: Série Fluxos, Luiz Baltar
CODA

Porto Maravilha, um urbanismo inóspito 1

Ester Limonad

É uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado


pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um
quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um
medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e
medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que
suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que
todas as coisas escondam uma outra.
(Calvino, 1990)

Buscamos aqui tecer algumas considerações sobre o urbanismo inós-


pito, termo que cunhamos para designar a celebração e difusão da re-
tração dos espaços públicos frente a intervenções de renovação urbana
de caráter neoliberal em espaços ditos degradados, dos quais o projeto
Porto Maravilha constituiria um exemplo paradigmático.
Grandes projetos de reabilitação urbana existem desde os tempos do
plano Haussmann (Harvey, 2015), sob a justificativa de trazer ordem à
desordem e ao caos, bem como sanear e depurar os ambientes urbanos
das sujeiras, miasmas, dejetos e criminalidade.
Na contemporaneidade global e de avanço da neoliberalização, a no-
vidade em si não estaria nem nesses projetos, nem na escala de inter-
venção, mas sim no caráter abertamente inóspito e hostil dos espaços
públicos criados, os quais evidenciam que as práticas urbanísticas não
escaparam das forças da globalização neoliberal. O entusiasmo das ad-
ministrações municipais em transferir o ônus de manutenção de espa-

1 Este texto é uma versão revisada e ampliada de Limonad (2022).

417
418 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

ços públicos à iniciativa privada (Silva e Maciel, 2021; Sanfelici, 2021)


somado a iniciativas para tornar as cidades mais seguras, aparentemen-
te, teriam ultrapassado seu propósito inicial. As ações dos governos mu-
nicipais, em várias cidades, voltam-se mais e mais para atender aos in-
teresses comerciais e empresariais do que às necessidades dos cidadãos,
promovendo um urbanismo inóspito.
Designamos aqui de urbanismo inóspito aqueles espaços públicos
que assumem um caráter notadamente seletivo. São espaços públicos
produzidos com o fim de atender à segurança pública e social, equipa-
dos com circuitos de vídeo-vigilância, que contam com desníveis, mu-
ros e cercas ao seu redor, dotados de segurança policial ostensiva, de
modo a afastar e impedir sua ocupação por indivíduos reputados como
indesejáveis, em que se incluem os pobres, favelados, sem-teto e men-
digos (Davis, 2009).
Cabe esclarecer, já de início, que para os fins desse ensaio, entende-
mos o espaço público, em princípio, como o espaço aberto e acessível a
todos, independente da condição social, da raça, cor e gênero, em suma,
sem exigências ou requisitos para o seu usufruto. Muito embora tal pro-
posição seja quase utópica, pois sempre há de existir algum controle e
limitação, por parte da sociedade e dos poderes instituídos, com relação
ao uso e usufruto dos espaços e bens públicos.
Na perspectiva de resgatar a sociabilidade e a urbanidade e fazer
frente aos avanços desse urbanismo inóspito, tratamos aqui, inicialmen-
te, de estabelecer o seu significado, o seu caráter e de que instrumen-
tos e mediações se valem. Em seguida, refletimos brevemente sobre o
caráter dessas iniciativas marcadas pelo avanço da neoliberalização e,
em especial, abordamos o caráter inóspito da reabilitação urbanística
do Porto Maravilha (Monteiro, 2020). Encerramos esse breve apanhado
de considerações, com um esforço de elencar algumas possibilidades
alternativas de se contrapor à presente desumanização do espaço social.

Urbanismo inóspito

O espaço público do Porto Maravilha serve-nos de epitome ao que aqui


designamos de urbanismo inóspito por não acolher, nos termos de Lefe-
Porto Maravilha, um urbanismo inóspito 419

bvre (1969, 1991), a apropriação social, a simultaneidade, a diversidade


e heterogeneidade, que fazem do urbano um espaço de encontro, lugar
da festa, uma qualidade feita de quantidades. Urbanismo inóspito por
oferecer uma cidade-objeto, composta de lugares-mercadoria a serem
consumidos, subsumindo o valor de uso social e a produção pretérita
de significados da cidade enquanto obra. Urbanismo inóspito por não
se preocupar em promover um espaço acolhedor, em consonância com
Yi-Fu Tuan (1983).
Adotamos, portanto, o termo urbanismo inóspito para designar os
projetos urbanísticos ou de reabilitação e renovação urbana em que a
sociabilidade, o sentido de identidade social e as possibilidades de apro-
priação social do espaço público não comparecem. Prática que têm se
acentuado nesses tempos de neoliberalização.
O urbanismo inóspito tem por traço marcante característico criar
espaços públicos direcionados a grupos sociais selecionados, com o ob-
jetivo de proporcionar-lhes um ambiente confortável, limpo e seguro,
de modo a estimular o consumo suntuário e seleto (Limonad e Barbosa,
2017).
Este urbanismo inóspito não é consequência de uma falta de previ-
são, de projetos urbanísticos mal elaborados, ou de um desenho urbano
malfeito, mas sim de estratégias bem definidas, que se valem de artifícios
e iniciativas com claras intenções de depurar e limitar o campo social
da cidade, ao reforçar e endurecer as fronteiras entre os setores sociais.
Para tanto, esse urbanismo inóspito se vale do que a produção acadêmi-
ca designa de artefatos de design hostil (Andreou, 2015; Chellew, 2016,
2019; Morton, 2016) e de arquitetura defensiva (De Fine Licht, 2017;
Hu, 2019; Maxwell, 2014; Quinn, 2014; Schindler, 2015; Souza e Pereira,
2018, Swain, 2013; Wallace, 2018). Com isso contribui para inviabilizar
o uso e consumo desses espaços públicos renovados ou reabilitados por
grupos sociais reputados como indesejáveis, sujos e malditos, eliminan-
do a diversidade social característica dos espaços públicos.
O design hostil corresponde a concepção de artefatos com a finali-
dade de excluir, impedir e obstaculizar a apropriação social alternativa
do espaço construído ou, ainda, alijar e remover certos grupos e práticas
sociais do espaço público (Andreou, 2015; Chellew, 2016, 2019; Morton,
2016).
420 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

A arquitetura defensiva, enquanto tal, faz uso de elementos de de-


sign hostil e concerne a modificações de edifícios e do espaço público,
por vezes sutis, concebidas para desencorajar possibilidades alternativas
diversas de apropriação social desses espaços (De Fine Licht, 2017; Hu,
2019; Maxwell, 2014; Quinn, 2014; Schindler, 2015; Smith e Walters,
2018; Souza e Pereira, 2018; Swain, 2013; Wallace, 2018).
Entre as iniciativas de arquitetura defensiva e design hostil contam-
-se o gradeamento de praças e parques públicos, bancos desenhados de
modo a impedir as pessoas de deitarem ou conversarem, muros com
rochas pontiagudas para evitar das pessoas se recostarem, a instalação
de elementos e estruturas pontiagudas em locais abrigados das intempé-
ries, como marquises, vãos de pontes e viadutos, de modo a impedir sua
ocupação por pessoas sem-teto, entre tantos outros artifícios.
Arquitetura defensiva e design hostil são designações aplicáveis aos
edifícios, a marcos, esculturas e ao mobiliário urbano, mas o que dizer
de extensos espaços amplos, onde não se encontra nem abrigo do sol, da
chuva, das intempéries, nem lugares para sentar, conversar, interagir, be-
ber água ou mesmo satisfazer necessidades básicas como ir ao banheiro?
Tais artifícios da arquitetura defensiva e do design hostil existem há
tempos, e soem ser adotados aqui e ali de forma isolada, em diferentes lu-
gares, como forma de prevenção ao crime e manutenção das edificações.
A novidade agora é a sua agregação espacial em larga escala em amplos
espaços públicos, limpos, seguros, mas inóspitos. Usualmente, tais artefa-
tos e edificações, quando vistos de forma isolada, apresentam um desenho
aparentemente agradável e inofensivo. Porém, sua agregação e uso conjun-
to conformam aquilo que designamos de urbanismo inóspito, defensivo e
agressivo para aqueles que desejem usufruí-lo de outras maneiras.
Para alcançar seus objetivos esse urbanismo inóspito adota um vas-
to leque de artifícios arquitetônicos defensivos. Povoa assim os espaços
públicos com construções e artefatos hostis, os quais deixam explícito
que determinados grupos sociais e práticas espaciais alternativas são
inconvenientes, expressando uma mensagem evidente para aqueles a
quem se dirige, mas que muitos não percebem, qual seja: “você não é
bem-vindo aqui”.
Entendemos, portanto, o urbanismo inóspito como um fruto da
crescente restrição ao direito à cidade, em especial nos espaços públi-
Porto Maravilha, um urbanismo inóspito 421

cos. Restrição essa alcançada através do aumento do controle e da pri-


vatização do espaço urbano, com a exclusão dos pobres, dos sem-teto,
e das minorias (Doherty et al., 2008; Mitchell, 1995; Mitchell e Staeheli,
2005).
O urbanismo inóspito, a arquitetura defensiva e o design hostil con-
tribuem para um controle estrito dos espaços públicos. Com isso o aces-
so, a apropriação social e seu uso passam a ser mediados pelo capital e
pelo Estado, que ao promover e implementar sua renovação, estabele-
cem limites tanto físicos como sociais.
E isso soe ocorrer graças a artifícios simples, como por exemplo a
disponibilização e distribuição espacial de bancos e de sanitários pú-
blicos. Consoante Davis (2009), em Los Angeles a opção por banheiros
quase públicos, situados em centros comerciais e galerias, seria uma for-
ma de desencorajar os vagabundos de permanecerem no centro. E isso
pode ser observado em muitas cidades, em vários lugares do mundo. Só
podem aceder e usufruir de tais espaços públicos depurados e renova-
dos os que tem capacidade de consumo, juntamente com aqueles que
conseguem adaptar suas práticas cotidianas à lógica do espaço abstrato
do capital e do Estado (Lefebvre, 1991). Enquanto os demais veem-se
alijados de seu usufruto.
Esse cerceamento da apropriação social do espaço é viabilizado, de
acordo com Lefebvre (1969, 1991), graças a crescente subsunção do es-
paço social ao valor de troca e aos interesses da propriedade privada,
que permite aos setores hegemônicos controlarem o uso e apropriação
social desses espaços públicos renovados, tanto através de sua regula-
ção, quanto da definição e utilização de artifícios aparentemente inó-
cuos, ao nível das edificações e do mobiliário urbano (Madden, 2010).
E, é neste contexto que cabe ser considerado o projeto Porto Mara-
vilha do Rio de Janeiro.

Neoliberalização, renovação urbana e o Porto Maravilha

O aprofundamento da neoliberalização tem afetado de forma direta as


administrações municipais em vários lugares. Para reduzir o dispêndio
de recursos municipais com espaços públicos não comerciais, que não
422 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

geram receita, tais como parques e praças urbanas (Silva e Maciel, 2021;
Smith e Walters, 2018), muitas municipalidades tratam de descarregar o
ônus de manutenção dessas infraestruturas públicas e amenidades para
o setor privado. Com isso, espaços públicos pretéritos estão a ter o seu
uso cerceado e circunscrito a horários, comportamentos, quando não
são privatizados, como é o caso de pequenas praças, largos, vias de pe-
destres, muros de contenção. Vis a vis, observa-se o favorecimento de
investimentos privados em áreas públicas, passíveis de renovação ur-
bana e dotadas de potencial para gerar receitas para o poder público
e lucros para o setor privado (Banerjee, 2001; Harvey, 1989; Martins,
2017; Monteiro, 2020; Sanfelici, 2021; Smith, 1987).
Promovem-se, assim, parcerias público-privadas e são implementa-
das, cada vez mais, soluções de caráter global transnacional para atrair
corporações e empresas globais em diferentes contextos sócio-políticos.
Articulam-se em empreendimentos vultosos o poder público, diferen-
tes capitais e grandes escritórios de arquitetura e urbanismo, com base
em uma cumplicidade antiética e silenciosa, que privilegia as classes
abastadas, muitas vezes às custas da erradicação espacial das habitações
populares e de cunho social (De Graaf, 2015). Isto ocorre, em especial,
no caso de empreendimentos urbanos de grande escala, onde empresas
globais são escolhidas em detrimento de empresas locais de menor por-
te (Smith e Walters, 2018).
Na contemporaneidade, obras de arquitetos icônicos globais emergem
como expressões do poderio de suas cidades. Assim como as catedrais,
castelos e palácios do passado, demarcam lugares e se convertem em pré-
-requisitos para seu desenvolvimento e conquista de uma supremacia em
um quadro de cidades globais (Gospodini, 2002). Nesse contexto, grandes
projetos urbanísticos de vanguarda, de reabilitação e de renovação urbana
desempenham um papel estratégico para atender aos interesses do Estado
e de diversos capitais. Em nome de uma pretensa modernidade e de um
bem comum, arrasam-se quarteirões, remove-se a população residente,
muitas vezes para destinos incertos, tudo isso para implementar políticas
de recuperação urbana direcionadas a converter as cidades em moder-
nas mecas da arquitetura, do urbanismo e do planejamento com o fim
de inseri-las no “mapa global”. Rugosidades (Santos, 1996), permanências
(Pesavento, 2007) e resquícios de práticas espaciais passadas, que não se-
Porto Maravilha, um urbanismo inóspito 423

jam consumíveis turisticamente, são destruídas e erradicadas. Os espaços


reabilitados soem ser ocupados por edificações e monumentos icônicos
(Sklair, 2005), por torres brilhantes desconstruídas, delírios arquitetôni-
cos que circunscrevem os espaços públicos renovados e criam uma ima-
gem de limpeza, de segurança, de ordem social e progresso.
O arranjo espacial resultante da composição de edificações icônicas,
de elementos de mobiliário urbano internacional, de signos e símbolos
de expressão global contribuem para tornar indistintos esses lugares.
A escala de seus espaços livres e edificações, a homogeneidade visual
da distribuição das edificações, o arranjo espacial das vias e das áreas
verdes desses espaços privilegiados lhes confere um ar global limpo e
despojado, onde tudo e qualquer coisa que destoe de sua limpeza e or-
dem se torna evidente.
O resultado desse urbanismo inóspito são cidades com paisagens
homogêneas e indistintas, destituídas de identidade e de memória, a
despeito de seus ícones e marcos próprios, que constituiriam, assim,
grosso modo, mais uma expressão dos não-lugares (Augé, 1994), que
obliteram a pertença e a formação de identidades sociais. Um conjunto
de não-lugares onde os indivíduos não têm desejo ou capacidade de
inscrever-se (Deleuze e Guattari, 2011).
Não obstante o Porto Maravilha guarde em si, aqui e ali, memórias
concretas de tempos passados, a aparente desordem de seu espaço ur-
bano e os vestígios do passado sem interesse estético foram substituídos
pela estética global. Passa-se da escala da rua e da circulação de pedes-
tres para a escala monumental, onde imperam espaços livres e edifica-
ções esculturais de aço e vidro.
E, embora essas propostas arquitetônicas e urbanísticas se apre-
sentem enquanto expressão de movimentos exclusivos de inovação e
vanguarda, mostram um claro compromisso com o poder econômico e
com determinados grupos e classes sociais.
A reabilitação urbana promovida pelo projeto Porto Maravilha re-
sultou em um extenso espaço público aberto e aparentemente acessível
a todos. Todavia, esse amplo espaço público, estritamente vigiado, foi
concebido, pensado, projetado e equipado de modo a estimular os seus
usuários a se dirigirem apenas a determinados destinos pré-estabele-
cidos, seja para trabalho, consumo ou lazer suntuário, sem conceder
424 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

chance ao ócio puro e simples ou, mesmo, à possibilidade de se transitar


a pé, flanar, vagar ou vagabundear sem destino, horas a fio, por não ofe-
recer bancos, bebedouros e, muito menos instalações sanitárias.
Seguindo Bourdieu (2001), a ordem social está inscrita em nossos
corpos através da relação dialética entre corpos e os espaços, dos quais
fazem parte os espaços do urbanismo inóspito. O espaço físico não tão
somente se traduz em espaço social, mas também informa as relações
dos corpos e sujeitos sociais no espaço. Informa por onde se pode circu-
lar e desfrutar. O ato cotidiano de caminhar para De Certeau (2014) dá
forma e significado a esses espaços, por vezes distintos dos usos preten-
didos. Entretanto, preconcepções e artifícios arquitetônicos e urbanísti-
cos podem orientar os trajetos dos transeuntes para um destino prefe-
rencial, em detrimento de outros.
Entendemos, assim, que o Porto Maravilha, dada a amplitude, exten-
são e diversidade de seus espaços, não se configura tão somente como
um espaço hostil, ou defensivo. De fato, o Porto Maravilha constitui-se
em algo além, mais complexo. Desprovido de equipamentos públicos
(sanitários, bebedouros, áreas de descanso e lazer, etc.) e de um mobi-
liário urbano (bancos, mesas, etc.) que permitam o seu usufruto e apro-
priação social sem ônus, trata-se de um espaço inóspito, árido tal qual
um deserto, em termos de sua Gestalt. Sentimento que se fez presente
em várias extensas e cansativas caminhadas realizadas por seus espa-
ços públicos. A despeito de sua estética, o Porto Maravilha apresenta-se
como um espaço não-acolhedor para os transeuntes, pedestres, idosos,
sem-teto ou mesmo desabilitados, aberto à circulação de bicicletas, pa-
tins e skates. O desfrute de sua paisagem é acessível aos que podem arcar
com as caras passagens de seu veículo leve sobre trilhos (VLT), ou aos
que podem se deslocar de bicicleta, de patins ou patinetes.
O Porto Maravilha emerge, assim, de forma emblemática como um
simulacro de uma cidade do futuro, resultado de um urbanismo inós-
pito, que busca se colocar como uma resposta ao discurso do aparente
caos urbano e da inviabilidade das metrópoles contemporâneas. Simu-
lacro esse viabilizado pela parceria de diferentes capitais com o Estado
na promoção e implementação da reabilitação de seus espaços.
Sob o signo da neoliberalização os espaços públicos excluem sem
oferecer alternativas. Uma vez que o entusiasmo do setor público com
Porto Maravilha, um urbanismo inóspito 425

parcerias privadas em relação à gestão e recuperação dos espaços públi-


cos tem contribuído para convertê-los em meros lugares de passagem.
Aí não tem mais abrigo para o encontro, a festa e mesmo o protesto.
Despojados de seu caráter urbano, esses espaços públicos se tornam de-
sérticos, perdem a urbanidade construída historicamente.
Ao obliterar a possibilidade de apropriação social do espaço público,
o capital e o Estado realizam uma perversão, em que espaços produ-
zidos originalmente como valores de uso convertem-se em objeto de
consumo, através das estratégias de reprodução de diferentes capitais
articulados ao capital imobiliário e à indústria do turismo.
Passa-se, assim, do consumo no espaço ao consumo do espaço (Le-
febvre, 1969), em que as possibilidades de lucro passam a ditar e reger a
sua produção (Lefebvre, 1991). Cidadãos são transformados em consu-
midores. Para o consumo seleto do espaço, produzem-se amplas praças,
parques e avenidas dotadas de uma pretensa urbanidade e civilidade, que
lhes confere um falso sentido comunitário entre iguais. Por sua posição de
classe, condição de existência e de vida, sujeitos sociais diversos com prá-
ticas espaciais distintas são expurgados, invisibilizados e alienados do uso
e da apropriação social desses espaços tornados mercadoria (Limonad e
Barbosa, 2017). A vida social cotidiana tende a ser subjugada a essa mer-
cantilização, com a aniquilação das possibilidades de apropriação social.
Embora abertos a todos, estes espaços propiciam o distanciamen-
to social e a realização de um ethos urbano privado exclusivo, limpo e
depurado de pobreza. Aqueles que não conseguem se adaptar, podem
optar por evitar esses espaços, dado o risco de violência simbólica ma-
nifesta através da moda, das exibições de riqueza, e de outras demons-
trações de pertença (Bourdieu e Wacquant, 2005).
Esvai-se a urbanidade, à medida em que o espaço abstrato do capital
e do Estado tomam conta dos espaços públicos e os conformam às suas
necessidades e à sua feição. Dissipa-se a urbanidade construída lenta
e espaço-temporalmente pelas práticas espaciais cotidianas, a partir da
produção de valores de uso social. Uma urbanidade que carrega em si a
marcação espacial de identidades, pertencimentos, compartilhamentos
e representações coletivas.
A reabilitação promovida por esse urbanismo inóspito gera espaços
públicos, que embora sejam coalhados de obras icônicas de arquitetos
426 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

estelares, são desprovidos de qualquer identidade espacial e temporal.


Esses espaços destituídos de urbanidade, da diversidade, da festa e do
encontro se constituiriam em espaços mortos, sem vida social.
À ampliação física dos espaços públicos, promovida pelo urbanismo
inóspito, opõe-se a retração de sua apropriação social, como lugares de
possibilidade da ação e lugar da política. Trata-se como assinala Lefeb-
vre (1991) de um movimento hegemônico conduzido pelo capital e pelo
Estado para garantir a reprodução de um espaço abstrato, aparentemen-
te cada vez mais homogêneo, que esmaga a possibilidade de apropriação
social e subordina tudo e todos ao valor de troca.
A crescente subsunção dos espaços urbanos às lógicas de reprodu-
ção e controle hegemônicas inviabiliza sua apropriação social enquanto
valor de uso, bem como contribui para aniquilar formas pretéritas de
reprodução e cancelar o futuro.
Coloca-se em pauta, então, como resgatar o espaço público? Como
resgatar o sentido da cidade enquanto obra e valor de uso?

Para superar o urbanismo inóspito

Embora o Porto Maravilha se configure como um espaço inóspito e não


hospitaleiro, ainda assim as pessoas podem aí transitar sem terem de
gastar dinheiro, embora o seu tempo de permanência se veja limitado
pela falta de condições de receptividade, em termos de equipamentos e
serviços. Urge, portanto, encontrar formas de burlar o controle e impo-
sições do urbanismo inóspito, dos artefatos do design hostil e da arqui-
tetura defensiva.
Já há alguns anos diversos autores (Low e Smith, 2005; Mitchell,
2014) e ativistas (Rogers, 2012) têm se mobilizado contra o que veio
a ser caracterizado como arquitetura defensiva hostil, ou ainda design
hostil, entendidos como edificações e artefatos urbanos projetados com
a finalidade de excluir e obstaculizar a apropriação social alternativa, ou
ainda alijar e remover certos grupos e práticas sociais do espaço público.
Low e Smith (2005), ao tratar do tema salientam o caráter invasivo
de práticas excludentes, que levaram a inúmeros enclausuramentos, su-
pressões, inundações e transfigurações do espaço público para atender
Porto Maravilha, um urbanismo inóspito 427

a estratégias estatais e empresariais diversas. Apontam, ainda, que mes-


mo as lutas libertárias pela liberdade, igualdade e fraternidade, consa-
graram e mantiveram intocados os princípios de propriedade privada à
custa de uma longa tradição de apropriação privada de terras comuns.
Para fazer frente a essas supressões, em consonância com Benjamin
(1992), é necessária uma permanente mobilização da consciência para
escapar dos perigos das ruas, da indiferença social e da reificação im-
posta pelo ritmo da produção de mercadorias.
Atuar e agir nesses espaços públicos assumem na contemporaneida-
de o caráter de atos políticos de resistência. Atos que compreendem um
amplo espectro de ações, desde aquelas mais incisivas, como ocupações
urbanas organizadas de reabilitação popular de edificações abandona-
das (D’Ottaviano, 2021), manifestações populares em defesa de espaços
públicos de encontro e manifestação (Miraftab, 2016; Silva e Maciel,
2021) a outros atos mais corriqueiros e simples, como vagabundear, fla-
nar sem destino, brincar ou mesmo simplesmente ficar, deitar e repou-
sar em locais públicos (Limonad e Barbosa, 2017).
Em um mundo que o capital trata mais e mais os lugares como sem
memória e sem identidade, o resgate da sociabilidade e da urbanidade
emergem como arena de negociação cultural de identidades em mar-
cações socioespaciais. A possibilidade de uma outra sociabilidade resi-
diria na construção de novas marcações e espacialidades, na produção
de uma outra imagem urbana com potencial de combater o sentido de
alienação e de anomia, e de inclusive contribuir para criar um sentido
de acolhimento e pertencimento social.
Para mudar faz-se imperativa a ação social que subverta a ordem
precípua do arranjo dos espaços públicos extensos e homogêneos. Uma
ação social que se imiscua nas praças e nos espaços públicos circunda-
dos por edifícios corporativos, órgãos institucionais, hotéis e shopping
centers. Toda e qualquer ação social nesses espaços públicos controla-
dos se constitui em um ato moral e político. As sementes da mudança,
de visões alternativas da utilização racional destes espaços só podem ser
plantadas e cultivadas como formas de resistência ao controle corpora-
tivo e estatal, com apelos a justiça territorial.
É imperativo retomar a urbanidade, a sociabilidade. Um passo nesse
sentido é a apropriação e modificação social de artefatos de arquitetura
428 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

hostil e de design defensivo, como vem sendo feito em diversos luga-


res do mundo por artistas e designers, que transformam esses objetos
em brinquedos, bancos e camas acolhedores (Rogers, 2012). Da mesma
forma, manifestações políticas, artísticas, flash mobs, raves, protestos,
configuram-se igualmente enquanto atos políticos (Limonad e Barbosa,
2017), expressões do desejo de uma outra sociedade, como formas de
conceber um novo espaço social, pleno de desejos (Benjamin, 1992).
Urge, pois considerar a construção do desejo no campo das subjetivi-
dades coletivas, mesmo quando vivenciadas na individualidade, no âm-
bito da materialidade social e histórica. O potencial para tal estaria nas
diferentes formas de apropriação social do espaço público, socializado,
enquanto demonstrações do desejo exercido socialmente, não mera-
mente como uma resposta à ausência de coisas, mas como força produ-
tiva que pode e cria os seus próprios objetos (Deleuze e Guattari, 2011).
A possibilidade de mudança residiria, seguindo Lefebvre (1991), em
buscar romper, ainda que de forma momentânea, as rotinas alienantes
do cotidiano, momento em que algo é apreendido. Trata-se de acirrar
a tensão entre as representações hegemônicas e as práticas espaciais
subordinadas na perspectiva da retomada da cidade, enquanto valor
de uso. Abre-se, assim, como objeto de reflexão e de práxis social em
experimentação não apenas identificar essas práticas espaciais e ações
políticas, mas refletir sobre seu caráter e suas especificidades, para supe-
rar concepções hegemônicas enviesadas, que soem caracterizá-las como
transgressões por infringirem as normas regulações vigentes.
Formas alternativas e espontâneas de manifestação, ocupação e apro-
priação de espaços públicos situam-se, usualmente, no âmbito da subver-
são do uso oficial pretendido e permitem a emergência de formas não-
-codificáveis e não institucionalizáveis de ocupação de espaços públicos,
ou mesmo de espaços residuais, ocultos ao olhar do público como, por
exemplo, lotes vazios ou muros ao longo das vias de comunicação.
Podem ser entendidas como uma contestação às propostas urba-
nísticas de regulação do uso e ocupação do espaço público. Um espa-
ço público, que em nome de um pretenso interesse geral se subordina
gradualmente mais e mais aos interesses hegemônicos. Ou seja, essas
manifestações podem e devem ser interpretadas enquanto formas de
resistência aos avanços do urbanismo inóspito, como uma expressão
Porto Maravilha, um urbanismo inóspito 429

dos espaços de representação social, que reescrevem os espaços públicos


enquanto espaços de encontro, de resgate da solidariedade e da urbani-
dade, da cidade enquanto obra e valor de uso social.

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SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Letícia de Carvalho Giannella é oceanógrafa pela UERJ, mestre em


Geografia pela PUC-Rio e doutora em Geografia pela UFF. É pesqui-
sadora em Informações Geográficas e Estatísticas da Escola Nacional
de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE), atuando principalmente na
pós-graduação stricto sensu em População, Território e Estatísticas Pú-
blicas e no curso de especialização em Análise Ambiental e Gestão do
Território. Realizou sua pesquisa de doutorado e nos últimos anos tem
orientado diversos trabalhos sobre a zona portuária.
leticia.giannella@ibge.gov.br

João Carlos Carvalhaes dos Santos Monteiro é geógrafo pela Univer-


sidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Planejamento Urbano e
Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor
em Geografia (UFF). É professor do Departamento Acadêmico de Geo-
grafia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Há quinze anos
realiza pesquisas sobre a zona portuária do Rio de Janeiro.
joao.monteiro@unir.br

Aercio Barbosa de Oliveira é educador popular e mestre em Filosofia


pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Betina Sarue é doutora em Ciência Política pela Universidade de São


Paulo (USP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM).

Clarissa da Costa Moreira é professora da Escola de Arquitetura e Ur-


banismo da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Daniel Sanfelici é professor do Departamento de Geografia e do Pro-


grama de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Flumi-
nense (UFF).

433
434 ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE UM ESPAÇO EM MUTAÇÃO

Denilson Araújo de Oliveira é professor do Departamento de Geo-


grafia e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Faculdade de
Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ-FFP).

Ester Limonad é professora titular do Departamento de Geografia e do


Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Flu-
minense (UFF).

Fernanda Sánchez é professora titular da Escola de Arquitetura e Urba-


nismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Flávia Fontes Tostes é mestranda em População, Território e Estatísticas


Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE) do IBGE.

Gabriel Silvestre é professor da School of Architecture, Planning and


Landscape da Newcastle University.

Heitor Vianna Moura é doutor em Planejamento Urbano e Regional


pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Kevin Funk é afiliado ao Institute of Latin American Studies, professor


do The Committee on Global Thought e do Departamento de Ciência
Política da Columbia University.

Larissa de Moura Porto é aluna do Programa de Pós-graduação em


Gestão em Saúde do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa (Hospital
Israelita Albert Einstein).

Leopoldo Guilherme Pio é professor do Departamento de Saúde Co-


letiva da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Luiz Baltar é fotógrafo, artista visual e mestrando em Linguagens Vi-


suais pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universida-
de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Márcio Piñon de Oliveira é professor titular do Departamento de Geo-


grafia e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade
Federal Fluminense (UFF).
Sobre as autoras e os autores 435

Mario Brum é professor do Departamento de História e do Mestrado


Profissional em Ensino de História da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ).

Miriam Generoso é articuladora territorial do Morro da Providência


e mestranda em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Flumi-
nense (UFF).

Pedro da Luz é professor da Escola de Arquitetura e Urbanismo e do


Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universi-
dade Federal Fluminense (UFF).

Rafael Soares Gonçalves é professor do Departamento de Serviço So-


cial da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Renata Latuf Sanchez é doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Uni-


versidade de São Paulo (USP).

Rita de Cássia Montezuma é professora do Departamento de Geografia


e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

Rossana Brandão Tavares é professora da Escola de Arquitetura e Ur-


banismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Tania Andrade Lima é professora do Programa de Pós-graduação em


Arqueologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro (UFRJ).

Yana Moysés é doutora em Geografia pela Universidade Federal Flumi-


nense (UFF) e professora da Escola de Engenharia do Centro Universi-
tário Celso Lisboa.
Esta obra foi produzida no Rio de Janeiro
pela Consequência Editora em junho de
2022. Na composição foram empregadas
as tipologias Minion e Helvetica.

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